O espelho de Heródoto

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Neste arquivo constam o prefácio e a introdução do livro.

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  • 5/14/2018 O espelho de Her doto

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    FRANC;:OIS HARTOG

    o f S ~ f l H O O f H t R O O O T O-f N ~ A I O S O ~ R f A R f ~ R f S f N T A ~ A O D O O U T R ON O V A f O l ~ A o m l ~ I A f A U M E N T A D A

    T R AD U

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    FIGURA 5 - 0 "nascimento" da his toria. Herodoto e Tucidides ,busto duploMuseu Nacional de Napoles

    A c oFR

    o V c l H O H c R O O O T OEle vai bern, 0velho Her6doto. E lido (pelo menos supoe-se),

    editado, glosado e lnterpretado.' Estara satlsfeito comisso?Swift lernbrava como Gulliver, de passagem pela Ilha dosFeiticeiros, tinha, de inlcio, observado a que ponto Homero eAristoteles ignoravam a rnultidao de seus comentadores. Emseguida, nao demoroua compreender como, na realidade,ambos absolutamente nao a conheciam. Finalmente, urnfantasma confirmou-Ihes que, de fato, "os comentadores naose aproxirnavam jamais dos infernos ern que estavarn osautores que e les tlnham glosado, por vergonha e por remorsode ter tao horrivelmente deformado seu pensarnento, aoexplica-lo as geracoes posteriores".Hoje, em todo caso , liv ros e artigos consagrados a Her6doro

    aparecem a cada ano, num ritmo constante.? Por que? Pelaboa forma de uma tradicao classica totalmente acabada que,semelhante a urn barco de guerra bern protegido, corre aindamuito tempo rnovida apenas pelo proprio impulsoi" Ou seraem consequencia da aprisionadora inercia de urn sistemade producao acadernlco que, ana apes ano, acumula, colige ecorrige, mastambern se defende e se reproduz, recrutandonovos trabalhadores ~ comblnando-se as leis do genero. c om as regras do meio? Evidentemente, mesmo quandodesenvolvidas, essas respostas ainda seriam muito simples,redutoras. Por que esta horrlcultura intensiva, repetitiva,enquanto tantos outros textos - exumados, mal conhecidos eesquecidos - estao alhures a espera de quem os decifre, aespera de le itores?Uma cultura (a nossa em todo caso) e feita de tal modo

    que nao cessa de retornar aos "textos" que a constitufram, derumina-los, como se sua leitura Fosse sempre uma releitura.Seja felicitando-se por isso ou lamentando-se, seja ernbalsa-mando-os ou recusando-os, ela parece teclda por seus fios -

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    e como que ja "lida" por eles. A tarefa de urn historiador (~acultura pode, a partir dai, consistir em dar a IeI' esses textos,reconstruindo - para falar como a hermeneutica _._ a questaoa qual eles respondern, redesenhando os horizontes de expec-tativa em que, desde seu primeiro dia ate os nossos (alndaque no modo de ausencia), eles vieram inscrever-se, recalcu-lando as apostas que flzeram e significaram, apontando osquiproquos que sucessivamente provocuram. Essa historlcl -zacao nao signiflca rnoderniza-los ou 'atuallza-los, mas sobre-tudo fazer vel' sua inatual atualidade: suas respostas a questoes _que n6s nao mais levantarnos, nao sabernos mals levantar ousimplesmente "esquecernos". Tornadas eponimas de urn generae de uma disciplina, as Hist6riasde Her6doto desernpenharamseguramente esse papel de texto maier, Mesmo que nao seduvide de que se produzlram e mesmo se escreverarn, de outromodo, hist6rias ou a historia alhures e antes: na Mesopotamia,com a Biblia, na antiga China ou no japao.A essa distancia, 0 Espelbo de Her6dotosurge-me como

    uma experlencia de leitura. Era 0 tempo em que os historia-dores (OU, pelo menos, certos hlstoriadores), cansados decontar, aprendiam a ler; em que a antropologia hist6rica e ahist6ria do Imaginario se preocupavam com as margens maisque com 0centro, mais com a alteridade que com a identidade,era 0 momento em que 0 problema da enunciacao vinharenovar a abordagem estrutural dos textos, tendo acabadode aparecer L'Bcriture de l'Histoire, de Michel de Certeau.

    Foi-rne algumas vezes criticada a expressao "Os citas deHer6doto", como se fosse, pura e simplesmente, uma injuncaoa ser trancafiada somente no texto das Historias, uma apologiado solipsismo, uma defesa em favor da ignorancia e do ceti-cismo. Mais simplesmenre, exprimia ela antes urna insatis-fa~ao diante cia manei ra como muitas vezes os historiadores,valendo-se do r6tulo de "documento", utilizavam os textos(literarios, em particular). Dar a experlencia: no limite, tratarHer6doto como se Fosse Homero. Avancar 0mais longe posslvelnum 16gosescolhido, dando todas as chances ao texto, abor-dado em seus multiplos niveis, em suas diversas linhasmel6dicas, do mesmo modo que em suas rupturas, retomadas,impasses - enfim: como a expressao de uma ou de rnuitasestrategias narrativas. A linguistica da enunciacao fornecla,

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    desde Benveniste, um precioso balizamento te6rico, quepermitia, delxando-se ao texto toda sua conslstencla, ve-lo,por assim dizer, animar-se e por-se em movimento."Her6doto narrando como Homero inventa [... J , criando, por

    urna obra-prlrna da arte de escrever, a clencia dos lugares,dos tempos e dos fates." Esse julgamento, um dentre outros,menos conhecido que muitos outros, deve-se a Daunou.!Pel a dupla aproxirnacao problernatica que faz - de umaparte entre Homero e Herodoto (pela mediacao do narrarcomo), de outra, entre a arte de escrever e a ciencia dosfates - tern 0mento de fazer ressurgir, em suacomplexidade,a questao da primeira escrita da historia.A operacao historiografica de Her6doto rnanifesta-se , desde

    as primeiras palavras da frase de abertura das Historias, comonomeacao de num novo lugar e como sua circunscricao naspraticas discursivas enos saberes em curse. btstoriel Naoimediatamente (pois Tucfdides jamais utilizara esse terrno),mas POllCO a pouco (a partir do seculo IVa.C.), a deslgnacaoSera retomadaate acabar impondo-se. usando por sua propriaconta a palavra latina bistorta, Clcero deslgnara Herodotocomo "pal da historla"." 0 que n6s chamamos as Hist6rias ea "apresentacao publica" (histories apodeixis), a "mostra"desta bistorie.

    ~er6doto de Halicarnasso apresenta aqui sua bistorie, paraImpedir ~u.e0que flzeram os homens, com 0tempo, se apagueda memona e para que grandes e maravllhosas obras, produ-zidas tanto pelos barbaros, quanta pelos gregos, nao cessernde ser renornadas, em particular, aquilo que foi a causa deeles entrarem_ em gu~rra uns contra os outros, Entre os persas,os doutos (log 10 I) dizern que os fenicios foram a causa dodesacordo ...7

    Ja ha muito tempo foram ressaltadas as sernelhancas deestrutura, de vocabulario e mesmo de cadencia entre essaabertura e os prologos da epopeia. Nos dois casos trata-se damemoria, do esquecimento, da morte. Se 0 aedo de outroraera urn dispensador de kleos, de urna gl6ria imortal para osher6is que tinham aceltado morrer por ela 00 cornbate 0bistor sente-se requisitado a "produzir" sua narrativa para

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    impedir (ou, pelo menos, retardar) 0apagamento dos tracesda atividade de homens que sao simplesmente homens.

    Gregory Nagy voltou a examinar esse parentesco e suadirnensao, a partir de um estudo do termo logioi, no qualmostra, por uma serie deexemplos tomadosde Pindaro,que aedos e 16gioi sao quase intercambiaveis. Uns e outrostern a tarefa de serem os dispensadores do hleos, atraves de umamesma "apresentacao publica": os prirneiros, e verdade, cantamem versos, enquanto os segundos usarn a prosa. Tambern"Her6doto, 0 logios,"S seguindo os "doutos" persas ou reve-zando com eles, inscreve-se na cadeia dos logio; e a prolonga,assim como a hist6ria continua a epopela e reveza com ela:lnscreve-se no clclo cornecado sob as muralhas de Tr6ia erecapitula-o.

    Como 0canto do aedo, a prosa do primeiro historiadorpreocupa-se com 0kleos. Urn celebravaos altos feitos e osditos famosos dos her6is de outrora; 0outro prende-se aostraces da ativldade dos homens (tagenomena ex antbropori),aos "monumentos" (no sentido mais amplo) que dao teste-munho dela - a todas essas marcas, pelo menos aquelas quese reconhecem como "grandes e maravHhosas", mas pereclveis,eferneras, se comparadas com a Imutabilidade da natureza ea imortalidade dos deuses. Para os gregos, a rnorte sempreganha. Se toda palavra humana tern de haver-se corn a morte,se os homens narram .porque se sabem mortals, a epopela ea hist6ria - instaladas ambas na fronteira entre visfvel elnvlsfvel, para evocar, para chamar antes de tudo os que naoexistem mais - ambas tern como funcao especffica domesticara morte, socializando-a: "A epopela nao e apenas urn generollterarlo - e1a e , com os funerals e na mesma linha queeles, uma das instltuicoes que os gregos elaborararn para dar:resposta ao problema da morte, para aculturar a morte."?Atraves desse canto de rememoracao, os her6is transformam-seem homens de outrora e representarn 0 passado do grupo.Mas e bern claro que 0que qualifica 0her6i, 0que the valeuma morte a partee a gl6ria de ser narrado nao e, nem deinfcio, nem somente, seu estatuto au sua funcao, mas "a seriede facanhas que faz dele a que e": seu curriculum uttae."

    Quando se passa da epopeia para a hist6ria, a campoalarga-se em muitas direcoes, Nao se celebra mais a Iernbranca

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    ~as simples fll~:lnhas - bus~a-se guardar a mem6ria do quefizeram os homens, soletrar e fazer lembrar as traces e as marcasda a~lo nAo mats somente de tal ou qual her6i singular,mas dos gregos e dos barbaros, isto e, de todos as homens.Com uma correcao. nao serao retidas senao aquelas acoesque 5110 "grandes e maravilhosas". Muda a facanha, notada-mente guerreira: a excelencia torna-se coletiva. A ordem dafalan~e e a lei da cidade Impoem-se. E bela morrer nao rnaisna prtmelra fila, mas na sua pr6pria fileira.!'

    Todavia, da epopela a hist6ria encontra-se a mesma escolhae opera a mesma matriz narrativa: a exigencla de que seconte 0que flzeram os homens, essa parte efernera que eseu lo_te. Enquanto 0aedo, com a seguranca de um mestredo kleos que a Musa inspira, promete uma gloria "qu ~

    II (-" b e naose consome up ttton), a historiador, circunscrito num. tempo que e 0 dos homens, falando de coisas human ascom seu .saber e seu nome, entende que apenas luta contrao esquecunento, Atraves daexibit;ao de sua btstorte Id . ,. , e e querqu~ to as as rnarcas do fazer dos homens nao se tornem"privadas de kteos' (akJea), nao "passern" (exitela) como umapl~tura que_ pouco a pouco 0 tempo apaga. No eco entrekl~os e aklea, bem como na distancia instaurada entre as? O I S , p~rece que, de Homero a Her6doto, a promessa deImort~hdade nao mais se pode enunciar a nao ser de modonegatlvo: em suma, sem ilusao. Como se se soubesse que, natroca deslgual que propoe a epopeia (a vida pela gl6ria) jarnais

    . a segundo termo podera ser verdadeicamente conq~istado~te porque, em materia humana, a instabilidade e a regra: ascidades grandes outrora tornaram-se pequenas e as pequenas~randes. A resposta mutto pratica de Her6doto e percorre;Igualment.e umas e outras, rememorando tanto umas quantasas outras,

    .Ao .por-se a tonica sobre 0 k/eos como marrlz dos cantoseptcos e da palavra hist6rica, privilegia-se a homologia entre

    .,._,..:_~.__:s~ueas for~a: de discursoea continuidade de uma a outra-~ .a ~os5a~ de ~agy. Mas a pr6pria expressao "Her6doto,

    a logzos'~nao e ~vldente por st. Antes de tudo, porque apalavra nao s~ a~hca, n~le, senao aos barbaros (sabios persas,sacerdotes egipcios, a cita Anacarsls), ern seguida - e sobre-tudo - porque, uma vez referidos as ditos dos logiot persas

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    sobre as origens do conflito, Herodoto nao se inscreve em suacontinuacao, mas rornpe a cadeia, anunciando que falarade outro lugar e de outro modo: "Mas eu proprio (ego de')nao you me pronunciar, a proposito destes acontecirnentos,se se deram assim ou de outra forma. Indicarei aquele que,pelo que sei pessoalmente, tomou primeiro a inlciativa de atosofensivos contra os gregos."!' A saber: Creso, 0rei da Lidia.Nessa primeira intervencao direta, enunciada na primeirapessoa, 0que impressiona e 0desejo de ruptura, Muda-sede universo de discurso, de regime de verdade e de escalacronologlca. Herodoto bistor neo visa nem a retomar, nem acorrigir as Inforrnacoes a que acaba de referir-se, nem mesmoa comprorneter-se com uma nova narrativa sabre as origens..:_ mas visa antes,em funcao do que sabe ele proprio, aestabelecer urn ponte de partida, permanecendo nele,

    A epopeia porern ja naofazia isso, quando escolhia cantarurn nnlco eplscdlor Nao toda a Guerra de Troia, mas somentea colera de Aquiles, no momenta em que surge a querelafunesta com Agamemnon. Entretanto, decidindo medir 0Inlclo de acordo com 0 quesabe ele proprio, 0 historiadormuda as regras do jogo. Traducao dessa pequena decisaoinicial, a operacao historiografica, mesmo quando pareceou cre retomar a epopeia, rompe com e1a, recortando urnnovo espaco de palavras que tern par nome bistorie.

    Quanto as palavras dos "doutos" persas, elas nao deixamde intrigar. Com efeito, sao persas que falam "grego"." Circu-lando com grande naturalidade pelo repert6rio dos mitosda tribo (grega), eles reunern muitas hlsrorias famosas, todaspondo em cena figuras femininas, com as quais tecem urnanarrativa continua das origens da hostilidade entre barbarose gregos. Partem de 10, para terrninar com Helena, passandopor Europa e Medela. Ordenam e criam continuidade: emsuma, fazem seu trabalho de historiador. Mas a que preco? Asversoes que preservam ou produzern afastarn-se das versoescorrentes, senao canonicas. 10 nao e rnais a princesa amadapor Zeus, que Hera persegue sem dar descanso "aseu odio,mas slmplesmente a filha do rei de-Argos.iraptada com outrasmulheres por mercadores fenfcios que, tendo vendido suacarga, partiam para 0Egito, ou seja, e1a era 0frete de volta."

    ,Do mesmo modo, Europa, tornada filha do rei de Tiro (enao mais de Fenix), foi simplesmente raptada pelos gregos

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    (cretenses, talvez) e 0.10 mais transportada ate Creta por urnZeus satdo do mar sob a forma de touro. Vern, em seguida, 0rapto de Mcd~lil, fllha do rei da C61quida, mas em absolutolima feltlceira, ao qual responde, "lima geracao mais tarde",o rapto de Helena por Alexandre, fechando a serie de raptosalternados. Delxa-se entao dessa especie de troca para entrar-sena vlolencla da guerra. Os gregos desembarcarn em Tr6iapara pedlr reparacao. Esta e a origem da inimizade que exlsteentre persas e gregos. '

    Nesta versao "persa" .,- racionalizante, evemerista avantfa lettre, senao Ironlca - as grandes narrativas transformam-seem pequenas hist6rias. Contadas assim, inscrevem-se numacronologia (a sucessao dos raptos) e numa geografia (a Asiaem face da Europa), vlndo a constituir, para dizer tudo, lima

    , serie que tem valor justarnente enquanto etiologia das GuerrasMedlcas, as quais aparecem mais como um novo epis6diode urn clclo principiado ha muito tempo, do que como umdesfecho ou urn corneco. Tudo se passa como se os doutospersas, falando "grego", se pusessem a dis tancia dessas narra-tivas famosas, desmistificando-as - ou como se sua quall-dade de persas lhes permitisse saber do que se tratava, de,fato, nessas hist6rias, em conjunto medfocres. Estamos longedos logio; vistos como confrades pr6ximos dos aedos, comomestres do kteos em prosa. No momento em que 0narradorHer6doto intervem para cortar prontamente esses desdobra-mentos, nao recusa," nao repete, nem mesmo comenta dire-tamente a distancia instaurada pela versao persa - apenas (contenta-se em estabelecer uma outra regra do jogo, propondourn outro ponto de partida.

    Historie, correntemente traduzida como investigacao (noduplo sentido de pesquisa e de investiga~ao judtclaria), valecomo titulo e foco organizador de todo 0empreendimento.Multo questionado, 0campo semantico de bistorie conduz aepopeia.P .

    . No momento de par fim a sua querela com Aquiles,Agamemnon- faz um jurarnenro solene,'irivocand6 Zeus ediversas divindades: "Isto Zeus ..." -que Zeus nao somentesaiba, mas veja, seja testemunha (de que jamais pus a maoem Briseldaj.P Considerando esse apelo ao testemunho deZeus, Benveniste julga que, segundo a etimologia, se deve

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    ~~entender 0nome de agente historcomo "testernunha", enquantoaquele que sabe e, sobretudo,enquanto aquele que viu.!"Testemunha ocular, ele sabe por tel' visto. 0 bistor seria,antes de tudo e por principlo, urn olho - e a bistorie, porsua vez, alguma coisa (senao uma historia) relativa ao olho.

    Propondo-se exarninar 0 campo coberto pela nocao debistorie, uma tese recente questiona 0primado do olho naprimeira definicao de bistor:" No momenta da corrida decarros, organizada por ocasiao dos funerais de Patroclo,surge urna disputa entre Ajax e Idomeneu: qual carro estana frente? Enquanro os concorrentes estao ainda longe da-linha de chegada e sao dificilmente ldentiflcaveis, Idomeneucre reconhecer Dlomedes; Ajax, que nao acredita nisso, acusa-ode ver mal . . Idomeneu propoe-Ihe entao urna aposta,apelando,na pessoa de Agamemnon, a um bistor/" Agamemnon, quenao viu nada, nao pode ser evidentemente urna testernunha.:E entao urn "arbitro", escolhido por suas qualidades pararesolver a questao e impor respeito as decisoes tomadas ..Como? Investigando. Segundo Sauge, ele pode tao-somentecriar, pelo dlscurso, uma situacao de enunciacao tal que facaos protagonistas atesrarern 0 que se passou, conseguindofazer uer o que acontecia no momenta da disputa.Ele e juize nao testemunha - e, de modo algum,ele e juiz porque foitestemunha: seu saber nao e de modo algurn fundado sobreurn ver .

    Numa cena representada sobre 0escudo de Aquiles, forjadopor Hefesto, do i s homens que disputam a proposito do resgatepago por urn assassinato resolvem apelar a um btstor?' Alima testemunha? Sem duvida nao, senao 0 litigio ja estariadec idido. A urn "juiz", ja que, no termo do processo, se tratade dar uma "sentenca"? Mas como se passa, com relacao aobistor, do sentido inicial de testernunha para 0 de juiz? Doque sabe por ter visto ao que decide sem tel' nada vis to?Consciente da dificuldade, Benveniste a resolvia assim:

    Para 065, 0 juiz nao e a tes temunha. Essa varia~iio de sentidopert urba nossa anali se dessa pas sagern. Mas e preci samenteporque bistor e a testemunha ocular, 0 un ico que res olve 0debate, que se pode atribuir a bistor 0 sentido de "aquele quedecide, atraves de lim julgamento sem apelacao, sobre umaquestao de boa fe'."

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    Dlferentemente do primeiro exemplo, aqul 0bistor nao e,de Infclo, norueado ou designado. 0 que se ve efetivamente?Os mills velhos se reunern e, tornando cada um, por sua vez,.1 palavra, silo convldados a dar sua sentenca. Por outro lado,dols talentos encontram-se depositados no meio do circulo,devendo. ser atrlbuidos aquele que, dentre todos, "dara asentenca mats recta". Alguern nao e, portanto, bistor, masrevela-se como tal, qualifica-se como tal no termo de umas erte de dlscursos e no contexto de uma certa situacao de enun-clacao. 0 btstor sera aquele que , formulando 0julgamento"mais reto", pora flm a querela somente por sua palavra - semque se interponha ou se sobreponha a intervencao de um"mestre de verdade", atraves da figura de urn rei ou, mesmo,atraves da prevalencia do ponto de vista da maiorta.Assirn, entre 0vel' e 0saber do bistor, a distancia apro-

    funda-se ou a relacao e mais cornplexa. Bastard urn ultimoexernplo, tornado desta vez do pr6prio Herodoto - para 0qual Sauge chamou igualmente a atencao, Periandro, 0tiranade Corinto, urn dia e confrontado com um "acontecimento .extraordinario" (thoma megiston), Arfon, urn famoso cantor.escapou da morte de urn modo bern estranho - a crer-senele. Havendo embarcado num navio corintlo para fazer atravessia de Tarento a Corinto, teve, sob arneaca, de saltar. no mar. Os marinheiros queriam livrar-se dele para tomarposse de suas riquezas. Ele executou a si mesmo, mas naosem antes cantar, vestldo com sua mais bela Indurnentana.Entao, urn golfinho 0 tomou sobre 0dorso e 0desembarcousao e salvo no cabo Tenaro, de on de voltou ele a Corinto.Periandro, a quem ele foi conta r tudo, mostrou-se "incredulo",Herodoto, por seu lado, sem pronunciar-se abertarnenteprecisa que essa narrativa circula nao somente em Corinto.mas tam?em em Lesbo (patria de Arion) - e que se podever em Tenaro um ex-veto de Arion, representando urn homemempole irado sobre 0dorsa de um golfinho. Sem constituiruma prova, esseacordo de versoes e esse trace vislvel valemcomo Indrctos de credibil idade.. Confrontando-se com esse tboma que, de inicio, suscitaIOcre~ulid~de, ~omo agira Periandro? Ele assume 0 papelde bistor. mvestigador, Mas ele nao viu nada - nem ere emnada disso. Mantendo entao Arion sob custodia, vigia os

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    marinheiros. Tao logo desembarcam, manda chama-los e"informa-se sobre se teriam noticias de Arion" (btstoreesthaiei ti legoien peri Arionos). Historeestbai e geralmentc tradu-zido como se se tratasse de urn simples substitute de inter-rogar. Periandro, de fato, cria uma sltuacao de interlocucaoem que sao os marinheiros (por definicao as unicas teste-munhas) que Irao declarar-se, eles proprios, culpados: "Elesresponderam que Arion estava multo l?emna Italia e que 0haviam deixado emTarento emboa situacao."Arion faz entao,uma entrada teatral que, acabando de fechar a armadilhaaberta por Periandro, dai em diante torna Irnpossfvelqualquerescapat6ria para os marinheiros. Assumindo0papel de bistor,Periandro nao e nem testernunha, nem investigador no sentidomoderno (pols 0procedimento mais 6bvio seria revistar 0barco), mas este mestre do discurso que, contra a vontadedos marinheiros, faz deles as testemunhas do que realmenteaconteceu, pelo menos enquanto Arionera seu passagelro."Ea histone nao e , de inicio ou somente, uma operacao que,do uer, extrai 0saber, mas principalmente um procedimentoIinguistico que, em certos casos, consegue fazer ver.O bistornao e , em principio ou exclusivamente, urn voyeur obsedadopelos campos de batalha, pelas pracas publicas e sobretudopelos palacios. De Homero a Her6doto, 0 bistor e, antes detudo, urn mestre da palavra, com esta pequena diferenca quemudara tudo: enquanto Agamemnon e bistor porque e rei,.Periandro pode se-lo enquanto tirano de Corinto, e os maisvelhos podem revelar-se como tais porque sao os maisvelhos,Her6doto nao pode fazer-se crer senao por si mesmo. Domesmo modo, retomando a altiva assinatura inaugural queHecateu havia inscrito, havia pouco, na abertura de suasGenealoglas("Hecateu de Miletoconta que.....,15 abre seu livrocom 0 famosfssimo "Her6doto de Halicarnasso", Herodotocidadao da cidade de Hallcarnasso. Com esse nome, 0 seu,que ele deve "habitar".

    A norneacao deste lugar novo corneca pela proferlcao deurnnome proprio;" 0qual ocasiona 0uso daterceira pessoa.a distancla de urn ele, ou mais ainda, segundo a classificacaode Benveniste, oregistro da nao-pessoa." Norneando-se, 0historiador inscreve-se, a partir desse mesmo rnovirnento,como 0"ausente" da hist6ria. Maslogo emseguida, como que

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    :'se recobrando, narrador apela para 0pronome demonstrativo'.de prlmelra pessoa (bede). "Esta e a apresentacao da histone."Marcasde urn eu que vernfazer, aqui e agora, no presente da:enuncla~~o,sua narrativa: sob a forma de lima conferencia em,Atenas, por exernplo." 0 e/ e nao e explicitamente substitufdopelo,eu, mas acompanha-? ou revezacon; el~.Sob0e/eavanp.. ()e~; instaurando urnvaivern entre ausencia e presenca,',;'NO prologo eplco, se retornarmos a ele, 0regime das'pessoas verbais dlstribui-se sobretudo entre a primeira e asegunda: "Dize-me, Musa, 0homem de muitos ardis.....29 AsMusas falam como aquelas que sabem 0 que e , sera.e foi.. dlalogo desigual, 0eu aparece no datlvo. esta 1.1para

    -ecotner e transmitir 0 canto divino. Toda sua autoridadereside no contato privilegiado com 0 mundo dos deuses,atravesda lnterrnedlacao dasMusas,apresentadas como "mora-dorasdo Ollrnpo", "filhas de Zeus", "filhas da Mem6ria".30Simples medium, este eu e vazio, pols cada aedo, durante 0tempo em que canta, ocupa-o sucessivamente. E um eu sem_ I lo i' n~ pr6prio e sem autoridade pr6pria. Para0poeta eplco,

    ..~)JlspiraCaofunciona como remernoracao. Transportado a.. ' '. que nao conheceu e a lugares que ignora, ele ve ,. vezes ao preco de sua pr6pria vista, 0que nao viu

    i.vlveu,Assim,Dem6doco, 0aedo cego dos feacios, canta,sollcitacao e em presenca de Ulisses,0epis6dio do cavaloTr6ia:, Dem6doco, entre todos os mortais eu te saudol

    .: -".>:'~'A Musa, fllha de Zeus, instruiu-te, ou Apolo:. . " . u cantas com muita arte a sorte dos gregos,

    ,tudo que foi feito, suportado ou sofrido pelos arglvos,"': como alguem que tivesse estado presente (pareon) ou, pelo. menos, tivesse ouvido (akousas) de algum outrolMas, mudando de assunto, cantaa hist6ria do cavalo..."

    Hesfodo retorna, mas modifica essa estrutura de Inaugu-"''''''C''>~~ do discurso. As Musas estao bem presentes, sempre

    _,comodetentoras do saber e da lnspiracao, mas sua invocacaol,,-,~~;..~ou~vocacaoe-diferentetn:eritemalscornplexa, A estrutura dual

    ,;;.....rimeira/segunda pessoa (Musa/aedo) - estilhaca-se paradar lugar a terceira pessoa. "Cantemos as Musas"- assim se

    :~br~ o prologoda Teogonia: "Elas..." (segue uma evocacao de..seuS-coros e de seus cantos sobre a montanha do Helicon),

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    forarn e las que a Hes lodo, 'urn dia, ensinaram urn belo canto I..J .Els as prlmeiras palav ras que me enderecararn as deus as,Musas do Olimpo, filhas de Zeus que detent a eglde."

    A prime ira pessoa inicial ("Cantemos") faz surgir as Musas nadistancia de uma encenacao na tercelra pessoa. De lmedlato,parecendo instalar-se este regime da terceira pessoa, ,0propriopoeta nao pode aparecer ou reaparecer 'senao na terceirapessoa (fato consideravel), sob a forma de um nome proprio("Elas ensinararn a Hesiodo . .."). Em seguida, sem lnterrupcao . .volta as marcas da primeira pessoa ("Eis I... as primelraspalavras que me enderecaram ... ") -as Musas vindo a ocupar,no discurso direto, 0lugar da prirneira pessoa ("Nos sabe-mos ..."). Desse prologo (de Interpretacao dlflcil) , reteremoso apelo a terceira pessoa, que poe tanto as Musasa distancia(e/as- e nao rnais v6s) quanta igualmente 0poeta (e/e- enao rnals eu), levando a que este seja chamado por seu nomeproprio - 0 que 0 coloca, portanto, nesse lugar ainda naoclararnente delineado ou ocupado: 0 lugar do autor. Mais .exatamente, entre as Musas e Heslodo parece instaurar-seuma relacao de mestre e discipulo (edidaxan), elas nao saoapenas aquelas que dizern, mas as que ensinam, transmitindoalgo como urn saber (admiravel e relteravelr). Isso emboraHestodo, e verdade, retorne quase que imediatamente jafigura habitual das Musas inspiradoras: elas me inspiraram(enepneusan) este canto divino-"

    Da poesia eplca ao prologo das Histdrias, a ruptura rna isvlsfvel e 0total desaparecimento das Musas (tanto na primeira ,quanta na terceira pessoa). Estabelece-se entao uma novaeconomia do discurso e um novo regime de autoridade: quemfala, respaldado por quem? Nao rna is as Musas, mas 0 bistor- ou melhor, a bistorie, que passa a ocupar 0 lugar que aestrutura epica reservava aquelas. "A tudo presentes, vossabeis (iste) tudo, nos nao ouvirnos senao-"um ruido e nadasabernos" - proclamava a Iliadar' Sendo deusas, as Musasveern ou sabem tudo; os mortais ouvem urn rumor, 'mas naoveern. 0 historiador, pelo contrario, deve construir seu lugarde saber gracas a bistorie, que e talvez, de inicio, um substi-tuto da visao divina, ausente por definlcao. Como ver 0 quenao se viu? Como fazer como sese houvesse visto? Como fazerver 0que nao se viu?

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    . . Ao renunclnr-se u antiga divisao que regulava a atributcao~ia palavra aos Interlocutores, nao resta senao a terceira pessoa:ele e nllo rnals eu, mas sob a forma de um nome proprio.'Her6doto: prlmelra palavra da prlmeira frase, lancada nostmltlvo (dlferentemente do eu eplco, disposto no dative),'como rnanelra de selar 0que Ihe cabe de direito, de assinar,como 0 artlsta, sua obra, senao de demarcar seu territ6rio.Em resumo: de produzlr-se (apresentar-se) como autor.,"Entretanto, como se 0registro (ou a voz) da terceira pessoafOsSemulto diffcil de manter-se, quase imediatamente ressurgemtraces da prlmelra pessoa, os quais tendern a reconstituir as. balizas familiares do hie et nunc da enunclacao.P Isso antes, que, urn pouco adiante, no mesmo prologo, a narrador inter-venha fortemente na primeira pessoa (ego de'), para retomara palavra pOl 'u rn tempo delegada aos "doutos" persas e estabe-lecer as novas regras de forrnulacao de enunciados aceitaveis." - . E a primeira de uma serie de tomadas de posicao que, nasequencia dos livros, escandem as Historias, no rneio dasquais 0eu do narrador-autor poe em perspectiva, da aver,avalia e julga as narrativas que decidiu fazer."No lugar das Musas, a bistorie de Herodoto, com esta hesi-ta~ao ou este equilibrio inicial entre a primeira e a terce irapessoa. Mas' nao e tudo. Em lugar e em substkutcao do saberdas Musas, proferido na segunda pessoa, rumorejam todasas opinioes sustentadas por uns e por outros, desde os /6gioipersas ao anonimo legetat (diz-se), em que a terceira pessoareina absoluta: eles, eles dizem que. Porventura, nao e nessapassagem do vas das Musas ao eles (discurso assumido, senaoautenticado por urn sujeito coletivo) que se deixa perceberurn trace significativo da consti tuicao da historia? Com justica,Claude Calame charnou a atencao para essa substitufcao.vTambern pela polissemia que lhe confere 0pertencimento

    ao campo sernantico de otda, a bistorie pode definir-secomoprocedimento de constituicao, bern como de avallacao oude autentiflcacao do eles, isto e . como processo de confron-tacao entre 0 eles (eles dizem que) e 0 ele/eu do narrador,que reune ou subsume a autoridade (que nada estabelece,senao a obra por vir) de urn nome proprio: por exemplo,Herodoto de Halicarnasso.

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    Tucidides apagara mais

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    o N O M e D e H f R O O O T O

    AD u c ;. oambern, se n110prlnclpalmente, urn pretexto para polemizarcom osfi lomtssas Cos papistas). Pennanece, do mesmo modo, aquestao de saber-se como e por que Herodoto foi, durante taolongo tempo, considerado mentiroso, ainda que sendo reconhe- .cido como pai da hlst6ria.

    Outras obras.LACHENAUD,G. Mythologies, reltgton et pbttosopbte del'htstotre

    dans Herodote. Lille, 1978.(Tese)HUNTER, V. Past and Process ill Herodotus and Tbucydides. t

    Princeton, 1982.CORCELLA,A.Erodoto el'analogia. Palermo, 1984.BELTRAMETTI,A. Erodoto: una storia gouernata daldiscorso. II

    racconto morale comeforma del/a memoria. Firenze: LaNuovaItalia, 1986.

    DARBO-PESCHANSKI, C. Le discours du particulier. Essai surl'enquete herodoteenne. Paris, 1987.

    N

    l!vercladelramente singular que Herodoto tenha-se tornadomesmo 0pai da hist6ria apenas nos tempos modernos.A. Momigliano

    . D e Her6doto a nossos dias, estende-se por vinte e quatro..l)'1;"'~''''''0longo cortejo de seus interpretes: tradutores, comen-

    criticos! - todos que, alguma vez, depuseram noprocesso que a posteridade nao cessa de instruir

    o seu caso. Processo que nao sera concluldo, pelorrtenos enquanto Her6dota for esta figura longfnqua, postadana.orla da hist6ria. Mas este processo, no qual a sentenca

    ",,-,':~-~c-..e definitiva, em que, na verdade, nao ha propria-sentenca (pols a sentenca precedente e retomada como.. . testemunho em vista de uma nova, numa lnstrucao

    :.quena() cessa)- este processo e tambern 0que assegura a.imorta1iza~ao de Her6doto, e a pr6pria marca de sua imorta--,Iidade, E que existe urn fascinio de Her6doto: ele e este pai

    " . . : . ; . . ~ . _ ._. eprectso sempre evocar au invocar, a fantasma que e: ' ' ' ; \ : ; , ~ : , ' : ' . ' , . , ' r . "ic:, .. conjurar, 0espectro de que e preciso desernbaracar-se.

    multo tempo, tratou-se de demonstrar a culpa de";:Hc~r6dclto, de provar suas mentiras. Depois a processo mudou .

    . '.'. ....,. durante muito tempo tratou-se de reencontrar a verda-" ' : . , "c : l~ j r a imagem de Her6doto, posicionada alern das interpretacoes,

    L~'cOinose Fosse possivel ultrapassa-las ou coloca-las entrepa~enteses - e isso com todos as recursos da etimologia, dafilologia e do conhecimento da Sagrada Escritura. Hoje, e aPrcJDl:IO.entido da palavra processo que mudou: esta nao

    que a movimento das interpretacoes, se e verdadea s interpretacoes sucessivas nao fazem parte menos efetivaHerodoto que 0pr6prio texto das Htstorias, posto que "a

    . .' sempre nos da mais para pensar no espaco que the abre a....p~n~~mento dos outrcs",? Assim.vnao se pode escrever sobre

    Atualizar as referencias bibliograflcas em seu conjunto seriaimposslvel. Em alguns casos, isso foi feito. Muitos dos artigoscitados na primeira edlcao tornaram-se livros (0 que confirma,pelo menos, o movimento da ciencia).

    NOTADOEDITOR:Na edlcao brasileira, a atuallzacao biblio-graflca foi Inclulda nas respectivas notas.

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    as Historias de Her6doto desconsiderando-se a historia de suasInterpretacoes. Entretanto, essa hist6ria conduz na direcaode uma hist6ria da hist6ria antiga, senao simplesmente dahist6ria - se e verdade que 0nome de Herodoto Ihe designao pal.'o que se sabe dele? Multo pouca coisa, naodiretamentetransmitida pelo mesmo, mas atraves de algumas Inforrnacoestardias - e, deste pouco, alguns. se esforcararn ainda emdernonstrar 0carater fictfcio.! "Herodoto de Halicarnasso ...", dao /os manuscritos: "Herodoto de Turios", responde a tradicaoindireta. De inicio de HaHcarnasso, onde nasceu por voltade 480a.C., ele pode dizer-se em seguida de Turios, no suida Italia, desde quando se tornou cldadao daquela cidade.?Conheceu ele 0exilio em Samos, durante algum tempo; viajouatraves do Oriente Medio e principalmente pelo Egito; emtorno do Mar Negro, em direcao ao norte; na Italia do Sui, nadirecao do oeste; na Grecia continental tambem." Estabe-leceu-se algurn tempo em Atenas, partiu para Turios. Morreuna decada de 420 a.C., em Turios, onde uma tradicao Iheatribui urn nimulo na agora - ou em Atenas, segundo umaoutra tradicao, ou ainda em Pela, na Macedonia." Sua vidainscreve-se entre dois grandes conflitos: as Guerras Medicas,que ele nao viveu, por asslm dizer; e a Guerra do Peloponeso,de que conheceu pelo menos os principios.

    Her6doto ... expoe aqui suas pesquisas (histone). para impedirque 0que flzeram os homens, com 0tempo. se apague damem6ria e que grandes e maravilhosas facanhas (erga) reali-zadas tanto pelos barbaros, quanto pelos gregos nao cessemde ser contadas; em particular. 0 que foi causa de que gregose barbaros entrassem em guerra uns contra os outros.Assim corneca a obra que chamamos Htstorias, mas que,conforme 0costume do tempo, nao tinha um titulo. Essas poucaslinhas chamaram particularmente a atencao dos cornentadores,para os quais estabelecer exatamente 0significado de cadapalavra e, antes de tudo, da mais famosa dentre elas, bistorie,deveria permitir que se compreendesse 0sentido do empreen-dimento herodotiano."As Historias sao divididas em nove livros que trazern 0

    nome de cada uma das nove Musas. Mas nem a divisao, nem

    o patrodnio se devern ao proprio ~er~doto. ~testados por, Luciano (sec. IId.C.), seguramente nao sao anteriores a epoca, helenistica; constituern entretanto indicio tanto de um certoestatuto da obra, quanta da forma como, neste memento, amestna era recebida pelo publico: ela esta do lado das Musas,da poesia, do prazer, da flccao. 0 autor Herodoto nao fala, senao de seu logos, ou de seus 16goi , suas narrativas. Nosnove Iivros sucedern-se, encaixam-se, algumas vezes cruzarn-se,diferentes 16go; em torno de urn projeto centraI- evitar que"0que fizeram os homens se apague e cesse de ser contado.Os quatro prirneiros livros sao extensamente ocupados pelasnarrativas consagradas aos outros, aos nao-gregos (lidios,.persas, babilonios, massagetas, egtpclos, citas, Iibios ... ),enquanto os cinco ultimos sao, em grande parte, reservadosa narrativa das proprias Guerras Medicas ... Qual foi 0efeito das Historias? Como foram recebidas? Sao. perguntas para as quais nao podemos dar urna respostaprecisa, ja que nao temos rneios para reconsti tuir 0"horizontede expectativa" do qual participavarn.? nem tern os verda dei-. ramente os meios para tracar, ao longo do tempo, umahist6ria de seus efeitos. Parece, entretanto, que as Historiasse tornaram conhecidas muito rapidamente, pelo menos emAtenas, bern como se fizeram reconhecidas e afamadas demodo duradouro por toda a Antiguidade." Todavia, foramtarnbem, nao menos rapida e duradourarnente, criticadas eatacadas: Herodoto e urn ladrao e, mais ainda, urn mentiroso.A Antlguidade fabrica assim urn Her6doto bifrons e faz deseu nome, que todo mundo conhece, urn nome dupIo, desig-nando, a urn so tempo, 0 pal da hist6ria e urn mentiroso,.senao propriamente 0pal da mentlra."Em 176~, Voltaire apresentava ainda nestes termos as

    Historias. "Recitando para os gregos os nove livros de suahist6ria, ele os encantava pela novidade de seu empreen-dimento, pelo encanto de sua diccao e sobretudo pelas fabulas.""A novidade do empreendimento: e isso que explica Euclides,--:""--crdjovem Anacarsls, rnostrando-lhe a prateleira historica desua biblioteca: "Ele abriu aos olhos dos gregos os anais douniverso conhecido e Ihes ofereceu, sob urn mesmo ponto devista, tudo 0que se havia pass ado de mernoravel no espacode cerca de duzentos e quarenta anos."130encanto de sua

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    diccao e tudo 0que se escreveu, do seculo IV a epoca imperial;sobre Her6doto, 0 rnestre do janico. As fabulas, enfirn,estas remetem a Her6doto contador de mytboi, mitologo eencantador, 0 qual Tucfdides foi 0 primeiro a denunclar..mas que e preciso ainda denunciar ou, sobretudo, saberreconhecer, pois um autor tao "estlrnavel" quanta Rollindeixa-se conquistar e "nos acalenta com todos os contosde Her6doto". 14Essa Frase nao faz mais que resumir, justapondo-os, OSIpontos de vista tradicionais sobre 0 autor das Hist6rias: elee 0 primeiro historiador: ele e urn grande artista: ele e urnmentiroso. Mas como introduzir urn pouco de ordem nessas .declaracoes e, antes de tudo e sobretudo, como distinguir 0que .e verdade, portanto hist6ria, do que e mentira, portanto fabula?Voltaire, no capftulo intitulado "Da Hist6ria de Her6doto",propoe uma solucao. "Quase tudo que ele contou Dando feaos estrangeiros e fabuloso; mas tudo que ele viu e verda-deiro." Escolhe ele assim 0olho contra a orelha, a aut6psia emdetrimento da audicao (akoeJ, isto e, tarnbern os geruirnena,os fatos, contra os legomena, os discursos. Baseando-senesse metodo de reconheclmento da verdade, Voltaire, narealidade, nao faz mais que retomar 0programa tucidideano:a aut6psia antes de todas as coisas e fora da aut6psia nao hadefinitivamente historla, Mas Tuddides tirava as consequenciasdessa poslcao rnetodologica: condenava seus antecessores,.que acreditaram poder fazer hist6ria do passado, mesrnopr6ximo, que acreditaram (ou fizeram acreditar) que escreviamuma hlstorla verdadeira, por exemplo, das Guerras Medicas:antes de todos os outros, ele condenava Her6doto.Entretanto, Voltaire, se retomava bern 0criterio de verdade

    tucidideano, parecia "esquecer-se" de tlrar asImplicacoesdlsso: Her6doto nao viu diretamente as Guerras Medicas,sua narratlva repousa sobre os legomena'? - logo, ele eindigno de conflanca, Muito pelo contrarlo, depois de tereliminado 0Her6doto dos contos, ele retern oHerodoto daautopsia que, num passe de magica, se acredita ser 0Herodotohistoriador das Guerras Medicas, isto e : 0"modele dos hlsto-riadores". Mais ainda, nao somente uma hist6ria das GuerrasMedicas e possivel, mas e mesmo com a hist6ria das GuerrasMedicas que comeca verdadeiramente a historia:

    J! preclso confessar que a hist6ria nao corneca, para n6s, senao.. com os cmpreendimentos dos persas contra as gregos. Nao

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    esta 0Egito, figurado pelo proprio Nilo e pelas plrarnides,como tambern por todo urn conjunto de objetos "tiplcos",alem do escriba agachado e de hleroglifos. A selecao dessesdois motivos pelo gravador naoe evidentemente feita por.,acaso. 0interessante, contudo, e que 0 Herodoto viajanteaparece como urn cenario e sornente como urn cenario, contracujo fundo se pode desenrolar 0grande memorial devidoao historiador.Essa gravura, em suma, banal, e ; pois, cons-truida em funcao da parti lha, que ela se contenta ern tornarvlsivel: ha bern dois Her6dotos - 0 historiador das Guerras/Medicas'" e urn outro Her6doto, antes de tudo aquele dosoutros, dos nao-gregos.A partilha e revlgorada, de modo magistral, no proprio

    domfnio dos estudos classlcos. 0 longo artlgo, redigido em1913 pelo maior conhecedor dos his tori adores gregos, apare-cido neste austero instrumento de referencia que e a RealBncyclopadie der classiscben Altertumsiotssenscboft, tevedurante multo tempo e tern ainda hoje autoridade.!' Antes'de ser historiador, Herodoto foi geografo e etnografo, Ha,pois, 0 viajante e 0 historiador das Guerras Medicas, Deviajante, ele tornou-se historiador, e sua obra testemunhaessas duas eta pas, como tambern a passagem de uma a outra.Combina-se, assim, partilha e evolucao.

    Desde entao - sem por em questao esse esquema - naorestou aos lnterpretes outra escolha senao variar a linha dedemarcacao entre a historiador e 0outro, seja avancando-a,seja recuando-a, de acordo com a extensao que se atribui apropria palavra bistorie.

    Com excecao de urn livro muito isolado, publicado em1937/2 sera preciso esperar os anos cinquenta" e, sobretudo,o fim dos anos sessenta, em que aparece urn conjunto detrabalhos, para que essa abordagem se modifique. Com efei to,varlos especialistas se esforcarao em apagar a linha de partilha,mostrando que ela nao se encontra efetivamente inscrita noproprio texto: tentarao provar que os dois nornes de Herodotonao formam, na realidade, senao urn. Esses estudos, por:mais diferentes que possam ser, tern urn ponto em comum: adesconflanca diante dos pressupostos (uma definicao maisou menos explfcita do que e a historia, por exernplo) e, aocontrario , a vontade de interrogar 0proprio texto, tratando-o

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    'InO urn todo. E 0 que propoe Myres, quando empreendero d" ' r a cornposlcao dos /6goi atraves e Lima aproxi-com a escultura: para descrever uma cena, Herodoto

    procede como 0 artista que, esculpindo 0 frontao de urn'" ", I tern grande preocupacao com a simetria, 01.1 que,

    desenvolver urn friso, obedece a urn certo ritmo. Maisdam~nte ainda, Immerwahr, por exemplo, pretende

    aobra como "uma unidade organica que tern sua propria" 24

    . .,. :/ A"' partilha - da qual da o testemunho, a seu modo, 0, ,r';';frbntispfcio, a texto de Voltaire e a artlgo de Jacoby - permitia;. ',quese contivessea lancinante questaojda verdade e da mentira,''bemcomo que se impusesse alguma ordem na questao da, " ' . Mas desde 0 momenta em que a analise do".textoconcluiu em favor da unidade da obra, desde quando.'=:': . deixou de haver dois nomes, restando urn so, desde entao a

    'quesHio da 'historia, descartada momentaneamente, reapa-~rece,agora no interior do proprio texto, onde eclode nopr(>prio interior do nome de Herodoto: 0que sao enfim asHist6rias?0 que e a bistoriei 0que e um bistort Ou ainda: 0pai.da hlstoria e um historladorf" Questoes inevltaveis no'caminho do lnterprete.'Q ES}JELHO DE HER6DOTO

    Qponto de partida deste livro e indicado no subtitulo:, sobre a Representacao do Outre". Trata-se,com efeito,ver como as gregos-da epoca classica representaram paraoutros, os nao-gregos, de fazer aparecer a maneira .ou as

    rnaneiras pelas quais eles praticavam a etnologia, em resumo,"de! esbocar uma historia da alteridade, com seu ritmo, seus.tempos fortes e suas rupturas, se for posslvel cerca-los dealgum modo. Para uma pesquisa como esta, Herodoto seriaevidentemente incontornavel, parecendo-rne multo cedo queera inextrincavel; entretanto, pareceu-rne sobretudo que valia a, pena permanecer nele, pois seu texto era 0lugar privilegiado, . , uesearnarrava e se jogava todo urn conjunto de ques-'toes, elas proprias reiteradas, denegadas, transformadas oususcltadas pel a interpretacao, as quais conduzern, no final'da~;contas, as questoes da pratica da hlstoria. Eis porque 0. Iivro, final mente, foi chamado de 0 Espelbo de Her6doto.

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    As Htstdrlas s:lo decerto este espelho no qual0historiadorn~o cessou [amals de olhar, de interrogar-se sobre sua pr6priaidentldade: ele ~ esse que olha e e olhado, questionador,questlonado - enfim, sernpre conduzldo a declinar seustftulos e suas qualldades. 0 que e ele: historiador ou mentl-roso? Donde a irnportancla, na historia das interpreta~oesde Herodoto, de rnarcar bern a cesura entre 0historiadordas Guerras Medicas e 0 Her6doto dos outros, geralmentetratado como urn outro Her6doto. Onde esta ele. a servicode urn prfncipe ou de lima cidade, exercendo 0papel de olhoe de memoria escrita?Donde a importancia dos debates sobreas relacoes entre Herodoto, Pericles e Atenas. Para quem falaele e por que?Dondeas questoes sobre0publico de Her6doto,sobre Her6doto conferencista, remunerado ou nao.

    Masespelho entende-se tambern em dols outros sentidos.Se, em alguma parte, e urn espelho em negatlvo, espelhode Her6doto 0enos /6goi consagrados aos nao-gregos - 0espelho que ele levanra para os gregos. Entre suas narra-tivas, escolhi 0 16gos cita, pois 0 cita nao deixa de espantaros gregos: e ele que poe em fuga 0exercito de Dario, 0reidos persas, e, sobretudo, ele e este nornade que nao ternnem casa, nem cidade, nem campo lavrado.o espelho de Her6doto e ainda 0 olho do hfstor que,

    percorrendo e contando 0 mundo, 0 poe em ordem numespaco grego do saber e, em identico movimento, constr6ipara os gregos uma representacao de seu passado pr6ximo, Ollseja: 0hfs_tor faz-se rapsodo e agrimensor. Contudo, ultrapas-sando a SI mesmo, ele e tarnbem este espelho atraves do qualoutros, na sequencia, tenderam aver 0mundo. Levanta-seassim a_questao do efeito ou dos efeitos do texto e, portanto,a questao do efeito do texto de hist6ria.

    Os diferentes sentidos assumidos pela metafora do 'espelhoindi~am, de fato, urn encadeamento de questoes que conduzcontmuamente dos citas de Her6doto ao caso de Her6dotoda Ieitura de urn 16gos a uma interroga~ao sobre a maneirade escrever a hist6ria. No percurso de alguns dos 16goi consa-grados aos outros, 0texto de Her6doto e tratado como umanarrativa de viagem, isto e, como uma narrativa que tern apreocupat;ao de traduzir 0outro em termos do saber compar-tilhado pelos gregos e que, para fazer crer no outro que20

    ., ~onstr6i, ciabora toda uma ret6rica da alteridade. Este estudo~ pols, a escolha de urn nivel de analise que nao se pretendee~c1uslvoem relacao a outras abordagens, nem mais impor-

    "cance que outros nlveis: prendendo-se ao contrato que liga" b narrador ao destinatario, entende tlrar mais do texto, nao'conseqilencia de algurna especie de culto do mesmo, mas

    . ,simplesmente visando a esbocar algumas propostas para lima".selUantica hist6rica...,. Esta viagem em Her6doto, a sernelhanca de seu objeto

    o nomade, nao e nem fechada sobre si mesma, nem.acabada. Ao contrario, trata-se de urn convite a levar-se rnais< longe a Investigacao, recolocando-se a questao do efeito do

    -.texto de historia, 0que significa recolocar tarnbem a questao. . . d o genero hist6rico e retomar a pergunta sobre 0 lugar e a.f\.lll.;aodo hlstoriador nasociedade. Umestudo sobre o olhar.do hlstorlador e 0olho da hist6ria ofereceria talvez uma viadeabordagem? Tenta-se pols fazer uma arqueologia do olhardo historiador ou, pelo menos, tenta-se escrever sobre isso.alguns fragmentos.'>'. Todavia, no caso de Her6doto, a questao da funcao do. bistor nao pode ser separada de uma hist6ria de suas interpre-.ta~6es. Por sua vez, essa hlstoria, se nao pretende perma-necer apenas no nlvel da hist6ria das idelas, deve incluir uma

    .ret1exao sobre a institulcao da hist6ria e sobre a profissao'd b historiador. Em resumo: das leituras de Her6doto a umahist6ria geral da hist6ria, enfocada, segundo a f6rmula de- ,M . 1. Finley, como urn "practical subject".: - - - _.-' .