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624 O ESPAÇO PÚBLICO NA ERA DA “PÓS-VERDADE” SOB O PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT The public space in the “post-true” era under the thought of Hannah Arendt Yago Abreu Barbosa dos Santos¹ Maria da Luz Alves Ferreira² Luci Helena Silva Martins³ ¹ Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) [email protected] ² Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) [email protected] ³Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) [email protected] RESUMO Este artigo tem como objeto a análise das mudanças no espaço público na era da “pós-verdade”, fundamentado no conceito de Hannah Arendt. O entendimento é que a era da “pós-verdade” é um ponto de interseção entre política e filosofia na contemporaneidade. O contexto social atual é pautado em uma desordem na opinião pública, os espaços de discussão se tornaram re- lativos, algo que pode ser comparado ao conceito de verdade de Nietzsche, entendido como a promoção de pluralização e diversificação dos saberes. Teoricamente, recorremos à análise de Hannah Arendt sobre espaço público e que é fundamentado em uma de suas principais obras: A condição humana (1958), sendo considerado o tema central de sua obra. Em referida obra, o espaço público tem três aspectos, sendo constituído pela aparência, visibilidade, o mundo en- quanto produto humano e o espaço da palavra e da ação. Para a confecção do presente trabalho foi utilizado o método bibliográfico exploratório, principalmente a partir dos estudos das obras de Hannah Arendt e alguns de seus maiores críticos. Metodologicamente buscou-se identificar fontes secundárias, procedendo-se a analise de estudos sobre a era da “pós-verdade” e o con- ceito de espaço público na visão de Hannah Arendt. O público representa a comunicabilidade, possibilitando o desenvolvimento de uma pluralidade, pois é tudo aquilo que poder ser visto e ouvido pelo maior número de pessoas, sendo que a modificação com a era “da pós-verdade” trouxe algumas mudanças para o debate atual que foi desenvolvido ao longo do artigo. Palavras-Chave: “Pós-verdade”; espaço público, política, liberdade.

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O ESPAÇO PÚBLICO NA ERA DA “PÓS-VERDADE” SOB O PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT

The public space in the “post-true” era under the thought of Hannah Arendt

Yago Abreu Barbosa dos Santos¹Maria da Luz Alves Ferreira²

Luci Helena Silva Martins³

¹ Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes)[email protected]

² Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes)[email protected]

³Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes)[email protected]

RESUMOEste artigo tem como objeto a análise das mudanças no espaço público na era da “pós-verdade”, fundamentado no conceito de Hannah Arendt. O entendimento é que a era da “pós-verdade” é um ponto de interseção entre política e fi losofi a na contemporaneidade. O contexto social atual é pautado em uma desordem na opinião pública, os espaços de discussão se tornaram re-lativos, algo que pode ser comparado ao conceito de verdade de Nietzsche, entendido como a promoção de pluralização e diversifi cação dos saberes. Teoricamente, recorremos à análise de Hannah Arendt sobre espaço público e que é fundamentado em uma de suas principais obras: A condição humana (1958), sendo considerado o tema central de sua obra. Em referida obra, o espaço público tem três aspectos, sendo constituído pela aparência, visibilidade, o mundo en-quanto produto humano e o espaço da palavra e da ação. Para a confecção do presente trabalho foi utilizado o método bibliográfi co exploratório, principalmente a partir dos estudos das obras de Hannah Arendt e alguns de seus maiores críticos. Metodologicamente buscou-se identifi car fontes secundárias, procedendo-se a analise de estudos sobre a era da “pós-verdade” e o con-ceito de espaço público na visão de Hannah Arendt. O público representa a comunicabilidade, possibilitando o desenvolvimento de uma pluralidade, pois é tudo aquilo que poder ser visto e ouvido pelo maior número de pessoas, sendo que a modifi cação com a era “da pós-verdade” trouxe algumas mudanças para o debate atual que foi desenvolvido ao longo do artigo.

Palavras-Chave: “Pós-verdade”; espaço público, política, liberdade.

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INTRODUÇÃO

Este artigo tem como objeto a análise das mudanças do espaço público na era da “pós-verdade”, fundamentado sob o conceito de Hannah Arendt relativo ao espaço público. O en-tendimento é que a era da “pós-verdade” é um ponto de interseção entre política e fi losofi a na contemporaneidade. “O termo da ‘pós-verdade’ costuma ser defi nido, brevemente, como uma estratégia de desvalorização dos fatos em prol de interesses pessoais.” (FEITOSA, 2017).

Alguns fatos são tidos como exemplos da “pós-verdade”, tais como a divulgação de que tinham mais pessoas na posse do presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, do que na do seu antecessor, Barack Obama, mesmo as imagens afi rmando o contrário, além das estatísticas fi ctícias divulgadas na campanha do Brexit, em 2016 sobre os altíssimos custos para permanecer na União Europeia (FEITOSA, 2017). Segundo Llorete (2017), “todos esses marcos têm um denominador comum: as crenças pessoais, irrefutáveis para muitos, ganharam força frente à lógica dos fatos”, há uma pluralidade, cada vez mais diversifi cada, no espaço público causando efeito direto na opinião de todos que dele participam.

O contexto social atual é pautado em uma desordem na opinião pública, os espaços de discussão se tornaram relativos, superfi ciais, algo que pode ser comparado ao conceito de ver-dade de Nietzsche, “que não signifi ca necessariamente o contrário de um erro, mas somente, e em todos os casos mais decisivos, a posição ocupada por diferentes erros uns em relação aos ou-tros.” (NIETZSCHE, 2001). Entendida, portanto, como a promoção de pluralização e diversifi -cação dos saberes, que são superfi ciais, fruto de uma sociedade líquida na contemporaneidade.

Teoricamente, recorremos à análise de Hannah Arendt sobre espaço público e que é fundamentado em uma de suas principais obras: A condição humana (1958), sendo considerado o tema central de sua obra. Em referida obra, o espaço público tem três aspectos, sendo cons-tituído pela aparência, visibilidade, o mundo enquanto produto humano e o espaço da palavra e da ação.

A conjunção dos três elementos constitui o espaço público no espaço da liberdade, da política. Sendo que para Arendt (2007), o termo público signifi ca “tudo que pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível. Para nós, a aparência - aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos - constitui a realidade.” (ARENDT, 2007, p. 59).

O público representa a comunicabilidade, possibilitando o desenvolvimento de uma pluralidade, pois é tudo aquilo que poder ser visto e ouvido pelo maior número de pessoas, sen-do que a modifi cação deste espaço com a era “da pós-verdade” trouxe algumas mudanças para o debate atual que foi desenvolvido ao longo do artigo.

Em uma pesquisa pautada na revisão bibliográfi ca, metodologicamente buscou-se iden-tifi car fontes secundárias, procedendo-se a analise de estudos sobre a era da “pós-verdade” e o conceito de espaço público na visão de Hannah Arendt.

A ERA DA “PÓS-VERDADE”

A era da “pós-verdade” é entendida como uma circunstância temporal em que prevalece

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a verdade pluralizada, sob constante sistematização, passa a ser defi nido como uma estratégia de desvalorização dos fatos em prol de interesses pessoais. Onde não há fatos, não existe ver-dade única. A verdade passa a ser relativizada, conforme afi rmado por Nietzsche (2001) que a verdade não é única, precisa ser continuamente discutida e tematizada.

O panorama político e social é marcado por uma nova conjectura, “na qual o objetivo e o raciocínio perdem peso diante do emocional ou da vontade de sustentar crenças, apesar dos fatos demonstrarem o contrário.” (LLORENTE, 2017, p.09).

Os fatos passam a ser questionados diante dos argumentos, tudo passa a ser relativi-zado, depende de quem repassa a informação, a verdade não se propõe como absoluta, mas uma conjuntura de argumentos manipulados, podendo modifi car os fatos. Sendo que alguns acontecimentos atuais apresentam em comum a tentativa de causar uma desordem na opinião pública, partindo da manipulação dos argumentos, mesmo frente à demonstração real do que pode acontecer.

Na Europa, golpes duros que poucos seriam capazes de prever, como a decisão dos britânicos de abandonar a União Europeia ou a negativa italiana ao referendo sobre a reforma constitucional proposta por Matteo Renzi. E por que não mencionar, também, o constante crescimento, nas pesquisas, de partidos políticos como a Frente Nacional na França, liderada por Marine Le Pen, e o Partido da Liberdade (PVV), liderado por Geet Wilders, na Holanda.Do outro lado do oceano, assistimos ao discurso fake da política populista ou a sur-presas como a rejeição ao referendo sobre o acordo de paz com as FARC da Colômbia e à controversa vitória de Trump nas eleições norte-americanas. (LLORETE, 2017, p. 09).

O principal contexto é a tentativa de promover uma nova condição advinda da moder-nidade, sendo caracterizada pela busca da libertação da humanidade da ignorância e da miséria, porém, produziu, ao contrário, sociedades que permitem o imperialismo, a guerra, o desempre-go, a tirania da mídia e o desrespeito à vida humana em geral.

Em virtude do pensamento moderno e dessa mudança na ação para com as pessoas, há uma busca pela afi rmação das diferenças e do pluralismo, mesmo sendo difi cultada pela lógica da razão e do mercado que passam a ditar comportamentos e ações em prol de uma globalização cada vez mais capitalista.

A opinião pública passa a ser infl uenciada por diversas fontes que se consolidam como meios de comunicação alternativos. Há uma valorização da opinião dos divulgadores, indepen-dentemente, de os fatos serem ou não checados. Assim como é afi rmado por Llorete (2017):

A divulgação de falsas notícias conduz a uma banalização da mentira e, deste modo, à relativização da verdade. O valor ou a credibilidade dos meios de comunicação se veem reduzidos diante das opiniões pessoais. Os acontecimentos passam a um se-gundo plano, enquanto o “como” se conta a história ganha importância e se sobrepõe ao “o quê”. Não se trata, então, de saber o que ocorreu, mas de escutar, assistir, ver, ler a versão dos fatos que mais concorda com as ideologias de cada um. (LLORETE, 2017, p.09).

A “pós-verdade” não deve ser entendida como uma era de propagação da mentira, da

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verdade relativa, descrevendo uma situação em que a emoção, a crença pessoal e a argumenta-ção superam os fatos objetivos e infl uenciam diretamente na formação da opinião pública.

Porém, não é um fenômeno atual, já foi utilizado em oportunidades anteriores, não exa-tamente como “pós-verdade”, mas com o mesmo fundamento de moldar as opiniões das massas com apelo em suas crenças. Tendo como grande viés histórico, o século XX com o surgimento do Nazismo e Stalinismo, movimentos políticos e ideológicos.

A confusão sobre a realidade, a gestão de manobras conspiratórias para incitar o re-ceio ou a hostilidade de grupos sociais, a vitimização ou as mitomanias políticas são instrumentos de persuasão das massas que remontam à antiguidade, mas que no sécu-lo XX causaram os piores desastres, sendo, dois deles, autênticas falhas na história da humanidade: o nazismo e o stalinismo. (ZARZALEJOS, 2017, p.11).

Demonstrando assim, que tais recursos são utilizados para o incentivo das massas, de-monstrarem algo diferente do que os fatos trazem. Todos os movimentos políticos que buscam dirigentes não convencionais nas democracias liberais e representativas, fazem com que os elementos sentimentais sobreponham aos racionais.

Logo, a “pós-verdade é uma reelaboração de algo que já existia. A busca por fazer com que as informações sejam alcançadas e entendidas, mesmo que para isso os fatos sejam rela-tivizados, assim como a mentira e a verdade, sendo que aquela deixou de ser algo condenável socialmente, para se tornar um mal necessário.

O ESPAÇO PÚBLICO EM HANNAH ARENDT

Hannah Arendt, pensadora judia nascida na Alemanha em 1906, se dedicou ao estudo fi losófi co e político, defendendo a ação enquanto postura individual e coletiva no espaço públi-co, que auxilia na formação da vontade pública, da cidadania.

A Condição Humana, cujo livro foi publicado em 1958, é uma contribuição de Hannah Arendt à fi losofi a política, pois visa discutir o problema político contemporâneo. Representa assim, “uma eloqüente manifestação de refl exão teórica sobre os problemas concretos do século XX” (ARENDT, 2007, p.346).

O social tem duas esferas próprias da condição humana: a pública, que abrange o mun-do da política, onde os iguais vão reconhecer a si mesmo, as diferenças se marcam na convi-vência do espaço público, os corpos se encontram, as pessoas falam entre si, se organizam, as pessoas se reconhecem e são reconhecidas pelos outros. E a privada, representada pelo mundo da necessidade, da violência, da privacidade, é o espaço da lei, das regras, com embate travado entre ódio e ausência do pensamento.

Para Arendt (2007), é a comunidade, que além de representar o sujeito, vai garantir o espaço público frente ao Estado. A ideia de espaço público surge “como uma condição funda-mental da atividade política na teoria de Arendt” (SILVA, 2017).

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O público possibilita um espaço de convivência, de maior conexão entre as pessoas, o dissenso, o debate, onde é possível ouvir e expor opiniões que confi guram ações práticas para uma convivência humana harmonizada. Para Hannah, o entendimento sobre o espaço público, em razão de uma progressiva indistinção entre o público e o privado é uma característica mar-cante do mundo moderno.

O que caracteriza a modernidade política é a compreensão da política como uma fun-ção da sociedade, com a implicação fundamental de que as questões eminentemente privadas da sobrevivência e da aquisição transformaram-se em interesse coletivo, ain-da que nunca se possa conceber de fato de tal interesse como sendo público (COR-REIA, 2008, p.102).

A esfera privada acaba por fazer com que a intimidade seja relevante neste espaço, dei-xando a ação para a esfera pública, onde são realizadas as atividades que estão ao alcance de todo ser humano, consideradas como elementares para a condição humana, porém, a vida ativa, para Arendt (2007) não é “apenas aquela em que a maioria dos homens está engajada, mas ainda aquela de que nenhum homem pode escapar completamente.” (ARENDT, 2007, p. 176).

As atividades referidas por Arendt são o labor, o trabalho e ação; atividades humanas consideradas fundamentais, que constituem a vida ativa, que repercutem as condições primárias da vida.

O labor é decorrente de uma atividade biologicamente determinada pelo corpo huma-no, “corresponde ao processo biológico do corpo humano” e “a condição humana do labor é a própria vida” (ARENDT, 2007, p. 15). O labor, por meio do produto, garante a substância e a longevidade do tempo humano.

O trabalho é ligado ao artifi cialismo da existência do ser, não estando contido no clico da vida humana enquanto vital para a espécie. Produz o mundo artifi cial das coisas. “A con-dição humana do trabalho é a mundanidade,” (ARENDT, 2007, p. 15) sendo que a realização deste pelo homem garante a vida humana.

A ação é exercida pelo homem sem a utilização dos meios - sujeito ou natureza - cor-responde à condição humana da pluralidade, sendo que esta corresponde, especifi camente, a condição de toda a vida política. Sendo que a ação no espaço público é a atividade que legítima e dá sentido à política.

A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o homem vivem na Terra e habitam todo o mundo. Todos os aspec-tos da condição humana tem alguma relação com a política; mas esta pluralidade é a condição - não apenas a condição sine non, mas a conditio pe quam - de toda a vida política (ARENDT, 2007, p. 15).

A relevância da ação para Arendt (2007) é elencada pelo fato de ser o espaço público da atividade humana, no espaço público todos são iguais sem a necessidade de comando e

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violência. Sendo que todas as atividades são condicionadas ao fato da pluralidade, sendo que a confl uência dos três elementos da atividade humana, o espaço público se constitui no espaço da liberdade, da política, a participação das pessoas em sociedade, pois, “na esfera pública não há espaço para a discussão sobre assuntos particulares ou da ordem da necessidade, que fi caram para a esfera privada, no seio da família, das relações de trabalho e sociais de outra natureza” (SILVA, 2017, p. 122).

A esfera pública, enquanto mundo comum reúne-se na companhia uns dos outros e, contudo evita que colidamos uns com os outros, por assim dizer. O que torna tão difícil suportar a sociedade de massas não é o número de pessoas que ela abrange, ou pelo menos não é este o fator fundamental; antes, é o fato de que o mundo entre elas perdeu a força de mantê-las juntas, de relacioná-las umas às outras e de separá-las. A estranheza de tal situação lembra a de uma sessão espírita na qual determinado número de pessoas, reunidas em torno de uma mesa, vissem subitamente, por algum truque mágico, desaparecer a mesa entre elas, de sorte que duas pessoas sentadas em frente uma da outra já não estariam separadas mas tampouco teriam qualquer relação tangível entre si (ARENDT, 2007, p.62).

A manutenção do espaço público deve se pautar em algumas garantias jurídicas formais para que todos os seus autores possam atuar com liberdade e autonomia. Porém, o desenvolvi-mento da modernidade traz uma característica contrária ao que é posto pelo conceito fi rmado por Arendt (2007), pois há uma facilidade na dominação da sociedade de massas, voltada para o consumo e ditada por um regramento único, principalmente, na era da “pós-verdade”.

Nesta sorte, a pluralidade corresponde ao principal aporte teórico da noção arendtia-na de esfera pública. A pluralidade é a condição de possibilidade de uma realidade dialógica na qual os homens colocam-se em movimento junto a seus pares. Na esfera pública os homens se reconhecem como sujeitos coletivos e não como indivíduos isolados, atomizados, privados. Porquanto, a ação e a palavra são as experiências que constituem o caráter político da esfera pública (SILVA;XAVIER, 2015, p.232).

Portanto, em relação a uma das características do mundo público, constata-se que públi-co signifi ca aparência, visibilidade; o que pode ser visto e ouvido pelo maior número de pessoas possível; é comunicável, pois que relevante. Por isso as coisas irrelevantes, os sentimentos, pensamentos e paixões, apesar de não intensos e relevantes pertencem à esfera pública, sendo que as infl uências de uma opinião, a partir de fatos incontroversos, infl uenciam na era da “pós-verdade”.

Além disso, o público é entendido como um elemento mediador da relação entre os ho-mens, construído a partir das relações humanas, o mundo da ação humana. Assim como afi rma Arendt (2007):

Tem a ver com o artefato humano, com o produto das mãos humanas, com os negó-

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cios realizados entre os que, juntos, habitam o mundo feito pelo homem. Conviver no mundo signifi ca essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentem ao seu redor; pois, como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens (ARENDT, 2007, p.64).

E por último, o público é o espaço da palavra e da ação, sendo para a concretização do mundo exige a pluralidade, que se assenta sobre duas dimensões, quais sejam as diferenças e por isso promovem a ação e o discurso. A ação e o discurso são concretizadores da legitimidade de um espaço pluralizado.

A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto de igualdade e diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compre-ender-se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prescrever as necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que existiam, existem ou virão a existir, os homens não pre-cisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender (ARENDT, 2007, p.188).

A utilização do espaço público em virtude da criação de informações falsas foi farta-mente utilizada para o surgimento e manutenção dos regimes totalitários, pois o período con-siderado entre guerras passou por uma crise na política, pois os cidadãos não tinham mais o interesse em participar dos espaços de discussão, desacreditados em uma sociedade corrompida com o capitalismo. Aos poucos, foram se tornando cada vez mais “indiferentes com a política e ao mesmo tempo não se organizam politicamente em torno de um partido” (ARENDT, 2004, p. 361).

Com isso, temos a intensifi cação da sociedade de massas, que são pessoas que se con-formam com a situação vigente e se fecham em suas vidas privadas. A sociedade de massas, é constituída por seres incapazes de pensar em termos coletivos, foi um dos fatores que criaram as condições propícias à ascensão do movimento totalitário ao poder.

Antes de tomarem o poder e criarem um mundo à imagem da sua doutrina, os mo-vimentos totalitários invocam esse falso mundo de coerências, que é mais adequado às necessidades da mente humana do que a própria realidade; nele através da pura imaginação, as massas desarraigadas podem sentir-se à vontade e evitar os eternos golpes que a vida e as experiências verdadeiras infl igem aos seres humanos e às suas expectativas. A força da propaganda totalitária (...) reside na sua capacidade de isolar as massas do mundo real (ARENDT, 2004, p.402).

E com os regimes totalitários, o espaço passa a não ser mais pluralizado, as diferenças já não são tão aceitas, há um isolamento provocado pela indução da grande massa. Sendo impor-tante destacar a diferença que Arendt (2007) faz da solidão com o isolamento, sendo a primeira um fenômeno da esfera dos contatos sociais e o segundo, fruto das relações políticas, sendo que os dois afetam diretamente no espaço público.

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Em razão disso, a sociedade massifi cada:

[...] destrói tanto a esfera pública como a esfera privada, e priva ainda os homens não só do seu lugar o mundo, mas também do seu lar privado, no qual antes eles se sen-tiam resguardados contra o mundo e onde, de qualquer forma, até mesmo os que eram excluídos do mundo podiam encontrar-lhe o substituto no calor do lar e na limitada realidade da vida em família (ARENDT, 2007, p.68).

A modernidade promoveu uma destruição da esfera pública, em razão das sociedades de massas, e auxiliou no surgimento de formas de governo que aproveitam do momento para infl uenciar a opinião das massas, utilizando a “pós-verdade”, da relativização de fatos para se manterem no poder.

Na medida em que a sociedade de massas consegue absorver os diversos grupos sociais, por uma sociedade unitária, o seu surgimento passa a ser a expressão de que “a esfera do so-cial, fi nalmente, após vários séculos de desenvolvimento, alcançou o ponto onde ela abrange e controla todos os membros de uma dada comunidade, igualmente e com igual força (ARENDT, 2007, p.41).

O contexto atual mostra a utilização do espaço público, para promoção de informações, modelos políticos, pautado em informações manipuladas, algo característico da modernidade. A pluralidade passa a ser um espaço vazio, pois todas as pessoas passam a ter uma mesma opi-nião, pautada nos regimes totalitários, atualmente, nos regimes democráticos que utilizam de vários meios de comunicação para continuarem infl uenciando na opinião das pessoas, frente a fatos modifi cados, inventados e incontroversos.

A construção da sociedade moderna é algo criticado por Arendt, tendo em vista a des-politização das sociedades. Isso porque o fenômeno indica um rompimento do homem com sua capacidade de discernir critérios e referências de convivência no espaço público, que permitiam a cada um comunicar-se com todos os demais e agir em presença da pluralidade humana, ou seja, com a participação efetiva, ativa do homem na ação política, não somente através do seu voto, mas sim como parte do espaço público. Com a sociedade moderna isto se perde, o traba-lho e o labor são superiores à ação.

ANÁLISE DO ESPAÇO PÚBLICO NA ERA DA “PÓS-VERDADE”

Hannah Arendt elenca que a natureza da verdade é essencialmente política, ou seja, é sempre relativa a várias pessoas: ela diz respeito a acontecimentos e circunstâncias nos quais muitos estiveram implicados; é estabelecido por testemunhas e repousa em testemunhos, sendo a verdade essencialmente política, aberta ao espaço público, a “pós-verdade” busca relativizar a atividade política.

O espaço público vem sendo dominado pelos políticos e poderosos que passam a do-minar as sociedades de massas, passam a utilizar da relativização da verdade e da mentira, algo até então, adotado como repulsa ao modelo político e que passou a ser utilizado, em virtude de uma nova era que se instaurou.

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“A contemporaneidade é marcada por uma forma de mentira organizada, uma aliança entre os meios de comunicação e os regimes totalitários, onde toda a matriz da realidade pode ser falsifi cada através de estratégias midiáticas de manipulação em massa” (FEITOSA, 2017). Como resultado não há apenas a substituição da verdade pela mentira relativizada, mas a recusa em acreditar na verdade, nos fatos.

Os problemas da esfera pública continuam ainda bem presentes da vida política da contemporaneidade. Vivemos em uma sociedade em que cada vez mais ganha força uma visão atomística de individualidade, e onde o ser humano é cada vez mais vítima de mecanismos de poder que levam ao estado de apatia e desânimo. A televisão, o rádio, a imprensa digital, enfi m, todos os meios de comunicação se colocam nesse espaço público como médium entre o esclarecimento e ação do indivíduo, e são, nesse aspecto, fundamentais para a ética política erigida por Arendt (SILVA, 2017, p.131).

O pensamento pós-moderno busca uma estratégia específi ca para lidar com a condição da modernidade de constituir sociedades de massas, pessoas individuais, que são manipuladas dentro dos espaços coletivos. Com a pós-modernidade, o espaço de discussão passa a ser mais amplo, pois vivemos em uma época onde todos se sentem no direito de dizer alguma coisa, nas redes sociais, nos discursos políticos, embasados em dados fi ctícios ou não, mas que não são checados por quem os repassa.

Temos um aumento da pluralidade, mas ainda pautada nas consequências da moderni-dade em razão de outros instrumentos que são utilizados para a manipulação das informações e também, para o controle das grandes massas.

Quando há verdades em demasia o perigo não é mais apenas, como diz Arendt, a descrença generalizada na realidade, mas a sua contrapartida, a revalorização reativa, nostálgica e muitas vezes enceguecida dos fatos, como se eles existissem em algum lugar objetiva e efetivamente e pudessem funcionar como uma pedra de toque nas nossas falas. (FEITOSA, 2017).

Portanto, o espaço público defendido por Hannah Arendt em suas teorias sofreu modi-fi cações ao longo do tempo, sendo infl uenciado pela era da “pós-verdade” a partir do momento em que as sociedades não mais participavam do amplo espaço de discussão e começaram a se fechar em suas individualidades. Sendo que, principalmente a política usa como força esse enfraquecimento das relações sociais e de poder, se voltando para o uso das informações relati-vizadas e até mentirosas para convencer e modifi car a opinião pública.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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