O ESPAÇO TEATRAL, O CORPO E A MEMÓRIA

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    O ESPAO TEATRAL, O CORPO E A MEMRIATHE THEATRICAL SPACE, BODY AND MEMORY

    Evelyn Furquim Werneck Lima

    (Unirio)

    Solange Pimentel Caldeira

    (UFV)

    Resumo

    Partindo da fenomenologia, este artigo investiga as interfaces entre o espao teatral, o

    corpo e a memria tanto no que se refere ao teatro quanto ao circo, performance e

    dana. Com auxlio da fenomenologia do espao formulada por Merleau-Ponty, e com

    suporte nos conceitos de Patrice Pavis sobre o espao, identificamos neste estudo que a

    humanidade se encontra hoje em uma poca similar do Renascimento, pois o homem se

    coloca sob uma outra atitude diante do mundo, reconstruindo um novo olhar sobre o espao

    e sobre as relaes do indivduo com o corpo.

    Palavras-chave | espao teatral | fenomenologia do espao | memria

    Abstract

    Based on phenomenological processes, this article investigates the interfaces among the

    theatrical space, the body and the memory in what refers to the theater, to the circus, to

    performance and dance. With help of the phenomenology of perception formulated by

    Merleau-Ponty, and of Patrice Pavis's concepts on space, we identified in this study thathumanity lives today in a time similar to the one of Renaissance, because men have to have

    an unusual attitude before the world, rebuilding a new regard to look upon space and upon

    the individual's relationships with the body.

    Keywords | Theatrical space | phenomenology of perception | memory

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    O historiador Giulio Carlo Argan ressalta que a arte dramtica e contrastada de

    Michelangelo se distancia da serenidade da obra de Piero della Francesca. Acrescenta que,

    para Michelangelo, no existe um espao pr-estabelecido, estvel, pois suas figuras se

    contorcem e se debatem, se tensionam para buscar um espao. O platonismo de

    Michelangelo no f no cu das idias eternas, mas busca desesperada de qualidade ideal

    diante de dolorida experincia de vida (ARGAN, 1999: 313). Enquanto Leonardo da Vinci

    busca a imanncia absoluta, ou dissoluo do sujeito no objeto, Michelangelo orienta-se

    para uma transcendncia absoluta, para a dissoluo do objeto no sujeito, da natureza na

    infinitudeda alma humana (ARGAN, 1999: 315).

    Na Grcia, bero da cultura ocidental, a discusso sobre o corpo remetia s questes

    da dualidade corpo e alma: a alma e o corpo so partes distintas de uma s natureza

    humana. Cada uma dessas partes possui as suas excelncias1 (JAEGER, 1979: 496). Afilosofia socrtica compreendeu que a alma e o corpo esto unidos no homem. Embora

    Scrates no afirmasse que a alma fosse separvel do corpo, a alma teria o papel de

    fortalecer o corpo e o corpo de refletir sobre a sua prpria existncia. Scrates apresentava

    o corpo como um obstculo ao conhecimento, por ser local de afeces e doenas, paixes

    e iluses, de tudo que nos suscita desequilbrio e conflito; mas acreditava que a filosofia

    poderia purific-lo.

    Aceitando os conceitos de Scrates, Plato sustenta que o corpo o crcere da alma.

    Com o Mito da Caverna1 o filsofo estabelece que a caverna seria o mundo sensvel,

    interior, que existe dentro de ns; j o exterior da caverna significa o mundo real, o mundo

    das idias. O homem feito de corpo e alma pertence simultaneamente a esses dois mundos,

    mas a alma, escravizada no corpo, no possuiria mais a dimenso divina anterior, quando

    em sua primeira morada no meio das essncias puras (PLATO, 1965: 253 a 256). Esta

    unio entre alma e corpo, foi identificada por Plato como sendo o ser vivo e mortal,

    sustentando que a alma s se separa do corpo depois da sua morte, quando ento retorna

    ao mundo das essncias. Discpulo de Plato, Aristteles descarta qualquer dualismo

    metafsico da alma e do corpo, pois afirma que a alma uma forma substancial de todo

    organismo vivo e inseparvel do corpo (JAEGER, 1979: 23). Trazendo a discusso para

    tempos mais recentes, o olhar de Nietzsche volta-se para o corpo e seus excessos

    multiformes, prprios da existncia humana. A filosofia nietzschiana se ope ao exerccio

    da morte pregado por Plato, para propor o exerccio da vida.

    Um dos mais conceituados filsofos no sculo XX, Maurice Merleau-Ponty, dedica uma

    grande parte do seu livro Fenomenologia da Percepo ao esforo de compreender

    fenomenologicamente o corpo (MERLEAU-PONTY, 1994: 1a parte). O filsofo inicia suas

    conceituaes considerando que o corpo nos permite centrar nossa existncia, mas tambm

    nos impede de centr-la em sua totalidade. Nesta viso dialtica, o corpo , ao mesmo

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    tempo o centro e o no-centro da existncia humana, ponto de chegada e de sada.

    Merleau-Ponty refere-se ao corpo como um objeto que no me deixa (MERLEAU-PONTY,

    1994: 133). Este objeto seria capaz de observar, inspecionar e manejar objetos exteriores a

    ele, mas seria preciso dispor de um segundo corpo para que pudssemos observar o

    nosso prprio corpo: Ele tenta tocar-se tocando, ele esboa um tipo de reflexo, e

    bastaria isso para distingui-lo dos objetos (MERLEAU-PONTY, 1994: 137). Considerando a

    espacialidade do corpo, Merleau-Ponty faz vrias afirmaes: o seu contorno uma

    fronteira que as relaes de espao ordinrias no transpem; o corpo est no mundo, e

    suas partes envolvidas umas nas outras. Quando o corpo est em movimento, v-se melhor

    como ele habita o espao e o tempo, porque o movimento no se submete a eles; o corpo

    no est no espao nem tampouco est no tempo; ele habita o espao e o tempo.

    (MERLEAU-PONTY, 1994: 133).

    Oskar Schlemmer - cengrafo e professor da Bauhaus - acredita que do ponto de vista

    do material cnico, o ator tem a vantagem do imediato e da independncia. Ele o seu

    prprio material com seu corpo, sua voz, seu gesto e seu movimento (Schlemmer apud

    Lima, 1999: 53). O cengrafo defende uma cena onde o homem transformado em funo

    do espao abstrato. As leis do espao cbico so a reserva invisvel das linhas de relaes

    planialtimtricas e estereomtricas. A essa matemtica corresponde aquela inerente ao

    corpo humano. Ele cria o equilbrio pelos movimentos que, em sua essncia, so mecnicos

    e condicionados pela inteligncia. a geometria dos exerccios do corpo, da rtmica, da

    ginstica (LIMA, 1999: 54).

    Numa viso mais contempornea, Jean-Franois Lyotard afirma que o corpo pode ser

    considerado como o hardware do complexo dispositivo tcnico que o pensamento

    (LYOTARD, 1989: 21). Segundo as idias de Lyotard, o software humano, no caso da

    linguagem, no pode existir sem que haja um hardware, ou seja, o corpo. Para ele, seria

    conveniente tomar o corpo como exemplo na produo e programao das inteligncias

    artificiais, j que o hard/soft humano muito complexo e heterogneo. O pensamento

    humano no raciocina em termos da lgica binria, e sim por configuraes intuitivas e

    hipotticas; aceitando dados imprecisos e ambguos, e por isso talvez o fracasso de

    algumas mquinas criadas para reproduzi-lo: elas funcionam em lgica binria, por

    unidades de informao (os bits), funcionam segundo um cdigo ou uma linguagem pr-

    estabelecidos. Para Lyotard:

    O que torna inseparveis o pensamento e o corpo, muito simplesmente o

    fato deste ltimo ser o indispensvel hardware do primeiro; a sua condio material

    de existncia que cada um deles anlogo ao outro no seu relacionamento com o

    respectivo ambiente (sensvel, simblico), sendo o prprio relacionamento em si do

    tipo analgico nos dois casos (LYOTARD, 1989: 24).

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    O Espao Teatral e o Corpo

    O teatro no se prope a ocupar apenas o espao fsico, real, cotidiano, concreto, mas

    se prope a extrapol-lo e, mesmo fazendo uso do espao real, tem a inteno de criar um

    espao onde simbolismos possam ser revelados. Os diretores, quando criam os espaos da

    cena, produzem sentidos, construdos a partir de uma experincia e de uma determinada

    tica Os sentidos que os artistas criam por meio do espao em suas obras se reportam s

    experincias espaciais j vividas ou almejadas2. Estas experincias so re-elaboradas,

    constituindo um ba de memrias e desejos do artista, como investigou Gaston Bachelard

    (1994).

    O teatro, a dana, o cinema e o circo, entre outras artes, desenvolvem-se no tempo e

    no espao. O cengrafo Adolphe Appia, em texto de 1920, defendia que do ponto de vista

    esttico, temos o movimento corporal. Nele realizamos e simbolizamos o movimentocsmico. Todo outro movimento mecnico e no pertence vida esttica (APPIA, 1958:

    6). Para Appia, o palco cnico no deveria conter elementos que dispersassem a ateno da

    platia da figura do ator, cujo corpo no considerado apenas um reflexo de realidade, mas

    sim a prpria realidade (LIMA, 1999: 49).

    Para Patrice Pavis, a aliana de um tempo e de um espao constitui o que Mikail

    Bakthin, na literatura, chama de cronotopo, que vem a ser a unidade na quais os ndices

    espaciais e temporais formam um todo inteligvel e concreto. Aplicados ao teatro, a ao e o

    corpo do ator se concebem como o amalgama de um espao e de uma temporalidade: o

    corpo no est apenas no espao, ele feito de espao e feito de tempo.

    Este espao-tempo tanto concreto (espao teatral e tempo da representao) como

    abstrato (lugar funcional e temporalidade imaginria). A ao que da resulta ora fsica,

    ora imaginria. O espao-tempo-ao percebido como um mundo concreto e como um

    mundo possvel imaginrio. Freud considera que o inconsciente coordena espao, tempo e

    corpo. Para ele, no inconsciente, o tempo se transforma em espao e o espao em unidade

    corporal. Durante essa transformao, o corpo funciona como esquema de representao e

    forma a mediao entre tempo e espao.

    A experincia espacial, tanto no teatro como fora dele, dispe das duas possibilidades

    seguintes, entre as quais todas as teorias do espao podem oscilar:

    1) Concebe-se o espao como um espao vazio que se deve preencher.

    2) Considera-se o espao como invisvel, ilimitado e ligado a seus utilizadores, a partir

    de coordenadas, de seus deslocamentos, de sua trajetria, como uma substancia no a ser

    preenchida, mas a ser estendida.

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    A essas duas concepes antitticas do espao correspondem duas maneiras

    diferentes de descrev-lo: o espao objetivo externo e o espao gestual. Pavis considera o

    espao objetivo externo como o espao visvel, frontal muitas vezes, preenchvel e

    descritivo, onde ele distingue duas categorias:

    o lugar teatral, ou seja, o prdio e sua arquitetura, sua inscrio na cidade,mas tambm o local previsto para a representao (PAVIS, 2003:141), ou ainda,

    o espao cnico: lugar no qual evoluem os atores e o pessoal tcnico: area de representao propriamente dita e seus prolongamentos para coxia, platia

    e todo o prdio teatral.

    As formas de lugar teatral foram se modificando de acordo com cada cultura e cada

    temporalidade. Na linguagem dos espetculos, as relaes espaciais criadas surgiram a

    partir da organizao do espao cnico, mais especificamente, do desenvolvimento da

    arquitetura da casa de espetculos. Na Grcia clssica, as artes cnicas demandaram o

    anfiteatro grego. No palco principal apenas os protagonistas ocupavam esta faixa entre o

    palco e o pblico e tinham como funo representar os comentrios e as reaes do povo

    perante os nobres e os deuses. Havia, assim, uma grande interatividade entre os artistas e

    o pblico. Durante a Idade Mdia, o teatro profano era perseguido pelo Cristianismo,

    havendo permisso da Igreja apenas para realizar os Mistrios no adro ou no interior do

    edifcio religioso. Ainda no medievo, os atores ocuparam as praas, sobre tablados, ou

    palcos em carroas, no possuindo um espao especfico para apresentar seus espetculos.

    Peter Brook lembra que o teatro elizabetano era um bulioso mercado [...] o balco

    era aquele nvel superior [...] e a galeria superior era uma lembrana de que a ordem do

    mundo mantida por deuses, deusas, reis e rainhas (BROOK, 2000: 24). Entretanto,

    naquele espao teatral todas as classes sociais estavam representadas e os espectadores

    que ficavam em p (groundlings)podiam at tocar fisicamente os atores.

    Desde a proposta do Teatro Olmpico de Vicenza (sc. XVI), onde o corpo do ator

    ficava prximo platia at a adoo do longnquo e frontal palco italiano, cujo pice o LaScala de Milo, pouco a pouco o corpo dos atores se distanciava para criar espaos de

    iluso. (LIMA & CARDOSO, 2006). O palco italiano foi planejado exatamente para propiciar

    um ambiente de iluso e magia, com a caixa cnica separada da platia.

    Em obra de referncia sobre a arquitetura do espetculo no ocidente afirmamos que o

    palco italiano, adotado em todo o mundo ocidental devido exportao do gosto pelo

    espetculo lrico, foi o modelo que se reproduziu por mais de 150 anos, resultando num

    fenmeno de longa durao na histria do espetculo3. Visando a ampliar as dimenses

    reais do palco, desde o Renascimento, os cengrafos criaram vrios recursos usando

    grandes cenrios, pintados em perspectiva, com a finalidade de criar um efeito de

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    profundidade ilusria. A perspectiva introduzida por Brunelleschi transformou o mundo, e as

    dissecaes de cadveres permitiram traduzir nas tintas dos afrescos e telas um corpo

    humano cada vez mais bem representado, como se estivesse numa caixa cnica. O teatro

    das praas pblicas passa a ser abrigado no palco da iluso. Entretanto, este espao

    perspectivado que distanciava o corpo do ator da audincia transformar-se-ia pelas

    vanguardas do sculo XX.

    As revolues cnicas do sculo XX incluem Gordon Craig, cengrafo e arquiteto que

    estabeleceu nos anos 1920, um quinto palco para substituir os quatro tipos de espaos

    teatrais (i) o anfiteatro grego, (ii) o espao medieval, (iii) os tablados da Commedia de

    lArtee (iv) o palco italiano. Esta proposta do quinto palco representava a substituio de

    um palco esttico por um palco cintico, e para cada tipo de encenao um tipo especial de

    lugar cnico. A iluminao recebeu um tratamento indito at ento. Craig fez projetar a luz

    verticalmente sobre o palco e frontalmente por meio de projetores colocados no fundo da

    sala. A luz dos bastidores e da ribalta foi abolida, numa proposta inovadora e vanguardista

    (ROUBINE, 1994). Neste sentido, tanto o teatro quanto a dana teriam como objetivo

    absorver estas novas tecnologias para transcend-las, problematizando assim as

    tecnologias de comunicao na cultura contempornea. As definies das artes cnicas se

    alteram conforme o contexto histrico que as envolve.

    Com as performances e os happenings, nos anos 1970, o teatro e a dana utilizaram

    espaos no tradicionais e romperam limites em concordncia com uma poca, que

    aproximava arte e vida e que questionava as relaes de poder e o lugar das coisas.

    Brigava-se com o autoritarismo, invadindo os espaos formais, como os prprios museus,

    praas pblicas.

    Mas Pavis tambm identifica o espao gestual, que interessa a este ensaio, como o

    espao criado pela presena, posio cnica e os deslocamentos dos atores: espao emitido

    e traado pelo ator, induzido por sua corporeidade, espao evolutivo suscetvel de se

    estender ou se retrair. Veremos as seguintes manifestaes desse espao gestual (PAVIS,

    2003: 142). A experincia cinestsica do ator sensvel em sua percepo do movimento,do esquema temporal, do eixo gravitacional, do tempo-ritmo. Dados que s pertencem ao

    ator, mas que ele transmite ao espectador. A subpartitura na qual o ator se apia fornece

    um percurso e um trajeto que se inscrevem no espao tanto quanto o espao se inscreve

    neles. O espao centrfugo do ator se constitui do corpo para o mundo externo. O corpo

    encontra-se prolongado pela dinmica do movimento. O corpo do ator em situao de

    representao um corpo que tende a expressar o mais fortemente possvel suas atitudes,

    escolhas, sua presena. O espao ergonmico do ator seu ambiente de trabalho e de vida

    compreende a dimenso proxmica (relao entre as pessoas), hptica (maneira de tocaros outros e a si mesmos) e cinestsica (movimento de seu prprio corpo).

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    Para Bertold Brecht, a dico e o gesto precisam ser cuidadosamente selecionados,

    e, alm disso, devem ter amplitude. Visto que o interesse do espectador canalizado

    exclusivamente para o comportamento das personagens, o gesto destas tem de ser

    significativo (BRECHT, 2005: 155-158). J Jerzy Grotowski estabelece uma relao

    diferente ao propor que o teatro o encontro do ator com o espectador, justificando a

    invaso do ator para dentro do espao reservado platia, fazendo do pblico uma pea

    chave para os dramas encenados.

    Antes de montar sua companhia, tambm o diretor teatral Peter Brook realizou

    investigaes sob o ponto de vista do corpo. Os atores exploraram em cada uma das

    diferentes culturas os gestos mais ordinrios (como apertar as mos ou colocar a mo no

    corao); trocavam movimentos de dana de vrias tradies; exprimiam-se com palavras

    e slabas das lnguas de cada um; deixavam que gritos se desenvolvessem gradualmente

    em padres rtmicos; usavam varas de bambu para fazer geometrias silenciosas no ar entre

    outros exerccios. A explorao do corpo foi seguida pela explorao do espao. A

    ferramenta utilizada para a promoo desses encontros era sempre a improvisao, e

    ocorria em lugares como albergues; nos arredores de Paris e em enfermarias de hospitais.

    Aps viajar pela frica, sia e Amrica do Norte, Brook concluiu que existem numerosos

    fatores que ajudam ou atrapalham um espetculo. E que aps tantas investigaes

    descobriu que

    a diferena entre pblicos grandes e pequenos, sobre as distncias, a

    organizao dos assentos, sobre o que funciona melhor em interiores e ao ar livre,

    o que muda na experincia se o ator se coloca mais alto que o espectador e vice-

    versa, sobre as partes do corpo, o lugar da msica, o peso de uma palavra, de uma

    slaba, de uma mo ou de um p2(BROOK, 2000: 245).

    Muito se discutiu sobre a questo da interatividade entre atores e espectadores, que

    era diminuta no teatro italiana, mas bem mais adequada quando o pblico se reunia para

    assistir ao espetculo no entorno de uma arena, onde todos, democraticamente tinham

    poltronas no distribudas segundo uma hierarquia de classes. Nos espetculos teatrais

    apresentados em palcos em arena corpo do espectador participa da pea e dos movimentos

    do atores. Estes aspectos foram discutidos nos anos 1940 por tienne Souriau (1950), que

    escreveu o conhecido artigo O cubo e a esfera e por Andre Barsaqc (1950), que realizou

    diferentes experincias com Jacques Copeau na Frana dos anos 1930 e 19404.

    O corpo tem uma orientao espacial tridimensional, ou seja, tem acesso altura,

    largura e profundidade do espao que o circunda. Laban utiliza o conceito de kinesfera, que

    significa a rea espacial em volta do corpo, delimitada pelos movimentos de braos e

    pernas em extenso mxima e cujo centro o centro do corpo. Todos os atores possuem

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    sua esfera pessoal de movimento e a carregam atravs do espao global. O espao global

    ou comum pode ser definido como o espao que fica alm do corpo em extenso mxima.

    Este tambm o princpio utilizado pelo diretor Amir Haddad quando apresenta o grupo Ta

    na Ruanos espaos pblicos.

    No que tange preparao do corpo do ator, Sonia Azevedo, busca encontrar os

    elementos bsicos de um trabalho corporal que ajudem o ator a desempenhar cada vez

    melhor o seu papel. Preparando seu corpo, ampliando seus horizontes perceptivos e

    aprimorando sua sensibilidade, o ator encontra uma intimidade cada vez maior do artista

    com ele prprio (AZEVEDO, 1998: XX). Esta autora prope que o trabalho corporal deva ser

    pensado a partir da desconstruo da memria corporal, arraigada em tenses acumuladas

    ao longo dos anos. Assim a postura corporal no consciente e movimentos recorrentes

    daquele individuo devem ser abandonados para possibilitar a pesquisa objetivando a

    metamorfose. Deve-se ento buscar uma reeducao corporal, que passa, em seu inicio

    pela deseducao, ou seja, pela constatao de que uma serie enorme de marcas

    arraigadas que tero de ser trocadas por novas atitudes corporais (AZEVEDO, 1998: 138-

    140).

    A ampliao dos limites: o corpo como produo de cultura

    Surgem nos anos 1960, inicialmente no meio underground, novos conceitos, como

    performance, improvisao, happenings. O que acontecia era uma ampliao dos limites,

    criando-se novas estruturas e atitudes. Nas interfaces, estabeleciam-se alguns novos

    princpios como: repeties, estruturas no-lineares, acontecimentos simultneos e a

    mistura de linguagens: teatro, dana, poesia, msica, artes plsticas. Herculano Lopes

    ressalta preocupaes como:

    A influncia do acaso, a dissoluo dos gneros estanques e a integrao

    artista/obra/pblico/forma, faz surgir novas perspectivas artsticas. Nas artes

    plsticas contemporneas, uma instalao considerada performtica no sentido de

    que o gesto artstico s se consubstancia pela experincia de uma pessoa que

    adentra o espao e o traz vida. Torna-o, portanto, expressivo com sua presena

    na obra, com sua vivncia da obra (LOPES, 2003: 6).

    Neste contexto aconteceram diversos eventos, nos Estados Unidos, unindo o msico

    John Cage e o coregrafo Merce Cunningham. Estes espetculos criados pelos dois notveis

    inspiraram posteriormente diversos artistas de outras reas. Sally Banes - identificando

    alguns desses artistas-, relata que:

    Os happenings de Allan Kaprov abriram precedentes para rupturas entre a

    arte e vida; os de Robert Whitman combinaram habilmente multimedia com

    manipulao de objetos conseguindo efeitos extraordinrios. Jim Dine usou objetos

    no lugar de danarinos, construindo colagens de texturas e imagens. Claes

    Oldenburg colocou objetos em movimento, transformando a escala e o material

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    com resultados cmicos, enfatizando detalhes do trabalho, ao invs da composio

    total, usando uma estrutura mais associativa do que narrativa (BANES, 1980: 54).

    Na vida cotidiana, as prticas da expresso corporal, colocadas para restituir ao corpo

    seu poder imaginrio, demonstram o quanto essa obsesso por uma redescoberta da

    primitividade concerne a mltiplas tcnicas. Tal concluso foi contrria postulada por

    Michel Foucault em sua obra Vigiar e Punir, na qual ele afirmava a passividade e disciplina

    do homem em relao aos produtos impostos. Para Michel de Certeau, os consumidores

    (pessoas ordinrias) reinventam a cada dia maneiras prprias de se apropriarem desses

    produtos, a partir de astcias que compem uma rede de antidisciplinar5.

    Certeau acredita que nas prticas corporais tticas silenciosas e sutis se insinuam e

    prope algumas maneiras de pensar as prticas cotidianas dos consumidores supondo no

    ponto de partida que elas sejam do tipo ttico. A idia no criar um modelo geral (molde)

    para derramar nele o conjunto das prticas, ao contrrio, especificar esquemas

    operacionais e procurar se existem entre eles categorias comuns e ver se, com tais

    categorias, se pode explicar o conjunto das prticas corporais (CERTEAU, 1994: 21).

    O corpo pintado, o corpo suporte de expresso artstica parece, segundo a histria da

    arte, ter como origem as maneiras pelas quais os homens das sociedades primitivas

    utilizavam seu prprio corpo para nele escrever sinais. Isso permite afirmar que certas

    performances contemporneas retomam igualmente as tradies primitivas (JEUDY, 2002:

    92). Mesmo reconhecendo que atualmente muitos performers tm utilizado das maravilhasda tecnologia, usando vdeos, computadores, sintetizadores, existe tambm uma crescente

    fascinao pelos movimentos bsicos como os movimentos animais e infantis, gerando uma

    curiosa dialtica entre complexidade e simplicidade, natureza e artificialidade. Para

    complementar essa idia, retomamos algumas consideraes feitas por Marcel Mauss

    (1974) e Clifford Geertz (1989).

    Para Mauss, o corpo o primeiro e mais natural instrumento do homem [...] o

    primeiro e mais natural objeto tcnico (MAUSS, 1974: 372). Este antroplogo parte do

    pressuposto que o homem no um ser dissocivel, pois, no fundo, corpo, alma,

    sociedade, tudo se mistura (MAUSS, 1974: 198), sendo que os movimentos do corpo

    podem ser vistos como tradutores de elementos de uma cultura ou sociedade. Cada corpo

    expressa diferentemente a histria de um povo e o uso que fazem de seus corpos. Ou seja,

    o corpo um objeto tcnico, um objeto cultural, que evolui e se insere na cultura. Geertz

    tambm parte do mesmo pressuposto de que impossvel pensar a natureza humana como

    exclusivamente biolgica e desvinculada da cultura, sendo que o homem se constitui nesta

    relao interativa entre componentes biolgicos e socioculturais. Para ele, a prpria

    cultura que d o carter de humanidade a esta espcie animal (GEERTZ, 1989).

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    10Volume 02- Nmero 01 janeiro-junho/2010

    A memria e a tcnica

    Mauss devolve ao corpo sua importncia como transmissor de tcnica e tradio. A

    tcnica corporal consiste nas maneiras como os homens e as sociedades se serviram de

    seus corpos, podendo ser transmitida atravs de geraes, constituindo ento uma

    tradio: Quando uma gerao passa outra gerao a cincia de seus gestos e de seus

    atos manuais, h tanta autoridade e tradio social como quando a transmisso se faz pela

    linguagem (OLIVEIRA, 1979: 199). O corpo e os movimentos humanos so expresses

    simblicas de uma sociedade, j que podem ser passados s geraes futuras por meio de

    smbolos. A tcnica que um corpo comporta pode ser transmitida de forma impressa ou

    oral, conceituada, descrita, relatada; mas pode ainda ser transmitida por atitudes corporais

    e pelo prprio movimento: Quem transmite acredita e pratica aquele gesto. Quem recebe a

    transmisso aceita, aprende e passa a imitar aquele movimento. Enfim, um gesto eficaz,

    ou seja, tcnica. Torna-se o corpo sede de signos onde esto inscritos todas as regras,

    todas as normas e todos os valores de uma sociedade especfica (JEUDY, 2002: 39).

    Em muitas cidades do mundo, mulheres e homens adotam nas ruas e praas pblicas

    a imobilidade de uma esttua. Vestem-se sempre ou quase sempre, inteiramente de

    branco, e suas cabeas e braos so recobertos igualmente por uma pomada cuja extrema

    palidez faz lembrar a presena inesperada de um espectro. Eles no se mexem. Espera-se

    s vezes que faam um gesto para revelar sua humanidade viva; treinam com tal

    assiduidade para jamais deixar sua posio imvel que no temos, seno uma nfima

    chance, aps um longo momento de pacincia, de ver suas plpebras piscarem (JEUDY,

    2002: 11). Ocorre tambm em lugares pblicos, a apresentao de mmicos acompanhados

    de msicas lnguidas que lembram o espao sideral. Os corpos se estendem com uma tal

    lentido que desejariam nos sugerir que j chegaram em um outro mundo, onde as leis da

    gravidade no so mais as mesmas. Mas a impavidez do espectro apresenta uma simulao

    total do corpo-esttua. O movimento da virtualizao revela o quanto a idia que temos

    acerca da realidade do nosso prprio corpo no seno fruto de um deslocamento, de um

    jogo de oposies que nos coloca sempre numa posio esttica (JEUDY, 2002: 161).

    Toda arte, techn, exprime um processo de virtualizao e de atualizao. Toda

    tcnica a virtualizao de uma ao e, ao mesmo tempo, atualizao de uma questo. A

    arte/tcnica, como atividade potica, um dom original do homem. Como afirma Giorgio

    Agamben, "o homem tem sobre terra um estatuto potico porque a poiesisque estrutura

    o espao original do seu mundo (AGAMBEN, 1999: 143). A arte assim constitutiva do

    homem. Ela no nem um objeto privilegiado, nem valor cultural, nem mesmo um objeto

    para espectadores, afirma Agamben. Antes, ela uma "dimenso essencial, porque ela faz

    o homem perceber sua posio original na histria e no tempo" (AGAMBEN, 1999: 156).

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    11Volume 02- Nmero 01 janeiro-junho/2010

    No espao teatral do circo e da dana, o corpo forte construo cultural.

    Enquanto os mgicos estudam seus nmeros, numa rigorosa rotina corporal e mental,

    repetitiva, ao longo de anos, possibilitando a rapidez e a perfeio dos gestos, para iludir a

    platia, os acrobatas calculam cada gesto, cada salto, assim como o tempo exato de cada

    movimento. A memria corporal se exercita dependendo no s do talento e da criatividade

    dos artistas, mas tambm do tempo dedicado aos ensaios. As habilidades se transmitem

    por meio de memrias gestuais, sonoras e rtmicas. O fascnio despertado pelos acrobatas

    leva a platia ao xtase. Desafiando a gravidade e o perigo, os acrobatas apareciam como

    virtuoses da agilidade, destreza e desprezo do peso do corpo e da ameaa da queda.

    Alheios segurana vivida pelos espectadores, estes artistas realizam o sonho mgico do

    vo, percorrendo o espao cnico mobilidade e leveza, entre rpidas paradas pelo trapzio.

    O equilbrio do corpo assume uma configurao especial: o frgil equilbrio doinstvel a se movimentar incessantemente. Corpos se cruzando no ar, as mos do

    trapezista, ao alcanar as de seu companheiro de vo realizam um milagre a cada

    espetculo. Os acrobatas, ao desafiar os ares, superam a cada instante, a condio humana

    de errar. O carter sobre-humano reside justamente em sua humanidade. Seu talento

    remete a qualidades fsicas nas quais a corporalidade o ponto a partir do qual ele se

    supera a si mesmo (DUARTE, 1995: 191). O palco, protegido por uma cortina que se abre

    num passe de mgica, traz a noo de mundo reflexo da sociedade que o inspira (DUARTE,

    1995: 182). Uma proximidade acentuada com a platia poderia inibir a noo de iluso.

    Alheios uns aos outros, os espectadores deixam-se embalar nesse sonho em que o real

    perseguido e representado.

    A disposio das cadeiras e arquibancadas circenses propicia relaes bem diversas,

    dos espectadores entre si e entre estes e o prprio palco, uma vez que as pessoas se

    dispem circularmente. Uma das relaes platia /palco mais diversificadas a do circo,

    pois, mesmo se as luzes se concentram no palco e nos nmeros apresentados, os vultos dos

    espectadores, assentados uns em frente aos outros, sempre fazem parte do campo de

    viso, seja onde for que estejam localizados. Ao contrrio do teatro, a nica realidade docirco a iluso.

    E se os equilibristas parecem divinamente humanos em suas ousadias areas, os

    contorcionistas aparecem nos limites de sua humanidade em direo vida animal. Em

    suas mutaes, aproximam-se explicitamente da animalidade, transformando-se em seres

    animais. E no movimento corporal que se encontra todo o sentido da apresentao. Os

    limites do corpo existem para serem superados pela arte. medida que se desloca, esse

    corpo participa, em suas grotescas transformaes, de um conceito que engloba criatividade

    e fluidez (DUARTE, 1995: 197).

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    12Volume 02- Nmero 01 janeiro-junho/2010

    J a histria da dana do sculo XX foi fortemente marcada por rupturas e

    questionamentos entre as fronteiras existentes entre as vrias artes; a dana pde voltar-

    se mais pesquisa e experimentao, tanto da forma como da linguagem propriamente

    dita. H o fortalecimento das expresses individuais dos coregrafos, a superabundncia do

    ego, tornando o discurso da dana fragmentado, indeterminado e ricamente heterogneo.

    Uma mudana fundamental desta poca foi quanto importncia do movimento natural,

    cotidiano e ordinrio que podia ser transposto para a linguagem da dana. A dana exercita

    sua prpria desmistificao partindo de motivos e de acasos da prpria vida. O ldico e o

    relaxamento nas estruturas do tempo e da msica, construindo assim um novo espao para

    as mais diversas experimentaes.

    Nas formas cristalizadas de dana, como o ballet clssico e a dana moderna de

    Martha Graham, h um domnio de uma linguagem, tornando-se uma tcnica totalitria,

    constituindo uma forma fechada. Entretanto, na dana criada a partir dos anos 1970,

    iniciada com Merce Cunningham e com o grupo da Judson Church (BANES, 1980: 78), a

    dana apropria-se da forma catica, anrquica, do acaso e do jogo, prprios da ps-

    modernidade. A rigor, a dana ps-moderna no rompe fundamentalmente com a tradio

    clssica ou com a dana moderna; ela parte dos mesmos referenciais, nutre-se deles para

    redimension-los, tencionando, provocando. tambm nesse momento que nasce o

    tanztheaterde Pina Bausch, na Alemanha, e o Butoh, de Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno, no

    Japo. Hbridos de dana e teatro. Estas formas novas de dana tornam mais complexa a

    relao tempo, espao e corpo. Isso porque o tempo no pode ser aquele anterior, dos

    grandes ballets.O corpo tcnico do danarino j no est sozinho, une-se a projees, a

    monitores de TV, o espao se amplia.

    Algumas consideraes

    As artes cnicas nos dias atuais constituem expresses simblicas, reveladoras de

    anseios, medos, buscas e evoluo inerentes condio humana. Diretores e coregrafos

    exploram e instigam questes existenciais. Promovem o resgate dos registros de

    experincias vividas, de imagens, sons, percepes, odores, bem como uma oportunidade

    para novas experincias. Essas expresses exigem do corpo do ator e do danarino no s

    experincia, mas um mergulho profundo nas investigaes. um momento de

    questionamentos e registros que parecem revolucionar um antigo status quo.

    No caso da dana, recriar a experincia muitas vezes extenuante, mas necessrio:

    depois dela o registro da situao vivida se inscreve em cada clula, em cada msculo do

    corpo, numa memria celular corporal. Com o auxlio tcnico do coregrafo, os movimentos

    corporais surgidos no laboratrio so retomados e realizados de forma consciente,

    estabelecendo uma seqncia coreogrfica. A dana-teatro surge, nessa verdade vivida e

    registrada na carne, como uma escrita cnica corprea que passa a ser o texto

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    dramatrgico. Nem todos os danarinos conseguem se expor visceralmente e produzir arte

    com esta exposio, nem todos os coregrafos conseguem ajudar o danarino a realizar

    este processo; este o diferencial que distingue um danarino profissional de um cidado

    cotidiano que dana (CALDEIRA, 2009).

    Na contemporaneidade ocorre a ruptura com as meta-narrativas. O rompimento com a

    forma de ler e explicar o mundo referenciado no conceito de totalidade. O mundo deixa de

    ser o universal metafsico da unidade, constncia, regularidade, para tornar-se a

    diversidade, a, a descontinuidade fragmentria de Foucault, o efmero. Uma vez que deixa

    de ser a totalidade, a razo global, o contexto, tem lugar o intertexto, o entrecruzamento

    de vrios mundos. A idia de um algum que pensa o mundo como totalidade e nele

    intervm em termos de totalidade perde sentido, morrendo o sujeito. Junto com o sujeito,

    morre o projeto, projeto da revoluo, projeto da histria. E nessa medida da morte do

    sujeito e do seu projeto, desaparece o mundo como objeto do sujeito. Morre a relao

    sujeito-objeto. Morre a histria linear e seqencial, nascem novas relaes fragmentadas.

    A forma de representao de mundo referenciada em princpios e fundaes se

    desvanece. No h mais fundamentos, razes fincadas, lgicas totalizantes. Some o padro,

    fica o mltiplo. a linguagem que ganha um novo sentido. A grande caracterstica do ps-

    dramtico exatamente a maneira como se passa a entender a leitura. Toda forma de

    expresso e organizao de mundo texto. Todo meio e modo de representao

    linguagem. Uma paisagem, uma pintura, um espao vivido, um movimento, so texto e

    intertexto, formas de linguagem. Tudo libera a linguagem do horizonte estrito da razo e a

    aproxima do smbolo e do semiolgico.

    Este incio do sculo XXI um momento de profundas transformaes culturais. A

    cultura se encontra em processo de desconstruo e o tema o homem e suas

    representaes. Da a sensao de se estar num momento similar ao perodo humanista da

    poca do Renascimento. Viveu-se uma ruptura na forma do olhar, houve a necessidade da

    humanidade colocar-se sob uma outra atitude diante do mundo, rel-lo por completo,

    constru-lo sob uma forma distinta da anterior.

    Referncias

    AGAMBEN, Giorgio. The end of the poem: studies in poetics. Translated by Daniel Heller-Roazen. Stanford, Calif.: Stanford University Press, 1999.

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    ARGAN, Giulio Carlo. Clssico Anticlssico. O Renascimento de Brunelleschi a Bruegel. Trad.Lorenzo Mammi. So Paulo: Companhia das Letras, 1999.

    AZEVEDO, Snia Machado de. O papel do corpo no corpo do ator. So Paulo: Perspectiva,1998.

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    14Volume 02- Nmero 01 janeiro-junho/2010

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    BANES,Sally. Terpsichore in sneakers. Boston: Hougton Mifflin Company, 1980.

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    CALDEIRA, Solange. O Lamento da Imperatriz. A linguagem em trnsito e o espao urbanode Pina Bausch. So Paulo: Annablume, 2009.

    CERTEAU, Michel de. A Inveno do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim FerreiraAlves. Petrpolis, RJ: Vozes, 1994. (1 edio francesa 1980).

    DUARTE, Regina Horta. Noites Circenses- espetculos de circo e teatro em Minas Gerais nosculo XIX. 1. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995.

    GEERTZ, Clifford.A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.

    JAEGER, Werner. Paidia.So Paulo: Martins Fontes, 1979.

    JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como obra de arte. Rio de Janeiro: Estao Liberdade, 2002.LIMA, Evelyn Furquim Werneck.Arquitetura do Espetculo. Teatros e Cinemas na formaoda Praa Tiradentes e Cinelndia. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2000.

    _________________________. Espao teatral e performatividade. Estratgias e tticas nacena moderna e contempornea, publicado na Urdimento n.11, Florianpolis:CEART/UDESC, dez-2008: 33-49.

    _________________________. Concepes espaciais. O teatro e a Bauhaus. OPercevejo- Revista de teatro, crtica e esttica. n. 7, 1999: 44-60.

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    5-16).LYOTARD, Jean-Franois. O inumano: consideraes sobre o tempo. Lisboa: EditorialEstampa, 1989.

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    OLIVEIRA, Roberto C. (Org.).Marcel Mauss: antropologia. So Paulo: tica, 1979.

    PAVIS, Patrice. A anlise dos espetculos. Trad. Sergio Slvia Coelho. So Paulo:Perspectiva, 2003.

    ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenao Teatral, 1880-1980. Trad. YanMichalski.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1998.

    PLATO. Dilogos - A Repblica.Rio de Janeiro: Edies de Ouro, liv. VII, 1965: 253-256.

    Notas

    1As virtudes morais constituem as excelncias da alma, no mesmo sentido em que a sade, a fora ea beleza so as virtudes do corpo. As excelncias fsicas e as virtudes espirituais no so mais do que

    a simetria das partes. Cf. Werner Jaeger. Paidia.So Paulo: Martins Fontes, 1979: 496.

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    2Se nossas casas tinham escadas, sto, poro, se s andamos de nibus ou se j andamos de tremou de barco, se mudamos muito de cidade, enfim, como foram nossos caminhos fsicos, sensoriais,psicolgicos, e quais caminhos queremos percorrer no futuro. Cf. Gaston Bachelard. A potica doespao.SP: Martins Fontes, 1994.

    3"At a dcada de 1950, apesar de algumas tendncias estticas terem se alterado, permaneceu naarquitetura a ordem italiana. Este tipo de organizao interna do teatro valorizou a cenografia,separando a sala de palco, em benefcio do teatro de iluso baseado na decorao trompe l'oeil. Sob ainfluncia de gneros dramticos e lricos, o teatro italiano inventou tcnicas cenogrficas que seinseriram numa arquitetura teatral especfica". Cf. Lima, Evelyn F.W. Arquitetura do Espetculo.Teatros e Cinemas na formao da Praa Tiradentes e Cinelndia. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ,2000: 316.

    4 Para investigar melhor as inovaes no campo do espao teatral, consultar Architecture etDramaturgie. Paris. Flammarion, 1950, e todas as conferncias e debates do Colquio de mesmonome, realizado em Paris em 1948.

    5Discuti recentemente este tema no artigo Espao teatral e performatividade. Estratgias e tticas na

    cena moderna e contempornea, publicado na Urdimento, Florianpolis: CEART/UDESC, dez-2008:33-49.

    EVELYN FURQUIM WERNECK LIMA arquiteta e urbanista pela FAU-UFRJ, mestre emHistria e Crtica da Arte (UFRJ), doutora em Histria Social (cidade e sociedade) pela UFRJ-EHESS, professora Associada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO- e professora do Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas. Pesquisadora 1-D doCNPq. Pesquisadora da CAPES em estgio ps-doutoral (Paris X-EHESS). Membro doConselho Municipal de Proteo do Patrimnio Cultural do Rio de Janeiro. Foi Diretora do

    Departamento Geral de Patrimnio Cultural (1990-1992) e Coordenadora da Ps-Graduaoem Arquitetura e Urbanismo do Instituto Metodista Bennett (1997-2005). Autora, entreoutros livros, de Das Vanguardas Tradio (2006), Arquitetura do Espetculo (2000) prmio IAB/RJ, Avenida Presidente Vargas: uma drstica cirurgia (1990 e 1995) prmioOlga Verjovski. Co-organizadora de Espao e Teatro (2008), Espao e Cidade (2004 e 2007)e Cultura Patrimnio e Habitao (2004). Coordena o Grupo de Pesquisas de Estudos doEspao Teatral e Memria Urbana da UniRio.

    EVELYN FURQUIM WERNECK LIMA is an architect and town planner (FAU-UFRJ),MSphil in History and Critic of Art (UFRJ), PHD in Social History (city and society) (UFRJ-EHESS), Associated Professor of the Federal University of the State of Rio de Janeiro -

    UniRio - working for the Program of Post Graduate degree in Scenic Arts. Researcher 1-D forthe CNPq. Researcher for CAPES (Paris X-EHESS).She is a Member of the Municipal HeritageCouncil of Rio de Janeiro. She was Manager for the General Department of Cultural Heritage(1990-1992) and Coordinator of the Post-Graduate degree in Architecture and City Planningof the Bennett Methodist Institute (1997-2005). Author, among other books, of From theVanguards to Tradition (2006), Performing Architecture (2000) - IAB/RJ Award, PresidentVargas Avenue: a drastic surgery(1990 and 1995) - Olga Verjovski Award. Co-organizer ofSpace and Theater (2008), Space and city (2004 and 2007), and Culture, heritage andhousing (2004). She coordinates the Laboratory of Studies of the Theatrical Space andUrban Memory of UniRio.

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    16Volume 02- Nmero 01 janeiro-junho/2010

    SOLANGE PIMENTEL CALDEIRA Chefe do Departamento de Artes e Humanidades da

    Universidade Federal de Viosa, Doutora em Teatro (UniRio), Professora do Programa de

    Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal de Viosa. Autora do livro Lamento da

    Imperatriz. A linguagem em trnsito e o espao urbano em Pina Bausch (2009). Avaliadorado MEC/INEP, lder do Grupo de Pesquisa CNPq Estudos Integrados em Dana, Teatro e

    Dana-Teatro. Atuou profissionalmente como Bailarina no Bal do Teatro Municipal do Rio

    de Janeiro e no Bal da Cidade de So Paulo, por 20 anos, recebendo os prmios APCA e

    Governador do Estado de So Paulo.SOLANGE PIMENTEL CALDEIRA is the Manager of the Arts and Humanities Department

    of the Federal University of Viosa, has a PHD in Theater (UniRio), Teacher of the Masters

    degree Program in Letters of the Federal University of Viosa. Author of the book Lament of

    the empress. The language in traffic and the urban space in Pina Bausch (2009). Appraiser

    of MEC/INEP, leader of the Research Group Integrated Studies in Dance, Theater and

    Dance-theater (CNPq). She has acted as Ballerina in the Ballet of the Municipal Theater ofRio de Janeiro and in the Ballet of the City of So Paulo, for 20 years, receiving the prizes

    APCA and Governor of the State of So Paulo.