O “ESPAÇO DE MORAR” NA ARQUITETURA MODERNA: REFLEXÕES A PARTIR DE QUATRO RESIDÊNCIAS DE IRATI...

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Soc. & Nat., Uberlândia, ano 24 n. 1, 51-66, jan/abr. 2012 51 O “espaço de morar” na arquitetura moderna: reflexões a partir de quatro residências de Irati – PR Gigliese Aparecida Mendes Cicilian Luiza Löwen Sahr O “ESPAÇO DE MORAR” NA ARQUITETURA MODERNA: REFLEXÕES A PARTIR DE QUATRO RESIDÊNCIAS DE IRATI – PR The “dwelling space” in modern architecture: reflections on four residential buildings in Irati – Paraná (Brazil) Gigliese Aparecida Mendes Historiadora, mestranda em Gestão do Território pela UEPG [email protected] Cicilian Luiza Löwen Sahr Profa. dos Programas de Pós-Graduação em Geografia da UEPG e UFPR [email protected] Artigo recebido em 27/02/2012 e aceito para publicação em 17/04/2012 Resumo: Este artigo analisa o ‘espaço de morar’ influenciado pelo movimento modernista na cidade de Irati – PR, enfatizando seu aspecto espacial. A análise ocorre a partir de quatro residências unifamiliares construídas du- rante a década de 1950, projetadas por Eduardo Posfaldo, profissional local. Nestas são observados elementos arquitetônicos característicos do modernismo, como os pans de verr e pilotis. Valorizando-se as linhas retas, o ‘espaço de morar’ é concebido de forma racionalista. A partir da análise destas habitações, foi constatado que estas ocupam um percentual relativamente pequeno (31%) de seus lotes, o que permite inferir a importância das áreas verdes e jardins nesta modalidade de ‘espaço de morar’. No interior das habitações, a ênfase em termos de área está nos espaços íntimos (28,5%), seguidos dos espaços sociais (26%). Um aspecto singular encontrado em Irati é o compartilhamento do ‘espaço de morar’ com o ‘espaço profissional’. Palavras-chave: Arquitetura modernista; espaço de morar; Eduardo Posfaldo; Irati - PR Abstract: This article is an analysis on the transformations of the ‘dwelling space’ induced by the modernist movement in Irati – Paraná. It focuses on four residential buildings which have been constructed throughout the 1950s under the supervision of Eduardo Posfaldo, a local architect. Here, the characteristic architectural elements of modernism, like glass walls and pilotis, can be observed. Valorizing straight lines, the modern dwelling space has been conceived through rationalist forms. The analysis of these residential buildings shows that they are covering a relative small portion of their lots, a fact that is highlighting the importance of green areas and garden features in this type of dwelling space. Inside of the buildings, there is a strong emphasis on intimate spaces (28,5%), followed by social spaces (26%). A singularity of Irati is that dwelling space and professional space are shared. Keywords: Modernist architecture; dwelling space, Eduardo Posfaldo; Irati – Paraná (Brazil)

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Este artigo analisa o ‘espaço de morar’ influenciado pelo movimento modernista na cidade de Irati – PR,enfatizando seu aspecto espacial. A análise ocorre a partir de quatro residências unifamiliares construídas durantea década de 1950, projetadas por Eduardo Posfaldo, profissional local. Nestas são observados elementosarquitetônicos característicos do modernismo, como os pans de verr e pilotis. Valorizando-se as linhas retas, o‘espaço de morar’ é concebido de forma racionalista. A partir da análise destas habitações, foi constatado queestas ocupam um percentual relativamente pequeno (31%) de seus lotes, o que permite inferir a importânciadas áreas verdes e jardins nesta modalidade de ‘espaço de morar’. No interior das habitações, a ênfase emtermos de área está nos espaços íntimos (28,5%), seguidos dos espaços sociais (26%). Um aspecto singularencontrado em Irati é o compartilhamento do ‘espaço de morar’ com o ‘espaço profissional’.

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  • Soc. & Nat., Uberlndia, ano 24 n. 1, 51-66, jan/abr. 2012

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    O espao de morar na arquitetura moderna: reflexes a partir de quatro residncias de Irati PR Gigliese Aparecida Mendes Cicilian Luiza Lwen Sahr

    O ESPAO DE MORAR NA ARQUITETURA MODERNA: REfLEXES A PARTIR DE QUATRO RESIDNCIAS DE IRATI PR

    The dwelling space in modern architecture: reflections on four residential buildings in Irati Paran (Brazil)

    Gigliese Aparecida Mendes Historiadora, mestranda em Gesto do Territrio pela UEPG

    [email protected]

    Cicilian Luiza Lwen SahrProfa. dos Programas de Ps-Graduao em Geografia da UEPG e UFPR

    [email protected]

    Artigo recebido em 27/02/2012 e aceito para publicao em 17/04/2012

    Resumo: Este artigo analisa o espao de morar influenciado pelo movimento modernista na cidade de Irati PR, enfatizando seu aspecto espacial. A anlise ocorre a partir de quatro residncias unifamiliares construdas du-

    rante a dcada de 1950, projetadas por Eduardo Posfaldo, profissional local. Nestas so observados elementos

    arquitetnicos caractersticos do modernismo, como os pans de verr e pilotis. Valorizando-se as linhas retas, o

    espao de morar concebido de forma racionalista. A partir da anlise destas habitaes, foi constatado que

    estas ocupam um percentual relativamente pequeno (31%) de seus lotes, o que permite inferir a importncia

    das reas verdes e jardins nesta modalidade de espao de morar. No interior das habitaes, a nfase em

    termos de rea est nos espaos ntimos (28,5%), seguidos dos espaos sociais (26%). Um aspecto singular

    encontrado em Irati o compartilhamento do espao de morar com o espao profissional.

    Palavras-chave: Arquitetura modernista; espao de morar; Eduardo Posfaldo; Irati - PR

    Abstract: This article is an analysis on the transformations of the dwelling space induced by the modernist movement in Irati Paran. It focuses on four residential buildings which have been constructed throughout the 1950s

    under the supervision of Eduardo Posfaldo, a local architect. Here, the characteristic architectural elements

    of modernism, like glass walls and pilotis, can be observed. Valorizing straight lines, the modern dwelling

    space has been conceived through rationalist forms. The analysis of these residential buildings shows that

    they are covering a relative small portion of their lots, a fact that is highlighting the importance of green

    areas and garden features in this type of dwelling space. Inside of the buildings, there is a strong emphasis

    on intimate spaces (28,5%), followed by social spaces (26%). A singularity of Irati is that dwelling space

    and professional space are shared.

    Keywords: Modernist architecture; dwelling space, Eduardo Posfaldo; Irati Paran (Brazil)

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    INTRODUO

    Irati, cidade situada no centro-sul do Paran, presenciou um desenvolvimento significativo em sua configurao urbana a partir da dcada de 1950. Nesta fase, o movimento da arquitetura modernista estava em seu auge no contexto brasileiro, mostrando-se presente em vrias regies do pas, primeiramente nas grandes cidades e, gradativamente, tambm nas cidades de mdio e pequeno porte. nesta fase, entre 1950 e 1970, que a cidade de Irati presencia mudanas nos estilos de construir, surgindo os primeiros projetos residenciais modernistas, os quais acarretaram uma intensa transformao nos espaos de moradia. Desta forma, o objetivo central deste artigo analisar os espaos de morar iratienses influenciados pelo movimento modernista. A anlise se restringe a fase inicial desta influncia, ou seja, a dcada de 1950, e enfatiza os aspectos espaciais internos das moradias e suas diferentes funes relacionadas ao morar. Para isso, foram reunidas plantas de quatro residncias unifamiliares desenhadas por Eduardo Posfaldo, profissional local, detentor de forte influncia modernista e responsvel pela criao da maioria das residncias modernistas de Irati. Tais plantas fazem parte do acervo do Departamento de Controle Interno de Documentos da Prefeitura Municipal da cidade. Os quatro exemplos de edificaes se localizam no centro da cidade, sendo trs de mdio porte, ou seja, com metragem quadrada inferior a 220, e uma de grande porte, ou seja, com metragem quadrada superior a 350.

    As tcnicas de leituras das edificaes utilizadas foram pautadas na metodologia empregada por Zevi (1996) em sua obra intitulada Saber ver a Arquitetura. O autor declara que o espao interior o que d sentido arquitetura, salientando trs aspectos de anlise: o econmico-social, o tcnico e o espacial. Optou-se aqui por priorizar a interpretao espacial, pois se entende que esta no se trata de uma viso especfica, mas sim de uma viso que engloba todas as demais. O artigo busca assim, refletir a complexidade escalar do fenmeno em estudo, articulando a escala global, a do iderio modernista, o contexto nacional e as condies locais, representadas pelas criaes de Posfaldo em Irati. Aprofunda-se nestas a anlise a

    partir da categoria espao de morar. Considerando-se que o interior o protagonista da arquitetura, o espao arquitetnico analisado enquanto espao de morar. Tal anlise busca respaldo na metodologia elaborada por Verssimo e Bittar. Para estes autores, a casa transcende as simples formas geomtricas, uma realidade visvel e tangvel (1999, p. 9), no momento em que o morar resulta de um processo criativo, conduzido pelas necessidades sociais e culturais do homem. Assim, busca-se captar a integrao entre homem e casa, entendendo que esta passa de um conjunto de volumes, planos, linhas retas e curvas, a um espao a ser vivido pelo homem, adquirindo valores humanos.

    ARQUITETURA MODERNA: OLHAR GLOBAL ADAPTADO AS CONDIES LOCAIS

    Ao contrrio do que muitos estudiosos afirmam, a globalidade, ou como costumeiramente chamada, a globalizao, no um processo recente. A globalidade, nada mais que a modernidade em escala global. Robertson (2000), em sua obra Globalizao. Teoria Social e Cultura Global, defende que o processo de globalizao to antigo quanto a emergncia das chamadas religies mundiais, datando aproximadamente dois mil anos. O fato que o termo foi debatido longamente em discusses acerca da modernizao e da ps-modernidade nas dcadas de 1950 e 1960. Tal discusso, todavia, s veio a tomar corpo nas dcadas seguintes, assumindo-a como um processo massificador. A leitura que Santos (2009) faz acerca da globalizao e da dialtica existente entre a escala global e local no pode ser esquecida. O autor, ao citar Serres, Nossa relao com o mundo mudou. Antes, era local-local; agora local-global (apud SANTOS, 2009, p. 313), mostra que o filsofo foi bem sucedido no argumento ao pensar na globalizao como um processo que organiza uma nova relao com o mundo, marcada pela fluidez, pela velocidade da informao e das inovaes.

    Nesta conjuntura, segundo Santos (2009), cada lugar o mundo e todos os lugares so virtualmente mundiais. Ao passo que os mais distantes pontos do globo terrestre se aproximam atravs desse processo

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    massificador, cada lugar torna-se diferente dos demais. O autor afirma que a localidade se ope globalidade, mas ao mesmo tempo se confunde com ela. Assim, globalidade e individualidade andam juntas.

    Robertson (2000, p. 144) afirma que o universalismo no pode ser visto como algo relacionado a princpios aplicados a todos, e o particularismo se referindo apenas ao que local. Os dois se entrelaaram como parte de um nexo global. O autor relata que ambos se uniram, dando origem particularizao do universalismo, o qual envolve a idia do universal com concretude global-humana e a universalizao do particularismo, em que no existe limite para a particularidade, a singularidade e a diferena. Assim, segundo ele, a globalizao acaba sendo constituda de processos interpenetrantes de socializao, individualizao, consolidao do sistema internacional de sociedades e ainda como a concretizao do senso de humanidade (2000, p. 147). Ao se pensar na globalizao da cultura, pode-se observar a circulao dos fluxos culturais a nvel mundial ou como eles so recebidos a nvel local (WARNIER, 2000, p. 143). A partir de um ponto de vista local, pode-se analisar a recepo localizada da cultura, e no a emisso da cultura globalizada. Tal situao, segundo o autor, muito mais complexa e contrastante, se comparada com a situao globalizada. Desta forma, pensar a arquitetura modernista a partir de Irati, e sobretudo, das edificaes de Posfaldo, pensar a recepo localizada de uma cultura globalizada. Hall (2006, p. 67-68) considera o termo globalizao como o processo que atravessa fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizaes em novas combinaes de espao-tempo, tornando o mundo, em realidade e em experincia, mais interconectado. Ao explanar sobre o deslocamento das identidades culturais nacionais, declara que deste resultam caractersticas temporais e espaciais, como a compresso de distncias e de escalas temporais. Assim, embora com um atraso temporal de meio sculo, o iderio modernista transforma a realidade local de Irati interconectando-a a esfera global. Uma das caractersticas primordiais da globalizao, a compresso espao-tempo, acelera os processos globais, proporcionando a sensao de

    que o mundo ficou menor, as distncias mais curtas e os eventos ocorridos em um determinado lugar tm um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande distncia fsica (HALL, 2006, p. 69). Nesta mesma linha de pensamento, Giddens (2005, p. 61) define a globalizao como sendo a intensificao das relaes sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais so modelados por eventos ocorrendo h muitas milhas de distncia e vice-versa. Essa sensao de compresso espao-tempo, no caso a arquitetura modernista de Irati, diretamente usufruda apenas por um determinado segmento da sociedade, o dos proprietrios destas residncias, que representam um pequeno percentual entre os diferentes espaos de morar ali consolidados. Em meio discusso da homogeneizao cultural, fica claro que, ao invs do pensamento global substituir as culturas locais, h uma articulao entre o global e o local. Segundo Haesbaert (2007), o termo glocalizao ultrapassa o contexto em que situaes locais sofrem interferncia do global. Para ele:

    Nem simplesmente uma justa ou sobreposio de territorialidades em escalas distintas (o glo-bal e o local), nem uma imposio unilateral de eventos que ocorrem em uma escala sobre os de outra (o global sobre o local), a glocaliza-o, [...] indica uma combinao de elementos numa nova dinmica onde eles no podem mais ser reconhecidos estritamente nem como globais, nem como locais, mas sim como um amlgama qualitativamente distinto global e local combinados, ao mesmo tempo, como um novo processo (HAESBAERT, 2007, p. 347, grifo do autor).

    No processo de combinao entre o global e o local, um exemplo ilustrativo so as adaptaes realizadas no iderio modernista na escala local. Este o caso do uso de materiais construtivos regionais, como as pedras ornamentais, em detalhes arquitetnicos nas residncias.

    Seguindo tal anlise, a globalizao e a localizao acabam por produzir espaos hbridos, stios glocais, em que diferenciao e integrao so

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    simultneos. Assim, o local e o global, deixam de ser entidades fixas, sendo produzidas de forma constante e nunca completas. Dessa forma, deixa-se de lado a distino entre as formas globais e locais e enfatizam-se as suas combinaes variadas. O global acaba sendo visto como o resultado da globalizao de condies que previamente eram tidas como locais ou regionais (HAESBAERT, 2007, p. 347).

    Robertson (2000, p. 251) define o termo glocal como um olhar global adaptado s condies locais. Revela ainda o falso antagonismo entre as duas escalas o global no em si e por si contraposto ao local. Ao contrrio, aquilo que geralmente se entende por local est geralmente no contexto do global (2000, p. 260). Pode-se dizer, assim, que a globalizao, nada mais que a conexo das diferentes localidades. neste vis, que o global e o local se combinam, no sendo possvel reconhecer um processo separado do outro.Esta combinao pode ser observada atravs da anlise do Movimento Modernista.

    No incio do sculo XX surge um movimento que confronta as premissas que eram utilizadas na arquitetura at aquele momento. Em contraste arquitetura pomposa dos sculos anteriores, nasce uma arquitetura racional, que une tcnica e arte. Benevolo (2009, p. 618), ao falar da arquitetura modernista diz que esta faz desaparecer a diversidade entre o mtodo objetivo do trabalho cientfico e o mtodo subjetivo do trabalho artstico e que a arte e a tcnica so indivisveis, e a inveno plstica pura anda sempre de acordo com as exigncias prticas, porque ambas so questes de equilbrio. Le Corbusier (2004, p. 29) denomina de Revoluo Arquitetnica o final do sculo XIX, momento em que houve essa mudana no aspecto construtivo. Rompe-se uma linha evolutiva milenar vinda desde a antigidade mediterrnea e perpassando toda a idade mdia, onde as tcnicas eram constantes: pedra, tijolos e madeira. A partir de ento deixam de s-lo com o ao perfilado, com o vidro e o concreto armado e os mtodos cientficos de clculo de resistncia apoiado, tanto quanto possvel, na segurana de materiais artificiais de qualidade constante: aos e ligas. Zevi (1996, p. 121) indica a planta livre como a grande conquista desta nova arquitetura que passa

    a ser conhecida como arquitetura moderna. As casas agora, j no so cubculos justapostos e isso se deve nova tcnica construtiva do ao e do concreto, que permite concentrar os elementos de resistncia esttica num finssimo esqueleto estrutural. H tambm uma maior mobilidade nas partes internas, onde as divises so cada vez mais finas e podem curva-se e mover-se livremente, possibilitando a conjugao de ambientes:

    Na casa mdia, a sala de visitas funde-se com a sala de jantar e o escritrio, o vestbulo reduz--se, em benefcio da grande sala de estar, o quarto de dormir torna-se menor, os servios especializam-se, sempre visando conceder maior amplitude a esse grande ambiente arti-culado onde a famlia vive, o living room (ZEVI, 1996, p. 123).

    Alm da mudana na concepo construtiva, Le Corbusier (2004, p. 35) aponta outras: a) a separao entre funes portantes vigas e pilares e funes portadas paredes e divises internas; b) a fachada servir apenas para separar o interior do exterior, perdendo a funo de portante; c) a estrutura (fundao) independente do imvel, dando um poder maior de circulao; d) os telhados de concreto armado e a planta livre; e e) a arquitetura vista como uma arte plstica. Assim o concreto armado, o ferro e o vidro encontraram, ento, as bases fundamentais de sua esttica. Choay (1992, p. 185), ao discutir sobre a revoluo arquitetnica modernista e a introduo de novos materiais construtivos como o vidro, o ao e o cimento armado, declara que foram finalmente encontradas as solues necessrias para construir. Faz aluso tambm a prticas utilizadas milenarmente como fundaes macias, muros espessos, a escassez de janelas, solos obstrudos por pores, telhados inclinados que eram inutilizveis e a repetio de disposies iguais de andar em andar, as quais foram substitudas por uma nova tcnica: fundaes localizadas, supresso dos muros de arrimo, possibilidade de dispor de toda a fachada para a iluminao, solo livre entre as estreitas estacas, telhados que constituem um solo novo para o uso dos habitantes.

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    Rego (2003), ao falar sobre o iderio modernista que Le Corbusier difundia, vai denotar a arquitetura funcionalista pura, em que os cinco princpios modernistas criados por ele planta livre, fachada livre, janelas em fita, uso de pilotis e o terrao-jardim vo aliar-se ausncia de ornamento aplicado. Alm disso, entre seus princpios estticos estavam o volume e o espao, substituindo a massa e a solidez; a regularidade no lugar da simetria axial e a exposio de materiais, ao invs do ornamento aplicado. Entre os profissionais que se destacam nesta nova concepo construtiva, pode-se elencar o estado unidense Frank Lioyd Wright, o francs Le Corbusier e os alemos Ludwig Mies van der Rohe e Walter Gropius, este influenciado diretamente por Wright. No contexto nacional, o movimento chega mais tarde. Seus efeitos so percebidos a partir da dcada de 1930 com a construo do prdio do Ministrio da Educao e Sade, MES no Rio de Janeiro, entre 1937 e 1943. Projeto inovador, desenvolvido por Le Corbusier, juntamente com um grupo composto por arquitetos brasileiros como Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Carlos Leo, Moreira, Reidy, entre outros (MIGLIORINI, 2008, p. 60). Antecedendo a construo do MES, o arquiteto russo Gregori Warchavchik constri a sua casa em So Paulo, em 1927, sendo esta apontada por muitos como a primeira edificao modernista no Brasil. No entanto, a construo no foi bem aceita no mbito nacional. Verssimo e Bittar (1999, p. 38) declaram que os partidos mais ortodoxos de Warchavchik assustam o pblico, tendendo a forar pelo seu aspecto atual a modernizao dos espaos habitacionais.

    No entanto, a partir da dcada seguinte, a construo do MES afirmou os ideais modernistas e, nos anos posteriores, vrios projetos auxiliaram na consolidao do movimento no pas. Aos poucos, a construo geometrizada, que abusa do concreto e do ao, das linhas puras e telhados planos, que no dispensa o uso dos brise soleil, das paredes de vidros, das janelas em fitas e dos pilotis ganha a simpatia dos habitantes das cidades de mdio e pequeno porte.

    nesse contexto que, na dcada de 1950, surgem os primeiros projetos residenciais modernis-tas na cidade de Irati PR. Nesta dcada a cidade vai presenciar vrias transformaes na sua estrutura

    urbana. Com o desenvolvimento de novas relaes comerciais e financeiras decorrentes da modernizao da produo agrcola, a cidade acabou por absorver o excedente de populao que estava sem emprego no campo. Desta forma, se at ento a cidade de Irati era o apndice do campo (MENDES, 2005, p. 64), agora passa a comandar o espao produtivo, havendo um processo de simbiose, em que a cidade e o campo se sustentam, porm com a sobreposio daquela sobre este.

    Devido a tais transformaes, que culmina-ram com o crescimento desordenado da cidade e o aumento da sua populao, o poder pblico municipal de Irati vislumbrou a necessidade de formular um planejamento urbano:

    Regido por intelectuais vindos de outras cida-des, buscou, desde o incio, conferir cidade um carter funcional. Essa tendncia urbanista trazida Irati, a qual almejava dotar a cidade de racionalidade, tentando transform-la em ideal, deve-se ao fato de que os engenhei-ros, arquitetos e urbanistas recm chegados, traziam consigo forte influncia das reformas modernistas ocorridas no incio do sculo XX em cidades brasileiras, como por exemplo no Rio de Janeiro. Da mesma forma que ocorreu na capital carioca, em Irati, a interveno no espao urbano visou a higienizao da cidade, atravs da modernizao de sua infra-estrutura e o embelezamento de suas reas. (MENDES, 2005, p. 64).

    Entre os profissionais descritos na citao an-terior, merece destaque o desenhista Eduardo Posfaldo, o qual assumiu o papel de protagonista na difuso da arquitetura moderna a partir da dcada de 1950 na cidade de Irati.

    AS INSPIRAES LECORBUSIANAS DE EDU-ARDO POSfALDO

    A arquitetura modernista de Irati centra-se, sobretudo, na criatividade do projetista Eduardo Pos-faldo (POSFALDO, 2011). Posfaldo nasceu em Irati

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    em 21 de setembro de 1935, onde se formou no ensino mdio profissionalizante na rea contbil. Trabalhou no escritrio de engenharia de Jos Jacob Wasilewski, hoje Rua da Liberdade. Ele criava e acompanhava a execuo de projetos arquitetnicos, mesmo sem possuir formao na rea de engenharia civil ou ar-quitetura, havendo a necessidade de um profissional diplomado assinar suas criaes. Casou-se com Leoni Leandro Posfaldo em 1962, na cidade de Irati. Nesta poca j morava em Curitiba por motivos profissionais, pois havia sido convidado a trabalhar na Construtora Marna e no Palcio Iguau, no departamento de Arquitetura, durante o mandato do governador Ney Braga. Esta construtora era especializada em grandes construes, especialmente igrejas. Posfaldo no trabalhava como um funcionrio que cumpria horrio, ele desenvolvia seus projetos em sua casa. Segundo relatos de sua esposa, tal construtora desenvolvia projetos inclusive para o Oriente Mdio, dada a qualidade de seus trabalhos. Com o passar do tempo, Posfaldo no trabalhou mais para empresas, vivendo como profissional autnomo, tendo um escritrio na sua residncia, situada no bairro Batel (Curitiba - Paran). Pessoas de diversos pontos do Paran e de Santa Catarina o procuravam para projetar, alm de grandes construtoras. Suas obras esto espalhadas pela regio centro-sul e centro-oeste do Paran e pelo litoral paranaense e catarinense, como por exemplo Caiob e praias particulares situadas ao norte da Praia de Leste no Paran, e Camburi em Santa Catarina. Segundo exposio de sua esposa, enquanto as obras eram realizadas, ele as visitava, a pedido dos proprietrios, no sentido de verificar se tudo estava saindo conforme seu projeto. Eduardo Posfaldo detinha um extremo talento e um amplo conhecimento na rea arquitetnica, no entanto, no trabalhava com projetos hidrulicos e eltricos das construes, se detendo aos aspectos arquitetnicos. Mesmo em fases mais atuais, que j permitiam o trabalho de desenho arquitetnico com softwares, Posfaldo continuou elaborando seus projetos mo. Para que o projeto fosse passado para o programa auto-cad, ele contratava estudantes

    de arquitetura. Segundo Leoni, Posfaldo sempre argumentava que para desenhar ele apenas precisava de lpis e papel. Posfaldo elaborava seus projetos de forma personalizada, levando em conta o histrico econmico, social e at mesmo cultural de cada cliente. Sugeria alguns traados das tendncias que estavam em voga, mas no impunha nada. Dessa forma, cada residncia possua uma caracterstica singular, pois se pensava na construo como algo diretamente relacionado com o indivduo. Ele nunca se interessou em ingressar em uma universidade, pois tinha facilidade em conseguir clientes. Muitos eram os engenheiros que iam at ele para tirar dvidas ou solicitar algumas opinies, dado o seu conhecimento. No se importava em no poder assinar seus projetos, por no ter a formao na rea. O que lhe interessava era satisfazer os clientes, e no necessariamente divulgar seu nome. Nesse sentido, participava de muitos eventos, com trabalhos, mas na maioria dos casos, os trabalhos no eram assinados por ele. Pessoas solicitavam projetos direcionados a exposies, os quais ele elaborava, cobrava por eles, mas no colocava sua assinatura. Apesar de ter origem humilde, Eduardo Posfaldo era extremamente educado e de gosto refinado. Em relao aos materiais que utilizava, era extremamente exigente: o papel tinha que ser de origem alem, vindo de So Paulo, e o grafite tambm era importado. O projetista era detalhista e preocupado com a qualidade de seu trabalho. Nesse sentido, exigia muito dos estudantes de arquitetura que trabalhavam para ele (POSFALDO, 2011). O conhecimento de Posfaldo no vinha da academia, mas de seu dom e dos contatos que tinha com outros profissionais. Seu gosto pela arquitetura modernista provinha do contato com engenheiros e arquitetos que se inclinavam para essa tendncia, pois trabalhou no Palcio do Iguau na poca em que tal movimento estava no auge e neste local conheceu pessoas provenientes dos mais diversos lugares.

    Segundo sua esposa, ele possua em sua biblioteca particular muitas obras relacionadas aos arquitetos modernistas Le Corbusier e Oscar Niemeyer e sobre o urbanista Lcio Costa. Sua preferncia era

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    por profissionais franceses, em especial, Le Corbusier, sabendo detectar nas construes os princpios utilizados pelo arquiteto modernista francs. Mesmo tendo sado de Irati na dcada de 1960, diversos componentes da elite da cidade continuaram a procurar pelo seu trabalho. So significativos os exemplares de arquitetura modernista projetados por Posfaldo no espao urbano de Irati entre as dcadas de 1950 e 1970. Isto se deve ao estilo modernista que adotara, o qual era mesclado s singularidades locais. Seus clientes iratienses pertenciam, na maioria, a famlias tradicionais abastadas. Tais famlias estavam sempre em busca de novidades, e a arquitetura modernista era o novo estilo, sinnimo de status social. Investir no estilo modernista, racional, era estar aberto ao progresso e procura de expresso de uma identidade prpria. Posfaldo elaborou vrios projetos arquitetnicos na cidade de Irati, tanto residenciais como edificaes de servios e entretenimento, como por exemplo o Colgio So Pedro Cansio; S/A Moageira e Agrcola; Igreja Imaculado Corao de Maria; Samuara Clube de Campo; SBCI - Sociedade Beneficente Cultural Iratiense; e a base da Esttua da Santa Nossa Senhora das Graas. Assim, sua obra no se restringiu a vertente modernista. Trabalhou at a semana que antecedeu seu falecimento. Seu ltimo projeto foi para um mdico que construiu no Batel. O mesmo foi finalizado em software por uma estudante de arquitetura que trabalhava para ele, sendo entregue aos proprietrios aps sua morte. Eduardo Posfaldo faleceu em julho de 2008, aos 72 anos, em Curitiba PR, acometido de uma infeco no intestino. Em meio a vrias construes modernistas projetadas por Posfaldo em Irati, estuda-se a seguir 4 residncias unifamiliares construdas na dcada de 1950, as quais pertencem s famlias Zacarias, Zanetti, Grechinski e Pavia e so fortemente marcadas em sua estrutura pela influncia modernista.

    O ESPAO DE MORAR: REfLEXES A PARTIR DE QUATRO RESIDNCIAS POSfAL-DIANAS

    Eduardo Posfaldo projetou vrias construes na cidade de Irati entre as dcadas de 1950 a 1970, onde, em meio a edificaes religiosas, de servios e entretenimento, a maioria eram edificaes residen-ciais. Dentre as criaes de Posfaldo, selecionou-se quatro residncias unifamiliares modernistas (Figuras 01, 02, 03 e 04), projetadas na dcada de 1950.

    A residncia da famlia Zacarias (Figura 01), considerada de mdio porte, marcada por elementos arquitetnicos modernistas. Possui recuo frontal, nos fundos e na lateral esquerda, entretanto, colada divisa lateral direita. Observam-se pans de verr em sua fachada e duas janelas em fita, sendo uma na fachada frontal e outra na lateral. Complementando a fachada frontal, est presente uma marquise em forma de ameba, suportada por finos pilotis de ferro. O telhado inclinado escondido parcialmente por uma platibanda localizada no centro da construo, com detalhes de seis crculos em relevo negativo. O muro tem a funo de segurar a terra do jardim, permitindo ao transeunte a visualizao das fachadas frontal e lateral. Esta edificao se mantm at os dias de hoje na funo residencial, todavia, atualmente sob posse da famlia Koch. A fachada no teve alterao alguma se comparada com seu projeto original, permanecendo com as mesmas caractersticas de quando foi construda.

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    A residncia foi projetada a pedido de Naby Zacarias (KOCH, 2012), primeiro proprietrio, o qual exercia a profisso de mdico na cidade. Morou nes-ta apenas com sua esposa, Ins Sandre, a qual exercia atividade de costureira na prpria residncia. O casal no teve filhos e mudou-se para a capital paranaense no final da dcada de 1950 por motivos profissionais.

    A residncia da famlia Zanetti (Figura 02), tambm considerada de mdio porte, encontra-se solta no lote, com recuos frontais, laterais e de fundo. Possui telhado em trs folhas, uma com inclinao para frente associada outra para os fundos, e uma independente com inclinao lateral. A chamin da lareira, revestida em pedras ornamentais, marca uma linha horizontal na fachada, dividindo-a em duas partes. A fachada, com linhas puras e retas, evidenciada por pans de verr. Uma marquise de linhas retas cobre o hall de

    entrada, sendo sustentada por finssimos pilotis de ferro. O muro frontal baixo permite a visualizao de toda a fachada frontal pelo transeunte. Esta edificao se mantm na sua forma, todavia, mudou sua funo, abrigando atualmente uma empresa do ramo contbil. Comparando a fachada atual com projeto original, percebe-se ela no foi modificada, permanecendo com suas caractersticas originais. A residncia foi projetada a pedido de Ildefonso Zanetti, seu primeiro proprietrio, o qual exercia a profisso de mdico e foi prefeito da cidade no perodo de 1964 a 1969 (KOMINSKI, 2012). Morou na residncia com sua esposa, a dona de casa Dulce Zanetti e seus quatro filhos: Ildefonso Zanetti Filho, Ernesto Zanetti Neto, Fernando Zanetti e Heloisa Zanetti, na poca, todos crianas. Segundo relatos (ORREDA,

    Figura 01: Residncia em estilo modernista projetada para a famlia Zacarias

    Fonte: Acervo de Mendes, abril de 2011.

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    2012), em seu mandato foram realizadas vrias obras como a construo da rodoviria, ginsio de esportes, 07 escolas rurais e 33 escolas na zona urbana, alm da revitalizao das existentes. Aps terminado seu mandato, voltou a exercer sua profisso como mdico. Morou em Irati, na residncia modernista, at sua morte na dcada de 1980.

    A residncia Grechinski (Figura 03), tambm considerada uma construo de mdio porte, possui recuo frontal, de fundo e na lateral direita, entretanto, colada divisa lateral esquerda. Em sua fachada esto presentes elementos como pans de verr e brise soleil, estes para filtrar a iluminao. O telhado no aparente esconde-se em uma platibanda de linhas puras e retas em relevo. As grades altas no muro frontal e nas janelas so elementos posteriores, que se destoam dos ideais modernistas. Originalmente o muro exercia apenas a funo de conteno do jardim, permitindo a fruio da fachada por parte dos transeuntes. At hoje, mantm-se a edificao na sua funo residencial sob posse da mesma famlia. A fachada original sofreu algumas alteraes quando comparada com a atual.

    Alm das grades nas janelas, as quais foram colocadas em uma reforma recente, ao invs da janela do meio, no projeto original havia um detalhe na parede com cobogs. Havia tambm uma rampa de acesso at a porta, fazendo com que o jardim ficasse em um plano abaixo da construo. No entanto, mesmo com a reforma, a residncia continua com suas caractersticas modernistas, onde as linhas retas e puras do o acabamento da obra.

    A residncia foi projetada a pedido de Miguel Luciano Grechenski, seu primeiro proprietrio, o qual era empresrio da cidade, scio da cerealista Apiaba (GRECHINSKI, 2012). Miguel Luciano Grechinski, juntamente com a sua famlia: a esposa e dona de casa Ester Grechinski e mais trs filhos, na poca crianas, Roseli Grechinski, Joo Grechinski e Miguel Gre-chinski Filho; moraram na referida residncia um pe-rodo menor que um ano. Por motivos profissionais, Miguel, juntamente com a famlia, mudou-se para o Rio de Janeiro, ficando a residncia fechada.

    Aps sete anos, a residncia, que vinha dete-riorando-se, foi novamente habitada, agora por Casi-miro Grechinski, que a comprou de seu irmo. Quando

    Figura 2: Residncia em estilo modernista projetada para a famlia Zanetti

    Fonte: Acervo de Mendes, abril de 2011.

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    mudou-se para a residncia, o casal Casimiro Gre-chinski e sua esposa, a dona de casa Terezinha Gre-chinski, tinha apenas um filho, o recm nascido Davi. Ao longo dos anos, eles tiveram mais quatro filhos, sendo: Daniel Grechinski, Dbora Natasha Grechinski e Andria Grechinski. At hoje o casal mora na cidade de Irati, todavia, sua residncia modernista encontra-se alugada (GRECHINSKI, 2012).

    A residncia da famlia Pavia (Figura 04), considerada de grande porte, encontra-se solta no lote, com recuos laterais, frontal e de fundo. Sua fachada marcada por dois grandes pans de verr. O telhado em asa de borboleta coberto por grandes platibandas ornamentais que compe figuras geomtricas, associadas a uma laje, situada ao meio e revestida por pedras ornamentais. O muro tem a funo de conteno da terra do jardim, sendo a grade superior elemento posterior. Ao transeunte permitida a visualizao

    da fachada como um todo. A edificao mantm sua funo residencial, no entanto, atualmente sob a posse da famlia Kominski. Comparando a fachada atual com o projeto original, nota-se que esta continua com as caractersticas de quando foi construda, no alterando seus elementos modernistas.

    A residncia foi projetada a pedido de Arrigo Pavia, proprietrio da Carvorite, empresa produtora de carvo. Imigrante italiano, aps morar certo tempo em So Paulo, mudou-se para Apiaba, localidade rural do municpio de Irati. Somente no final da dcada de 1950 que Arrigo mudou-se para a cidade, construindo a re-sidncia em que morou com a esposa, a dona de casa Aceli Prado Pavia, e sua primeira filha, Ida Pavia. O casal ainda teve mais trs filhos, que nasceram e vive-ram na residncia. Segundo relatos (KOCH, 2012), a famlia morou na cidade aproximadamente oito anos, mudando-se posteriormente para Curitiba, por motivos profissionais.

    Figura 03: Residncia em estilo modernista projetada para a Famlia Grechinski

    Fonte: Acervo de Mendes, abril de 2011.

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    Observando-se as quatro residncias, elementos modernistas como pans de verr, pilotis, platibandas, marquises e linhas retas se fazem presentes alternadamente em todos os casos. Quanto s linhas, nota-se que apenas a residncia da famlia Zacarias que se utiliza de curvilneas, no caso da marquise em forma de ameba, nas demais a preferncia pelas linhas retas. Alm disso, o elemento brise soleil aparece apenas na residncia Grechinski, e o telhado no aparente encontrado tanto na residncia Grechinski como na Pavia.

    Para fins de anlise destas residncias en-

    Figura 04: Residncia em estilo modernista projetada para a Famlia Pavia

    Fonte: Acervo de Mendes, novembro de 2011.

    quanto espaos de morar so apresentados, a seguir, informaes retiradas dos projetos originais das casas, projetos estes disponveis no acervo do Departamento de Controle Interno de Documentos da Prefeitura Municipal de Irati. Com relao ao porte das residn-cias escolhidas (Tabela 01), observa-se que trs delas no ultrapassando 220m, podendo ser consideradas de mdio porte. Trata-se das residncias projetadas originalmente para as famlias Zacarias, Zanetti e Grechinski. A residncia projetada originalmente para a famlia Pavia considerada de grande porte, ultrapassando 350m.

    Tabela 01 Residncias modernistas de Irati, segundo a famlia original, o ano de construo, a rea construda, a

    rea do lote e a taxa de ocupao Projetos de Posfaldo da dcada de 1950

    Fonte: Plantas do DCID da PMI. Org.: Mendes, 2011.

    Famlia Original Ano de Construo rea Construda (m2)

    rea do Lote (m2)

    Taxa de Ocupao (%)

    Zacarias 1953 206,10 580 35,53

    Zanetti 1955 206,92 1029,80 20,09

    Grechinski 1958 219,23 630 34,8

    Pavia 1958 360,35 1070 33,7

    Mdia ---- 248,15 827,45 31,03

    Tabela 01 Residncias modernistas de Irati, segundo a famlia original, o ano de construo, a rea construda, a rea do lote e a taxa de ocupao Projetos de Posfaldo da dcada de 1950

    Fonte: Plantas do DCID da PMIOrg.: Mendes, 2011.

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    Quanto taxa de ocupao, percebe-se que nos quatro casos esta no ultrapassa os 40% do lote. A maior taxa a da residncia Zacarias com 35,53% e a menor a da Zanetti com 20,09%. Analisando tais dados, conclui-se que todas as residncias tm lotes de grandes dimenses, no entanto, em dois casos, estas so coladas nas divisas laterais, como o caso das residncias Zacarias e Grechinski, ou seja, nas casas de mdio porte. Embora os ideais modernistas indiquem a planta livre, ou seja, totalmente descolada das dividas do lote, o que nem sempre ocorre em Irati, infere-se que se mantm a premissa de grandes espaos verdes e de jardins em todos os casos estudados. Buscando aprofundar a anlise dos espaos de morar nas residncias modernistas de Irati, adequou-se a classificao de Verssimo e Bittar (1999). Segundo estes autores, os espaos internos das residncias se classificam em: social, ntimo e de servios. Para fins deste estudo, optou-se por cinco classes de espao de morar:a) Espao social espao tratado com formalidade, servindo como transio entre o exterior e o interior. Apropriado para recepo das visitas, devendo apresentar-se sempre organizado e com requinte, passando a ideia do status social da famlia. Representado pelo hall social, sala de estar, sala de jantar (copa na inexistncia da sala de jantar), banheiro social e terrao social.

    b) Espao ntimo espao reservado aos integrantes da famlia, com acesso restrito. Representado por quartos de dormir e banheiros ntimos.c) Espao de servio espao reservado para a realizao das tarefas que movimentam a casa e que so utilizados, sobretudo, por empregados domsticos. Representado pela cozinha, rea de servios, quarto de empregada, sala de costura e depsitos.d) Espao profissional espao destinado ao trabalho profissional especfico de um ou mais integrantes da famlia, no qual se recebe (ou no) clientes/pacientes. Representado por escritrio, consultrio, sala de espera e sala de leituras.e) Espao de circulao rea destinada circulao dos habitantes da casa. Representada por corredores, escadas e garagens que interligam os demais espaos. Quanto diviso dos espaos de morar nas residncias modernistas de Irati (Tabela 02), este segue um mesmo padro, onde o espao ntimo detm a maior rea construda, seguida do espao social. O espao social privilegiado nas residncias Zanetti e Pavia. No caso da residncia Zanetti tambm o espao ntimo apresenta destaque em relao mdia das 4 residncias analisadas. Na residncia Grechinski, o destaque para a rea de servios.

    Tabela 02 'Espaos de morar' das residncias modernistas de Irati, segundo o uso Projetos de Posfaldo da

    dcada de 1950

    Nota: (*) Considerou-se apenas as reas teis, ou seja, no foram computadas as reas das paredes.

    Fonte: Plantas do DCID da PMI

    Org.: Mendes, 2011.

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    O espao profissional est presente em duas residncias. O projeto da residncia da famlia Zacarias constitudo de uma sala de espera e de um consultrio, tendo em vista que o primeiro proprietrio, Naby Zacarias, atuava como mdico. No projeto da residncia Pavia encontra-se uma sala de leitura, onde provavelmente Arrigo Pavia trabalhava ou mantinha seu hobby, tendo em vista que ele era um empresrio de renome na cidade. Em uma anlise quantitativa dos cmodos e suas funes (Tabela 03), nota-se que, nas residncias analisadas, h uma tendncia da quantidade de cmodos no espao de servios ser maior, seguido pelo espao ntimo. Isto se repete tanto nas residncias de mdio como de grande porte. Tal tendncia do espao de servios possuir maior quantidade de cmodos

    deve-se ao fato da superposio de funes existentes nestes compartimentos, como a realizao das tarefas domsticas: preparar e servir a alimentao, lavar e passar roupas e a manuteno dos empregados. Alm disso, h os cmodos destinados a guardar utenslios que no so mantidos nos demais espaos, e a garagem, local onde se mantm o veculo da famlia. Na dcada de 1950 se projetava apenas um automvel por famlia, diferentemente do que ocorre na atualidade. A residncia Zanetti acaba destoando da tendncia das demais, tendo em vista que a maior quantidade de cmodos pertence ao espao ntimo, representado por quatro quartos e um banheiro, ao passo que o espao de servios bem modesto, possuindo apenas dois cmodos: cozinha e copa.

    Tabela 03 Quantidade e tipologia dos cmodos das residncias modernistas de Irati, segundo os

    espaos de morar Projetos de Posfaldo da dcada de 1950

    Fonte: Plantas do DCID da PMI

    Org.: Mendes, 2011.

    CONSIDERAES fINAIS

    O modernismo arquitetnico mostra-se bastante presente na cidade de Irati, marcando sua paisagem urbana, principalmente na rea central. Esse estilo, to cotizado na dcada de 1950, imprime idade uma composio de destaque. Trata-se de edificaes que destoam pelas suas linhas puras e retas, aliadas a grandes pans de verr, platibandas

    em formas geomtricas e marquises sustentadas por finssimos pilotis. Todos estes elementos encontram-se conjugados concepo racionalista do construir e do morar. A apropriao dos motivos modernistas assegurou o status almejado pela classe mdia emergente e pela classe alta j estabelecida na cidade. O espao de morar integrou casa e homem, ou seja,

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    as residncias passaram a ser projetadas para as novas necessidades impostas as famlias modernas. Nota-se que, ao desempenharem funes especficas, as partes internas das residncias proporcionaram mobilidade aos moradores, o que resultou na construo de ambientes diferenciados, rompendo a tradio do estilo de morar que era perpassada por uma organizao mais convencional. Assim, observou-se uma transformao na unidade compositiva, no sendo apenas um modernismo de fachada, como debatido por Lara (2005), onde a planta era muito semelhante aos modelos anteriores. Baseando-se nas quatro residncias desenhadas por Eduardo Posfaldo durante a dcada de 1950, conclui-se que seguido um padro modernista na distribuio dos espaos internos, o qual privilegia os espaos ntimos e sociais. Todavia, a arquitetura modernista iratiense possui suas singularidades. No campo esttico da fachada, por exemplo, as linhas curvas foram utilizadas apenas para detalhes construtivos. No espao de morar, a insero de espaos profissionais se constituiu em mais uma peculiaridade, pela qual as circunstncias dos proprietrios fizeram com que o movimento global sofresse adaptaes, dando-se a entender que o Modernismo, ao se reproduzir e adaptar ao local, possibilitou a criao de uma realidade mpar no campo arquitetnico e uma identidade prpria aos seus moradores.

    GLOSSRIO

    Brise-soleil Painis mveis ou fixos, orien-tveis, basculantes, horizontais e verticais, para a proteo ou direcionamento de insolao.

    Cobog Elemento vazado, pode ser de concreto, cermica, alvenaria. Impede que o interior da edificao seja visto de fora. Filtra a luz solar e o vento.

    Fachada - Parede frontal da edificao, voltada para a rua.

    Janelas em fita Aberturas sequenciais marca-das pela horizontalidade. Altura da abertura bastante inferior sua largura.

    Marquise - Cobertura que serve de proteo da chuva e sol, sem paredes laterais.

    Pan de verr Panos de vidro, grandes super-fcies de vidro.

    Piloti ou pilar Elemento vertical de susten-tao da edificao. Integra o sistema estrutural da construo.

    Telhado em asa de borboleta Cobertura com a inclinao voltada para o centro da edificao.

    Telhado plano Cobertura horizontal, sem inclinao.

    REfERNCIAS

    BENEVOLO, Leonardo. Histria da Cidade. So Paulo: Editora Perspectiva, 2009.

    CHOAY, Franoise. O Urbanismo. 3. ed. So Paulo: Perspectiva, 1992.

    GRECHINSKI, Terezinha. Entrevista. Fornecida a Gigliese Mendes. 07 de maro de 2012.

    GIDDENS, Anthony. Sociologia. 6. Ed. Porto Alegre: Artmed, 2005.

    HAESBAERT, Rogrio. O Mito da Desterritorializa-o. Do Fim dos Territrios Multiterritorialidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

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    KOCH, Adair. Entrevista. Fornecida a Gigliese Men-des. 19 de maro de 2012.

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