O encheirídion de_epicteto

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O ENCHEIRÍDION DE EPICTETO EDIÇÃO BILÍNGUE Aldo Dinucci; Alfredo Julien (Introdução, Tradução e Notas) PRIMEIRA EDIÇÃO, 2012 SÃO CRISTÓVÃO-SE

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  • O ENCHEIRDION DE EPICTETO

    EDIO BILNGUE

    Aldo Dinucci; Alfredo Julien

    (Introduo, Traduo e Notas)

    PRIMEIRA EDIO, 2012 SO CRISTVO-SE

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    ISBN 978-85-7822-224-6 COPYRIGHT @ A. DINUCCI, A. JULIEN 2012.

    Reviso: Alexandre Cabeceiras e Paulo Cesar Gonalves.

    VIVA VOX

    Grupo de Pesquisa em Filosofia Clssica e Contempornea Departamento de Filosofia/UFS

    http://vivavox.site90.com ; [email protected]

    Grupo de Estudos em Histria Intelectual e das Ideias Departamento de Histria/UFS

    [email protected]

    EdiUFS - Editorial Prometeus - COMIT CIENTFICO: Dr. Ado Peixoto (UFG); Dr. Alberto Oliva (UFRJ); Dr. Aldo Dinucci (UFS); Dr. Alexandre Cabeceiras (UFS); Dr. Alfredo Julien (UFS); Dr. Amon Pinho (UFU); Dr. Antonio Jos Romera Valverde (PUC-SP e EAESP-FGV); Dra. Constana Terezinha Marcondes Cesar (UFS); Dr. Fbio Duarte Joly (UFRB); Dr. Fernando Santoro (UFRJ); Dr. Gabriele Cornelli (UNB); Dr. Henrique Graciano Murachco (UFPB); Dr. Jacinto Lins Brando (UFMG); Dr. Jos Maria Arruda (UFC); Dr. Jos Maurcio de Carvalho (UFSJ); Dr. Luigi Bordin (UFRJ); Dr. Manuel Tavares Gomes (Universidade Lusfona - Portugal); Dr. Marcos Antonio da Silva (UFS); Dra. Marly Bulcao Lassance Britto (UERJ); Dr. Matheus Trevisam (UFMG); Dr. Otvio Lopes Machado de Mendona (UFPB); Dr. Roberto Jarry (UFPB); Dra. Solange Norjosa (UEPB); Dr. Trik de Athayde Prata (UFS); Dra. Vera Maria Portocarrero (UERJ); Dr. Washington Luiz (UFPE).

    ARRIANO FLVIO A775m O Encheirdion de Epicteto. Edio Bilngue.

    Traduo do texto grego e notas Aldo Dinucci; Alfredo Julien. Textos e notas de Aldo Dinucci; Alfredo Julien. So Cristvo. Universidade Federal de Sergipe, 2012. 96 p. 1. Filosofia. 2. tica. 3. Estoicismo. 4. Epicteto.

    5. Socratismo. I. Ttulo.

    CDU 17

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    INTRODUO

    A quem se destina e para que serve o Encheirdion de

    Epicteto O termo grego encheirdion se diz do que est mo,

    sendo equivalente ao termo latino manualis, manual em nossa lngua. Significa tambm punhal ou adaga, equivalente ao latino pugio, arma porttil usada pelos soldados romanos atada cintura. Simplcio, em seu Comentrio ao Encheirdion de Epicteto1, diz-nos que Arriano2, que escreveu o Encheirdion, sintetizou as coisas mais importantes e necessrias em filosofia a partir das palavras de Epicteto para que estivessem vista e mo (192 20 s.). Assim, o Encheirdion serve no como uma introduo aos que ignoram a filosofia estoica, mas antes queles j familiarizados com os princpios do Estoicismo, para que tenham uma sntese que possam sempre levar consigo e utilizar. Tal uso se relaciona tradio estoica da meditao diria, para o que o Encheirdion serviria de guia e inspirao. Epicteto discorre sobre esse tema nas Diatribes em diversas ocasies (I,1,25; I,27,6 ss.; II,1,29; III,10,1). Marco Aurlio Antonino3, cuja obra pstuma, as Meditaes, consiste justamente nessa atividade, compara os princpios da filosofia com os instrumentos da medicina, afirmando que os mdicos, que sempre tm mo os instrumentos de sua arte, devem ser imitados (III.13; cf. IV.3). Sneca se refere prtica da meditao diria na Carta a

    1 SIMPLCIO. On Epictetus Handbook. 1-26. Trad. C. Brittain; T. Brennan. New York: Cornell, 2002. 2 Lcio Flvio Arriano Xenofonte (ca. 86 - 160), cidado romano de origem grega e aluno de Epicteto, que compilou as aulas de seu professor em oito livros (As Diatribes de Epicteto), dos quais quatro sobrevivem, e redigiu o Encheirdion. 3 MARCO AURLIO ANTONINO. Meditations. Trad. C. R. HAINES. Harvard: Loeb Classical Library, 1916.

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    Luclio XCIV4 e em Dos Benefcios5 VIII, 1. Ccero se refere igualmente a essa prtica no De Natura Deorum6 (L.I.30) e no De Finibus7 (L.II.7).

    Rplica de pugio romano (fonte: swords24.eu)

    Ainda no promio de seu Comentrio (192-193), Simplcio

    menciona uma carta que prefaciava, na Antiguidade, o Encheirdion de Arriano a certo Messaleno. De acordo com Simplcio, tal carta asseverava que o objetivo do Encheirdion , ao encontrar pessoas capazes de serem persuadidas por ele, no apenas afet-las atravs das palavras, mas fazer com que de fato apliquem s suas vidas as ideias contidas nele, tornando livres suas almas. Simplcio afirma que as palavras do Encheirdion so efetivas, capazes de agitar a alma de qualquer um que no esteja totalmente mortificado.

    Simplcio observa tambm que, na perspectiva epictetiana, a alma deve libertar-se das emoes irracionais e que as coisas externas devem ser usufrudas de modo consistente com o bem genuno (193 30 ss.). Uma das caractersticas do pensamento epictetiano notadas por Simplcio que quem o pe em prtica pode alcanar a felicidade sem a promessa de recompensa post mortem para a virtude. Como salienta Simplcio: 4 SNECA. Moral Essays, Volumes I, II, III. Trad. J. W. Basore.Harvard: Loeb Classical Library, 1923. 5 SNECA. Epistles, Volume I, II, III. Trad. R. M. Gummere.Harvard: Loeb Classical Library, 1917-1925. 6 CCERO. On the Nature of the Gods; Academica. Trad. H. Rackham. Harvard: Loeb Classical Library, 1933. 7 CCERO. On Ends (The Finibus). Trad. H. Rackham. Harvard: Loeb Classical Library, 1914.

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    Mesmo supondo-se a alma mortal e destrutvel junto com o corpo, ainda assim [...] qualquer um que viva de acordo com esses preceitos ser genuinamente feliz [...] j que ter atingindo sua prpria perfeio e alcanado o bem que lhe prprio. (194)

    Simplcio, notando que as palavras do Encheirdion so enrgicas e gnmicas, mantendo entre si certa relao e ordem lgica, objetivando a arte que retifica a vida humana e elevando a alma humana ao seu prprio valor (194 15 ss.), observa que o Encheirdion no se remete nem ao asceta, nem ao homem terico, que se distanciam das coisas do corpo, mas visa o homem que tem o corpo como um instrumento e que deseja ser um genuno ser humano, almejando reconquistar a nobreza de sua ancestralidade, com a qual Deus agraciou os homens. Quanto a isso, diz-nos Simplcio:

    Algum assim deseja ardentemente que sua alma racional viva como ela por natureza, governando o corpo e transcendendo-o, usando-o no como uma parte coordenada, mas como um instrumento. (195 50 ss.)

    Simplcio (196 ss.) ressalta ainda que, no Encheirdion, Epicteto parte da tese sustentada por Scrates no Primeiro Alcibades (I 129 c78), segundo a qual o genuno ser humano uma alma racional que usa o corpo como um instrumento. Simplcio assim formaliza tal argumento de Scrates no Primeiro Alcibades:

    (i) O homem usa suas mos para trabalhar; (ii) Quem usa algo se distingue daquilo que usa como

    instrumento; (iii) Ora, necessrio que o homem seja ou o corpo, ou a

    alma, ou combinao de ambos. Mas se a alma governa o corpo e no o contrrio, o homem no o corpo e nem, pela mesma razo, a combinao de ambos.

    8 PLATO. First Alcibiades.Trad. W. R. M. Lamb. Harvard: Loeb Classical Library,1927.

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    (iv) Disso decorre que o corpo no se move por si mesmo e um cadver, pois a alma que o move;

    (v) Consequentemente, o corpo tem status de instrumento em relao alma.

    Sobre a Diviso em Captulos do Encheirdion de

    Epicteto: Boter (1999, p. 146-79) observa que h trs modos bsicos

    de dividir o texto do Encheirdion: o inaugurado pela edio de Haloander (152910), que divide o texto em 62 captulos; o introduzido por Wolf (156011), que divide o texto em 79 captulos; e o de Upton (174112), que divide o texto em 52 captulos. Este ltimo seguido por Schweighauser, que divide ainda o captulo 50 em dois, perfazendo ao todo 53 captulos (tal a diviso que prevalece em todas as edies subsequentes). Boter (1999, p. 147) mantm a diviso em nmeros de Schweighauser, embora subdividindo quatro captulos em dois (captulos 5, 14, 19, 48). Boter observa que a subdiviso do captulo 5 sustentada de modo unnime pela tradio; que a subdiviso do captulo 14 sustentada por Simplcio; que a subdiviso do captulo 19 sustentada por quase toda a tradio; e que apenas por Simplcio o captulo 48 apresentado como um nico. O captulo 33 constitui um caso especial: embora muitas de suas sees sejam apresentadas como captulos diferentes em diversos manuscritos, Boter, por considerar tratar-se tal captulo de um todo coerente, apresenta- 9 BOTER, G. The Encheiridion of Epictetus and its Three Christian Adaptations: Transmission & Critical Editions. Leiden: Brill, 1999. 10 HALOANDER. Epicteti Encheiridion. Nuremberg: 1529 11 WOLF. H. Epicteti Enchiridion: una cum Cebetis Thebani Tabula Grc. & Lat. Quibus... accesserunt e graeco translata Simplicii in eundem Epicteti libellum doctissima scholia, Arriani commentarium de Epicteti disputationibus libri iiii, item alia ejusdem argumenti in studiosorum gratiam. Basilia: 1560. 12 UPTON J. Epicteti quae supersunt dissertationes ab Arriano collectae nec non Enchiridion et fragmenta Graece et Latine ... cum integris Jacobi Schegkii et Hieronymi Wolfii selectisque aliorum doctorum annotationibus, 2 vol. Londres: Thomas Woodward, 1741.

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    o como um s. O Texto Grego estabelecido por Boter A edio do texto estabelecido por Gerard Boter do

    Encheirdion de Epicteto preenche uma lacuna de sculos quanto aos estudos epictetianos. Segundo a ortodoxia, Epicteto nada escreveu. Tudo o que nos chegou de seu pensamento se deve ao seu discpulo Flvio Arriano: os quatro livros das Diatribes de Epicteto e, claro, o Encheirdion de Epicteto. Boter comenta que, enquanto nas Diatribes podemos ouvir Epicteto falando-nos em viva voz, no Encheirdion nos deparamos com preceitos estoicos dispostos explicitamente, alm de snteses de vrias partes das Diatribes (2007, p. v).

    Boter observa que, durante o perodo bizantino, o Encheirdion mereceu trs parfrases crists que nos chegaram: uma de Pseudo-Nilo; outra intitulada Paraphrasis Christiana; e outra ainda (o Encheirdion Christianum), descoberta por Michel Spanneut no cdice Vaticanus 223113.

    O Encheirdion foi traduzido pela primeira vez para o latim por Niccolo Perotti (145014), traduo seguida por aquela de ngelo Poliziano (147915). O texto foi pela primeira vez editado em grego16 por Haloander em 1529, seguido por Hieronimus Wolff em 156O, edies estas que foram tomadas como parmetro pelos estudiosos nos dois sculos seguintes. Em 1741 Upton constituiu novo texto17, e Schweighauser publicou a primeira edio corrigida do texto grego do

    13 Cf. SPANNEUT. pictte chez les moines IN: MSR 29, 1972, p. 49-57. 14 NICCOLO PEROTTI. Epicteti enchiridium a Nicolao perotto e graeco in latinum translatum. Veneza, 145O. 15 POLIZIANO, A. Epicteti Stoici Enchiridion et Graeco interpretatum ab Angelo Politiano. Veneza: J. Anthonium et Fratres de Sabio, 1479. 16 O Encheirdion foi originamente escrito por Arriano em grego koin. 17 UPTON J. Epicteti quae supersunt dissertationes ab Arriano collectae nec non Enchiridion et fragmenta Graece et Latine [...] cum integris Jacobi Schegkii et Hieronymi Wolfii selectisque aliorum doctorum annotationibus, 2 vol. Londres: Thomae Woodward, 1741.

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    Encheirdion em 179818. O prximo a trabalhar na constituio do texto do Encheirdion foi Schenkl, cuja edio de 1916 foi adotada pelos estudiosos nas dcadas seguintes. Schenkl, porm, aps o gigantesco trabalho de estabelecer o texto das Diatribes19, no desejou dedicar-se a fazer uma edio crtica do Encheirdion.

    Segundo Boter (2007, p. vi), o grande nmero de manuscritos, as parfrases crists e o Comentrio de Simplcio desencorajaram os estudiosos quanto a constituir tal edio crtica. Essa tarefa foi levada a cabo pelo prprio Gerard Boter em livro publicado em 199920.

    Boter partiu de sete fontes principais para o estabelecimento do texto do Encheirdion:

    1. Os cdices que contm o texto do Encheirdion; 2. Os cdices que contm o Comentrio de Simplcio; 3. Os ttulos contidos em alguns cdices do Comentrio de

    Simplcio; 4. Os ttulos suplementares contidos em alguns cdices do

    Comentrio de Simplcio; 5. Os trechos das Diatribes dos quais Arriano fez snteses

    que adicionou ao Encheirdion; 6. Citaes do Encheirdion feitas por autores antigos de

    sculos posteriores; 7. As trs parfrases crists. Segundo Boter (2007, p. vii), h exatamente 59 cdices

    contendo o Encheirdion, sendo que nenhum deles anterior ao sculo XIV. Os cdices contendo as parfrases crists so bem mais antigos: alguns datam dos sculos X (Laurentianus 55,4 e Parisinus gr. 1053) e XI (Nili Encheiridii Codex Marcianus gr. 131), o que evidencia que, durante o perodo bizantino, as

    18 SCHWEIGHAUSER. Epicteteae Philosophiae Monumenta. 3 vol. Leipsig: Weidmann, 1798. 19 SCHENKL H. Epictetus Dissertationiones Ab Arriani Digestae. Stutgart, Taubner, 1916. 20 BOTER, G. The Encheiridion of Epictetus and its Three Christian Adaptations. Leiden: Brill, 1999.

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    parfrases crists despertavam mais interesse que o prprio Encheirdion de Epicteto.

    Entre os mais antigos cdices contendo o Encheirdion de Epicteto esto os seguintes: o Parisinus suppl. gr. 1164, o Vaticanus gr. 1950 (que contm apenas os trs primeiros captulos) e o Oxoniensis Canonicianus gr. 23 (que possui apenas fragmentos). Os cdices do Encheirdion de Epicteto dividem-se em duas famlias: uma que conta apenas com o Atheniensis 373 e outra que engloba todos os demais. A primeira famlia complementada pelos ttulos supridos pelo cdice Vaticanus gr. 327, no qual se encontra o Comentrio de Simplcio.

    Quanto aos cdices do Comentrio de Simplcio, remetemos o leitor a I. Hadot, que realizou uma edio crtica de tal obra21. Boter observa que Simplcio, ao comentar Epicteto, nem sempre fiel aos termos que este ltimo utiliza, do que se conclui que, embora no se deva negligenciar o testemunho de Simplcio, preciso utiliz-lo com cautela (2007, p. ix).

    Quanto aos ttulos presentes em alguns cdices do Comentrio de Simplcio, Boter informa que, originalmente, apenas o incio dos captulos era posto frente de cada comentrio. Porm, em alguns cdices, nos dois primeiros captulos encontra-se o texto da Paraphrasis Christiana; no terceiro, os textos do Encheirdion e da Paraphrasis Christiana se confundem; e da em diante aparece somente o texto do Encheirdion, cuja fonte a mesma do cdice Atheniensis 373.

    Alm dessas fontes, temos os livros das Diatribes de Epicteto, a partir das quais, como j observamos acima, Arriano confeccionou o Encheirdion.

    Entre os autores posteriores que so fontes para o estabelecimento do texto do Encheirdion destaca-se Estobeu, que cita Epicteto abundantemente.

    21 I. HADOT. Simplicius. Commentaire sur le Manuel d'pictte, Introduction et dition critique du texte grec. Leiden: Brill, 1996.

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    H tambm autores patrsticos, entre os sculos II e VI, que tratam do Encheirdion, como Eusbio, Ambrsio, Baslio Magno, Dorotheus de Gaza, Procpio de Gaza e Sinsio. Estes ltimos autores em nada contribuem para o estabelecimento do Encheirdion, exceto no que se refere ao oitavo captulo, discutido por Baslio, Dorotheus e Procpio.

    Entre os neoplatnicos, alm de Simplcio, so especialmente relevantes os comentrios a Plato de Olimpiodoro e Proclo. Tambm outros autores antigos (como Luciano, Dion Crisstomo e Antnio Magno) e autores rabes (como Al-Kindi e Ibn Fatik22) so utilizados para estabelecer o texto do Encheirdion.

    Por fim temos as trs parfrases crists do Encheirdion de Epicteto.

    A parfrase do Pseudo-Nilo, composta em data incerta, foi atribuda a Nilo porque em alguns cdices ela aparece entre as obras deste ltimo (cf. cdice Vaticanus Ottobonianus gr. 25, lavrado entre 1563 e 1564). Seu texto mais antigo encontra-se no cdice Marcianus gr. 131, lavrado no sculo XI. Essa parfrase consiste, na verdade, do Encheirdion com uma srie de interpolaes, sobretudo nos captulos onde Epicteto afirma teses contrrias ortodoxia catlica (captulos 32, 33 e 52). O autor tambm substitui os exempla de Epicteto por nomes cristos (como Paulo no lugar de Scrates no captulo 51). Tambm hoi theoi (os deuses) substitudo por ho Theos (o Deus) ao longo do texto.

    Os cdices da Paraphrasis Christiana, composta algum tempo antes do ano 950, dividem-se em duas famlias, das quais uma consiste somente do cdice Laurentianus 55.4, e a outra, dos demais.

    O cdice Vaticanus gr. 2231, que contm o nico exemplar conhecido do Encheirdion Christianum (descoberto, como observamos acima, foi por Spanneut) foi lavrado entre os anos

    22 Cf. JADAANE F. L'influence du stoicisme sur la pense musulmane. Beirute: Dar el-Machreq, 1968.

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    1337 e 1338. Seguimos em nossa traduo o texto estabelecido por

    Boter. Cotejamos nosso trabalho com as melhores tradues disponveis, dando especial ateno s de Nicholas P. White, Jean-Baptiste Gourinat e Pierre Hadot23.

    Esttua equestre de Marco Aurlio Antonino, imperador de Roma e seguidor de Epicteto (fonte: noeyiyo.wordpress.com)

    23 Cf. HADOT, P. Manuel dpictte. Paris: LGF, 2000; GOURINAT, J. P. Premires leons sur Le Manuel dpictte. Paris: PUF, 1998; WHITE, N. P. Epictetus, The Handbook, the Encheiridion. Cambridge: Hacket, 1983.

  • O ENCHEIRDION DE EPICTETO

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    TRADUO:

    ALDO DINUCCI; ALFREDO JULIEN

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    Epicteti Enchiridium Una Cum Cebetis Thebani Tabula - Edio de

    1683 em grego e latim de A. Berkelius. Primeira pgina. (Fonte: Wikipedia.Org)

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    [1.1] Das coisas existentes, algumas so encargos nossos1; outras no. So encargos nossos o juzo2, o impulso3, o desejo4, a repulsa5 em suma: tudo quanto seja ao nossa. No so encargos nossos o corpo, as posses, a reputao, os cargos pblicos em suma: tudo quanto no seja ao nossa. [1.2] Por natureza, as coisas que so encargos nossos so livres6, desobstrudas7, sem entraves8. As que no so encargos nossos so dbeis9, escravas, obstrudas10, de outrem11. [1.3] Lembra ento que, se pensares12 livres as coisas escravas por natureza e tuas as de outrem, tu te fars entraves13, tu te afligirs14, tu te inquietars15, censurars tanto os deuses como os homens. Mas se pensares teu unicamente o que teu, e o que de outrem, como o , de outrem, ningum jamais te constranger16, ningum te far obstculos, no censurars ningum, nem acusars quem quer que seja, de modo algum agirs constrangido, ningum te causar dano, no ters inimigos, pois no sers persuadido em relao a nada nocivo. [1.4] Ento, almejando coisas de tamanha importncia, lembra que preciso que no te empenhes de modo comedido, mas que abandones completamente algumas coisas e, por ora, deixes outras para depois. Mas se quiseres aquelas coisas e tambm ter cargos e ser rico, talvez no obtenhas estas duas ltimas, por tambm buscar as primeiras, e absolutamente no atingirs aquelas coisas por meio das quais unicamente resultam a liberdade e a felicidade17. [1.5] Ento pratica dizer prontamente a toda representao18 bruta19: s uma representao e de modo algum a coisa que se apresenta20. Em seguida, examina-a e testa-a com essas mesmas regras que possuis, em primeiro lugar e principalmente se sobre coisas que so encargos nossos ou no. E caso esteja entre as coisas que no sejam encargos nossos, tem mo que: Nada para mim.

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    [2.1] Lembra que o propsito21 do desejo obter o que se deseja, o propsito da repulsa no se deparar com o que se evita22. Quem falha no desejo no-afortunado. Quem se depara com o que evita desafortunado. Caso, entre as coisas que so teus encargos, somente rejeites as contrrias natureza23, no te deparars com nenhuma coisa que evitas. Caso rejeites a doena, a morte ou a pobreza, sers desafortunado. [2.2] Ento retira a repulsa de todas as coisas que no sejam encargos nossos e transfere-a para as coisas que, sendo encargos nossos, so contrrias natureza. Por ora, suspende por completo o desejo, pois se desejares alguma das coisas que no sejam encargos nossos, necessariamente no sers afortunado. Das coisas que so encargos nossos, todas quantas seria belo desejar, nenhuma est ao teu alcance ainda. Assim, faz uso somente do impulso e do refreamento24, sem excesso, com reserva e sem constrangimentos. [3] Sobre cada uma das coisas que seduzem 25, tanto as que se prestam ao uso quanto as que so amadas26, lembra de dizer de que qualidade ela , comeando a partir das menores coisas. Caso ames um vaso de argila, [diz] que Eu amo um vaso de argila, pois se ele se quebrar, no te inquietars. Quando beijares ternamente teu filho ou tua mulher, [diz] que beijas um ser humano, pois se morrerem, no te inquietars.

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    [4] Quando estiveres prestes a empreender alguma ao, recorda-te de que qualidade ela . Se fores aos banhos, considera o que acontece na sala de banho: pessoas que espirram gua, empurram, insultam, roubam. Empreenders a ao com mais segurana se assim disseres prontamente: Quero banhar-me e manter a minha escolha27 segundo a natureza. E do mesmo modo para cada ao. Pois se houver algum entrave28 ao banho, ters mo que Eu no queria unicamente banhar-me, mas tambm manter minha escolha segundo a natureza e no a manterei se me irritar com os acontecimentos. [5a] As coisas no inquietam os homens, mas as opinies sobre as coisas. Por exemplo: a morte nada tem de terrvel, ou tambm a Scrates teria se afigurado assim, mas a opinio a respeito da morte de que ela terrvel que terrvel! Ento, quando se nos apresentarem entraves, ou nos inquietarmos, ou nos afligirmos, jamais consideremos outra coisa a causa, seno ns mesmos isto : as nossas prprias opinies29. [5b] ao de quem no se educou acusar os outros pelas coisas que ele prprio faz erroneamente. De quem comeou a se educar, acusar a si prprio. De quem j se educou, no acusar os outros nem a si prprio.

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    [6] No te exaltes por nenhuma vantagem de outrem. Se um cavalo dissesse, exaltando-se: Sou belo, isso seria tolervel. Mas quando tu, exaltando-te, disseres: Possuo um belo cavalo, sabe que te exaltas pelo bem do cavalo. Ento o que teu? O uso das representaes. Desse modo, quando utilizares as representaes segundo a natureza, a ento te exalta, pois nesse momento te exaltars por um bem que depende de ti. [7] Em uma viagem martima, se sares para fazer proviso de gua quando o navio estiver ancorado, poders tambm pegar uma conchinha e um peixinho pelo caminho30. Mas preciso que mantenhas o pensamento fixo sobre o navio, voltando-te continuamente. Que jamais o piloto te chame. E se te chamar, abandona tudo para que no sejas lanado ao navio amarrado como as ovelhas. Assim tambm na vida. No ser um obstculo se ela te der, ao invs de uma conchinha e um peixinho, uma mulherzinha e um filhinho. Mas se o capito te chamar, corre para o navio, abandonando tudo, sem te voltares para trs. E se fores velho, nunca te afastes muito do navio, para que, um dia, quando o piloto te chamar, no fiques para trs. [8] No busques que os acontecimentos aconteam como queres, mas quere que aconteam como acontecem, e tua vida ter um curso sereno31. [9] A doena entrave para o corpo, mas no para a escolha32, se ela no quiser. Claudicar entrave para as pernas, mas no para a escolha. Diz isso para cada uma das coisas que sucedem contigo, e descobrirs que o entrave prprio de outra coisa e no teu.

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  • 23

    [10] Quanto a cada uma das coisas que sucedem contigo, lembra, voltando a ateno para ti mesmo, de buscar alguma capacidade que sirva para cada uma delas. Caso vires um belo homem ou uma bela mulher, descobrirs para isso a capacidade do autodomnio. Caso uma tarefa extenuante se apresente, descobrirs a perseverana33. Caso a injria, a pacincia. Habituando-te desse modo, as representaes no te arrebataro. [11] Jamais, a respeito de coisa alguma, digas: Eu a perdi, mas sim: Eu a restitu. O filho morreu? Foi restitudo. A mulher morreu? Foi restituda. A propriedade me foi subtrada, ento tambm foi restituda! Mas quem a subtraiu mau! O que te importa por meio de quem aquele que te d a pede de volta? Na medida em que ele der, faz uso do mesmo modo de quem cuida das coisas de outrem. Do mesmo modo dos que se instalam em uma hospedaria. [12.1] Se queres progredir34, abandona pensamentos como estes: Se eu descuidar dos meus negcios, no terei o que comer, Se eu no punir o servo, ele se tornar intil. Pois melhor morrer de fome, sem aflio e sem medo, que viver inquieto na opulncia. melhor ser mau o servo que tu infeliz. [12.2] Comea a partir das menores coisas. Derrama-se um pouco de azeite? roubado um pouco de vinho? Diz: Por esse preo vendida a ausncia de sofrimento; Esse o preo da tranquilidade. Nada vem de graa. Quando chamares o servo, pondera que possvel que ele no venha, ou, se vier, que ele no faa o que queres. Mas a posio dele no to boa para que dele dependa a tua tranquilidade.

  • 24

    [13.1] ,

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  • 25

    [13] Se queres progredir, conforma-te em parecer insensato e tolo quanto s coisas exteriores. No pretendas parecer saber coisa alguma. E caso pareceres ser algum para alguns, desconfia de ti mesmo, pois sabe que no fcil guardar a tua escolha35, mantendo-a segundo a natureza, e, , as coisas exteriores, mas necessariamente quem cuida de uma descuida da outra. [14a] Se quiseres que teus filhos, tua mulher e teus amigos vivam para sempre, s tolo, pois queres que as coisas que no so teus encargos sejam encargos teus; como tambm que as coisas de outrem sejam tuas. Do mesmo modo, se quiseres que o servo no cometa faltas, s insensato, pois queres que o vcio no seja o vcio, mas outra coisa. Mas se quiseres no falhar em teus desejos, isso tu podes. Ento exercita o que tu podes. [14b] O senhor de cada um quem possui o poder de conservar ou afastar as coisas desejadas ou no desejadas por cada um. Ento, quem quer que deseje ser livre, nem queira, nem evite o que dependa de outros. Seno, necessariamente ser escravo. [15] Lembra que preciso que te comportes como em um banquete. Uma iguaria que est sendo servida chega a ti? Estendendo a mo, toma a tua parte disciplinadamente36. Passa ao largo? No a persigas. Ainda no chegou? No projetes o desejo, mas espera at que venha a ti. do mesmo modo em relao aos teus filhos, tua mulher, aos cargos, riqueza, e um dia sers um valoroso conviva dos deuses. Porm, se no tomares as coisas mesmo quando sejam colocadas diante de ti, mas as desdenhares, nesse momento no somente sers um conviva dos deuses, mas governars com eles. dessa maneira, Digenes, Herclito e seus semelhantes foram, por mrito, divinos, e assim foram chamados.

  • 26

    [16.1]

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  • 27

    [16] Quando vires algum aflito, chorando pela ausncia do filho ou pela perda de suas coisas, toma cuidado para que a representao de que ele esteja envolto em males externos no te arrebate, mas tem prontamente mo que no o acontecimento que o oprime (pois este no oprime outro), mas sim a opinio sobre . No entanto, no hesites em solidarizar-te com ele com tuas palavras e, caso caiba, em lamentar-te junto. Mas toma cuidado para tambm no gemeres por dentro. [17] Lembra que s um ator de uma pea teatral, tal como o quer o autor . Se ele a quiser breve, breve ser. Se ele a quiser longa, longa ser. Se ele quiser que interpretes o papel de mendigo, para que interpretes esse papel com talento. se de coxo, de magistrado, de homem comum37. Pois isto teu: interpretar belamente o papel que te dado mas escolh-lo, cabe a outro. [18] Quando um corvo crocitar maus auspcios, que a representao no te arrebate, mas prontamente efetua a distino38 e diz: Isso nada significa para mim, mas ou ao meu pequenino corpo, ou s minhas pequeninas coisas, ou minha reputaozinha, ou aos meus filhos, ou minha mulher. Se eu quiser, todas as coisas significam bons auspcios para mim pois se alguma dessas coisas ocorrer, beneficiar-me delas depende de mim.

  • 28

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  • 29

    [19a] Podes ser invencvel se no te engajares em lutas nas quais vencer no depende de ti. [19b] Ao vires algum preferido em honras, ou muito poderoso, ou mais estimado, presta ateno para que jamais creias arrebatado pela representao que ele seja feliz39. Pois se a essncia do bem est nas coisas sob nosso encargo, no haver espao nem para a inveja, nem para o cime. Tu mesmo no irs querer ser nem general, nem prtane ou cnsul, mas homem livre. E o nico caminho para isso desprezar o que no encargo nosso. [20] Lembra que no insolente quem ofende ou agride, mas sim a opinio segundo a qual ele insolente. Ento, quando algum te provocar, sabe que o teu juzo que te provocou. Portanto, em primeiro lugar, tenta no ser arrebatado pela representao: uma vez que ganhares tempo e prazo, mais facilmente sers senhor de ti mesmo.40 [21] Que estejam diante dos teus olhos, a cada dia, a morte, o exlio e todas as coisas que se afiguram terrveis, sobretudo a morte. Assim, jamais ponderars coisas abjetas, nem aspirars 41 coisa alguma excessivamente.

  • 30

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  • 31

    [22] Se aspiras filosofia, prepara-te, a partir de agora para quando te ridicularizarem; para quando rirem de ti; para quando indagarem: Subitamente ele nos volta filsofo? e De onde vem essa gravidade no olhar?42 No adquiras tal gravidade no olhar, mas, como quem designado a esse posto pela divindade, agarra-te s coisas que se mostram as melhores para ti. Lembra que, se te prenderes a essas mesmas coisas, os que primeiro rirem de ti depois te admiraro. Mas se te deixares vencer por eles, recebers as risadas em dobro. [23] Se alguma vez te voltares para as coisas exteriores por desejares agradar algum, sabe que perdeste o rumo. Basta que sejas filsofo em todas as circunstncias. Mas se desejares tambm parecer , exibe-te para ti mesmo ser o suficiente.

  • 32

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  • 33

    [24.1] Que estes raciocnios no te oprimam: Viverei sem ser honrado e ningum serei em parte alguma. Pois se a falta de honra43 um mal como o , no se pode ficar em mau estado por causa de outro, no mais do que em situao vergonhosa. ao tua obter um cargo pblico ou ser convidado para um banquete? De modo algum. Como ento ser desonrado? Como tambm no sers ningum se preciso que sejas algum unicamente em relao s coisas sob teu encargo, coisas nas quais podes ser do mais alto valor? [24.2] Mas teus amigos ficaro desamparados? Desamparados! Dizes isso em relao a que? No tero de ti uns trocados, nem os fars cidados de Roma? Quem te disse que essas coisas esto sob teu encargo e no so aes de outrem? Quem capaz dar a outro o que ele mesmo no possui? Obtm posses, diz , para que tambm ns as tenhamos. [24.3] Se eu puder obter posses mantendo-me digno, leal e magnnimo, indicai-me o caminho e eu as obterei. Mas se credes digno que eu perca meus bens os que me so prprios para que conserveis coisas que no so bens, atentai como sois inquos e ignorantes. O que desejais mais: dinheiro ou um amigo leal e digno? Ajudai-me sobretudo nisso e no creiais ter valor que eu faa coisas pelas quais rejeitaria o que propriamente meu. [24.4] Mas a ptria, diz , no que depender de mim, estar desamparada. Pelo contrrio, pois de que tipo seria esse amparo? no ter por teu intermdio prticos nem banhos pblicos? E da? Pois no h sandlias por intermdio do ferreiro nem armas por intermdio do sapateiro, mas basta que cada um cumpra a ao que lhe prpria. Se forneceres outro cidado leal e digno em nada a beneficiarias? Sim. Ento tu mesmo no serias intil ptria. [24.5] Que lugar, diz , terei na cidade? O que te for possvel, mantendo-te, ao mesmo tempo, leal e digno. Mas se, desejando beneficiar a cidade, rejeitares essas qualidades, que benefcio serias para tornando-te indigno e desleal?

  • 34

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  • 35

    [25.1] Se algum receber maiores honras do que tu em um banquete, em uma saudao ou ao ser acolhido no conselho, e se essas coisas forem um bem, preciso alegrar-te por ele as ter obtido. Mas se forem males, no sofras porque no as obtiveste. Lembra que no podes se no agires para obter coisas que no so encargos nossos merecer uma parte igual . [25.2] Pois como quem no vai periodicamente porta de algum pode obter o mesmo que quem vai? Quem acompanha, o mesmo que quem no acompanha? Quem elogia, o mesmo que quem no elogia? Serias injusto e insacivel se, no pagando o preo pelo qual aquelas coisas so vendidas, desejasses obt-las gratuitamente. [25.3] Por quanto vendida uma alface? Que custe um bolo! Ento quem dispensa o bolo toma a alface, e tu, que no o dispensaste, no a tomas. No penses ter menos do que quem a tomou, pois do mesmo modo que ele possui a alface, tu possuis o bolo que no entregaste. [25.4] Assim tambm neste caso: no foste convidado para o banquete de algum, pois no deste ao anfitrio a quantia pela qual ele vende a refeio. Ele a vende por elogios, por obsquios. Se te vantajoso, paga o preo pelo qual ela vendida. Mas se queres no pagar por ela e obt-la, s insacivel e estpido. [25.5] Ento nada tens no lugar do repasto? Com certeza! No ters que elogiar quem no queres, nem aturar os que esto diante da porta dele.

  • 36

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  • 37

    [26] Aprende-se o propsito da natureza a partir do que no discordamos uns dos outros. Por exemplo: quando o servo de outrem quebra um copo, tem-se prontamente mo que Isso acontece. Ento, se o teu copo se quebrar, sabe que preciso que ajas tal como quando o copo de outro se quebra. Do mesmo modo, transfere isso tambm para as coisas mais importantes. Morre o filho ou a mulher de outro? No h quem no diga: humano. Mas, quando morre o prprio , diz-se prontamente: desafortunado que sou! preciso que lembremos como nos sentimos quando ouvimos a mesma coisa acerca dos outros. [27] Do mesmo modo que um alvo no fixado para no ser atingido, assim tambm a natureza do mal no existe no cosmos. [28] Se algum entregasse teu corpo a quem chegasse, tu te irritarias. E por que entregas teu pensamento44 a quem quer que aparea, para que, se ele te insultar, teu pensamento se inquiete e se confunda? No te envergonhas por isso?

  • 38

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  • 39

    [29.1] A respeito de cada ao, examina o que a antecede e o que a sucede e ento a empreende. Seno, primeiro te entusiasmars e, por no teres ponderado sobre as consequncias, depois, quando estas se mostrarem vergonhosas, desistirs. [29.2] Queres vencer os Jogos Olmpicos? Tambm eu, pelos deuses, pois uma coisa bela. Mas examina o que antecede e o que segue e ento empreende a ao. preciso ser disciplinado, submeter-se a regime alimentar, abster-se de guloseimas, exercitar-se obrigatoriamente na hora determinada (tanto no calor como no frio), no beber gua gelada nem vinho, mesmo que ocasionalmente. Em suma, confiar-se ao treinador como ao mdico. Depois, lanar-se luta e, por vezes, machucar as mos, torcer o tornozelo e engolir muita areia. s vezes, tanto ser fustigado quanto, depois de tudo isso, ser vencido. [29.3] Tendo examinado essas coisas, caso ainda queiras, torna-te atleta. Seno, do mesmo modo que as crianas se comportam (ora elas brincam de lutador, ora de gladiador, ora tocam trombetas, depois encenam uma tragdia), tambm tu sers ora atleta, ora gladiador, depois orador, em seguida filsofo, mas nada com tua alma toda. Como um macaco, imitars tudo o que vires. Uma coisa aps a outra te agradar, pois nada empreenders aps exame e investigao, mas ao acaso e sem ardor. [29.4] Alguns, ao contemplarem e ouvirem um filsofo (um desses que falam bem como Scrates e, de fato, quem capaz de falar como ele?), querem tambm eles prprios ser filsofos.

  • 40

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  • 41

    [29.5] Homem! Examina primeiro de que qualidade a coisa, depois observa a tua prpria natureza para saber se a podes suportar. Desejas ser pentatleta ou lutador? Olha teus braos e coxas. Observa teus flancos, [29.6] pois cada um nasceu para uma coisa. Crs que, 45, podes comer do mesmo modo, beber do mesmo modo, ter regras e falta de humor semelhantes? preciso que faas viglias, que suportes fadigas, que te afastes da tua famlia, que sejas desprezado pelos servos, que todos riam de ti, que tenhas a menor parte em tudo: nas honras, nos cargos pblicos, nos tribunais, em todo tipo de assunto de pequena monta. [29.7] Examina essas coisas se queres receber em troca delas a ausncia de sofrimento, a liberdade e a tranquilidade. Caso contrrio, no te envolvas. No sejas, como as crianas, agora filsofo, depois cobrador de impostos, em seguida orador, depois procurador de Csar. Essas coisas no combinam. preciso que sejas um homem, bom ou mal. preciso que cultives a tua prpria faculdade diretriz ou as coisas exteriores. preciso que assumas ou a arte acerca das coisas interiores ou acerca das exteriores. Isto : que assumas ou o posto de filsofo ou o de homem comum. [30] As aes convenientes so, em geral, medidas pelas relaes. teu pai? Isso implica que cuides dele; que cedas em tudo; que o toleres quando te insulta, quando te bate. Mas ele um mau pai? De modo algum, pela natureza, ests unido a um bom pai, mas a um pai. irmo injusto. Mantm o teu prprio posto em relao a ele. No examines o que ele faz, mas o que te dado fazer, e a tua escolha estar segundo a natureza. Pois se no quiseres, outro no te causar dano, mas sofrers dano quando supuseres ter sofrido dano. Deste modo ento descobrirs as aes convenientes para com o vizinho, para com o cidado, para com o general: se te habituares a considerar as relaes.

  • 42

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  • 43

    [31.1] Quanto piedade em relao aos deuses, sabe que o mais importante o seguinte: que possuas juzos corretos sobre eles (que eles existem e governam todas as coisas de modo belo e justo) e que te disponhas a obedec-los e a aceitar todos os acontecimentos, seguindo-os voluntariamente como realizaes da mais elevada inteligncia. Assim, no censurars jamais os deuses, nem os acusars de terem te esquecido. [31.2] Mas isso s possvel se tirares o bem e o mal das coisas que no so encargos nossos e os colocares nas nicas coisas que so encargos nossos. Pois se supuseres boas ou ms algumas das coisas que no so encargos nossos, absolutamente necessrio quando no atingires as que queres, ou te deparares com as que no queres que censures e odeies os responsveis. [31.3] Pois natural a todo vivente evitar e afastar-se das coisas que se apresentam nocivas e de suas causas, como tambm buscar e admirar as coisas benficas e suas causas. Ento inconcebvel que algum, pensando sofrer algum dano, alegre-se com o que lhe parece danoso. Do mesmo modo, tambm, impossvel que se alegre com o prprio dano. [31.4] Da tambm isto: um pai ofendido pelo filho quando no partilha com este as coisas que a este parecem boas. Polinices e Eteocles tambm agiram assim, por acreditarem que a tirania fosse um bem46. Em razo disso, o campons insulta os deuses, bem como o marinheiro, o comerciante, os que perdem as mulheres e os filhos. Pois a onde est o interesse, a tambm est a piedade. Quem cuida do desejo e da repulsa como se deve cuida tambm, do mesmo modo, da piedade. [31.5] Convm fazer libaes, sacrifcios e oferecer primcias, segundo os costumes ancestrais de cada um, mas de modo puro, no de modo indolente, nem descuidado, nem mesquinho, nem acima da prpria capacidade.

  • 44

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  • 45

    [32.1] Quando recorreres divinao, lembra que no sabes o que est por vir, mas vais ao adivinho para seres informado sobre isso. Vais sabendo, j que s filsofo, qual a qualidade do que est por vir: se for algo que no seja encargo nosso, absolutamente necessrio que no seja nem um bem, nem um mal. [32.2] Ento no leves ao adivinho desejo ou repulsa, seno te apresentars tremendo diante dele. Mas, discernindo que tudo o que vier indiferente, e nada (seja o que for) se refere a ti, pois poders fazer bom uso (e isso ningum te impedir), vai, confiante, aos deuses, como conselheiros. Alm disso, quando algo te for aconselhado, lembra quais conselheiros tu acolhes e quais, desobedecendo, recusars ouvir. [32.3] Consulta o orculo do mesmo modo que Scrates julgava ter valor: para os casos nos quais o exame como um todo se refere s consequncias, e os pontos de partida para conhecer o assunto no so dados nem pela razo, nem por alguma outra arte. Assim, quando precisares compartilhar um perigo com o amigo ou com a ptria, no consultes o orculo se deves compartilhar o perigo. Pois se o adivinho anunciar maus pressgios, evidente que isso significa ou a morte, ou a perda de alguma parte do corpo, ou o exlio. Mas a razo te impele, mesmo nessas situaes, a ficar ao lado do amigo ou da ptria e expor-te ao perigo. Portanto, d ateno ao maior dos adivinhos, Apolo Ptico, que expulsou do templo o homem que no socorreu o amigo que estava sendo assassinado47.

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  • 47

    [33.1] Fixa, a partir de agora, um carter e um padro para ti prprio, que guardars quando estiveres sozinho, ou quando te encontrares com outros. [33.2] Na maior parte do tempo, fica em silncio, ou, com poucas palavras, fala o que necessrio. Raramente, quando a ocasio pedir, fala algo, mas no sobre coisa ordinria: nada sobre lutas de gladiadores, corridas de cavalos, nem sobre atletas, nem sobre comidas ou bebidas assuntos falados por toda parte. Sobretudo no fales sobre os homens, recriminando-os, ou elogiando-os, ou comparando-os. [33.3] Ento, se fores capaz, conduz a tua conversa e a dos que esto contigo para o que conveniente. Porm, se te encontrares isolado em meio a estranhos, guarda silncio. [33.4] No rias muito, nem sobre muitas coisas, nem de modo descontrolado. [33.5] Recusa-te a fazer juramentos, se possvel por completo; seno, na medida do possvel. [33.6] Pe de lado os banquetes de estranhos e de homens comuns, mas se um dia surgir uma ocasio propcia, mantm-te atento e jamais caias na vulgaridade. Pois sabe que, quando o companheiro for impuro, quem convive com ele necessariamente se torna impuro, mesmo que, por acaso, esteja puro. [33.7] Acolhe as coisas relativas ao corpo na medida da simples necessidade: alimentos, bebidas, vestimenta, serviais mas exclui por completo a ostentao ou o luxo. [33.8] Quanto aos prazeres de Afrodite48, deves preservar-te ao mximo at o casamento, mas se te engajares neles, preciso tom-los conforme o costume. No entanto, no sejas grave nem crtico com os que fazem uso deles, nem anuncies repetidamente que tu prprio no o fazes. [33.9] Se te disserem que algum, maldosamente, falou coisas terrveis de ti, no te defendas das coisas ditas, mas responde que Ele desconhece meus outros defeitos, ou no mencionaria somente esses.

  • 48

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  • 49

    [33.10] No necessrio ir frequentemente aos espetculos, mas se surgir uma ocasio propcia, no mostres preocupao com ningum seno contigo mesmo isto : quere que aconteam somente as coisas que acontecerem e que vena somente o vencedor, pois assim tu no te fars entraves. E abstm-te por completo de gritar, rir de algum ou comover-te. Uma vez tendo sado do espetculo, no fales muito sobre o que l se passou, na medida em que no leva tua correo, pois, a partir de tal , ser evidente que admiraste o espetculo. [33.11] Nem ao acaso, nem prontamente vs s palestras dos outros, mas se fores, guarda ao mesmo tempo reverente, equilibrado e cordial. [33.12] Quando fores te encontrar com algum sobretudo algum entre os que parecem proeminentes indaga a ti mesmo o que Scrates ou Zeno fariam em tais circunstncias, e no te faltaro meios para agir convenientemente. [33.13] Quando fores encontrar algum do grupo dos muito poderosos, considera de que no o achars em casa; de que sers impedido de entrar; de que as portas se fecharo para ti; de que ele no te dar ateno. E se ainda assim for conveniente ir, vai. Mas suporta os acontecimentos e jamais digas a ti mesmo: Isso no vale tanto. Pois orientar-se pelas as coisas exteriores prprio do homem comum. [33.14] Nas conversas, desiste de lembrar, frequente e desmedidamente, as tuas aes e aventuras perigosas, pois no prazeroso para os outros ouvir as coisas que te aconteceram quanto te lembr-las. [33.15] Desiste tambm de provocar risadas, pois tal atitude resvala na vulgaridade, como tambm pode fazer com que os teus prximos percam o respeito por ti. [33.16] Encetar conversas vergonhosas perigoso. Quando isso ocorrer, se a ocasio for propcia, repreende quem se comporta assim; se no , mostra, por meio do silncio, do rubor e de um ar sombrio, que ests descontente com a conversa.

  • 50

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  • 51

    [34] Quando apreenderes a representao de algum prazer ou de alguma outra coisa guarda-te e no sejas arrebatado por ela. Que o assunto te espere: concede um tempo para ti mesmo. Lembra ento destes dois momentos: um, no qual desfrutars o prazer, e outro posterior, no qual, tendo-o desfrutado, tu te arrependers e criticars a ti mesmo. Compara ento com esses dois momentos o quanto, abstendo-te , tu te alegrars e elogiars a ti prprio. Porm, caso a ocasio propcia para empreender a ao se apresente, toma cuidado! Que no te venam sua doura e sua seduo. Compara isso ao quo melhor ser para ti teres a cincia da obteno da vitria. [35] Quando discernires que deves fazer alguma coisa, faz. Jamais evites ser visto fazendo-a, mesmo que a maioria suponha algo diferente sobre . Pois se no fores agir corretamente, evita a prpria ao. Mas se corretamente, por que temer os que te repreendero incorretamente? [36] Assim como dia e noite possuem pleno valor quando em uma proposio disjuntiva, mas no em uma conjuntiva, assim tambm tomar a maior parte tem valor para o corpo, mas no o valor comunitrio que preciso observar em um banquete. Quando ento comeres com algum, lembra de no veres somente o valor para o corpo dos pratos postos tua frente, mas que tambm preciso que guardes o respeito para com o anfitrio. [37] Se aceitares um papel alm de tua capacidade, tanto perders a compostura quanto deixars de lado aquele que possvel que bem desempenhes.

  • 52

    [38.1] ,

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  • 53

    [38] Do mesmo modo que, ao caminhares, tomas cuidado para que no pises em um prego ou no toras o p, assim tambm toma cuidado para que no causes dano tua faculdade diretriz. Se guardarmos atentamente essa regra, ns empreenderemos cada ao com mais segurana. [39] O corpo a medida das posses de cada um, como o p o da sandlia. Se te fixares nisso, guardars a medida. Mas se fores alm, necessariamente cairs no abismo. E assim, igualmente, a respeito da sandlia. Se fores muito alm do p49, ela torna-se dourada, em seguida prpura, depois bordada, pois, uma vez ultrapassada a medida, no h mais limite algum. [40] As mulheres, logo aps os seus quatorze anos, so chamadas de senhoras pelos homens. Vendo assim que nenhuma outra coisa lhes cabe, exceto se deitarem com eles, comeam a se embelezar, e nisso depositam todas as esperanas. importante ento que cuidemos para que percebam que por nenhuma outra coisa so honradas, seno por se apresentarem disciplinadas e dignas50. [41] sinal de incapacidade ocupar-se com as coisas do corpo, tal como exercitar-se muito, comer muito, beber muito, evacuar muito, copular muito. preciso fazer essas coisas como algo secundrio: que a ateno seja toda para o pensamento.

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  • 55

    [42] Quando algum te tratar mal ou falar mal de ti, lembra que ele o faz ou fala pensando que isso lhe conveniente. No lhe possvel, ento, seguir o que se te afigura, mas o que se lhe afigura, de modo que, se equivocadamente se lhe afigura, aquele que sofre o dano quem est enganado. Com efeito, se algum supuser falsa uma proposio conjuntiva verdadeira, no a proposio conjuntiva que sofre o dano, mas quem se engana. Agindo de acordo com isso, sers gentil com quem te insulta. Diz, pois, em cada uma dessas ocasies: Assim lhe parece. [43] Toda coisa tem dois lados: um suportvel e outro no suportvel. se teu irmo for injusto , no tomes o por a, isto , que ele injusto (pois esse no o suportvel), mas antes por aqui: que ele teu irmo e que fostes criados juntos assim o tomars do suportvel51. [44] Estes argumentos so inconsistentes: Eu sou mais rico do que tu, logo sou superior a ti; Eu sou mais eloquente do que tu, logo sou superior a ti. Mas, antes, estes so consistentes: Eu sou mais rico do que tu, logo minhas posses so maiores do que as tuas; Eu sou mais eloquente do que tu, logo minha eloquncia maior do que a tua. Pois tu no s nem as posses, nem a eloquncia. [45] Algum se banha de modo apressado: no digas que ele de modo ruim, mas de modo apressado. Algum bebe muito vinho: no digas que ele de modo ruim, mas que muito. Pois, antes de discernir a opinio dele, como sabes que ele de modo ruim? Assim, no ocorrer que apreendas as representaes compreensivas de umas coisas e ds assentimento a outras.

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  • 57

    [46.1] Jamais te declares filsofo. Nem, entre os homens comuns, fales frequentemente sobre princpios filosficos52, mas age de acordo com os princpios filosficos. Por exemplo: em um banquete, no discorras sobre como se deve comer, mas come como se deve. Lembra que Scrates, em toda parte, punha de lado as demonstraes, de tal modo que os outros o procuravam quando desejavam ser apresentados aos filsofos por ele. E ele os levava! [46.2] E dessa maneira, sendo desdenhado, ele ia. Com efeito, caso, em meio a homens comuns, uma discusso sobre algum princpio filosfico sobrevenha, silencia ao mximo, pois o perigo de vomitar imediatamente o que no digeriste grande. E quando algum te falar que nada sabes e no te morderes, sabe ento que comeaste a ao. Do mesmo modo que as ovelhas no mostram o quanto comeram, trazendo a forragem ao pastor, mas, tendo digerido internamente o pasto, produzem l e leite, tambm tu no mostres os princpios filosficos aos homens comuns, mas, aps t-los digerido, as aes. [47] Quanto ao corpo, quando tiveres te adaptado frugalidade, no te gabes disso. Nem digas, em toda ocasio, se beberes gua, que bebes gua. E se quiseres, em algum momento, exercitar-te para uma tarefa rdua, faz isso para ti mesmo e no para os outros. No abraces esttuas, mas se tiveres forte sede, bebe gua gelada e cospe e no digas a ningum.

  • 58

    [48.a]

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  • 59

    [48.a] Postura e carter do homem comum: jamais espera benefcio ou dano de si mesmo, mas das coisas exteriores. Postura e carter do filsofo: espera todo benefcio e todo dano de si mesmo. [48.b1] Sinais de quem progride: no recrimina ningum, no elogia ningum, no acusa ningum, no reclama de ningum. Nada diz sobre si mesmo como quem ou o que sabe. Quando, em relao a algo, entravado ou impedido, recrimina a si mesmo. Se algum o elogia, se ri de quem o elogia. Se algum o recrimina, no se defende. Vive como os convalescentes, precavendo-se de mover algum membro que esteja se restabelecendo, antes que se recupere. [48.b2] Retira de si todo o desejo e transfere a repulsa unicamente para as coisas que, entre as que so encargos nossos, so contrrias natureza. Para tudo, faz uso do impulso amenizado53. Se parecer insensato ou ignorante, no se importa. Em suma: guarda-se atentamente como um inimigo traioeiro.

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    [49.1]

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    [49] Quando algum se cr merecedor de reverncia54 por ser capaz de compreender e interpretar os livros de Crisipo, diz para ti mesmo: Se Crisipo no escreveu de modo obscuro, ele no tem pelo que se crer merecedor de reverncia. Mas o que eu desejo? Conhecer a natureza e segui-la. Busco ento quem a interpreta. Ouvindo que Crisipo, vou a ele. Mas no compreendo seus escritos. Busco ento quem os interpreta at a, absolutamente nada h que merea reverncia. Quando eu acho o intrprete, resta-me fazer uso das coisas prescritas unicamente isso digno de reverncia. Ora, se admiro o prprio interpretar, que outra coisa me torno seno gramtico ao invs de filsofo? Com a diferena que, no lugar de Homero, interpreto Crisipo. Ento, quando algum me disser Interpreta algo de Crisipo para mim, sobretudo enrubescerei quando no for capaz de exibir aes semelhantes s palavras e condizentes . [50] Respeita todas as coisas que foram expostas como se fossem leis; como se cometesses uma impiedade se as transgredisses. E se algum falar algo de ti, no ds ateno, pois isso no mais tua.

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    [51.1]

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    [51.1] Por quanto tempo ainda esperars para que te julgues merecedor das melhores coisas e para que em nada transgridas os ditames da razo? Recebeste os princpios filosficos, com os quais foi preciso concordar, e concordaste. Por qual mestre ainda esperas para que confies a ele a correo de ti mesmo? No s mais um adolescente, j s um homem feito. Se agora fores descuidado e preguioso, e sempre fizeres adiamentos aps adiamentos, fixando um dia aps o outro o dia depois do qual cuidars de ti mesmo, no percebers que no progrides. E permanecers, tanto vivendo quanto morrendo, um homem comum. [51.2] Ento, a partir de agora, como um homem feito e que progride, considera a tua vida merecedora de valor. E que seja lei inviolvel para ti tudo o que se apresentar como o melhor. Ento, se uma tarefa rdua, ou prazerosa, ou grandiosa, ou obscura te for apresentada, lembra que essa a hora da luta, que essa a hora dos Jogos Olmpicos, e que no h mais nada pelo que esperar, e que, por um revs ou um deslize, perde-se o progresso, ou o conserva. [51.3] Deste modo Scrates realizou-se: de todas as coisas com que se deparou, no cuidou de nenhuma outra, exceto a razo. E tu, mesmo que no sejas Scrates, deves viver desejando ser como Scrates.

  • 64

    [52.1] ,

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  • 65

    [52.1] O primeiro e mais necessrio tpico da Filosofia o da aplicao dos princpios, por exemplo: No sustentar falsidades. O segundo o das demonstraes, por exemplo: Por que preciso no sustentar falsidades? O terceiro o que prprio para confirmar e articular os anteriores, por exemplo: Por que isso uma demonstrao? O que uma demonstrao? O que uma consequncia? O que uma contradio? O que o verdadeiro? O que o falso? [52.2] Portanto, o terceiro tpico necessrio em razo do segundo; e o segundo, em razo do primeiro mas o primeiro o mais necessrio e onde preciso se demorar. Porm, fazemos o contrrio: pois no terceiro despendemos nosso tempo, e todo o nosso esforo em relao a ele, mas do primeiro descuidamos por completo. Eis a porque, por um lado, sustentamos falsidades e, por outro, temos mo como se demonstra que no apropriado sustentar falsidades. [53.1] preciso em toda ocasio ter mo o seguinte: Conduze-me, Zeus, e tu tambm, Destino, Para o posto ao qual um dia fui designado, Que, diligente, eu vos seguirei e se, mau me tornando, No o quiser, ainda assim vos seguirei. [53.2] Aquele que, de modo justo, ceder necessidade , para ns, sbio e conhecedor das coisas divinas. [53.3] Crton, se assim desejado pelos Deuses, que assim seja. [53.4] nito e Meleto podem me matar, mas no podem me causar dano.

  • 66

    Representao da gora ateniense na era clssica. (fonte: novaroma.org)

  • 67

    NOTAS

    1A expresso eph hmn no possui equivalente direto

    que possa dar conta de seu significado. Literalmente, poderamos traduzi-la por algumas coisas esto sobre ns; outras no. Henrique Muraccho traduz expresso semelhante (t epi emo) por no que est sobre mim, no sentido de quanto a mim, no que me concerne (Lngua Grega: viso semntica, lgica, orgnica e funcional. So Paulo: Discurso Editorial/Editora Vozes, p. 573). No caso do Encheirdion de Epicteto, a traduo poderia ser: algumas coisas nos concernem, outras no. Bailly (2000), citando a mesma expresso, acentua a ideia de dependncia e de poder que ela expressa, traduzindo-a por autant quil est em mon pouvoir, enfatizando assim a ideia de controle (cf. Xenofonte, Ciropdia, 5,4, 11). A expresso possui imagem concreta e clara, referindo-se a algo que colocado sobre ns, sustentado por ns, pois nos encontramos embaixo, fornecendo seu apoio. A opo por sob nosso encargo acentua a ideia de responsabilidade que temos quanto a isso que est sobre ns (e do que somos a causa primria).

    A expresso diferentemente vertida por diferentes tradutores. Oldfather a traduz por things under our control (2000); White, por what is up to us (1983); Gourinat, por choses qui dpendent de nous (1998).

    2 Hyplpsis: substantivo relacionado ao verbo hypolambn, expressa a ideia de sucesso e de substituio, adquirindo os sentidos de rplica, resposta, concepo e pensamento. O vocbulo juzo, empregado aqui para traduzir essa noo, deve ser entendido como um parecer ou uma opinio que orienta nossa conduta diante de um acontecimento que se nos apresenta. Vale a pena ressaltar que, no contexto deste captulo, o vocbulo est associado ao verbo otraduzido aqui por pensar (cf. nota 12). No captulo 20, apresenta-se uma associao clara entre hyplpsis

  • 68

    e dgma (opinio). No captulo 5, apresenta-se tambm uma associao entre dgma (opinio) e phantasa (representao) por meio do verbo phanomai (afigurar-se). interessante notar que o juzo nesses exemplos envolve a ponderao como a considerao sobre se algo livre ou escravo -, mas tambm sentimentos relacionados s nossas recusas, medos e desejos.

    Oldfather (2000) traduz hyplpsis por conception; White (1993), por opinion; Gourinat (1998), por jugement; e Garca (1995), por juicio.

    3Horm: substantivo relacionado ao verbo rnumi (levantar-se), designa o primeiro bote de um assalto ou ataque, adquirindo os sentidos de el e de impulso. Entre as tradues consultadas para este trabalho, a nica exceo a impulso como vocbulo para traduzir horm a opo de Oldfather (2000), que emprega choice (escolha). Horm deve ser entendido, no contexto do pensamento epictetiano, como o mpeto para a ao, a tendncia para agir desta ou daquela maneira diante de determinada coisa.

    4 reksis o nome da ao do verbo reg, que apresenta o significado de estender ou tender na direo de algo (por exemplo: estender as mos para o cu ou para pedir algo a algum), de onde desejo, apetite. uma palavra difcil para ser transportada ao contexto cultural presente. Embora sua traduo por desejo seja corrente, preciso ter cautela com ela, pois no se deve entender reksis no sentido do emaranhado de pulses originadas em nvel inconsciente que caracteriza a viso moderna da subjetividade humana. reksis descreve a ao de tender em direo a algo. Uma forma de apreender da maneira mais precisa possvel seu significado ter em conta que reksis se ope a kklisis, que expressa o movimento contrrio, o de afastar-se (cf. nota seguinte). Para Epicteto, desejamos as coisas que consideramos boas (cf. Diatribes I,4,2-3).

    5 kklisis identifica a ao de declinar, expressando o movimento contrrio de klsis, que significa a ao de inclinar-

  • 69

    se. empregado para descrever o movimento da tropa que evita o combate ou para descrever o declnio de um astro. Oldfather (2000), White (1983) e Gourinat (1998) optaram traduzi-lo por averso; Garca (1998), por rechazo. No Aurlio, averso apresenta os significados de dio, rancor, antipatia, que no cabem no presente caso. Optamos ento por repulsa para expressar a ideia de repelir, afastar ou evitar algo, sem a conotao de averso. Para Epicteto, repudiamos as coisas que consideramos ruins (cf. Diatribes. I,4,2-3).

    6 Eletheros: livre por oposio a escravo. Para Epicteto, quem deseja o que no encargo seu necessariamente torna-se escravo, pois voluntariamente submete-se aos que podem proporcionar-lhe ou impedir-lhe o acesso coisa desejada (cf. Diatribes I,4,19).

    7 Aklutos: adjetivo verbal de privao da ao relacionada ao verbo kl, que significa afastar, desviar, aquirindo o sentido de impedir. Bailly (2000) apresenta o substantivo neutro to klon com o significado de obstculo, impedimento. Assim, a-klutos refere-se a algo para o que no h impedimento quanto sua obteno, sendo, portanto, desimpedido.

    8 Aparapdistos: optamos traduzir o termo por sem entraves, pois trata-se de um adjetivo verbal que nega a ao relacionada ao verbo podz, que significa sujeitar os ps com travas, referindo-se principalmente a armadilhas para animais. Cf. o substantivo feminino podstra, que pode significar tanto armadilha que prende pelos ps (Antologia Palatina 6, 107) quanto teia de aranha (Antologia Palatina 9, 372).

    9 Asthen: privado de fora, no sentido de fora fsica, vigor.

    10 Kluts: Cf. nota 7. 11 Arriano assim relaciona os adjetivos empregados para

    qualificar o que encargo nosso e o que no : o que encargo nosso livre, desobstrudo, sem entraves; o que no encargo nosso dbil, escravo, de outrem.

  • 70

    12 Oi: pensar, no sentido de presumir, referindo-se a

    coisas incertas da pressentir, crer, estimar. 13 Empodz significa literalmente meter os ps em uma

    armadilha. 14 Penth: verbo relacionado ao substantivo to pnthos,

    que siginifica dor, aflio. 15 Tarss: significa primariamente remexer, agitar,

    no sentido concreto de preparar um medicamento agitando os ingredientes que o compem.

    16 Anankz: forar, constranger. 17 Felicidade traduz eudaimona. No contexto do

    paganismo grego, daimonos um adjetivo que qualifica tudo o que provm da divindade ou enviado por um deus. Associado ao prefixo e (bem, no sentido de coisas boas), esse vocbulo tem significao prxima de bem-aventurana na acepo crist.

    18 A noo de phantasa de fundamental importncia para a compreenso da filosofia estoica por relacionar-se tanto a questes lgicas quanto epistemolgicas e ticas. Entretanto, os comentadores divergem sobre como traduzir o termo:

    Lesses (Cause and Stoic Impressions. IN: Phronesis vol. XLIII/1, 1998, p. 2- 24), Julia Annas (Hellenistic Philosophy of Mind. Berkeley: University of California Press, 1991) e Richard Sorabji (Perceptual Content in the Stoics. IN: Phronesis, vol. XXXV/3, 1990, p. 307-314) traduzem phantasa por aparncia (appearance);

    Michael Frede (Stoics and skeptics on clear and distinct impressions IN: Skeptic Tradition. M. Burnyeat (ed.). Berkeley: University of California Press, 1983, p. 65-93) e Long e Sedley (Hellenistic Philosophers, vol I & II. Cambridge: Cambridge University Press, 1987) empregam o termo impresso (impression);

    Brad Inwood e L.P. Gerson (Hellenistic Philosophy: Introductory Readings. Indianapolis: Hackett Publishing Co., 1988) optam por apresentao (presentation);

  • 71

    Anthony Long (Representation and the self in Stoicism. IN: Companions to Ancient Thought 2: Psychology. Stephen Everson (ed.). Cambridge: Cambridge University Press, 1991, p. 102-120) usa o termo representao (representation), substituindo sua traduo anterior, impresso (impression), para evitar confuso com o conceito humeano homnimo.

    Embora tanto Cleanto quanto Crisipo considerem a phantasa uma modificao da faculdade diretriz, eles divergem ao explicar essa mudana. Para Lesses (1998, p. 6), Crisipo parece criticar Cleanto por aceitar uma concepo ingnua de representao mental, segundo a qual as phantasai perceptivas so cpias de qualidades que os objetos representados possuem (cf. Digenes Lercio, 7.50.4). Alm disso, Annas (1991, p. 74-75) compreende estar implicado nas observaes de Crisipo que as phantasai so proposicionais ou articulveis em forma lingustica. Ora, quanto s alternativas para traduzirmos o termo phantasa, parece-nos que impresso est mais prximo de Cleanto que de Crisipo, pois a metfora utilizada por Cleanto para introduzir o conceito em questo justamente da impresso sobre a cera, metfora que criticada por Crisipo por seu carter imagtico. A concepo de Crisipo sobre a phantasa adotada desde ento pelo Estoicismo que ela tem duas facetas: uma sensvel (pois, como dissemos, trata-se de uma modificao da faculdade diretriz) e outra virtual (pois a essa modificao afixado um juzo, que descreve e avalia aquilo que efetuou a modificao). Assim sendo, parece-nos que a palavra representao (que possui, de acordo com o Aurlio, o sentido filosfico geral de contedo concreto apreendido pelos sentidos, pela imaginao, pela memria ou pelo pensamento) serve para o nosso propsito, e por ela traduziremos phantasa.

    19 Trata-se do adjetivo trakhs, apresentado por Bailly (2000) com o significado de rude, adquirindo diversos sentidos, dependendo do substantivo ao qual esteja

  • 72

    ligado. spero, ao se tratar de uma pedra; pedregoso, ao se referir a um rio ou a um terreno; rouca, ao qualificar um tipo voz; grosseiro, duro, cruel, violento e irascvel, ao se referir ao comportamento de algum. Simplcio (Comentrio ao Encheirdion de Epicteto, V. 1.5) observa que tal representao chamada trakhea (dura, bruta) por ser contrria razo, tornando spera a vida. Oldfather (2000) e White (1983) traduzem esse adjetivo por harsh; Gourinat (1998), por pnible; Garca (1995), por bruta.

    20 Phainmenon: o que est se manifestando ou se mostrando, particpio presente mdio do verbo phan. Aqui ocorre uma distino entre a phantasa, a representao, e o phainmenon, a coisa que representada.

    21 Epangela: substantivo relacionado ao verbo epangll, que significa primariamente anunciar, declarar, proclamar, adquirindo tambm os sentidos de ordenar, comandar, prometer. A opo por propsito d-se em razo do significado de finalidade registrado no Aurlio.

    22 Trabalha-se aqui com a oposio entre orksis (desejo) e ekklsis (repulsa).

    23 No mbito da presente traduo, natureza nosso vocbulo para verter phsis.

    24Aphorm designa o ponto de partida, adquirindo os sentidos de origem de algo, pretexto para fazer algo, significando tambm base para operaes militares. Entre os estoicos, o termo empregado para designar o princpio contrrio de horm (cf. nota 3).

    25 Psykhagg: significa literalmente conduzir ou evocar a psykh, aquirindo os sentidos de encantar, seduzir, alegrar.

    26 Strg: amor fraternal expresso entre pais, filhos e cnjuges. empregado tambm em relao a animais de estimao e a valores morais, como o amor pela justia.

    27 Proharesis: segundo Bailly (2000), o termo expressa a escolha antecipada, a tomada de partido ou o desejo

  • 73

    premeditado, adquirindo os sentidos de vontade, plano e inteno. Marcando oposio com annk (necessidade), em alguns contextos vertido por livre-arbtrio. O termo traduzido como moral purpose por Oldfather (2000); choice por White (1983); choix por Gourinat (1998); e albedro por Garca (1995).

    28 Literalmente: caso haja algo de maneira a entravar o banho. A expresso de maneira a entravar o banho seria uma possibilidade de traduo praticamente literal para o advrbio empodn, relacionado ao verbo empodz (meter os ps em uma armadilha), que aqui vertemos por entravar-se. No captulo 1, entravar-se refere-se a dar vazo a desejos cuja satisfao no dependa de ns, levando-nos a aflies e sofrimentos. Neste captulo, o termo relaciona-se a aborrecer-se e deixar-se desviar por acontecimentos que no antecipamos.

    29 Cf. nota 2. 30 A utilizao do vocbulo peixinho para traduzir

    bolbrion baseia-se no comentrio de Pierre Hadot e Ilsetraut Hadot (La Parabole de Lescale, In: Les Stoiciens. Org. Dherbey e Gourinat. Paris: LGF, 2004, p. 437-452). Embora bolbrion usualmente signifique o diminutivo de cebola (bolbs), no grego tardio pode designar tambm uma espcie de polvo ou lula (cf. G. W. H. Lamp. A Patristic lexicon. Oxford, 1961, art. bolbos). Neste captulo, segundo os Hadot, as duas palavras (kolkhldion e bolbrion) se referem s conchas espiraladas ou aos animais que se encontram nas praias.

    31 Euro: verbo relacionado ao adjetivo eroos, que em um de seus significados mais concretos qualifica um fluxo de gua o jorro de uma fonte ou a correnteza de um rio que flui facilmente. Essa ideia de um fluxo de gua que corre sem encontrar obstculos empregada por Epicteto para qualificar uma condio de vida tranquila, prspera, sem entraves que motivem agitao e sofrimento. A frase grega que vertemos por a tua vida ter um curso sereno traduzida como your life

  • 74

    will be serene por Oldfather (2000); your life will go well por White (1983); ta vie suivra um cours heureux por Gourinat (1998); e vivers sereno por Garca (1995).

    32 Cf. nota 27. 33 Kartera: substantivo feminino relacionado ao verbo

    karter (que significa ser firme, forte, aquirindo o sentido de ser obstinado e ser paciente) e ao adjetivo karteros (forte, firme, slido). A adoo de perseverana liga-se sua relao com a ideia de manter-se firme em um comportamento, mesmo diante de dificuldades.

    34 Prokpt significa literalmente estirar ou alongar uma placa de metal a golpes de martelo, adquirindo o sentido figurativo de progredir, avanar em direo a algo.

    35 Cf. nota 27. 36 Disciplinadamente nossa traduo para o advrbio

    kosms. Bailly (2000) registra os significados de com ordem e com medida. Oldfather (2000) e White (1983) o traduzem por politely; Gourinat (1998), por convenablement; e Garca (1995), por moderadamente.

    37 Neste captulo, Epicteto faz referncia teoria dos papis de Pancio de Rhodes (apresentada por Ccero no De Officiis, I, xxx, 107- xxxiii, 121), tendo em mente o papel que determinado ao homem pela divindade. Assim, na presente passagem, idits (homem comum em nossa traduo) se refere ao simples cidado, que no de estirpe patrcia e no tem o direito de ocupar cargos eletivos nas cidades do Imprio Romano. Em outras passagens, Epicteto ope idits (que deve ser compreendido ento por homem sem instruo) ao filsofo (cf. Encheirdion, 48).

    38 Efetua a distino refere-se ao exerccio da regra, apresentada ao final do captulo 1, que o discpulo deve usar diante de uma representao bruta. Em primeiro lugar, preciso perceber que o que incomoda no a prpria coisa que est se manifestando, mas sim a representao (e, consequentemente, o juzo) que se faz dela. Em segundo lugar,

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    preciso determinar se a representao se refere a coisas que so encargos nossos ou no. Caso se refira a coisas que no so encargos nossos, deve-se dizer prontamente: Nada para mim.

    39 Trata-se do verbo makarz, tradicionalmente vertido por ser feliz. importante ressaltar a ligao desse vocbulo com os aspectos divinos que ele encerra. Chantraine registra para o adjetivo mkar o significado de bem-aventurado, normalmente empregado no plural, referindo-se aos deuses (os bem-aventurados). Em Homero, o adjetivo aparece tambm associado aos homens, qualificando a condio de algum favorecido pelos deuses (cf. Ilada, 3, 182). Uma proposta de traduo literal, buscando uma estreita relao com a condio divina da felicidade, poderia ser: Que ele seja bem-aventurado.

    40 Cf. nota 2. 41 Epithym: Oldfather (2000) traduz o termo por

    yearn; White (1983), por crave; Gourinat (1998), por aspire; Garca (1995), por ansas. Optamos por aspirar, pois o vocbulo se remete ideia de colocar algo dentro ou em cima do peito.

    42 Literalmente: De onde vem esta sobrancelha? Bailly (2000) registra os sentidos figurativos de gravidade e majestade.

    43 Boter (1999, p. 124) observa que, se entendermos atima simplesmente como falta de honras, o texto perde o sentido, j que tal falta de honras para os estoicos um indiferente. Assim, preciso distinguir entre a real e a aparente atima, sendo aquela um mal verdadeiro na medida em que compreendida como falta de valor e esta um mal aparente na medida em que compreendida como o mero fato de no ser valorizado pelos outros. A identificao de tim com excelncia moral e atima com o seu contrrio doutrina estoica genuna (Cf. Estobeu SVF III 563; Ccero SVF III 312). Boter (1999, p. 125) assim interpreta o que Epicteto quer dizer

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    na passagem em questo: Temes a atima? Ests certo, porque ela m e vergonhosa; entretanto, a atima no o que pensas; ela no depende do que os outros fazem ou pensam sobre ti, mas apenas de ti mesmo (cf. Encheirdion, 40).

    44 Gnm. 45 Literalmente: fazendo essas coisas. 46 Polinices e Eteocles so filhos de dipo que se

    envolveram em um conflito mortal pela obteno do poder em Tebas. Essa trama utilizada como pano de fundo na tragdia Antgona, de Sfocles.

    47 Segundo Simplcio, Epicteto faz a referncia histria acerca de dois amigos que, estando a caminho de Delfos, foram assaltados. Um dos amigos fugiu, abandonando o outro, que acabou sendo assassinado pelos bandidos. Quando o que fugiu chegou a Delfos e foi consultar o orculo, foi expulso do templo. Simplcio (Comentrio ao Manual de Epicteto XXXIX, 86) assim descreve as palavras do orculo dirigidas ao que abandonara seu amigo: Tu que, estando presente e prximo ao amigo beira da morte e, todavia, no o ajudaste, para que vieste aqui? Homem impuro, profano, sai deste templo purificado!

    48 Deusa do panteo da Grcia Antiga associada ao amor e ao sexo.

    49 Literalmente Se tu ultrapassares p acima. Aqui se faz referncia s sandlias cujas correias se estendem p acima, sobre as canelas.

    50 Aidmones. 51 Neste captulo, Epicteto faz uma analogia entre uma

    nfora e suas duas asas (labs) e cada coisa (prgma) do mundo e os dois modos de abord-la. nforas eram objeto de uso dirio na Antiguidade, mas no o so mais, o que dificulta nosso trabalho de traduo. Epicteto nos diz que uma das asas phorton e a outra aphrton, literalmente: uma sustentvel e outra insustentvel (i.e. por uma se pode, por outra no se pode sustentar a nfora). Na presente traduo, achamos por

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    bem suprimir a referncia a asas e verter a primeira frase simplesmente por Toda coisa tem dois lados. Como a traduo literal dessa frase seria Toda coisa tem duas asas, pensamos em traduzir phorton e aphrton por adequado e inadequado e em verter a passagem da seguinte forma: , toda coisa tem duas asas, uma , outra . Entretanto, tal traduo faria desaparecer algo importante que expresso no texto grego: dizer que uma das asas insuportvel dizer que tomar o assunto por a, alm de ser moralmente errneo, causa dor e sofrimento, pois, para os estoicos, o sofrimento (pthos) ou efeito de uma falsa opinio ou se identifica com uma falsa opinio i.e. um modo equivocado de lidar com a realidade. A primeira posio a de Zeno de Ctio, a segunda a de Crisipo (cf. Digenes Larcio, VII, 111), que seguida tambm por Epicteto (cf. Encheirdion 5 e Diatribes III, 2, 3).

    52 Theormtn. 53 Aneimn: particpio do verbo anmi, adjetiva o

    vocbulo impulso. A expresso deste modo vertida por outros tradutores: He exercises no pronounced choice in regard to anything (Oldfather, 2000); His impulses toward everything are disminished (White, 1983); Il fait usage de limpulsion avec souplesse (Gourinat, 1998); Usa en todo um impulso no forzado (Garca, 1995).

    54 No presente captulo, buscamos unificar o sentido de semns (reverenciado, augusto, sagrado) e o verbo relacionado semnun (exaltar, afetar um ar grave e solene) para dar conta do jogo de palavras proposto no texto. Assim, traduzimos semns por o que merece reverncia e semnun por crer-se merecedor de reverncia.

  • REFERNCIAS INTERTEXTUAIS: CAPTULO I: 1.1.1 ' , ' :

    cf. Diatribes I, 22, 10; II, 6, 8; II, 9, 15; II, 19, 13; IV, 1, 65 ss. 1.1.1 : Em sua prpria origem e forma significa

    uma ao de nossa mente, a recepo de uma opinio e sua admisso em nosso esprito (Schweighauser, 1798, p. 141).

    1.1.1 : mpeto para agir que recebemos por nossa prpria escolha (Schweighauser, 1798, p. 141). Para a diferena entre e , cf. Diatribes III, 2 ss.

    1.3.5 : Cf. abaixo, captulo 30 e Sneca, Da Constncia do Sbio, 5.

    1.5.1 (visum terrificum): cf. Diatribes I, 27; II, 18, 24; III, 12, 15; III, 24, 108; Aulo Glio, XIX, 1; Ccero, De Finibus, V, 26.

    1.5.1 . Cf. Diatribes II, 18, 24; III, 12, 15; Simplcio, Comentrio ao Encheirdion de Epicteto, V. 1.5.

    1.5.5 : cf. Diatribes, II, 24, 106. CAPTULO II 2.1.1 , [...]: cf. Diatribes

    III, 23, 9; I, 4, 1; II, 2; III, 2; III,2, 8; III, 2, 13; I, 4, 1; III, 13, 21; IV, 4, 18; Encheirdion 48.3; Marco Aurlio, IX.7; XI.37.

    2.2.7 ' (cum exceptione): cf. Sneca, Dos Benefcios, IV, 34: non mutat sapiens consilium [...] ad omnia cum exceptione venit [...]; Da Tranquilidade da Alma, 13; Marco Aurlio, IV.1; V.20; VI.50; XI.37. A ' (com reserva) se opem as expresses e .

    CAPTULO III 3.1.1 ' : cf. Diatribes III,

  • 79

    24, 84 ss. CAPTULO IV Cf. Diatribes II, 17, 27. CAPTULO V 5.1.1 [...]: cf. Diatribes II, 16,

    22-40; III, 26-38; I, 19, 7; I, 25, 28; IV, 1, 59, IV, 1, 85. 5.1.2 [...]: cf. Diatribes, II, 10 ss.;

    III, 26, 38. 5.1.7 [...]: cf. Diatribes III, 19 (incio) e III, 5,

    4. 5.1.8 [...]: cf. Diatribes

    II, 11 no incio. CAPTULO VI 6.1.4 : cf. Diatribes II, 24, 11. 6.1.5 : cf. Diatribes I, 1, 7. CAPTULO VII 7.1.6 : cf. Diatribes III, 24, 34. CAPTULO VIII 8.1.1 : cf. Diatribes I, 12, 15 ss.; II, 14, 7; IV, 7,

    20. CAPTULO IX 9.1.1 : Do mesmo modo

    em Sneca, Cartas a Luclio, LXXVIII (Corpus tuum valetudo tenet, non animum [...]).

    9.1.3 : cf. Diatribes I, 1, 23; I, 17, 21 e 26; I, 18, 11; I, 22, 10; I, 29, 10; II, 5, 4; III, 22, 105; IV, 13, 7.

    CAPTULO X 10.1.1 ' [...] etc.: cf.

  • 80

    Diatribes I, 6, 28; I, 12, 30 ss.; II. 16, 14; IV, 1, 109. 10.1.6 : cf. Diatribes II,

    18, 24 e 28; II, 23, 33; Marco Aurlio, V.36. CAPTULO XI 11.1.2 : cf. Diatribes I, 1, 32. 11.1.7 : cf. Diatribes II, 23, 36. CAPTULO XII 12.1.5

    : Segundo Schweighauser (1798, p.xx), Epicteto observa que, ao castigar-se algum em razo da ira ou do desejo de corrigi-lo, o que castiga encontra-se desde j no erro por querer determinar algo que no depende de si, resultando da a perda da tranquilidade. Cf. abaixo CAPTULOS XIV e XV.

    12.2.1 : cf. Diatribes I, 18,18; IV, 1, 111.

    12.2.3 : cf. Diatribes IV, 2, 2; IV, 10, 19.

    12.2.5 ss. ' , ' : cf. Marco Aurlio, VIII.45; VIII.56.

    CAPTULO XIV Cf. nota ao Captulo XII 14.1.3 ss. etc.: cf.

    Diatribes IV, 5, 7. CAPTULO XV 15.1.1 : cf. Diatribes II, 16, 37 e

    Encheirdion 36.

  • 81

    CAPTULO XVI 16.1.6 : cf. Diatribes I, 9,12; I, 29,

    64; III, 14, 7; III, 16, 4; IV, 2 ; IV, 12, 17. 16.1.7 : cf.

    Diatribes I,18,19; Ccero, Tusc. Disp. II, 22; Aulo Glio, XVII. CAPTULO XVII 17.1.1 : cf. Diatribes I, 29, 42 ss.;

    IV, 2, 9; IV, 7,13; Marco Aurlio, XI.6; XII.36; Estob