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O ENSINO RELIGIOSO: UMA BREVE PERSPECTIVA HISTÓRICA
José Antonio Sepulveda*;
Helenice Pereira Sardenberg**
A existência do Ensino Religioso (ER) no currículo das escolas públicas
brasileiras mobilizou um grande número de personagens ao longo da história da educação
nacional. Todavia, é tema pouco frequente na nossa bibliografia. Segundo Cunha (2010),
isso evidencia o caráter prescritivo da defesa ou da refutação dessa disciplina. Assim, o
objetivo desse texto é fugir do caráter prescritivo e apresentar um pequeno histórico do
Ensino Religioso nas escolas oficiais do país, levando em conta o fato de tal disciplina ter
sido inserida nos currículos das escolas públicas por pressões externas, em especial, do
campo religioso.
Para realizar o trabalho adotou-se como referência teórica o conceito de campo
desenvolvido por Pierre Bourdieu, que significa um espaço complexo do mundo social,
cuja estrutura interna é composta por um conjunto de relações de força entre agentes ou
instituições próprias do campo. Assim, o campo é um espaço de disputa de agentes e de
instituições pelo monopólio interno da violência simbólica legítima e pela propriedade do
capital típico do campo. Segundo Bourdieu (2004), no mundo social, existem
características que se atraem por terem os mesmos interesses, ou serem da mesma
natureza. Essas áreas de interesse formam os campos. Cada campo possui diferentes graus
de autonomia frente ao mundo social e estabelece regras próprias que produzem arenas
de disputa interna que não necessariamente reproduzem as disputas do mundo social. Os
campos têm diferentes graus de autonomia, isto é, graus nos quais o capital e as regras de
disputa por sua posse estão mais ou menos definidos como próprios, não sendo redutíveis
às dos demais.
Neste sentido, importante pensar, ainda, em Bourdieu (1998) quando este fala
sobre o poder simbólico, na medida em que este poder se define, também, nas relações
de força, delimitando a cultura que se faz hegemônica. Este poder simbólico, invisível,
gera violência simbólica, que é a imposição da cultura e ideologia dominantes e, mais do
que isso, a dominação de uma classe sobre a outra.
Antecedentes
É inútil tratar do campo religioso durante o Império quando a Igreja Católica era
a religião oficial porque havia uma forte imbricação entre Estado e Igreja, razão pela qual
não é possível problematizar as disputas entre campo religioso e campo político. Conflitos
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com o Estado, só surgiram no final do mencionado período, Mas, a problemática acerca
do ER, cuja relevância ganhou força, ocorreu só durante a República. Segundo Cunha
(2010, p.2090),
(...) o desafio da legitimidade de uso religioso das instituições estatais, como
a escola, pela Igreja Católica, pelo menos com a exclusividade anterior. E
mais: o reconhecimento da legitimidade de práticas religiosas até então
reprimidas (como a umbanda) e o enorme crescimento de outras, no próprio
âmbito do cristianismo, fizeram daquela instituição mais uma, ainda que a
dotada de maior força política, dentre as instituições que disputam o
monopólio das práticas religiosas.
Portanto, a República marca um novo momento para a Igreja Católica no Brasil.
Esse período, segundo Sodré (1979), não teve nada de acidental; muito pelo contrário,
resultou do desenvolvimento progressivo de forças que, no penúltimo decênio do século,
tinham se agravado consideravelmente. De fato, a Igreja Católica ficou exposta na
Primeira República. Os militares, em especial os Positivistas, eram defensores do fim dos
privilégios dados a tal instituição, especialmente no campo educacional, cuja direção
ficou a cargo do Ministro da Instrução Pública Correios e Telégrafos, um conhecido
anticlerical, o militar Benjamin Constant.
Com efeito, a construção do ensino público na República, ou seja, a organização
do campo da educação nesse período teve a ajuda do campo militar. As características
positivistas desse campo impuseram uma nova realidade àquele, tanto que as discussões
de moral, patriotismo e nacionalismo entraram com força nas discussões acerca do
problema da educação no Brasil. A importância desse período para a organização do
campo educacional foi bem analisado ao longo do século XX. Todavia, ainda não é
possível falar de uma laicização sobre o campo educacional, já que não necessariamente
as reformas feitas por Constant foram fruto de discussões ou imposições do campo
militar. Cabe notar que existia uma bipolaridade na atuação de Benjamin Constant, afinal,
ele era ao mesmo tempo educador e militar. Porém, é possível afirmar que, por conta de
seu papel formador da juventude militar, acabou, por vias indiretas, tendo importante
participação na organização dos dois campos. Até porque a sua reforma educacional
praticamente só atingiu o Distrito Federal, enquanto São Paulo, por exemplo, aplicava
uma reforma absolutamente independente e mais eficiente, pelo menos no entender de
Saviani (2007).
Durante toda a Primeira República, o ER foi retirado das escolas públicas, por
decisão constitucional que determinou a independência do Estado em relação às entidades
religiosas. A militância católica, em especial a organizada pelo cardeal Sebastião Leme,
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montou um eficiente esquema de difusão ideológica localizada no campo político, como
forma de recuperar o espaço de influência perdido com a proclamação da República.
Entretanto, segundo Cury (2003), pelo menos seis sistemas estaduais de educação já
adotavam, naquele período, o ER nas escolas públicas, facultativo aos alunos, fora do
horário normal de aulas.
O caráter laico da norma constitucional (Decreto 119-A) foi destruído pela
hegemonia religiosa católica no estado de Minas Gerais. Em 1928, na presidência de
Antônio Carlos de Andrada, foi autorizado por decreto o ER nas escolas e mantido pelo
governo mineiro. O Secretário do Interior e Justiça, responsável pela pasta da educação,
era Francisco Campos, que, enquanto deputado federal, defendera a retomada do ER nas
escolas públicas, na revisão constitucional de 1926. Ele veio a ser, em novembro de 1930,
o titular do Ministério da Educação e Saúde Pública, recém-criado pelo Governo
Provisório.
Governo Provisório – 1931/1934
No período entre 1930-1934, os conflitos entre setores da classe dominante, da
burocracia do Estado, de setores das camadas médias e das classes trabalhadoras
propiciaram o desenvolvimento contraditório de duas políticas educacionais. O
autoritarismo prevalecia na esfera do poder central. Nas esferas das unidades da
Federação, é certo que o liberalismo prevaleceu no Estado de São Paulo e no Distrito
Federal. As ideias liberais no período eram bem aceitas na sociedade civil, pelo que se
pode deduzir da penetração da Associação Brasileira de Educação (ABE)i.
O marco do conflito entre as diferentes visões sobre a educação se dá com a
Reforma de Francisco Campos durante o governo provisório de Vargas. Tal reforma se
apresentava de forma tão autoritária que gerou como resposta a união de diferentes forças
políticas em torno da defesa da escola pública, gratuita e laica, o chamado Manifesto
Pioneiro da Educação Nova (Cunha, 2007). A posição dos chamados pioneiros teve
grande repercussão social, principalmente devido à representatividade social dos nomes
que assinaram esse documento, entre eles: Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira,
Lourenço Filho e Cecília Meireles.
Todavia, foi nesse período que ocorreu à projeção para todo o país da
“colaboração recíproca” entre a Igreja e o Estado, igual à estabelecida em Minas Gerais.
O decreto 19.941, de 30 de abril de 1931, facultou o oferecimento, nos estabelecimentos
públicos de ensino primário, secundário e normal, da instrução religiosa. Não obrigava,
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mas facultava a oferta, e para que ela fosse oferecida nos estabelecimentos oficiais, seria
necessário que pelo menos 20 alunos se propusessem a recebê-la. (Cunha, 2010)
O sucesso da Igreja Católica com a promulgação do decreto 19.941/31 foi
potencializado na Constituição de 1934. Tal sucesso possibilitou ao cardeal Leme
aposentar a ideia de um Partido Católico, e patrocinar a criação, em 1932, da Liga
Eleitoral Católica. Essa, por sua vez, tinha como objetivo alistar, organizar e instruir os
eleitores em todo o país sobre quais os candidatos representavam o programa da Igreja na
Assembleia Constituinte. A vitória dessa estratégia política foi completa, a maioria dos
candidatos apoiados pela LEC (Liga das Escolas Católicas) elegeu-se e posicionou-se
favorável ao ER nas escolas públicas, de maneira ainda mais próxima das demandas da
Igreja Católica.
Houve pouco movimento contrário ao ER no Congresso Nacional. Segundo
Cunha (2010, p.289),
A liderança contra a plataforma católica na Constituinte foi do deputado
Guaraci Silveira. Eleito pelo Partido Socialista Brasileiro, na bancada de São
Paulo, Silveira era pastor metodista numa época em que os protestantes de
todas as confissões não ultrapassavam os 2% da população brasileira. A
despeito dessa inexpressiva presença quantitativa, os protestantes, em especial
os metodistas, procuravam basear-se no prestígio de suas escolas para
reivindicar maior espaço político-ideológico no campo educacional. Ou, pelo
menos, de não tê-lo reduzido. Na argumentação contra o artigo que tornava a
oferta do ER obrigatória nas escolas públicas, embora facultativo para os
alunos, Silveira empregou argumentos que mostravam que tal medida atendia
apenas aos interesses hegemônicos da Igreja Católica e, na prática,
inviabilizava o ensino de outras religiões.
Em que pese à posição dos metodistas, as tradicionais forças laicas da Primeira
República não se manifestaram. Assim, o que podemos concluir é que todos os aspectos
que denunciavam a existência de uma política educacional autoritária, principalmente
com relação à discreta expansão do ensino, refletiam a sociedade do momento. As frações
de classe que iam gradativamente assumindo o poder contavam entre si com a presença,
de um lado, da nova burguesia industrial, que exigiam inovações de todas as ordens; e,
de outro, contavam também com a presença de parte da velha aristocracia liberal e da
Igreja Católica, ainda apegada às velhas concepções. A expansão do ensino e sua
renovação ficaram, portanto, subordinadas ao jogo de forças que essas camadas
manipulavam na estrutura de poder. Ou seja, tornou-se interessante para ambos os grupos
a existência de ER nas escolas públicas, isso porque um novo inimigo se apresentava, o
comunismo.
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Por fim, a Constituição de 1934 foi promulgada com somente um artigo referente
ao assunto que modificava a nomenclatura do decreto de 1931, de instrução religiosa
(1931) para Ensino Religioso. As escolas públicas primárias, secundárias, profissionais e
normais eram obrigadas a oferecê-lo, pois tal ensino constituiria “matéria dos horários”.
Todavia, a presença continuava facultativa para os alunos, com os pais ou responsáveis
podendo manifestar sua preferência pelas distintas confissões religiosas.
O Estado Novo
Antes de tratar do período de 1937/1945 (Estado Novo), vale uma reflexão sobre
os anos de 1935/1936. Destaque para o movimento que recebeu o nome de “Intentona
Comunista”. Tal movimento fracassado desencadeou uma onda conservadora que
perpassou todos os campos de forma geral e mais especificamente no o campo religioso.
A reação católica foi de aproximação com o governo ditatorial de Vargas, potencializando
ainda mais a importância do ER nas escolas públicas.
Assim, antes do Estado Novo, principalmente nas discussões sobre a elaboração
do Plano Nacional de Educação o movimento reacionário defendia, além do ER, a
introdução de uma disciplina de Educação Moral e Cívica. Segundo Horta (1994), das
contribuições feitas por entidades públicas e personalidades consultadas pelo Ministro
Capanema, em 1936, destaca-se a manifestação de certos personagens sobre a base
religiosa da moral, na mesma linha defendida pela Igreja Católica. A presença do clero
brasileiro na redação final do projeto de lei foi realizada por uma comissão de quatro
membros, entre eles Alceu de Amoroso Lima e o padre Leonel Franca, dois importantes
dirigentes católicos. A dissolução do Congresso, por efeito do golpe de novembro de
1937, abortou o processo de tramitação do Plano e criava um novo cenário político.
O caráter fascista do Estado Novo buscava obter a aceitação do povo sem o
intermédio da religião, mesmo não havendo nenhum tipo de discurso antirreligioso ou
anticatólico. Segundo Cunha (2007, p.290),
(...) a Constituição de 1937, determinou a obrigatoriedade do ensino cívico,
ao lado da educação física e dos trabalhos manuais, em todas as escolas
primárias, normais e secundárias, públicas e privadas, sem o que estas não
poderiam ser autorizadas ou reconhecidas. A obrigatoriedade da oferta do ER,
prevista pela Constituição de 1934, foi, então, substituída pela possibilidade
desse ensino, como em 1931. No entanto, pela primeira vez na legislação,
apareceu o status de matéria para o ER. Mas, a Constituição de 1937 possuía
uma cláusula de dispensa mais clara do que qualquer outro texto legal. Dizia
ela: “Não poderá, porém, [o ER] constituir objeto de obrigação dos mestres
ou professores, nem de frequência compulsória por parte dos alunos.”
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Todas as propostas de reformas educacionais do Estado Novo, as chamadas “Leis
Orgânicas” concebidas pelo ministro Gustavo Capanema, mantiveram o ER, embora com
menos força do que a Igreja Católica havia alcançado no texto da Constituição de 1934,
como é possível perceber na “lei” orgânica do ensino secundário (decreto-lei 4.244, de 9
de abril de 1942), na qual o ER foi tratado como parte fundamental da educação dos
jovens, incentivando os estabelecimentos públicos de ensino incluí-lo no 1º e no 2º ciclo.
Já os currículos seriam estabelecidos pela autoridade eclesiástica, demonstrando a forte
presença da Igreja Católica. Mesmo nas “leis” orgânicas referentes ao ensino profissional
(industrial, comercial e agrícola), destinadas à formação da mão-de-obra, o ER se fez
presente nesses currículos, sem caráter obrigatório.
Entre os governos de Vargas e Dutra, durante o período de José Linhares na
Presidência da República, três “leis” orgânicas foram promulgadas, ainda sob a
perspectiva do ministro Gustavo Capanema. Mas, alguns retoques foram feitos, em
função da nova realidade política que se apresentava a partir de 1946.
A Constituição de 1946 e a Lei 4.024/61
No período de sistematização da legislação educacional durante a tramitação da
constituição, foram eliminados os elementos mais ostensivos da herança estadonovista.
A Assembleia Constituinte desenvolveu seus trabalhos, nos quais as disputas em torno do
caráter do ensino público, se laico ou não, ocupou pequena parte das atenções.
Segundo Cunha (2010, p.293),
A situação do campo político, em sua expressão partidária, era, na Constituinte
de 1946, bem diferente de 1933/34. A maior diferença foi o surgimento do
Partido Trabalhista Brasileiro, que agrupou as lideranças sindicais dos
assalariados, e a inédita atuação na legalidade do Partido Comunista.
O que o autor do fragmento acima buscou enfatizar era que, mesmo sem a atuação
da LEC (Liga das Escolas Católicas), ainda com bastante força política, a Igreja Católica
usufruiu de plena hegemonia na Constituinte de 1946, no que diz respeito às suas
demandas históricas, tendo recebido apoio ativo ou tácito de diversos partidos. Por
exemplo, o PC (Partido Comunista), que rejeitava o ER nas escolas públicas, por questão
de princípio, acabou por apoiar, pragmaticamente, seu oferecimento facultativo para os
alunos.
O deputado Guaraci Silveira, de novo constituinte, mas em bancada diferente
(PTB), defendendo uma plataforma de interesse protestante, se posicionou agora na
defesa da Igreja Católica, diferente de outras entidades evangélicas, que se manifestaram,
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na ocasião, da mesma forma como ele havia feito em 1933/34. Silveira argumentava que
a situação agora era nova, não se verificando a temida opressão católica, prevalecendo “a
solidariedade religiosa dos credos cristãos”. (Oliveira, 1990, vol I, p. 157).
Segundo Cunha (2010, p.293),
(...) a defesa do ensino laico ficou por conta de socialistas da Esquerda
Democrática, como Hermes Lima, e de liberais, como Aliomar Baleeiro, da
União Democrática Nacional. Ao contrário do Manifesto de 1932, a Carta
Brasileira de Educação Democrática, aprovada no Congresso da ABE, em
1945, substituiu a defesa da escola pública laica pela liberdade de culto,
concentrando suas atenções na demolição do legado estadonovista.
O citado autor entende que como a correlação de forças era favorável ao
catolicismo, o ex-ministro e agora deputado Gustavo Capanema - principal redator do
capítulo sobre a Educação na nova Carta – se posicionou a favor dos católicos. Assim, a
Constituição de 1946 contemplou em um artigo o ER. Ratificava dessa forma, a
obrigatoriedade de seu oferecimento pelas escolas oficiais, dessa vez sem fazer menção
ao nível nem a modalidade que deveria ser oferecida. Nesse sentido, deixava implícito,
então, seu oferecimento também no nível médio. O ER seria uma disciplina dos horários
das escolas oficiais, portanto de oferta obrigatória, mas de matrícula facultativa, e
ministrado de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestado por ele, se fosse
capaz, ou por seu representante legal ou responsável.
Foi nesse cenário que se deu a tramitação e a promulgação da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, sancionada pelo Presidente João Goulart, em 20 de
dezembro de 1961 (lei 4.024). Segundo Cunha (2010), apesar de o presidente ter “vetado
importantes artigos, particularmente no que dizia respeito ao ensino superior, a matéria
referente ao ER permaneceu intocada”.
A LDB em dois parágrafos contemplou as demandas da Igreja Católica, com uma
diferença das décadas posteriores. O caput do artigo transcreveu literalmente o artigo
correspondente da Constituição de 1946, mas com um enxerto do Deputado Aurélio
Viana do PSB que contrariava os interesses clericais: o ER seria ministrado “sem ônus
para os poderes públicos”. Significa que as escolas públicas não poderiam remunerar os
professores do ER. Numa interpretação estrita, nem mesmo os professores do quadro
poderiam ser deslocados para essa atividade, ao menos durante seu horário de trabalho.
“O voluntariado e a remuneração por entidade religiosa seriam, então, as condições
necessárias para a existência prática desse ensino”. (Cunha, 2010). Por outro lado, a
maioria das propostas da Igreja católica foi atendida, inclusive com características ainda
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melhores do que a do decreto de 1931 que colocava o ER na dependência do número de
alunos interessados, pois agora se eliminava o limite mínimo para sua viabilização. Outra
questão dizia que o registro dos professores do ER seria realizado perante as autoridades
dos respectivos credos, vale dizer, que o poder público abria mão desse poder em proveito
da Igreja Católica, principalmente, e de outras entidades que se propusessem a disputar a
hegemonia religiosa no espaço das escolas públicas.
Durante o governo Jânio Quadros pouca alteração houve em relação o ER, em seu
curto governo, o Presidente Jânio Quadros demonstrou mais interesse na disciplina
Educação Moral e Cívica (EMC), chegando a ressuscitar a “lei” orgânica do ensino
secundário, de 1942. Tal procedimento possibilitava a EMC no ensino secundário, pois o
presidente reestruturou o que havia sido posto de lado. A renúncia de Quadros, quatro
meses após a promulgação desse decreto, a conturbada posse de seu vice, João Goulart,
em seguida a tentativa de golpe, protagonizado pelos ministros militares, não alterou em
nada o ER nas escolas públicas.
Depois do golpe de 1964, a disciplina ER começou a perder muito espaço para
EMC, pois os militares, em especial os membros da Comissão Nacional de Moral e
Civismo entendiam que a EMC remodelada atenderia também aos interesses religiosos,
visto a forte presença de membros do clero em tal comissão.
Segundo Cunha (2010, p.295-296),
Apoiando-se nas tradições nacionais, essa disciplina teria por finalidade: a) a
defesa do princípio democrático, através da preservação do espírito religioso,
da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade com responsabilidade,
sob a inspiração de Deus; b) a preservação, o fortalecimento e a projeção dos
valores espirituais e éticos da nacionalidade; c) o fortalecimento da unidade
nacional e do sentimento de solidariedade humana; d) o culto à Pátria, aos seus
símbolos, tradições, instituições, e os grandes vultos de sua história; e) o
aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à família e à
comunidade; f) a compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros e o
conhecimento da organização sócio-político-econômica do País; g) o preparo
do cidadão para o exercício das atividades cívicas, com fundamento na moral,
no patriotismo e na ação construtiva visando ao bem comum; h) o culto da
obediência à lei, da fidelidade ao trabalho e da integração na comunidade.
Dessa forma, garantia-se o elemento religioso necessário à sociedade brasileira. O
relator da Comissão Especial do Conselho Federal de Educação encarregada de dar as
diretrizes para os programas da disciplina EMC foi o arcebispo-conselheiro Luciano José
Cabral Duarte (parecer 94/71). Apesar do parecer dizer que a EMC não deveria ser
confessional, proclamou-se que a religião era a base da moral a ser ensinada. “Para
escapar do paradoxo, o arcebispo Duarte lançou mão do conceito de “religião natural”,
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isto é, aquela que leva ao conhecimento de Deus pela luz da razão, o que subentendia a
tradição judaico-cristã”. (Cunha, 2010).
Com efeito, o ER ganhou na EMC uma aliada. Na constituinte de 1967, o
Congresso Nacional estava mutilado pela cassação de mandatos de parlamentares, o que
desencadeou a elaboração de nova Constituição, um processo de adequação à ordem legal
do país ao quadro definido pela agenda de atos institucionais e complementares.
Em relação ao ER nas escolas públicas, a discussão resumiu-se à questão da
remuneração de seus professores, pelo Estado. A Igreja Católica pretendeu aproveitar o
momento, que lhe era especialmente favorável, como a da Era de Vargas, para ampliar os
benefícios estatais à sua atuação religiosa e educacional. Apesar disso, o pleito não foi
aprovado. O texto da Constituição promulgada em 1967 determinou que, dentre as
normas que deveriam reger a legislação educacional, estaria o ER, de matrícula
facultativa, que constituiria disciplina dos horários normais das escolas oficiais de grau
primário e médio – este, finalmente explicitado. No entanto, a LDB de 1961 permanecia
em vigor, vedando que os ônus do ER fossem assumidos pelos Poderes Públicos. Segundo
Cunha (2007), essa situação só viria a mudar quatro anos mais tarde.
Em 1971 foi promulgada a Lei de Diretrizes e Bases do Ensino de 1o. e 2o.
Graus, lei 5.692, de 11 de agosto. O ER aparece nela como parágrafo único
do artigo que determina a obrigatoriedade da EMC, ao lado de outras
disciplinas, mas o importante foi a revogação de artigo da LDB de 1961 que
vedava a remuneração dos professores de ER pelos Poderes Públicos. A
legislação ficou, então, omissa sobre essa questão. Em decorrência, os
dirigentes católicos passaram a assediar governadores e prefeitos para obterem
o deslocamento de professores do quadro para o ER, assim como o pagamento
de seus próprios agentes nas escolas públicas de 1o. e 2o. graus. (CUNHA,
2007, p.297)
Tal situação permaneceu até os anos de 1980, com uma nova Carta Constitucional
que tinha como intenção acabar com os vestígios dos longos anos de ditadura.
A Constituição de 1988 e a nova LDB
A Constituição de 1988 repetiu as características das anteriores com o seguinte
texto: “O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários
normais das escolas públicas de ensino fundamental”, encurtando um pouco a duração
desse ensino. Todavia, isso demonstra o enfraquecimento da posição laica, mesmo com
a limitação imposta pelo Congresso Nacional na aprovação da Lei 9.394/96 (atual LDB)
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reeditando o dispositivo restritivo ao ER da Constituição de 1946: “sem ônus para os
cofres públicos”.
Segunda Cunha (2007),
Uma alternativa inédita se configurou, comparativamente à legislação
precedente, a previsão de que o ER fosse oferecido em uma das duas formas:
confessional, de acordo com a opção religiosa manifestada pelos alunos ou
seus responsáveis; ou interconfessional, resultante de acordo entre as diversas
entidades religiosas, que se responsabilizariam pelo programa. Na primeira
alternativa, os professores ou orientadores religiosos seriam preparados ou
credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas.
Entretanto, logo após a promulgação da LDB, depois de uma forte pressão da
CNBB, um projeto de lei proposto pelo Ministro Paulo Renato Souza da pasta da
Educação, intencionava alterar o artigo sobre o ER nas escolas públicas, que no
Congresso Nacional foi fundido a dois outros, de iniciativa parlamentar, sobre a mesma
matéria. O deputado Padre Roque, do Partido dos Trabalhadores (PR), redigiu o
substitutivo que foi aprovado no Congresso, e depois de uma tramitação ligeira, resultou
na lei 9.475/97. Segundo Cunha (2007, p.299), “de nada adiantou a argumentação de
poucos parlamentares, que evocaram argumentos laicos, a partir da esquerda do espectro
político, a exemplo dos deputados José Genuíno (PT-SP) e Sérgio Arouca (PPS-RJ).” O
ER ganhou uma redação nova que retirava os dispositivos restritivos.
O ER foi considerado “parte integrante da formação básica do cidadão” para isso
era necessário dar mais liberdade aos sistemas de ensino (das unidades da Federação, do
DF e dos municípios) para criarem regras locais para a habilitação e a admissão dos
professores de ER. Foi reconhecido também, o poder das entidades religiosas organizadas
com capacidade de mobilização social. Com efeito, pelo projeto apresentado, cada
sistema educacional deveria interagir com as diferentes entidades religiosas na
formulação dos respectivos programas.
Além disso, foi suprimida do texto constitucional a frase “sem ônus para os cofres
públicos”, eliminando assim qualquer restrição ao emprego de recursos públicos para
cobrir os custos do ER nas escolas públicas. Foi suprimida também a expressão
interconfessionalismo como modalidade expressamente reconhecida de ER. As
mudanças permitiram uma nova negociação. Cada unidade da Federação negociou com
as entidades religiosas, criando assim a possibilidade dos governos estaduais e/ou
municipais financiarem seus agentes no ensino público. Além disso, forneceu-se um
reforço simbólico aos grupos que, dentro das entidades religiosas, especialmente da Igreja
Católica, pretendiam manter o caráter confessional, em detrimento dos que defendiam
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substituí-lo por um presumido denominador comum às diferentes religiões, de caráter
moral.
A recuperação da Igreja Católica não ocorreu sem uma discussão interna dentro
da própria burocracia eclesiástica, principalmente a respeito da estratégia orientadora de
suas relações com os demais segmentos religiosos. Como consequência, duas visões
endógenas ao campo religioso se apresentaram para o ER nas escolas públicas: para uma
corrente, ele deveria ser confessional, para outra, inter/supraconfessional.
Em suma, a situação atual do ER é de disputa entre diferentes grupos de interesses
religiosos na tentativa de implantar um sistema que atenda aos interesses das diferentes
denominações religiosas.
De acordo com o que foi pontuado até aqui, cabe destacar que, em matéria
noticiada no jornal “O Globo”, de 13 de março de 2013, “contrariando a lei, ensino
religioso é obrigatório em 49% das escolas que oferecem a disciplina no país”; os dados
foram levantados no portal qedu.org.br a partir de questionário realizado pelo Prova
Brasil 2011, do Ministério da Educação. Tal prática contraria a própria LDB que indica
o ER como sendo facultativo. Pior, segundo, ainda, a matéria em pauta, cada escola
pública determina a corrente religiosa a ser trabalhada, com a supremacia do ensino de
práticas católicas e evangélicas, com orações e cânticos, e a visível discriminação quanto
às demais manifestações religiosas. Logo, se vê o contrassenso haja vista a lei vedar
quaisquer formas de proselitismo.
Considerações finais
O ER sempre esteve presente na realidade escolar brasileira, não só como presença
efetiva, mas também como forma de pensar o mundo, e, em especial como elemento
construtor de uma moral que garantisse a manutenção do status quo. Durante o Império
foram estabelecidas as bases da estrutura escolar brasileira. A marca principal era um
moralismo classista que reforçava as diferenças sociais. Nesse sentido, a ER tinha
importância capital.
Mesmo com a República, o ER exerceu uma função ideológica. Por isso, foi
sempre objeto de disputa nas legislações, em especial, nas educacionais. A escola laica
que estava na origem do projeto republicano sofreu grandes derrotas e ainda está longe
de se efetivar no sistema escolar brasileiro e isso acarreta uma grande influência nas
práticas desenvolvidas nos cotidianos das escolas.
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SAVIANI, Dermeval. História das Ideias Pedagógicas no Brasil. Campinas, SP: Autores
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SODRÉ, Nelson Werneck. A História Militar do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1979.
OLIVEIRA, R. P. de. Educação e sociedade na Assembléia Constituinte de 1946. São
Paulo, 1990. Dissert. (mestr.) Faculdade de Educação da USP. 2 vols.
* Doutor em Educação pela UFRJ. Mestre em Educação pela UFRJ. Professor Adjunto na Faculdade de
Pedagogia da Universidade Federal Fluminense. Membro do Grupo de Pesquisa “Memória, História e
Produção de Conhecimento e Educação” da UFF. ** Pós-doutora em História Política pela UERJ. Doutora em Serviço Social pela UERJ. Mestre em Memória
Social pela UNIRIO e Pedagoga pela UFF. Professora Adjunta da UniLaSalle. Membro do Grupo de
pesquisa “NUCLEAS/UERJ”. i A ABE foi fundada por Heitor Lyra da Silva, líder do grupo formado por maioria de engenheiros,
predominantemente carioca, e visou a elevar a cultura e a dignidade da missão de educar. Nunca foi um
órgão de classe. Caracterizou-se por defender a formação cultural e o aperfeiçoamento profissional do
educador, através de cursos, congressos e semanas da Educação, realizados em várias capitais e cidades
brasileiras. Apresentou-se também por uma disputa interna entre católicos e laicos, principalmente antes
de se nacionalizar em 1932. A partir de 1931, assumiu uma postura laica e lançou o Manifesto dos Pioneiros
da Educação Nova, redigido por Fernando de Azevedo que, pela repercussão alcançada nos meios
educacionais e culturais, constituiu-se num marco na história da educação brasileira. Ao longo dos anos
trinta, principalmente a partir de 1935, tomou uma postura conservadora, e, durante a ditadura na década
de 1960 e 1970, acabou apoiando os governos militares.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302871