O ESPAÇO DA INFÂNCIA NAS CRÔNICAS DE CARLOS … · José Saramago “Poderia falar de quantos...

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR CENTRO DE HUMANIDADES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS MESTRADO EM LITERATURA BRASILEIRA

    O ESPAO DA INFNCIA NAS CRNICAS DE CARLOS HEITOR CONY

    ANDR MOTA FURTADO

    FORTALEZA 2007

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR CENTRO DE HUMANIDADES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS MESTRADO EM LITERATURA BRASILEIRA

    O ESPAO DA INFNCIA NAS CRNICAS DE CARLOS HEITOR CONY

    ANDR MOTA FURTADO

    FORTALEZA 2007

    Dissertao apresentada Coordenao do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal do Cear, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Literatura. Elaborada sob a orientao da Prof. Dr. Fernanda Maria Abreu Coutinho

  • Lecturis salutem

    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA POR Telma Regina Abreu Camboim Bibliotecria CRB-3/593 [email protected] Biblioteca de Cincias Humanas UFC_____ F987e Furtado, Andr Mota. O espao da infncia nas crnicas de Carlos Heitor Cony/ por Andr

    Mota Furtado. 2007. 205 f. : il; 31 cm. Cpia de computador (printout(s)). Dissertao(Mestrado) Universidade Federal do Cear,Centro de

    Humanidades,Programa de Ps-Graduao em Literatura, Fortaleza(CE), 27/07/2007.

    Orientao: Prof. Dr. Fernanda Maria Abreu Coutinho. Inclui bibliografia.

    1-CONY,CARLOS HEITOR,1926- CRTICA E INTERPRETAO.2-INFNCIA NA LITERATURA.3-ESPAO E TEMPO NA LITERATURA.I-Coutinho, Fernanda Maria Abreu , orientador.II.Universidade Federal do Cear. Programa de Ps-Graduao em Literatura.III- Ttulo. CDD(21 ed.) B869.8408 31/07

  • BANCA EXAMINADORA:

    Prof. Dr. Fernanda Maria Abreu Coutinho Universidade Federal do Cear (UFC) Orientadora

    Prof. Dr Marlia Rothier Cardoso Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC/RJ) 1 Examinadora

    Prof Dr Vera Lcia Albuquerque de Moraes Universidade Federal do Cear (UFC) 2 Examinadora

  • AGRADECIMENTOS

    Professora Doutora Fernanda Coutinho, pela grandiosa

    contribuio, durante a jornada, proporcionada por sua

    incansvel e terna orientao.

    Professora Doutora Marlia Rothier, pela gentileza de ter

    aceito o convite, e por todas as excelentes sugestes, feitas de

    sua leitura atenta e aguda.

    Professora Doutora Vera Moraes, pelas valiosas observaes,

    apresentadas durante o Exame de Qualificao.

    A Carlos Heitor Cony, pelos subsdios dados a este trabalho, em

    suas atenciosas entrevistas.

    Aos meus colegas e professores do Programa de Ps-Graduao

    em Letras da Universidade Federal do Cear.

    A todos que, de alguma forma, me ajudaram na realizao desta

    pesquisa, em especial, Maria do Amparo e ao Jos de Castro.

  • DEDICATRIA

    A minha me, pela lio de vida.

    A meu pai, pela garra em perseguir seus objetivos.

    Viviane, pela compreenso e apoio, em todas as etapas da pesquisa.

  • Cho da infncia. Algumas lembranas me parecem fixadas nesse cho movedio...

    Lygia Fagundes Telles Aos 92 anos, prximo ao fim, meu pai buscava ainda a imagem daqueles que dele haviam cuidado em criana. que nunca deixamos de ser crianas. Com o tempo, vamos nos tornando crianas envelhecidas, engelhadas; mas a nossa fragilidade continua sendo a da infncia, a nossa carncia continua sendo a da infncia.

    Moacyr Scliar J no existe a casa em que nasci, mas esse facto -me indiferente porque no guardo qualquer lembrana de ter vivido nela. Tambm desapareceu num monto de escombros a outra, aquela que durante dez ou doze anos foi o lar supremo, o mais ntimo e profundo, a pobrssima morada dos meus avs maternos...

    Jos Saramago Poderia falar de quantos degraus so feitas as ruas em forma de escada, da circunferncia dos arcos dos prticos, de quais lminas de zinco so recobertos os tetos; mas sei que seria o mesmo que no dizer nada. A cidade no feita disso, mas das relaes entre as medidas de seu espao e os acontecimentos do passado.

    Italo Calvino

  • RESUMO

    A pesquisa em pauta analisa, atravs de uma perspectiva hermenutica, de vertente

    comparatista, o tema da infncia no mbito da literatura. A partir da leitura da obra em

    crnica, publicada em livro, de Carlos Heitor Cony, objetiva-se compor uma

    representao pueril, sob o ponto de vista da categoria narrativa espao, desenvolvida

    nas subcategorias: espao fsico, social e psicolgico. De incio, a dissertao prende-se

    a uma construo argumentativa do termo crnica confessional da infncia, atravs da

    ligao entre os vocbulos crnica, memria e infncia; a fim de, na seqncia, aplic-lo

    empiricamente e de maneira especfica na edificao dos espaos infantis privados

    e pblicos representados, respectivamente, pelas palavras-chave, casa e rua, nas

    crnicas do autor em foco. Por meio desse recorte em relao temtica infantil,

    verificou-se que o locus do passado processa-se bem mais em sentido figurado. Tanto

    pelas relaes sociais como por uma apresentao de um espao mental dos

    personagens; evidenciando-se, portanto, de maneira secundria, a demarcao fsica da

    geografia das imagens da infncia na obra em crnica de Carlos Heitor Cony.

    Palavras-chave: crnica, memria, infncia, espao.

  • RSUM

    La recherche en question analyse, travers une perspective hermneutique, versant

    comparatiste, le thme de lenfance dans le domaine de la littrature. partir de la

    lecture de loeuvre en chronique, publie dans des livres, de Carlos Heitor Cony, nous

    avons pour but composer une reprsentation purile, sous le point de vue de la catgorie

    narrative de lespace, dveloppe dans les sous-catgories: lespace physique, social et

    psychologique. Initialement, ce travail satatache une construction argumentative du

    terme chronique confessionnelle de lenfance, travers le rapport entre les mots

    chronique, mmoire et enfance; afin que, dans le squence, nous lemployons

    empiriquement et de manire spcifique dans ldification des espaces enfantins

    privs et public reprsents, respectivement, par les mots-cls, maison et rue, dans les

    chroniques de lauteur cibl. travers cette coupure par rapport la thmatique

    enfantine, nous avons vrifi que le locus du pass arrive plutt dans un sens figur.

    cause des rapports sociaux et par une prsentation dun espace mental des personages;

    soulignant, par consquent, de manire secondaire, la dlimitation physique de la

    gographie des images de lenfance dans loeuvre en chronique de Carlos Heitor Cony.

    Mots-cls: chronique, enfance, mmoire, espace.

  • SUMRIO INTRODUO...............................................................................................................10 1. O ESPAO DA MEMRIA E A CRNICA CONFESSIONAL DA INFNCIA...13 2. O ESPAO DA CASA................................................................................................39

    2.1 O MENINO CONY..........................................................................................57

    2.2 O MENINO E O PAI.......................................................................................69

    2.3 O MENINO E A ME...................................................................................105

    2.4 O NO-ESPAO DA ESCOLA...................................................................110

    2.5 O ESPAO DA LEITURA............................................................................117 3. O ESPAO DA RUA................................................................................................123

    3.1 O MENINO E O RIO DE JANEIRO DOS ANOS 30...................................135

    3.2 O MENINO E OS TIPOS POPULARES DO LINS DE VASCONCELOS.149

    3.3 O ESPAO INTERPARES...........................................................................156 CONSIDERAES FINAIS........................................................................................172 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..........................................................................175 ANEXOS.......................................................................................................................184

    Anexo A Entrevista 1........................................................................................184 Anexo B Entrevista 2........................................................................................191 Anexos fotogrficos C, D, E, F, G, H, I, J, L....................................................196

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    Entre parnteses, o ano da primeira edio

    AF Da arte de falar mal (1963)

    AFA O ato e o fato (1964)

    PS Posto Seis (1965)

    QA Quinze Anos (A juventude como ela ) (1965)

    AA Os anos mais antigos do passado (1998)

    HB O harm das bananeiras (1999)

    PSJ O presidente que sabia javans (2000)

    SL O suor e a lgrima (2002)

    TN O tudo e o nada (2004)

  • INTRODUO

    A representao do imaginrio infantil, ao longo do tempo, uma presena

    constante nas manifestaes artsticas e especificamente quanto literatura um mote

    recorrente tanto na prosa como na poesia.

    Na prosa brasileira, a crnica uma espcie literria que nitidamente enfoca

    o tema. E entre os melhores cronistas do pas, Carlos Heitor Cony , sem dvida, um

    dos que mais se destacaram, ao trazer os aspectos da infncia e memria para o centro

    de sua produo literria.

    Essa faceta da obra deste autor carioca ser o tema de investigao do

    presente ensaio. O olhar para sua obra em crnica, de teor confessional, deu margem

    observao de que, dentre as categorias da narrativa, uma das mais expressivas no texto

    a do espao. Nesta dissertao, opta-se, assim, pelo exame das variadas dimenses do

    espao como elemento de construo textual.

    Coloca-se ento como problema de investigao para o texto dissertativo em

    questo um exame da configurao dos espaos infantis pblicos e privados gerados

    pelas crnicas de confisso. Em outras palavras: em que medida esse locus da infncia

    se estrutura na linguagem de Carlos Heitor Cony.

    A leitura das crnicas suscitou uma indagao de base: por que Carlos

    Heitor Cony pouco utiliza a descrio fsica na construo dos espaos da infncia

    evocados pelos textos?

    Na tentativa de solucionar o problema, lanam-se duas hipteses: a da opo

    do autor pelo tratamento do espao de natureza scio-psicolgica; e a da apresentao

    tanto dos personagens como do ambiente que os rodeia estar vinculada a textos

    essencialmente narrativos, nos quais o fato o que gera a ao narrativa mais

    importante que as especificaes descritivas do espao no qual se circunscreve a

    histria.

    Neste caso especfico, a pesquisa objetiva investigar tanto a construo

    espacial, como a sua imagem vinculada criana, nos textos que remetem, de alguma

    forma, ao passado do autor. Dito de outro modo: empenha-se em compor uma

    representao da infncia, atrelada construo dos diferentes tipos de espaos fsicos,

    sociais e psicolgicos; cabendo assinalar, tambm, que a composio dessa geografia

    pessoal encaminhar o leitor a uma decifrao do mapa do Brasil, em boa parte do

  • 11

    sculo 20 e at do 21, por intermdio dos hbitos de crianas e adultos relacionados

    idade pueril.

    Ao propor um elo entre os vocbulos crnica, memria e infncia, tenciona-

    se cunhar a expresso crnica confessional da infncia a partir de reflexes

    metalingsticas, como as do prprio autor em foco cujo sentido refira-se anlise e

    interpretao sobre a memria da infncia, em crnica.

    Estruturalmente, a dissertao compe-se de trs captulos. O primeiro

    terico pode ser fracionado em trs grandes tpicos: o inicial aborda o conceito da

    crnica brasileira texto que aqui adquiriu uma feio prpria, j que dialoga com o

    jornalismo e a literatura. J o segundo tpico, centrado nas observaes de Philippe

    Lejeune estudioso francs da autobiografia e seus gneros afins, bem como nas

    contribuies tericas de brasileiros como Wander Melo Miranda, Eliane Zagury, entre

    outros apresenta questes de teor memorialstico, a fim de se criar um vnculo com

    ltimo tpico do captulo: a relao entre crnica, infncia e memria.

    No captulo segundo, o elemento espao soma-se aos termos crnica,

    memria e infncia. luz de tericos como Antonio Candido, Antonio Dimas, Gaston

    Bachelard, Michel Butor, Vtor Manuel, a categoria literria espao posta em questo,

    mais precisamente no mbito da casa da infncia. A morada do menino Cony.

    Na pintura da temtica infantil, buscam-se as contribuies, principalmente,

    de Philippe Aris pesquisador que estudou a infncia como uma construo histrica

    e tambm de D. W. Winnicott e John Bowlby. Estes, atravs de estudos de natureza

    psicolgica.

    Quanto ltima parte da pesquisa, mencionem-se as observaes

    relacionadas ao meio urbano, cidade mais precisamente cidade do Rio de Janeiro

    espao cultural onde se desenrolam muitas das crnicas enfocadas. Nesta parte do

    trabalho, em que predominam os temas infncia e cidade, sobrelevam-se as

    contribuies dos tericos Raymond Williams e Nicolau Sevcenko; o primeiro, ingls, e

    o outro, brasileiro. Portanto, todas as anlises nesta altura da pesquisa esto atreladas

    aos temas infncia e urbe, sempre com o olhar na prpria vida do escritor.

    O procedimento metodolgico, em relao aos captulos segundo e terceiro,

    situa o tema pesquisado numa perspectiva hermenutica, pelo vis da Literatura

    Comparada. As crnicas de Carlos Heitor Cony so cotejadas tanto entre si como do

    ponto de vista intertextual, ou seja, em confronto com as produes de autores

    brasileiros ao longo dos sculos 19, 20 e 21. Ressalte-se que, dada a sua importncia

  • 12

    para a ilustrao da pesquisa sobre espao na infncia, algumas crnicas figuram nos

    dois captulos.

    O corpus do trabalho se efetua na obra em crnica, publicada em livro, do

    autor. So textos, que se tornaram pblicos, primeiramente, na imprensa brasileira, ao

    longo da atividade intelectual de Carlos Heitor Cony. Todavia, apesar do estudo pautar-

    se em todos os livros de crnicas, necessrio ressaltar que nas coletneas Os anos mais

    antigos do passado e O harm das bananeiras mais do que em quaisquer outras o

    autor revive sua infncia com mais nitidez. E, por isso, as crnicas que as compem

    sero amiudamente citadas nesta pesquisa.

    Ao se fazer um exerccio comparativo durante as anlises do ensaio,

    pretende-se, ento, chegar a um juzo de valor acerca do ttulo proposto. Espera-se que a

    pesquisa contribua, de alguma forma, para os estudos literrios que se inclinam a esse

    fabuloso tema que a infncia.

  • 1. O ESPAO DA MEMRIA E A CRNICA CONFESSIONAL DA INFNCIA

    O embrulho cor-de-rosa continua em minha mo. No tenho vontade de abri-lo, libertar lacraias que esperam, silenciosas, para me devorar. A memria no precisa de matria. Do pequeno trajeto que fiz, do armrio at esta poltrona, lembrei coisas de h muito submersas nos meus pores. Devo cavar a esmo, memria devassando ngulos adormecidos ou mortos, em escala impossvel de precisar: um minuto de memria equivalendo a anos de matria.

    Carlos Heitor Cony, Matria de memria

    Muito se tem discutido a respeito do gnero crnica no meio acadmico.

    Publicaes de livros, teses, dissertaes, monografias ou artigos, de um modo geral,

    tentam encontrar uma definio satisfatria para a crnica, enfatizando seu hibridismo

    em relao literatura e ao jornalismo caracterstica principal do gnero. Contudo, de

    consensual e definitivo tem-se, apenas, que a proposta inicial da crnica foi, e continua

    sendo, um texto produzido para ser publicado em peridicos da imprensa.

    A crnica como hoje conhecida surgiu no sculo 19, da pena

    (literalmente) do folhetinista. Tpica figura do sculo 19, o folhetinista era aquele

    profissional da imprensa, pago para escrever em determinado espao do jornal o

    chamado folhetim. O hibridismo da crnica j acontecia naquela poca; e, por isso, a

    produo destes textos era confiada a escritores reconhecidamente talentosos, como, por

    exemplo, Jos de Alencar e Machado de Assis. de se concluir, portanto, que j no

    sculo 19 o folhetim diferenciava-se do texto estritamente jornalstico.

    Dirigindo-se normalmente s leitoras, Jos de Alencar publicava suas

    crnicas sob o ttulo Ao correr da pena, no Correio Mercantil e no Dirio do Rio de

    Janeiro. Interessante frisar que em folhetim do dia 24 de setembro de 1854, no Correio

    Mercantil, ele comenta sobre a atitude profissional do folhetinista, na coluna de jornal:

    Obrigar um homem a percorrer todos os acontecimentos, a passar do gracejo ao assunto srio, do riso e do prazer s misrias e s chagas da sociedade; e isto com a mesma graa e a mesma nonchalance com que uma senhora volta as pginas douradas do seu lbum, com toda finura e delicadeza com que uma mocinha loureira d sota e basto a trs dzias de adoradores! Fazerem do escritor uma espcie de colibri a esvoaar em ziguezague, e a sugar, como o mel das flores, a graa, o sal e o esprito que deve necessariamente descobrir no fato o mais comezinho! (Alencar, 2004: p.25-26)

  • 14

    Em seu famoso folhetim conceitual, publicado na revista O Espelho, em 30

    de outubro de 1859, Machado de Assis aps comentar que o folhetinista a fuso

    admirvel do til e do ftil, o parto curioso e singular do srio, consorciado com o

    frvolo (Assis, 1986: p.959) fixa, tal como Alencar, a metfora do folhetinista-

    colibri:

    O folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar do colibri na esfera vegetal; salta, esvoaa, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre todos os caules suculentos, sobre todas as seivas vigorosas. Todo o mundo lhe pertence; at mesmo a poltica.

    Assim aquinhoado pode dizer-se que no h entidade mais feliz neste mundo, excees feitas. Tem a sociedade diante de sua pena, o pblico para l-lo, os ociosos para admir-lo, e a bas-bleus para aplaudi-lo.

    Todos o amam, todos o admiram, por que todos tm interesse de estar de bem com esse arauto amvel que levanta nas lojas do jornal, a sua aclamao de hebdomadrio. (Assis, 1986: p.959)

    Walter Galvani, no belo ensaio Crnica: o vo da palavra, cria uma

    imagem metafrica para o cronista, to interessante quanto a figura do folhetinista-

    colibri apresentada pelos citados escritores oitocentistas. O folhetinista-colibri

    transformou-se no cronista-gaivota: entendo que ofcio de cronista como vo de

    gaivota, rente s ondas, at o ponto e a hora de fisgar o peixe. E ento vem o mais

    difcil: voar mais e mais, sem deix-lo cair. (Galvani, 2005: p.22) A imagem de

    Galvani ilustrativa, pois tanto ressalta a busca do tema, captado do cotidiano pelo

    cronista, como a obrigao de criar um texto leve, mas artstico. Em momento posterior

    de seu ensaio, o jornalista e escritor gacho esclarece melhor o assunto, ao transfigurar

    metaforicamente sua experincia pessoal. Idias essas, que podem ser vinculadas, sem

    prejuzo de valor, a outros cronistas:

    Sou como uma gaivota, l do alto examinando o que ocorre na superfcie do mar ou na beira da praia.

    Ah, eis o meu assunto, l est ele, vivo, respirando, esperando apenas que eu o tome entre as mos e o transforme em algo legvel ou, por muita sorte, em trabalho e, quem sabe com alguma competncia , possa lhe dar uma inesperada consistncia artstica, literria, transform-lo em valor cultural permanente. O que uma simples crnica, ento, poder se abrigar em alguma antologia futura ou se assentar em alguma estante preciosa, ao lado de textos de Rubem Braga ou, porque no, de Pero Vaz de Caminha? (Galvani, 2005: p.28)

    Oportuno destacar o ltimo perodo enunciado por Galvani, momento em

    que ele explica, em tom anedtico, a tendncia natural de crnicas que, por serem

    acentuadamente literrias, podem figurar em livro. Tal como Galvani, comentando

  • 15

    sobre a esttica desses textos breves, Lus Peaz cria tambm uma imagem metafrica,

    ao fazer um paralelo entre o jornalista stricto sensu e o cronista. Ele afirma ento:

    No texto jornalstico, o jornalista entra com um serrote e um martelo em cada mo, s. Na crnica, ele se abastece de inmeras ferramentas, pode at nem utiliz-las, mas elas esto ali. Se a pressa no for muito grande ele utiliza... Um graminho, uma suta, um formo, uma serrinha menor, um esquadro, a trena, e no raramente a sua colher de pau. (Peaz, 2006: p.22)

    , portanto, pelo uso dessas ferramentas mencionadas por Lus Peaz que o

    cronista busca criar o teor literrio em seu texto, podendo ele, como j comentado

    anteriormente, ser transcrito em livro; meio este de publicao, bem distante daqueles

    textos breves do sculo 19, escrito pelos folhetinistas. Alis, bom ressaltar aqui que

    nos primrdios do gnero, diferentemente da crnica moderna, cabia quase tudo,

    naquele espao do folhetim oitocentista. Para citar dois exemplos, nas colunas eram

    encontradas tanto narrativas ficcionais romances que, publicados em fragmentos,

    adquiriram em seguida autonomia como textos de crtica literria.

    Adotando um ponto de vista histrico, a pesquisadora do folhetim Marlyse

    Meyer1, no ensaio Volteis e versteis. De variedades e folhetins se fez a chronica,

    resume esquematicamente o folhetim, explicando que a referida coluna brasileira

    possua as mesmas caractersticas do originrio folhetim francs. Dividindo-o em

    categorias especficas, Marlyse Meyer esboa as caractersticas do que se passou na

    Frana-matriz e finaliza suas idias, relacionando-as com o Brasil oitocentista:

    1. Feuilleton: espao vazio no rodap de jornais ou nas revistas, destinado ao entretenimento. 2. No mesmo espao geogrfico: o roman-feuilleton. 3. Varits e diferentes feuilletons (contos, notcias leves, anedotas, crnicas, crticas, resenhas, etc. etc. etc...). 4. Todo e qualquer romance publicado en feuilleton, ou seja, aos pedaos. E no Brasil? [...] Basta um relance pela imprensa do sculo XIX para v-lo, em todas as suas modalidades. Tal e qual na matriz. (Meyer, 1992: p.99)

    Em outro estudo chamado Estaes, Marlyse Meyer debruou-se na

    Seo de Livros Raros da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e obteve boas

    informaes acerca da atividade intelectual de Machado de Assis em A estao. O

    1 Cf. tambm a seguinte publicao: MEYER, M. Folhetim: uma histria. So Paulo: Companhia das Letras, 1996.

  • 16

    mencionado peridico, com publicao quinzenal, era um jornal de modas, que possua

    uma seo literria. A pesquisadora comenta que

    Em matria de literatura, os novos so autores freqentemente resenhados e publicados entre eles, alm de Machado de Assis, prosa ou versos de Jos do Patrocnio, Mello Morais Filho, Lcio de Mendona, Tefilo Dias, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira etc. (Meyer, 2001: p.85)

    Nessa seo literria, Marlyse Meyer encontrou, casualmente, escritos

    machadianos. Lendo os peridicos de diferentes pocas2, constatou que Machado de

    Assis, entre outras atividades intelectuais no jornal, publicou diversos contos e o

    romance Quincas Borba, fico estampada nesse peridico que comparada pela

    estudiosa sua publicao posterior em livro. Para ficar apenas num exemplo, dessa

    relao entre o Quincas Borba do folhetim e o do livro, direi s que a tarefa ia se

    revelando muito estimulante, e j de sada permitia observar diferenas notrias na

    passagem do jornal ao livro: por exemplo, divergiam inteiramente os vinte primeiros

    captulos entre um e outro. (Meyer, 2001: p.96)

    Em seu comentrio sobre Machado de Assis, Marlyse Meyer coloca uma

    interessante questo que a alterao do texto original quando h uma nova publicao.

    Essa reviso uma prtica muito comum entre os escritores. Na busca de criar um texto

    ideal, acabam suprimindo ou enxertando frases e/ou vocbulos, bem como

    reestruturando a sintaxe do escrito.

    Em se tratando especificamente da crnica, aspecto importante tambm para

    destaque que este gnero restringe-se s imposies do tamanho que lhe oferecido

    no peridico; ficando limitado a um espao fixo. Sua produo, portanto, est

    subordinada a um certo nmero de caracteres. Eis uma grande diferena entre o cronista

    que acaba, por fora da situao, virando jornalista e o escritor stricto sensu.

    Muitos so os escritores que tambm publicaram, ou publicam, na imprensa.

    Os j mencionados (Jos de Alencar e Machado de Assis) e ainda Lima Barreto, Rachel

    de Queiroz, Graciliano Ramos, Joo Clmaco Bezerra, Clarice Lispector e Joo Ubaldo

    Ribeiro so alguns exemplos de romancistas que se tornaram jornalistas pelo vis da

    crnica. So intelectuais que assumem normalmente posturas diferenciadas no exerccio

    dirio ou semanal da escrita jornalstica. Escrevem para um pblico especfico, o leitor

    2 Segundo Marlyse Meyer, o peridico funcionou regularmente entre 15 de janeiro de 1879 e 15 de fevereiro de 1904.

  • 17

    mais exigente de jornal ou revista, utilizando uma linguagem que foge aos modelos

    convencionais da mera veiculao da notcia, buscando, em geral, o registro literrio.

    Cristiane Costa, na pesquisa de flego Pena de aluguel: escritores

    jornalistas no Brasil 1904-2004, trata justamente dessa dupla funo (escritor e

    jornalista) exercida por alguns intelectuais brasileiros. A autora parte de uma pergunta

    formulada pelo cronista Joo do Rio, que indaga sobre o fato do jornalismo,

    especialmente no Brasil, ser um fator bom ou mau para a arte literria.3 Ao comentar

    sobre o momento literrio do incio do sculo 20, ela afirma que:

    Os jornais e revistas tinham como trunfo servirem de berrio, vitrine, pedestal e mesmo de trampolim para o homem de letras, encarregando-se do recrutamento, da visibilidade e dos mecanismos de consagrao dos escritores. Era a imprensa que dava as condies de sobrevivncia e de divulgao para a produo dessa massa crescente de intelectuais brigando por um lugar ao sol. (Costa, 2005: p.25)

    Essa divulgao proporcionada pela imprensa apenas um dos pontos

    positivos das respostas que Joo do Rio obteve. Lembra Cristiane Costa que os outros

    so: pagamento, experincia, exerccio e legitimao. E os negativos, para contrastar,

    classificam-se em: mercantilismo, banalizao, esterilidade, falta de tempo e

    favorecimento. Contudo, a pesquisadora ressalta o fator econmico na diviso de dois

    pensamentos daqueles escritores do perodo:

    As respostas mais freqentes so, sem dvida, as que pem em lados opostos arte e dinheiro. A polarizao entre os que ainda acreditavam numa arte pura e ciumenta e os que defendiam o papel primordial do jornalismo na formao de um escritor tpica de um momento literrio que experimenta as novas regras da arte. (Costa, 2005: p.26)

    Na sua concluso, depois de dizer que impossvel elaborar uma resposta

    nica para a referida pergunta de Joo do Rio, porque cada momento literrio ou

    jornalstico [como tambm cada escritor] tem seus prprios dilemas (Costa, 2005:

    p.345), a autora comenta a relao contraditria entre arte e mercado, porque so

    Diferentes, como cara e coroa, mas interligadas. Isso porque as condies estruturais que permitiram a profissionalizao do trabalho intelectual no Brasil, nos ltimos cem anos, desenvolveram-se paralelamente

    3 Essa indagao uma das cinco perguntas que faz parte da enquete feita por Joo do Rio com os principais intelectuais de sua poca, os primeiros anos do sculo vinte. Posteriormente, as respostas foram reunidas por Joo do Rio no seguinte livro: RIO, J. do. O momento literrio. Curitiba: Editora Criar, 2006.

  • 18

    massificao dos meios de comunicao. Mas no constituio de um efetivo mercado para a literatura, que, de cara, exclui praticamente 75 % da populao. (Costa, 2005: p.346)

    Observando especificamente, neste momento, o cronista e a relao

    emissor/receptor, nota-se que esse profissional da escrita, at de forma natural, acaba

    como que se policiando ao se comunicar com um pblico especfico. Tem conscincia

    do seu papel na imprensa e sabe a quem se destinaro seus textos. Dialoga muitas vezes

    na sua prpria criao, com uma parte dos leitores, os mais interessados. Aqueles que

    enviam correspondncia por carta ou, mais comumente hoje em dia, atravs do correio

    eletrnico o e-mail. Esse dilogo observvel ao acompanhar a trajetria da crnica

    no Brasil.

    Situadas principalmente na dcada de 30, as crnicas de Humberto de

    Campos representam, de forma clara, essa relao entre cronista e leitor de jornal. So

    dezenas de textos em que o referido escritor faz da sua crnica uma carta pblica, em

    resposta aos remetentes, expondo, no jornal, problemas pessoais os mais variados.

    Nestas crnicas, Humberto de Campos funciona comumente como um

    conselheiro sentimental. Exemplo disso Blsamo para um corao, em que uma

    mulher deseja suicidar-se porque fora obrigada a casar com um tio alcolatra, agressivo

    e ciumento. O texto reproduz diversos fragmentos das cartas recebidas pelo cronista e

    dirige-se, logo no incio, diretamente angustiada mulher: Minha senhora. Leio a sua

    carta, e detenho-me nesta passagem: J tenho pensado na morte e estou mesmo

    resolvida a suicidar-me [...]. (Campos, 1983: p.39) Em pargrafos posteriores, o

    cronista afirma sua postura na crnica-carta: tenho, pois, minha senhora, que ser, at

    certo ponto, indiscreto. No me viesse, annimo, o seu grito e mandar-lhe-ia, em

    segredo, o conselho que me pede. Mas a resposta urgente e tem que ser pblica.

    (Campos, 1983: p.40) J nas ltimas linhas do texto, Humberto de Campos aconselhar

    interlocutora que viva feliz, rebelando-se contra o marido.

    Em outra crnica denominada Carta a Maria Cerqueira, o escritor afirma

    que recebeu a missiva de uma meretriz indignada com a pobreza por que passam muitas

    pessoas. Autodenominada de prostituta analfabeta, resta a um Humberto de Campos

    atordoado, solidarizar-se com Maria, porm sem conseguir expressar conselho algum.

    Ele, ento, reproduz o seguinte fragmento da carta recebida:

    Eu no estou aqui porque quero [a mulher escreve de um prostbulo], nem as outras infelizes. E quem nos sustenta so os homens da

  • 19

    sociedade... Cad emprego para quem quer trabalhar honrada? Cad remdio para se tomar quando est doente? A mulher e a filha do pobre s arranjam alguma coisa se prostituindo. Por isso a rua est cheia delas. E s eu sei o que choro de noite quando me lembro de mim. (Campos, 1983: p.71)

    Este testemunho real de uma meretriz dos anos 30, em comparao com o

    Brasil do sculo 21, mostra que em pouco mudou a situao social brasileira. Atravs

    dos textos de Humberto de Campos acima transcritos, percebe-se a possibilidade de

    haver uma cumplicidade entre cronista e leitor, podendo at chegar ao ponto de

    tornarem-se amigos.

    Nos anos 50, e incio dos 60, o bomio Antonio Maria4, radialista e

    compositor brasileiro, expressou tambm, em seus textos breves, o dilogo entre

    cronista e leitor.

    O bem-humorado autor possui um texto ilustrativo para exemplo, o qual

    estampa no ttulo Carta de leitores. Crnica essa, feita de fragmentos de cartas dos

    leitores, includos os nomes (ou pseudnimos) dos remetentes, como tambm de

    pequenos comentrios de Antonio Maria. Normalmente engraado, ele faz, s vezes,

    pouco caso da situao, atravs da ironia. Nessa crnica, a ordem do texto estrutura-se

    da seguinte forma: h o nome (ou pseudnimo) do remetente, seu questionamento ou

    comentrio e, em seguida, a fala do escritor. A fim de exemplificar o texto, transcreve-

    se abaixo um trecho da crnica:

    LUCRCIA: Reconheo que sou uma mulher muito m. Um dia, pinguei duas gotas de molho de pimenta no colrio do meu marido. Seu crime varia de gravidade, de acordo com a regio onde ele praticado. Na Bahia, por exemplo, m, cruel, desprezvel mesmo, seria a esposa que pingasse duas gotas de colrio no molho de pimenta do marido.

    CLUDIA RBIA: ... sou, enfim, uma mulher muito bonita. Que devo fazer para ingressar no cinema? Comprar a entrada. O fato de voc ser bonita no quer dizer que entre de graa nos cinemas. (Maria, 2005: p.33)

    Para finalizar essa questo a respeito da relao entre cronista e leitor, em

    outra crnica (Amor e torresmos), Antonio Maria escreve um comentrio muito

    interessante que, de certa forma, ratifica tudo o que foi dito aqui sobre o assunto. Afirma

    ento:

    No sei at quando terei que atender a esse consultrio sentimental. Mas o que que vou fazer se as leitoras acham que sei das

    4 O autor, na verdade, escreveria crnicas at 1964, ano de sua morte.

  • 20

    coisas? Minhas amigas, vocs deviam escrever a Nelson Rodrigues, que um lanterneiro de almas. Ele, sim, Nelson! J vi almas batidas, com o cap e os pra-lamas em frangalhos, sarem novas em folha como se viessem da fbrica. (Maria, 2005: p.94)

    Pelo fragmento, o autor se mostra incapaz de solucionar aquelas questes,

    formuladas pelos leitores (normalmente as mulheres), eximindo-se da tarefa, e ainda

    indicando um colega de imprensa (Nelson Rodrigues), que poderia sanar todas os

    problemas sentimentais daquelas pessoas.

    Quanto postura no seu espao de jornal, o cronista, mesmo escrevendo um

    texto literrio que, de forma geral, ameniza a dura realidade estampada nos jornais,

    sofre, geralmente, injunes ideolgicas do peridico no qual trabalha; realidade que

    pode lev-lo a entrar em discordncia com o peridico que abriga seu texto. Este um

    fato muito comum quando as crnicas so de teor poltico. Para citar um exemplo,

    lembre-se a poca da ditadura militar brasileira, perodo em que jornais e revistas

    tinham posies ideolgicas variadas, sendo contra ou a favor do regime que se

    instaurava no pas. O jornalista, ento, ou seguia o pensamento poltico do jornal ou

    revista em que trabalhava, ou entrava em conflito com o peridico.

    Desta poca, pode-se recordar um episdio envolvendo dois romancistas

    que, trabalhando na imprensa, tiveram problemas com o jornal Correio da Manh.

    Carlos Heitor Cony que, incumbido de criar uma crnica diria para o jornal, inicia,

    dois dias depois do golpe militar de 1964 em dois de abril uma srie de textos

    agressivos contra o novo regime poltico brasileiro.5

    Contudo, ao publicar um texto intitulado Ato Institucional II, o escritor

    instalou um mal-estar na redao do jornal, que j no queria mais censurar o regime

    vigente. A crnica em questo criava doze artigos, satirizando o mecanismo poltico

    institudo pelo militar marechal Castelo Branco para governar o pas o Ato

    Institucional.

    Carlos Heitor Cony, ento, que poca estava sendo processado pelo

    ministro da guerra Costa e Silva, envia uma carta a Antonio Callado, redator-chefe do

    jornal, pedindo demisso do cargo. Este, ao entregar o pedido de Cony gerncia do

    Correio da Manh, acaba, em apoio ao colega, apresentando tambm seu prprio

    pedido de demisso. Os dois escritores deixam, ento, de fazer parte do Correio da

    Manh.

    5 Estas crnicas polticas, que ficaram datadas, foram enfeixadas no livro O ato e o fato, publicado no mesmo ano de 1964.

  • 21

    Este episdio, acontecido com Carlos Heitor Cony e Antonio Callado

    apenas um exemplo de que a ideologia dos meios de comunicao pode gerar

    empecilhos a seus colaboradores, independentemente de o pas estar num perodo de

    ditadura militar. Atualmente vive-se uma democracia no Brasil, porm fcil perceber

    as posies polticas dos meios de comunicao; seja em apoio ao governo ou no.

    Apesar dessa questo ideolgica da mdia, sabe-se que existem revistas, jornais e

    programas radiofnicos ou televisivos que so a-partidrios, isto , no chegam no

    campo da poltica partidria, preferindo, geralmente, tratar de temas artsticos ou

    culturais.

    A propsito de comentar acerca do subjetivismo do cronista, cita-se abaixo

    uma definio sobre o gnero crnica enunciada pela pesquisadora Margarida de Souza

    Neves:

    A crnica, pela prpria etimologia chronus/crnica , um gnero colado ao tempo. Se em sua acepo original, aquela da linhagem dos cronistas coloniais, ela pretende-se registro ou narrao dos fatos e suas circunstncias em sua ordenao cronolgica, tal como estes pretensamente ocorreram de fato, na virada do sculo XIX para o sculo XX, sem perder seu carter de narrativa e registro, incorpora uma qualidade moderna: a do lugar reconhecido subjetividade do narrador. (Neves, 1992: p.82)

    A autora encerra seu comentrio lembrando o status adquirido, no sculo

    20, pelo eu do cronista. Um subjetivismo que dar uma nova configurao ao gnero,

    aqui j distante dos rodaps dos jornais oitocentistas. O prprio Carlos Heitor Cony

    possui uma metacrnica (A crnica como gnero e como antijornalismo) que tambm

    enfatiza esse subjetivismo do cronista. O escritor explica que

    A crnica s gnero menor em termos de literatura. Admite-se como inabalvel a certeza de que a literatura tende a ser perene, intemporal. No faltam tericos para garantir que a arte, nela incluindo a arte literria, existe para superar a morte. E, se a literatura busca a infinitude, a crnica crnica mesmo, expresso de finitude. temporal, fatiada da realidade e desvinculada do tempo maior que o da literatura como arte.

    Mas da no se deve concluir que ela seja uma defunta. Dizem que se trata de produto tpico do jornalismo brasileiro, mas no exclusivo. Sendo por definio um texto datado, tem fases, sacrifica-se a modismos, mas, devido elegncia ou habilidade de seus cultores, consegue sobreviver em diferentes manifestaes pleonasticamente crnicas: como gnero (crnica) e como vinculada a um tempo (crnica tambm).

    Temos a crnica esportiva, a social, a policial, a poltica, a econmica. Elas se diferenciam do "artigo" porque basicamente centrada num eixo permanente: o "eu" do autor. Da que o gnero romntico por definio e necessidade. (Cony, 1998: p.07)

  • 22

    O interessante desse comentrio terico de Cony que alm de dissertar

    sobre os temas perenidade e forma da crnica tambm se expressa sobre a

    subjetividade do autor, afirmando que por isso mesmo o gnero romntico por

    definio e necessidade.

    Ao caracterizar a crnica como gnero anfbio, vinculando-a ao

    jornalismo e literatura, Afrnio Coutinho acrescenta ao debate o prprio

    temperamento do escritor como importante fator de autonomia sua produo. O

    terico explicita a questo, quando diz que a crnica atinge [...] o melhor de sua

    realizao formal quando consegue fundir os supostos contrrios a literatura e o

    jornalismo com um teor autnomo pela fora da personalidade do escritor refletida em

    seu estilo e em suas idias. (Coutinho, 1986: p.134)

    Quanto ao contedo, j mencionado em pginas anteriores, a crnica, como

    expresso jornalstica de muitos escritores, via de regra, trata de assuntos do cotidiano

    citadino um trao indiscutvel do gnero. Lembrando, novamente, os folhetins do

    sculo 19: Jos de Alencar e Machado de Assis, por exemplo, escreviam suas colunas,

    as quais tinham, como objetivo primeiro, o de reportar sobre os principais fatos da

    semana. Logo, fica evidente que desses folhetins que ocupavam normalmente o

    rodap da pgina de jornal poderiam surgir temas circunstanciais do momento, o que

    proporciona vantagens, na compreenso do escrito, ao leitor contemporneo

    publicao do peridico.

    Entretanto, o cronista, principalmente o dirio, na persistncia de comentar

    sobre o dia-a-dia de sua poca inteno primitiva da crnica oitocentista acaba

    esgotando assuntos por demais ditos, como, por exemplo, a poltica, os costumes do

    povo, a descrio de lugares.

    Isso gera uma situao recorrente por que passa o cronista, a falta de

    assunto como tema do texto, a qual remonta ao sculo 19. Na sua coluna do dia 13 de

    maio de 1855, publicada no Correio Mercantil, Alencar inicia seu folhetim da seguinte

    forma:

    Estou hoje com bem pouca disposio para escrever. Conversemos. A conversa uma das coisas mais agradveis e mais teis que

    existe no mundo. (Alencar, 2004: p.319)

  • 23

    Em crnica do dia 21 de outubro do mesmo ano, seguindo essa tendncia

    usual dos cronistas de produzir um texto metalingstico, ele comea sua coluna de

    forma mais contundente que a anterior:

    Estava olhando para o fundo do meu tinteiro sem saber o que havia de escrever [...].

    [...] De fato o que um tinteiro? primeira vista a coisa mais insignificante do mundo; um

    traste que custa mais ou menos caro, conforme o gosto e matria com que feito. (Alencar, 2004: p.423-24)

    Aps uma reflexo banal sobre o tinteiro, o autor trata de temas do

    momento como um leilo que iria ocorrer e as apresentaes no teatro lrico. Alencar

    volta ao assunto do tinteiro, ao finalizar sua crnica, de forma primorosa:

    Comeo de novo a olhar o fundo do meu tinteiro para ver se ainda h alguma coisa.

    Esperai! L vejo surgir o quer que seja, - um pequeno ponto, um ponto quase imperceptvel e confuso, que vai pouco a pouco se tornando mais distinto, como uma vela que desponta no horizonte entre a vasta amplido dos mares.

    Talvez nos traga coisas interessantes e curiosas; notcias que vos compensem da insipidez destas pginas ingratas.

    Oh! O ponto cresce, cresce! Vai tomando a fisionomia de uma espcie de porteiro de secretaria, ou de bedel de academia.

    Agora vejo-o distintamente; um amigo velho! Bem-vindo, meu bom amigo, bem-vindo amigo sincero dos

    folhetinistas e dos escritores, bem-vindo, ponto final! No h remdio, seno ceder-vos o lugar que vos compete; ei-

    lo, ( . )

    (Alencar, 2004: p.429-30)

    Tratando-se, portanto, do tema da falta de assunto, Alencar produziu um

    final de texto criativo. O fragmento representa bem a angstia profissional dos

    escritores para concluir uma produo. A passagem rica de imagens. O ponto final,

    aqui, comparado a um barco surgindo no horizonte, a um porteiro de secretaria e a um

    bedel de academia. A conveno lingstica do ponto final figura como metfora do

    xito do cronista, escritor que publica constantemente suas crnicas, estando preso a um

    determinado tempo, geralmente o de um dia ou de uma semana.

    Esse folhetinista do sculo 19, que traava um painel do seu habitat, num

    processo de aprimoramento do gnero, transformou-se em um cronista de linguagem

    mais literria, abordando uma diversidade de temas na sua coluna de jornal.

  • 24

    Contudo, esse livre cronista, que tem autoridade para comentar

    artisticamente acerca de qualquer coisa, incluindo at o tema da falta de assunto, tem

    perdido espao no jornal, nos ltimos anos. o que comenta Marcelo Coelho, colunista

    do caderno Ilustrada, da Folha de So Paulo, no ensaio Notcias sobre a crnica:

    Tenho a impresso [...] de que a crnica perdeu bastante espao e prestgio nos jornais e nas revistas. Ainda que esse tipo de texto sempre tenha sido considerado mais ou menos intil perto das notcias mais concretas, dos textos de opinio, das reportagens investigativas, etc., parece que a crnica ficou ainda mais intil do que era, digamos, h trinta ou cinqenta anos. (Coelho, 2005: p.155)

    O que Marcelo Coelho esclarece em seguida que, na verdade, seria mais

    exato falar numa modificao do gnero (Coelho, 2005: p.156) do que em um seu

    declnio. No decorrer de seu ensaio, o escritor lembra as crnicas de Carlos Heitor Cony

    publicadas na Folha de So Paulo, para defender seu ponto vista de que o texto de

    Cony, por ser o que chama de crnica clssica, um exceo regra:

    Pensando na Folha, acho que o lugar da crnica clssica, do gnero carioca/mineiro tal como foi praticado a partir do Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, etc., tem sido a coluna Rio, na pgina 2, com os textos de Carlos Heitor Cony. Ali o que se tem, no todos os dias da semana, porque algumas vezes o que Cony escreve texto poltico, de opinio, mas na maior parte dos dias o caso clssico da crnica em que de fato o autor pode comear de qualquer lugar, usar qualquer assunto, no demonstrar nenhuma tese, voltar a um tema antigo, pouco importa, porque o texto extrai toda sua alta qualidade literria dessa mesma desimportncia que, no caso de Cony, muitas vezes se expressa na forma do arbitrrio, do capricho, da mais inspirada e artstica idiossincrasia. (Coelho, 2005: p.158-59)

    Marcelo Coelho chama ateno para a literariedade particular de Cony, ao

    tratar de assuntos variados, muitas vezes baseados em seu prprio passado. Ao falar

    sobre os talentosos cronistas brasileiros, afirmando que so excees em suas

    respectivas pocas, Marcelo Coelho faz um comentrio elogioso sobre o livro O harm

    das bananeiras, de Cony. Essa uma obra que exemplifica a chamada crnica

    clssica do autor. Logo, motivo para Marcelo Coelho afirmar que:

    E quem quer que folheie um livro como O harm das bananeiras, de Carlos Heitor Cony, ou leia sua crnica diria na Folha de S. Paulo, verifica que contamos, nos dias de hoje, com um artista em tudo comparvel aos maiores mestres desse gnero. O talento excepcional existe em qualquer poca, mesmo na nossa. (Coelho, 2005: p.156)

  • 25

    Em uma viso generalizante, no se restringindo aos seus comentrios sobre

    Cony, o que Marcelo Coelho desenvolve em seu ensaio so as seguintes idias: 1) A

    notcia de jornal, opondo-se de TV, no costuma mostrar uma verdade absoluta, mas

    sim posies diversas, com uma linguagem simples e acompanhada de imagens. 2)

    Houve um aumento do nmero de colunistas opinativos (o autor cita os exemplos de

    Jos Simo e Arnaldo Jabor) em detrimento do cronista clssico. Essas idias,

    segundo ele, fizeram com que a crnica perdesse espao no jornal. Resumindo, ento,

    seu pensamento, ele explica que

    [...] h um grande aumento no espao para os articulistas, estes cada vez mais tomam partido, e cada vez menos tomam distncia diante dos fatos, e h um grande aumento no espao para as notcias relativizantes, para as notcias distantes, irnicas, no jornal; mas simtrico a isso o processo de diminuio do espao da crnica. No sei se isso constitui um problema, ou se um problema importante; nenhum cronista, ao menos, est obrigado a resolv-lo. possvel ser cronista, alis, sem cultivar o gnero; a nica obrigao incontornvel no esgotar a pacincia do leitor. (Coelho, 2005: p.162)

    O trecho a seguir, de A crnica como gnero e como antijornalismo

    acrescenta discusso um comentrio do prprio Cony:

    A imprensa moderna, altamente competitiva e cara, no chegou a mutilar o gnero, mas direcionou-o estratgia geral do que hoje se chama comunicao. Numa palavra: exige que tudo o que veiculado no jornal ou revista, das condies do tempo ao desempenho das bolsas, seja til ao leitor, seja aquilo que nas redaes chamado de servio. Da que sobra um espao reduzido ao cronista sem assunto, sem informao e sem outro servio que no o estilo mais sofisticado que s ser apreciado por determinados leitores e no pela massa consumidora do jornal ou revista. (Cony, 1998: p.07)

    Cony, de certa forma, ratifica o pensamento de seu colega da Folha de So

    Paulo, pois tanto ele quanto Marcelo Coelho dissertam sobre a reduo do espao do

    cronista na imprensa brasileira, devido sua aparente inutilidade no universo

    capitalista contemporneo.

    Esse cronista clssico, escrevendo sobre temas os mais variados, no se

    limitando apenas a tratar de fatos ocorridos durante a semana como acontecia

    geralmente com os folhetins oitocentistas volta-se ao seu prprio passado, a fim de

    represent-lo em crnica. O autor, ento, seleciona e rememora, no texto do jornal,

    etapas vivenciadas por ele, os momentos que mais o marcaram durante o tempo. nesta

    busca pelo passado que a infncia manifesta-se como um grande tema da crnica

  • 26

    brasileira, j que essa fase o auge de uma poca marcante da vida humana, cuja falta

    resgatada pela lembrana, em textos de teor memorialstico.

    Interessante que, em crnica publicada no dia 6 de novembro de 1971, no

    Jornal do Brasil, Clarice Lispector aborda, poeticamente, a questo do no vivido como

    fator instigante ao surgimento da imaginao. Afirma ela, ento, no fragmento6

    Lembrar-se do que no existiu da referida crnica:

    Escrever tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei saber do que nem ao menos sei? assim: como se me lembrasse. Com um esforo de memria, como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrana em carne viva. (Lispector, 1999: p.385)

    Observa-se que a escritora produz um texto apoiado na metalinguagem. O

    trecho discorre sobre a criao do escritor, pessoa propagadora de imagens que no

    existiram; mas que, por serem intensas, so como vivncias para o autor.

    Pelo esgotamento de assunto e a obrigao do cronista em ocupar o espao

    que o jornal lhe confere, a infncia aparece como tema freqente nessas colunas de

    jornal. o que afirma Carlos Heitor Cony:

    [...] no jornal a gente obrigado a escrever e muitas vezes no tem um assunto importante para argumentar, para opinar ou para gozar, e a a gente volta, ento, para esse imenso patrimnio que a infncia de cada um. No sou apenas eu, tem outros escritores tambm, sobretudo aqueles que se dedicam mais crnica, esto sempre apelando para a infncia, porque um territrio neutro. Muitas matrias j esto vencidas, j esto passadas, e d ento a oportunidade da gente fazer sempre uma .... No vou dizer encher lingia, mas a gente tem que ocupar aquele espao que o jornal nos d de uma forma um tanto quanto possvel digna e com um certo charme. (Anexo B: p.202)

    Tal como outros cronistas, Carlos Heitor Cony , ento, um escritor que

    costuma retratar sua prpria infncia em crnicas. Aos oitenta e um anos, de se

    ressaltar que durante sua trajetria intelectual ele nunca deixou de publicar crnicas.

    Com sessenta anos de jornalismo7, tratou de temas bem variados nestas pequenas

    produes, as quais possuem certa flexibilidade conteudstica.

    Inserindo Carlos Heitor Cony nessa variabilidade de assuntos, percebe-se

    uma infinidade de idias, em suas crnicas de circunstncia ou no. De forma breve, e 6 Nas crnicas de Clarice Lispector, publicadas no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973 e enfeixadas no livro A descoberta do mundo, comum a organizao textual em subdivises temticas. 7 Em 1947, Carlos Heitor Cony estria na imprensa cobrindo as frias do pai, que era jornalista no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro. A substituio do pai faria com que Cony no mais sasse da imprensa.

  • 27

    refletindo diacronicamente desde Da arte de falar mal, de 1963, at O tudo e o nada, de

    2004, relacionam-se os seguintes temas na obra em crnica do autor: poltica8, novas

    tecnologias, artes, religiosidade crist, histria do mundo e do Brasil, vida literria e

    jornalstica, geografia e cotidiano da cidade do Rio de Janeiro, itinerrio de viagens,

    relacionamento amoroso, pessimismo, vida pessoal do presente e do passado, entre

    outros.

    no ltimo tema citado, a vida pessoal do passado, isto , as lembranas

    vividas, que se enquadra a crnica confessional da infncia, como ser explicada nas

    pginas subseqentes. A abordagem do locus de um passado distante, neste momento

    inicial da pesquisa, restringe-se prpria re-inveno da infncia por fragmentos da

    memria corrompida. o espao mental trabalhado pelo narrador adulto, isto , o

    espao para a narrativa madura e estilizada. Viso moderna, em retrospectiva, do que

    vivenciou. Cony ratifica a questo, quando diz que

    [...] a memria da infncia parcial e seletiva. A memria no absolutamente confivel. A de ningum, no s a minha, mas a de ningum. Ela j uma soma de determinadas constataes, de revises interiores, de maneira que, embora a gente procure ser, digamos assim, autntico, no sentido de fiel aos fatos, sempre h uma corrupo posterior, ou seja, a viso do adulto quando criana. (Anexo A: p.197)

    Impossvel, numa pesquisa que analise a infncia do autor, no comentar

    sobre a autobiografia gnero literrio surgido com a publicao de Confisses, do

    filsofo iluminista Rousseau, na segunda metade do sculo 18.

    Nas crnicas de Carlos Heitor Cony, encontra-se, como j aludido neste

    texto, um resgate da vida pueril. Elas buscam o passado distante do prprio autor

    inserindo-se, por conseguinte, no terreno da autobiografia. Philippe Lejeune um dos

    principais tericos da autobiografia e seus gneros vizinhos (dirio ntimo, memrias,

    auto-retrato, biografia, romance autobiogrfico e poema autobiogrfico) afirma que,

    para existir um relato autobiogrfico, tudo tem que partir da identidade entre autor,

    narrador e personagem: o chamado pacto autobiogrfico. Este pacto uma condio

    sine qua non para a figurao do gnero. Na anlise de uma obra, para efeito de

    8 O autor escreveu crnicas polticas tanto contra o regime militar j dito em pginas anteriores como contra os presidentes eleitos aps a fim da ditadura. Destaquem-se, nos ltimos anos, as crticas feitas a Fernando Henrique Cardoso (personagem central de todas as crnicas do livro O presidente que sabia javans) e Lula, atualmente no segundo mandato consecutivo, o quadrinio 2007 - 2010.

  • 28

    verificao do pacto, o pesquisador em ltima instncia deve remeter-se ao nome do

    autor na capa do livro.

    Ao definir a autobiografia, Lejeune afirma que ela um relato

    retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua prpria existncia, quando

    enfatiza sua vida individual, em particular a histria de sua personalidade. (Lejeune,

    1975: p.14)

    Ao estabelecer seu conceito de autobiografia, Lejeune o articula com os

    seguintes elementos: narrao em prosa, retrospeco da narrativa, assunto de uma vida

    individual e identidade da pessoa real, do narrador e do personagem principal. So

    elementos que existem, obrigatoriamente, na construo do texto autobiogrfico. Pois,

    na falta de um deles, o texto muda de feio, podendo ser classificado em algum gnero

    vizinho (dirio ntimo, memrias, auto-retrato, biografia, romance autobiogrfico e

    poema autobiogrfico).

    Wander Melo Miranda, discutindo o assunto, afirma que

    A questo da autobiografia no se coloca, para Lejeune, como uma relao estabelecida entre eventos extratextuais e sua transcrio verdica pelo texto, nem pela anlise interna do funcionamento deste, mas sim a partir de uma anlise, no nvel global da publicao, do contrato implcito ou explcito do autor com o leitor, o qual determina o modo de leitura do texto e engendra os efeitos que, atribudos a ele, parecem defini-lo como uma autobiografia. (Miranda, 1992: p.30)

    O contrato de leitura fator determinante para o estabelecimento da

    autobiografia: um discurso organizado, intencional e literrio, porque no se limita

    apenas transcrio de dados individuais. o que comenta, ainda, o pesquisador

    mineiro sobre o problema da veracidade dos textos:

    Entretanto, mesmo em sentido restrito, a autobiografia tende a assimilar tcnicas e procedimentos estilsticos prprios da fico. Isso evidencia o paradoxo da autobiografia literria, a qual pretende ser simultaneamente um discurso verdico e uma forma de arte, situando-se no centro da tenso entre a transparncia referencial e a pesquisa esttica e estabelecendo uma gradao entre textos que vo da insipidez do curriculum vitae complexa elaborao formal da pura poesia. (Miranda, 1992: p.30)

    Na verdade, h um trnsito entre a autobiografia e a fico, proporcionado

    pela escritura. Mesmo havendo um pacto de sinceridade, a escrita autobiogrfica pode

    escorregar para a fico, e vice-versa. Cony comenta, enftico, que essa escrita hbrida

    proporcionada pelo desgaste da memria devido ao tempo, pois a verdade que,

  • 29

    depois de um certo tempo, a memria vai sendo corrompida pela vida atual. A memria

    comea a ser modelada, uma espcie de texto final que mudado. (Anexo A: p.201)

    Fernanda Coutinho, ao falar das lembranas infantis como traos marcantes

    na vida do indivduo, acrescenta ao assunto o seguinte comentrio:

    Transportados para o domnio da escrita, estes traos poderiam ser anotados tanto em relatos ficcionais quanto nos autobiogrficos e ainda nas obras hbridas, que terminam sendo as de configurao mais freqente, uma vez que as fronteiras entre o confessional e o fictcio no se delineiam com facilidade. (Coutinho, 2003: p.49-0)

    Como se v, a estudiosa chama ateno para a dificuldade de delimitao do

    que seja autobiogrfico ou no, em relao a certas obras literrias.

    Um outro aspecto interessante a ser destacado nas autobiografias que elas trazem ao leitor vrios quadros de gnero, que so, como no se desconhece, representaes da vida cotidiana. Atravs delas, pois, tem-se o traado do perfil cultural de uma determinada poca. (Coutinho, 2003: p.48)

    Ao se fazer um paralelo entre os gneros autobiografia e memrias

    depreende-se que a distino no ntida. Contudo, apenas didaticamente, diz-se que

    autobiografia uma auto-representao, enfatizando uma vida individual; j as

    memrias voltam-se para a histria dos acontecimentos vividos e testemunhados de uma

    poca. As memrias teriam um carter mais abrangente, enquanto a autobiografia seria

    mais especfica, centralizada num eu confessional.

    Necessrio comparar o ltimo comentrio acima, de Cony, com um

    fragmento de Ba de Ossos (primeira edio de 1972), obra inicial de Pedro Nava,

    escritor que talvez tenha sido o maior autor brasileiro a cultivar o gnero memrias.

    Destaca ele, na passagem abaixo, a tradio familiar e o surgimento do literrio, a partir

    da rememorao dos fatos:

    A memria dos que envelhecem (e que transmite aos filhos, aos sobrinhos, aos netos, a lembrana dos pequenos fatos que tecem a vida de cada indivduo e do grupo com que ele estabelece contatos, correlaes, aproximaes, antagonismos, afeies, repulsas e dios) o elemento bsico da construo da tradio familiar. Esse folclore jorra e vai vivendo do contato do moo com o velho porque s este sabe que existiu em determinada ocasio o indivduo cujo conhecimento pessoal no valia nada, mas cuja evocao uma esmagadora oportunidade potica. (Nava, 2002: p.09, grifo nosso)

  • 30

    Em boa parte de Ba de Ossos, Pedro Nava faz uma abordagem genealgica

    de seus antepassados. Ao comentar sobre seu av paterno, que no conheceu, ressalta,

    novamente, a unio do verdico com o literrio:

    Era a primeira face do espelho a severa e sem risos que meu av assumia para ir de manh, de sua casa para o trabalho. No difcil imaginar como ele faria esse caminho se juntarmos verdade o verossmil que no seno um esqueleto de verdade encarnado de poesia. (Nava, 2002: p.58, grifo nosso)

    Conhecendo o av s por imagens e pelo discurso dos familiares, percebe-se

    que Nava, pelo fragmento transcrito, coloca em pauta o fator imaginao, trabalhando

    com a realidade e a verossimilhana, no processo da escrita.

    Com relao a esse av homnimo que era comerciante, o mdico-escritor

    mostra que teve conhecimento dele apenas por retratos, cartas e relato dos familiares.

    Pelas observaes j feitas at aqui, entende-se quo frgil o gnero

    autobiogrfico. O prprio Lejeune, em Je est un autre, reconhece a autobiografia como

    uma iluso. H, na verdade, uma existncia de dois sujeitos, em que um tenta sem

    sucesso reconstituir o outro. Lejeune afirma que

    Na verdade, no somos nunca causa da nossa vida, mas podemos ter a iluso de nos tornarmos seu autor, escrevendo-a, com a condio de esquecermos que somos to pouco causa da escrita quanto da nossa vida. A forma autobiogrfica d a cada um a oportunidade de se crer um sujeito pleno e responsvel. Mas basta descobrir-se dois no interior do mesmo eu para que a dvida se manifeste e que as perspectivas se invertam. Ns somos talvez, enquanto sujeitos plenos, apenas personagens de um romance sem autor. A forma autobiogrfica indubitavelmente no o instrumento de expresso de um sujeito que preexiste, nem mesmo um papel, mas o que determina a prpria existncia. (Lejeune, 1980: p.242 apud Miranda, 1992: p.40-1)

    Logo, entende-se que a autobiografia uma escrita seletiva do passado.

    Interessante relacionar a autobiografia com o romance autobiogrfico, gnero que no

    obedece ao pacto autobiogrfico. Trazendo-se as questes memorialistas para o texto

    de Carlos Heitor Cony, esse escritor, ao ser indagado sobre a possibilidade de serem um

    auto-retrato amaneirado os personagens Joo Falco e Augusto, respectivamente de

    Informao ao crucificado e de A casa do poeta trgico, responde a pergunta,

    chamando a ateno para o pastiche: eu no digo que os personagens so clones do

    autor, mas so pastiches dele. o autor se escondendo de uma coisa ou de outra. [...] No

  • 31

    meu caso, eu j tendo um pouco mesmo para o gnero memorialstico. (Cadernos de

    Literatura Brasileira, 2001: p.43) Esta idia de pastiche relaciona-se com o conceito de

    pacto fantasmtico nas formas mistas, caso do romance:

    O pacto fantasmtico cada vez mais expandido, criando novos hbitos de leitura. O leitor convidado a ler romances no apenas como fices que remetem a uma verdade de natureza humana, mas tambm como fantasmas reveladores de um indivduo, o autor. (Miranda, 1992: p. 37)

    Ana Cludia Viegas, estudando as caractersticas de A inveno de si na

    escrita contempornea, em alguns romances publicados no sculo 21, explica que as

    narrativas Joana a contragosto, de Marcelo Mirisola, e Nove noites, de Bernardo

    Carvalho, so romances que se enquadram na autofico, pois h o permanente

    deslocamento entre as noes de verdade e fico . (Viegas, 2006: p.14) H um

    jogo nessas narrativas ficcionais em 1 pessoa, nas quais se mesclam autor textual e

    autor emprico.

    Na verdade, essa autofico, dita por Ana Cludia Viegas, representa a

    mesma idia do j comentado pacto fantasmtico de Lejeune. Est-se aqui no hbrido

    terreno entre fico e realidade. Nas ltimas linhas de seu ensaio, a pesquisadora

    sintetiza seu pensamento, explicando que

    Nas escritas de si contemporneas, como os auto-retratos que circulam na web e as autofices dos romances em primeira pessoa, o sujeito se cria ficcionalmente e encena sua dimenso emprica. A criao de auto-imagens aproxima vida e arte, fico e realidade, estabelecendo com o leitor, em vez de um pacto autobiogrfico, um pacto fantasmtico, cujo contrato de leitura no promete a revelao de verdades, mas o desdobramento do autor em diversos personagens. (Viegas, 2006: p.21-2)

    Trazendo as idias discutidas at aqui para a obra de Carlos Heitor Cony,

    no obstante sua afirmao de que tende para as memrias fala esta, j mostrada em

    linhas atrs: o autor no memorialista. Comparando-o com Pedro Nava, v-se que,

    apesar de ambos resgatarem o passado, Nava diferencia-se de Cony na medida em que

    possui um projeto literrio memorialista organizado e de flego, isto , o autor quis e

    fez sua literatura, pautando-se, praticamente, na sua vida e em sua famlia. No caso de

    Carlos Heitor Cony, a problemtica de anlise aumenta, porque este resgate se d de

    maneira difusa e por vezes mesclada com a fico, j que o autor no elaborou um

    projeto intencional de memrias.

  • 32

    Levando a questo do memorialismo para a crnica, gnero que abriga o

    corpus da pesquisa, relaes podem ser feitas entre este gnero anfbio e o dirio. Tal

    como a crnica, o dirio o registro do efmero e do descontnuo por uma escrita

    refratria a qualquer organizao. (Miranda, 1992: p.35) As duas formas buscam

    momentos transitrios do dia-a-dia, instantes comuns da vida, inclusos de maneira

    desordenada no texto. Quanto s diferenas entre elas, tm-se dois aspectos: o processo

    de comunicao e o meio de publicao. No caso do dirio, o receptor o prprio

    emissor, podendo haver de forma autorizada a publicao, em livro, dos escritos,

    deformando, por conseguinte, seu conceito primitivo. No caso da crnica, o emissor

    escreve para vrios destinatrios. Muitos deles, at conhecidos pelo escritor, costumam

    ser emissores tambm, quando enviam seus comentrios, sugestes, elogios ou crticas

    aos escritores fato j explicitado em pginas anteriores. Quanto ao meio de

    comunicao, a crnica encontra-se, normalmente, em jornais ou revistas, podendo, tal

    como o dirio, ser publicada em livro meio que no garante, necessariamente, sua

    posteridade no campo da literatura.

    Na verdade, o que mais relevante para a crnica adquirir uma

    permanncia, na historiografia literria, o prprio valor intrnseco do texto os

    aspectos de ordem textual. Nesse processo de coleta, o escritor que, geralmente, rene

    as crnicas mais literrias e no circunstanciais; resolvendo ento, de alguma forma,

    agrup-las ou pela temtica, ou pelo estilo, ou pela ordem cronolgica ou, em

    desobedincia a tudo isso, usando o critrio da aleatoriedade.

    Antes de abordar mais especificamente os textos referentes ao tema da

    infncia na crnica de Carlos Heitor Cony, apresentam-se aqui alguns comentrios de

    Ftima Cristina Dias Rocha sobre a crnica confessional de Clarice Lispector. Em

    Identidade e autobiografismo nas crnicas de Clarice Lispector, a pesquisadora parte

    da hiptese de que nas crnicas, Clarice tanto constri uma identidade autobiogrfica,

    quanto desfaz a iluso autobiogrfica por ela encenada, deixando visveis as tnues

    fronteiras entre o cunho confessional do narrado e a livre inveno ficcional. (Rocha,

    2006: p.102) Isso porque a escritora, nesses textos de confisso, cria um discurso

    metalingstico, explicando ao leitor seu prprio ato de imprimir na escrita sua vida

    pessoal. Ela declara seus dilemas no texto. Algumas vezes, confessa prazerosamente os

    fatos pessoais; j, em outros momentos, lamenta e afirma no gostar de falar de si.

    Para citar um exemplo, em crnica publicada no Jornal do Brasil do dia 22

    de junho de 1968, no fragmento Ser cronista, diz que sem perceber, medida que

  • 33

    escrevia para aqui, [para o jornal], ia me tornando pessoal demais, correndo o risco

    daqui em breve de publicar minha vida passada e presente, o que no pretendo.

    (Lispector, 1999: p.113)

    Clarice Lispector, nesses textos breves, revela fatos da sua famlia num

    tempo do passado, relata sua infncia, lembrando, por exemplo, a figura do pai.

    Contudo, vale destacar, que essa escrita sempre propondo, em lugar do binmio

    falar/revelar, um outro: falar/encobrir, a autora tenta neutralizar a temida pessoalidade

    de suas crnicas. (Rocha, 2006: p.105) J a escritura confessional de Carlos Heitor

    Cony situa-se no binmio falar/revelar. O cronista, ao resgatar sua vida passada

    nesses textos de jornal, revela-se com uma postura oposta de Clarice Lispector.

    Relembrando fatos da infncia, por exemplo, Cony quer ser pessoal mesmo. Muitas

    vezes vai direto ao passado sem o menor receio de confessar o que passou.

    Diferentemente de Clarice Lispector, no h a escrita arrependida, a qual volta atrs do

    j dito.

    Da obra em crnica de Carlos Heitor Cony, publicados respectivamente em

    1998 e 1999, Os anos mais antigos do passado e O harm das bananeiras so os livros

    que merecem destaque nesse universo da literatura do eu. As publicaes estabelecem

    um pacto com o leitor, embora, se comparado ao pacto autobiogrfico de Lejeune,

    esteja numa realidade distante, pois, alm de serem textos curtos, publicados no dia-a-

    dia da imprensa, no h, em algumas delas, a identidade entre autor, narrador e

    personagem, como ser explicado posteriormente.

    H certa demonstrao de sinceridade com o leitor nos elementos

    paratextuais destas obras. Em Os anos mais antigos do passado, percebe-se que o ttulo

    bastante apropriado para englobar textos de confisso. No prlogo da quarta edio,

    h um comentrio breve do autor, que mostra a permanncia do passado em sua

    memria, e seu resgate pelo texto. Afirma ele que: fantasmas antigos teimam em me

    assombrar. Dou-lhes a oportunidade de um instante a mais. Em paga, que eles me

    tragam remorsos de menos.

    J em O harm das bananeiras existe, na capa, uma foto do autor, de batina,

    poca do seminrio j mostrando, ento, os indcios autobiogrficos. E o ttulo faz

    referncia a uma crnica homnima, que relembra o despertar da sexualidade de

    meninos dos anos 30.

    Tanto na orelha como na contracapa, as duas publicaes fazem referncia

    seja por fragmento de crnica ou no infncia de Cony. No existe tambm uma

  • 34

    ordenao nos textos com relao a temas. Apenas uma ressalva: em Os anos mais

    antigos do passado, o primeiro e ltimo texto so crnicas da infncia narradas na 3

    pessoa. Cony recria, aqui, sua infncia ao pr um menino diante da janela, observando o

    mundo com certo receio de fazer parte dele.

    Apesar de todos esses ndices de cunho autobiogrfico, os livros esto longe

    de serem coletneas completas da chamada crnica confessional da infncia. O passado

    do autor apenas o tema mais recorrente das duas obras, pois existem outros, j

    assinalados neste trabalho, como o cotidiano da cidade, a poltica, sua rotina, histrias

    de suas viagens, entre outros. As obras, tambm, no compem todas as crnicas que

    versam sobre a infncia. So apenas algumas, entre muitas outras, pois, em qualquer

    livro de crnica do autor, existe, com exceo de O ato e o fato, pelo menos uma com

    esta temtica.

    Perguntado se h traos de sua personalidade nas crianas, nas crnicas cujo

    foco narrativo em 3 pessoa, Cony diz:

    A gente pode contar na primeira ou na terceira pessoa, eu prefiro contar alguns fatos na primeira pessoa, outros na terceira, sobretudo quando a lembrana, a recordao um pouco corrompida pelo tempo, quando me lembro, uso em primeira pessoa, agora quando o fato est espedaado em mim, quando eu no me lembro bem do fato e quero agregar outros elementos, uso a terceira pessoa porque basicamente o narrador continua sendo eu, mas agreguei, absorvi outros. (Anexo B: p.203)

    Esta explicao do prprio autor em anlise talvez seja um dos melhores

    comentrios acerca da crnica confessional da infncia. Ele mostra, de forma objetiva,

    a fuso que h entre o dado autobiogrfico e o elemento ficcional. Estes textos, por

    vrios motivos j explicados, no so memrias nem muito menos uma autobiografia.

    As chamadas crnicas confessionais da infncia so relatos de fragmentos,

    narrados na 1 ou 3 pessoa gerados pelo esgotamento de assunto da histria da

    infncia de uma pessoal real muitas vezes ficcionalizados escritos para a

    transitoriedade dos peridicos; podendo ser abrangidos, de maneira catica, ou

    organizados em coletneas de crnicas, restritas a um autor especfico, ou no.

    Acrescentando aqui palavras de Lejeune a essa discusso sobre os relatos

    pueris, observe-se que, em A Infncia fantasma, ele aponta que esses se apresentam

    muitas vezes como uma procura inicitica, da qual se pem em cena as dificuldades. A memria fragmentada, as lembranas flutuam, so raras a princpio, depois uma trama chega a relig-las, mas a dvida persiste sobre as

  • 35

    circunstncias ou os pormenores. O autobigrafo vai exprimir seus escrpulos. (Lejeune, 1998: p.36)

    Nota-se que Lejeune lembra o aspecto do esquecimento, da fragmentao da

    memria, que muitas vezes impulsiona o escritor a confessar, no prprio texto, que no

    se recorda com nitidez da sua infncia. No obstante essa fragmentao memorialstica,

    a infncia um tema relevante nos escritos confessionais. Comentando o assunto,

    Fernanda Coutinho afirma que:

    Sabe-se que as autobiografias, uma forma geral, representam um exerccio do sentimento do tempo para quem as elabora, quer dizer, o eu que rememora estabelece uma confluncia entre diversos momentos de sua vida. Os relatos de memria so, portanto, uma oportunidade de se perceber a pregnncia dos eventos infantis na mente adulta. (Coutinho, 2003: p.48)

    Fazendo uma ponte dos escritos confessionais da infncia de hoje com os

    textos do sculo 19, pode-se encontrar a origem dessa crnica confessional da infncia,

    explicitada anteriormente, nos j comentados folhetins oitocentistas. Contudo em

    manifestao inferior da crnica moderna. A fim de confirmar, empiricamente, o aqui

    exposto, cita-se um fragmento folhetinesco de Machado de Assis, publicado no dia 23

    de outubro de 1892, na Gazeta de Notcias:

    Lembra-me (era bem criana) que, nos primeiros tempos do gs no Rio de Janeiro, houve uns dias de luz frouxa, de onde os moleques sacaram este dito: o gs virou lamparina. E o dito ficou e imps-se, e eu ainda o ouvi aplicar aos amores expirantes, s belezas murchas, a todas as cousas decadas.

    Ah! se eu for a contar memrias da infncia, deixo a semana no meio, remonto os tempos e fao um volume. Paro na primeira estao, 1864, famoso ano da suspenso de pagamentos (ministrio Furtado); respiro, subo e paro em 1867, quando a febre das aes atacou a esta pobre cidade, que s arribou fora do quinino do desengano. Remonto ainda e vou a...

    [...] No; cuidemos s da semana. A simples ameaa de contar as

    minhas memrias diminuiu-me o papel em tal maneira, que preciso agora apertar as letras e as linhas. (Assis, 1997: p.34)

    Como se percebe pelo fragmento, Machado de Assis comenta um episdio

    de sua infncia: a questo do fraco gs da cidade carioca, fazendo com que os garotos

    logo afirmassem jocosamente que o gs virou lamparina, termo que serviria de

    metfora para todas as cousas decadas. Contudo pela obrigao de escrever sobre os

    fatos da semana, Machado de Assis comenta, em tom humorado, que no deve contar as

    memrias da infncia. Interessante que ele se desvia de um assunto do cotidiano os

  • 36

    bonds eltricos para resgatar um fato de sua infncia, porm mostra-se preocupado em

    no gastar o espao do jornal, a ele destinado, escrevendo suas memrias.

    Pelo exemplo do folhetim de Machado de Assis, depreende-se que a crnica

    confessional da infncia s pde desenvolver-se com afinco, a partir do momento em

    que j no existia a obrigao do escritor em relatar os fatos semanais.

    Deixando um pouco de lado a questo da infncia e folhetim, e partindo

    agora para a idia de representao do real posta na linguagem, isto , no espao

    simblico constitudo pelos signos lingsticos (significante e significado); Nanami

    Sato, em Jornalismo, literatura e representao, afirma que o texto apenas um lugar

    que simboliza o real. Isso porque em vez de revelar o real, pode-se dizer que a

    representao, ao dar-lhe suporte, substitui a totalidade e a encarna, em vez de remeter a

    ela. (Sato, 2005: p.31)

    Levando esta perspectiva da representao para a crnica, na segunda parte

    de seu ensaio, Nanami Sato, depois de enfatizar a marca subjetiva do gnero, comenta a

    incluso da fico nesses pequenos relatos. Explica que:

    A possibilidade de o cronista inventar incidentes, contar histrias traz para as pginas do jornal um fazer literrio por excelncia que permite criar um outro real. Dar abrigo a emoes e a fatos inventados ou recuperados pela memria parece ser a grande arma da crnica na captura do interesse do leitor, convidando-o para um tipo diferente de mergulho no real, mais ameno e prazeroso, qui mais profundo. Para o leitor, a crnica funcionaria como descanso, pois, a partir de um evento qualquer, em linguagem que tende para a ambigidade, para a plurivocidade, o cronista tece um texto que pode atingir a categoria de fico pura ou confrontar diferentes tempos para fazer uma construo metonmica da imagem do presente por meio de pequenos incidentes. (Sato, 2005: p.33-4)

    A pesquisadora ressalta o carter ficcional de algumas crnicas como

    criadores de um texto prazeroso. A crnica, nesta perspectiva, afasta-se da tradicional

    idia do gnero de relato sobre os acontecimentos reais. At mesmo nas crnicas

    confessionais, o dado ficcional pode aparecer como uma ajuda para a construo

    literria de um texto ideal. Na crnica confessional da infncia, o elemento ficcional

    pode entrar, por exemplo, atravs do esquecimento ou por uma estilizao do autor.

    Na perspectiva do jornalismo stricto sensu, Cristiane Costa, no captulo

    Real e ficcional, de seu j referido livro, depois de mostrar alguns exemplos da falta

    de tica de jornalistas que se afastaram dos dados objetivos, falseando indevidamente as

    reportagens, afirma que:

  • 37

    A exatido factual tambm pode esconder distores, porque jornalistas no apenas reproduzem os fatos, mas do sentidos a verses dos acontecimentos em suas reportagens. Eventualmente, uma histria pode ser escrita a partir de ngulos diferentes e vrios deles serem verdadeiros. Por isso, relatar o fato de forma fidedigna muito diferente de descobrir a verdade sobre o fato, aprende-se com a prtica. A mentira muito clara para quem a comete. Mas a verdade complexa para quem a busca. (Costa: 2005: p.286)

    Tal como na literatura do eu, percebe-se, no jornalismo, o desvirtuamento

    da apresentao do real, isto , da sua primordial funo. A situao torna-se mais

    complexa, no mbito do jornalismo, j que uma reportagem pode ser contada por

    diferentes ngulos, como explica a pesquisadora. E com isso pode haver alteraes de

    acordo com cada verso.

    Saindo do terreno jornalstico, bom lembrar que, normalmente, os

    escritores publicam suas memrias na fase da senilidade: ltimos momentos de sua

    existncia, nos quais j tm muito para narrar pelo acmulo de experincias vividas.

    Prximo do fim, acabam eles regatando o que viveram, a partir de um desejo que

    culmina, conforme acepo de Eliane Zagury, no fluxo memorial desreprimido9.

    Levando-se a questo para a obra de Carlos Heitor Cony, confirma-se o

    exposto acima pelo fato de as obras Os anos mais antigos do passado e O harm das

    bananeiras serem, praticamente, suas ltimas coletneas de crnicas. Alm disso, no

    se deve esquecer o Quase-memria: quase-romance, livro considerado sua obra-prima,

    publicado em 1995, depois de um jejum de escrita romanesca que durou vinte e um

    anos. Essa obra, como j se percebe tanto pelo ttulo como pelo prlogo do autor

    intitulado Teoria Geral do Quase , ento, uma mistura de histria, memria e

    fico. Contudo, para efeito de publicao, ela foi intitulada de romance, pela editora,

    na ficha catalogrfica. Esse livro apia-se no vocbulo quase, que funciona como

    ponto revelador entre real e ficcional. um adequado termo que aparece no ttulo, no

    prlogo e no prprio texto da obra. Levando o assunto para as crnicas de Cony, podem

    ser encontradas, neste terreno, crnicas quase-reais ou quase-ficcionais.

    Isto posto, salienta-se que a crnica confessional da infncia de Cony so,

    apenas, pedaos isolados e selecionados de lembranas que aconteceram e que ele

    trouxe aos leitores muitas vezes repetindo a mesma temtica em vrios textos. So

    textos, os quais podem ser ficcionalizados, configurando-se entre o vivido e o

    imaginado. necessrio ressaltar que mesmo havendo em algumas crnicas que

    remontam infncia do autor uma criao artstica, predominantemente, fantasiosa 9 Cf. ZAGURY, E. A escrita do eu.

  • 38

    sempre existe, nessas crnicas confessionais da infncia, algo de real. Nem que seja s

    na sua essncia. o que afirma o prprio escritor:

    [...] em linhas gerais, cada crnica em que eu rememoro a infncia tem um ponto, pelo menos parte de um ponto verdadeiro; embora no seja cem por cento real, digamos assim, nos seus aspectos pontuais, de lugar, de tempo; mas no sentido de substrato, ou seja, o fato em si, a observao que eu transmito, que eu guardei, essa foi autntica e verdadeira, no foi fico. (Anexo A, p.197)

    A feio da crnica confessional da infncia, de Cony, foi o que se

    selecionou e permaneceu na memria e que para ele significativo, por isso a

    necessidade do autor de exp-la ao pblico. No por meio de um modo referencial de

    escritura, mas sim com uma linguagem literria saborosa e criativa.

  • 2. O ESPAO DA CASA

    O homem qualquer homem uma casa habitada por um poeta que, sabendo ou no sabendo, tem um sentido trgico. Poeta que inventa o seu prprio poema, poeta condenado a habitar a casa que ele prprio, e de repente as paredes se desmancham e no mais casa, sobrando o co porta, uma porta que no existe mais, o co coberto de cinzas guardando o nada. Carlos Heitor Cony, A casa do poeta trgico

    A partir desse momento da pesquisa, os captulos que se seguem

    focalizaro questes relativas aos principais espaos criados pelo texto artstico, da

    crnica confessional da infncia, abordados por Carlos Heitor Cony, nos seus livros.

    De incio, tem-se que destacar que no h uma larga bibliografia versando o

    tema espao na literatura e, mais especificamente, na crnica confessional da infncia.

    O que se nota, muitas vezes, a anlise superficial do espao, podendo chegar a ponto

    de ocorrer sua diluio, na observao de outros elementos literrios.

    Em Espao e romance, pequeno estudo relativo ao assunto, Antonio Dimas

    diferencia espao e ambientao, afirmando:

    [...] na medida em que no se deve confundir espao com ambientao, para efeitos de anlise, exige-se do leitor perspiccia e familiaridade com a literatura para que o espao puro e simples (o quarto, a sala, a rua, o barzinho, a caverna, o armrio etc.) seja entrevisto em um quadro de significados mais complexos, participantes estes da ambientao. Em outras palavras ainda: o espao denotado; a ambientao conotada. O primeiro patente e explcito; o segundo subjacente e implcito. O primeiro contm dados da realidade que, numa instncia posterior, podem alcanar uma dimenso simblica. (Dimas, 1994: p.20)

    O que chama ele de espao puro e simples integra o primeiro conceito da

    categoria: o denominado espao fsico. Contudo, j numa segunda instncia, em

    conexo com os personagens e

    Sem o teor eventualmente esttico do espao fsico, o espao social configura-se sobretudo em funo da presena de tipos e figurantes [...] e o espao psicolgico constitui-se em funo da necessidade de evidenciar atmosferas densas e perturbantes, projetadas sobre o comportamento, tambm ele normalmente conturbado, das personagens [...]. (Reis e Lopes, 1988: p.205)

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    Levando-se em considerao os trs modelos (espao fsico, espao social e

    espao psicolgico) que compem a categoria espao para a crnica confessional da

    infncia de Carlos Heitor Cony, sero investigados at que ponto os espaos

    engendrados nos textos tm funo relevante para o desenvolvimento das idias do

    cronista. Em que medida essa eventual funcionalidade dos espaos dialoga com outros

    elementos da narrativa (tempo, personagens, narrador, enredo); ou se, ao contrrio, essa

    questo do espao, na escritura do autor, no passa de mera ilustrao, circunstncia

    menor, acessria.

    No processo de rememorao do passado, o prprio tema da infncia

    condiciona, inevitavelmente, a construo de tipos espaciais, no necessariamente

    registrados pela mera descrio fsica.

    Para a construo do espao no enredo, a descrio seja fsica ou

    psicolgica pode tornar-se um tipo de discurso relevante. Vtor Manuel, em sua

    Teoria da Literatura, elenca espaos, ao explicar a funo informativa que existe em

    determinadas descries. Afirma ele que

    [...] Esta funo manifesta-se quer no retrato das personagens [...] quer na caracterizao do espao social um espao indissocivel da temporalidade histrica , quer na pintura do espao telrico e geogrfico [...] em geral representado nas suas conexes com o espao social e concebido como um factor (sic) que condiciona ou determina os estados e as aces (sic) das personagens. (Silva, 1986: p.741)

    Essa descrio funcional, ressaltada por Vitor Manuel, um elemento

    importante quando se analisam os aspectos espaciais de um texto literrio.

    Em O discurso e a cidade, nos ensaios Degradao do espao e De

    cortio a cortio, Antonio Candido analisa, respectivamente, as obras LAssomoir, de

    mile Zola, e O cortio, de Alusio Azevedo. No segundo ensaio, depois de explicar

    que O cortio paga tributo a LAssomoir devido a vrias semelhanas entre as

    narrativas, Candido, referindo-se ento ao romance de Alusio Azevedo, observa que

    Na composio, o cortio o centro de convergncia, o lugar por excelncia, em funo do qual tudo se exprime. Ele um ambiente, um meio, fsico, social, simblico , vinculado a certo modo de viver e condicionando certa mecnica das relaes. Mas alm e acima dele o romancista estabeleceu outro meio mais amplo, a natureza brasileira, que desempenha papel essencial, como explicao dos comportamentos transgressivos, como combustvel das paixes e at da simples rotina fisiolgica. (Candido, 2004: p.117)

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    Candido atribui grande valor ao cortio de Joo Romo, que funciona como

    um centro regulador da histria, um lugar relevante na narrativa, onde os personagens

    so dependentes dele. Num mbito maior, o crtico explica que a prpria natureza do

    Brasil poderosa sobre o comportamento humano, o qual muitas vezes representado

    nesse romance de maneira degradante. Desenvolvendo-se o cortio na natureza

    brasileira, ele chega a ponto de transformar-se num organismo auto-suficiente. Como

    exemplo, transcreve-se abaixo um trecho do captulo terceiro, a fim confirmar o exposto

    at aqui:

    Eram cinco horas da manh e o cortio acordava, abrindo, no os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.

    Um acordar alegre e farto de quem dormiu, de uma assentada, sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolncia de neblina as derradeiras notas da ltima guitarra da noite antecedente