O Ensino de História Estimula a Radicalização Política

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O ensino de história estimula a radicalização política? Por Diogo Quirim No programa Roda Viva, apresentado pela TV Cultura no dia 8 de junho de 2015, foi entrevistado o atual Ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro. Próximo ao fim do programa, João Gabriel de Lima, diretor de redação da revista Época, após traçar críticas à crescente radicalização e polarização na política brasileira, perguntou: “Por que PT e PSDB mantém o debate público em um nível tão baixo?”. Ainda: “O que a educação pode fazer para ensinar o convívio dos contrários?”. O ministro, prontamente, respondeu que, para melhorar o debate político, deve-se considerar democracia e educação como termos equivalentes, em que é necessária uma formação para o respeito do outro. Augusto Nunes, o apresentador do programa, por sua vez, proferiu uma questão polêmica: “O ensino de história não estimula essa radicalização [política]?”. Deixo a pergunta em suspenso. *** A resposta de Janine Ribeiro foi bastante razoável, afirmando ser a falta de educação e de formação os principais elementos estimulantes da radicalização, embora seja possível encontrar, em nível universitário, pessoas mal-educadas em todos os sentidos do termo, incapazes de respeitar as diferenças. No entanto, permito-me retornar a um momento anterior da entrevista. No segundo bloco, a socióloga Maria Helena Castro indagou o ministro sobre a visão do Ministério da Educação acerca de uma nova base curricular nacional, especialmente no Ensino Médio. Em sua resposta, o ministro sublinhou a existência de diferentes contextos nas variadas disciplinas, opondo a matemática à história. Afirmou o ministro que, para a matemática, existe grande facilidade na determinação de uma base curricular comum, abordando tópicos consagrados como geometria e equações de segundo grau. Para disciplinas como a história, no entanto, essa facilidade seria ilusória. Relembrando seus tempos de “ginásio”, contou que o currículo de história dividia-se pelos três anos por temáticas, como História do Brasil, História da América e História do Mundo, o que considerou equivocado. Além disso, lembrou-se de uma tradição no ensino de história de não se chegar até o tempo presente, pois este é um tempo de grandes conflitos políticos. Isso me leva a alguns questionamentos. Por que é mais fácil estabelecer uma base curricular comum para a matemática do que para a história? Qual o receio em

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Artigo escrito sobre uma pergunta realizada por Augusto Nunes, apresentador do programa Roda Viva, em entrevista a Renato Janine Ribeiro

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  • O ensino de histria estimula a radicalizao poltica?

    Por Diogo Quirim

    No programa Roda Viva, apresentado pela TV Cultura no dia 8 de junho de 2015, foi

    entrevistado o atual Ministro da Educao, Renato Janine Ribeiro. Prximo ao fim do

    programa, Joo Gabriel de Lima, diretor de redao da revista poca, aps traar

    crticas crescente radicalizao e polarizao na poltica brasileira, perguntou: Por

    que PT e PSDB mantm o debate pblico em um nvel to baixo?. Ainda: O que a

    educao pode fazer para ensinar o convvio dos contrrios?.

    O ministro, prontamente, respondeu que, para melhorar o debate poltico, deve-se

    considerar democracia e educao como termos equivalentes, em que necessria uma

    formao para o respeito do outro. Augusto Nunes, o apresentador do programa, por sua

    vez, proferiu uma questo polmica: O ensino de histria no estimula essa

    radicalizao [poltica]?. Deixo a pergunta em suspenso.

    ***

    A resposta de Janine Ribeiro foi bastante razovel, afirmando ser a falta de educao e

    de formao os principais elementos estimulantes da radicalizao, embora seja possvel

    encontrar, em nvel universitrio, pessoas mal-educadas em todos os sentidos do termo,

    incapazes de respeitar as diferenas. No entanto, permito-me retornar a um momento

    anterior da entrevista.

    No segundo bloco, a sociloga Maria Helena Castro indagou o ministro sobre a viso do

    Ministrio da Educao acerca de uma nova base curricular nacional, especialmente no

    Ensino Mdio. Em sua resposta, o ministro sublinhou a existncia de diferentes

    contextos nas variadas disciplinas, opondo a matemtica histria. Afirmou o ministro

    que, para a matemtica, existe grande facilidade na determinao de uma base curricular

    comum, abordando tpicos consagrados como geometria e equaes de segundo grau.

    Para disciplinas como a histria, no entanto, essa facilidade seria ilusria. Relembrando

    seus tempos de ginsio, contou que o currculo de histria dividia-se pelos trs anos

    por temticas, como Histria do Brasil, Histria da Amrica e Histria do Mundo, o que

    considerou equivocado. Alm disso, lembrou-se de uma tradio no ensino de histria

    de no se chegar at o tempo presente, pois este um tempo de grandes conflitos

    polticos. Isso me leva a alguns questionamentos. Por que mais fcil estabelecer uma

    base curricular comum para a matemtica do que para a histria? Qual o receio em

  • abordar os conflitos polticos do tempo presente? No existiriam, tambm, conflitos

    polticos na matemtica, assim como na histria?

    ***

    Talvez Marcel van Hattem, deputado estadual pelo PP-RS, pensasse algo em comum

    com a pergunta de Augusto Nunes sobre o estmulo do ensino de histria para a

    radicalizao poltica ao protocolar o projeto de lei n 190/2015. Inspirado na ONG

    Escola Sem Partido, tal projeto visa proibir aquilo que ele chama de doutrinao

    poltica e ideolgica no sistema de ensino estadual. Um trecho que enfatizo o Art. 3,

    inciso IV. Este prope ao professor que, no exerccio de sua funo, ao tratar de

    questes polticas, scio-culturais [sic] e econmicas, apresentar aos alunos, de forma

    cientfica e imparcial, as principais verses, teorias, opinies e perspectivas

    concorrentes a respeito.

    Sem analisar cuidadosamente o projeto, repleto de equvocos, gostaria de me deter na

    forma cientfica e imparcial de tratar questes polticas, socioculturais e econmicas.

    Viver parcial. Nossos atos so uma escolha entre muitas possveis. Somos

    constitudos de experincias individuais que no so compartilhadas por mais ningum.

    Somos uma trama de cultura, nao, lngua, convices, emoes, memrias, opinies,

    entre inumerveis outras particularidades, situadas em um momento no tempo e no

    espao, das quais no nos despojamos completamente ao fazer cincia e ao ensinar. O

    que no significa que no possamos ter, sobre elas, certa conscincia e senso crtico.

    Imparcial, desta forma, geralmente significa um posicionamento particular sobre algo

    disfarado de verdade inquestionvel, esterilizado da contaminao da poltica e da

    subjetividade.

    ***

    Por que o projeto de lei apenas salienta a necessidade de uma apresentao cientfica e

    imparcial das questes polticas, socioculturais e econmicas? Por que no h

    necessidade de tal constrangimento nas questes matemticas? Talvez exista aqui

    alguma conexo com a opinio de Janine Ribeiro de que estabelecer uma base curricular

    comum para a matemtica fcil e para a histria complexo.

    Acredito que para ambas as disciplinas complexo.

    Supor que o ensino de histria pode estimular a radicalizao poltica ressaltar que a

    histria parcial e sujeita a desviar do cientfico com certa facilidade, como se houvesse

  • uma cincia neutra dos assuntos polticos. A matemtica, por sua vez, tida como a

    mais imparcial e cientfica das disciplinas, por isso estabelecer a sua base curricular

    to simples.

    Ou no. E se o modo como construmos a base curricular da matemtica tambm for

    parcial? E se retirssemos um pouco do espao dedicado geometria analtica e

    abrssemos as janelas entre a matemtica e a filosofia, discutindo com o pitagorismo a

    ideia de que a realidade inteligvel atravs da matemtica? E se nos demorssemos um

    pouco menos na trigonometria e mesclssemos histria e matemtica, atravs de estudos

    quantitativos de histria demogrfica e econmica? E se, em uma aula de matemtica,

    discutssemos privacidade, nmeros primos, criptografia e segurana digital? Ou

    ensinssemos as vastas contribuies dos matemticos muulmanos, que incrustaram

    nosso vocabulrio com algarismo, algoritmo, lgebra... Isso no seria interessante ao

    tratar da islamofobia?

    ***

    O currculo da matemtica parece imparcial se tentarmos cortar todos os seus laos com

    a poltica e com as outras disciplinas. Mas essa matemtica, protegida numa redoma

    contra os perigos polticos, histricos e filosficos, contra a invaso inconveniente das

    outras disciplinas, no imparcial; esse currculo j uma escolha. Uma escolha que

    prejudica tanto a matemtica quanto a histria. Defender a imparcialidade poltica nas

    escolas , por um lado, privar os alunos do direito educao para o exerccio da

    cidadania atravs do debate democrtico e, por outro, ressaltar um currculo

    monodisciplinar, obsoleto, desinteressante e que no corresponde aos intuitos de

    ultrapassar as fronteiras das reas do conhecimento para formar um estudante criativo e

    protagonista de sua prpria trajetria.

    Quando Augusto Nunes indaga se o ensino de histria estimula a radicalizao poltica,

    me pergunto o motivo dele ter escolhido, entre as disciplinas, justamente a histria.

    Provavelmente porque sua base curricular comum seja bastante difcil de estabelecer.

    No mais do que a matemtica. Levantar a questo de como queremos ver a histria nas

    escolas j admitir o dilogo, a divergncia e a inexistncia de um ponto de

    neutralidade. O mesmo vale para a matemtica. Sobre como eu gostaria de ver os

    currculos da histria ou da matemtica, eu no sei dizer, mas certamente mais vezes

    juntos em suas parcialidades.

    O medo da poltica nas escolas expresso pela pergunta de Augusto Nunes e por van

    Hattem no o medo da parcialidade, o medo da opinio divergente. Como o debate

    democrtico pode ser aprimorado, como o convvio com as diferenas pode ser

    ensinado, se querem suspender a poltica da educao? O ensino da intolerncia

    estimula a radicalizao poltica.

  • Diogo Quirim Mestre em Histria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.