O Espírito Santo e nós.pdf

download O Espírito Santo e nós.pdf

of 4

Transcript of O Espírito Santo e nós.pdf

  • 8/16/2019 O Espírito Santo e nós.pdf

    1/4

    O ESPÍRITO SANTO E NÓS 

    Maio 14, 2016 

    1. O Evangelho da Solenidade deste Dia Grande de Pentecostes (João 20,19-23) mostra-

    nos os discípulos de Jesus fechados num certo lugar, por medo dos judeus. ORessuscitado, vida nova e modo novo de estar presente, que nada nem ninguém podereter ou impedir, nem as portas fechadas daquele lugar fechado, Vem e fica de pé noMEIO deles, o lugar da Presidência, e por duas vezes os saúda: «A paz convosco!».Mostra-lhes as mãos e o lado, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado,e vincula os seus discípulos à sua missão: «Como o Pai me enviou (apéstalken: perf. deapostéllô), também Eu vos mando ir ( pémpô)». O envio d’Ele está no tempo perfeito (épara sempre): a sua missão começou e continua. Não terminou nem termina. Elecontinua em missão. A nossa missão está no presente. O presente da nossa missãoaparece, portanto, vinculado e agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem ela esem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Eleestá connosco todos os dias (cf. Mateus 28,20). «Como  o Pai me enviou, também Euvos mando ir». Este como  define o estilo da nossa missão de acordo com o estilo e amissão de Jesus. É-nos dito ainda que os discípulos ficaram cheios de alegria (o medofoi dissipado) ao verem (idóntes: part. aor2 de horáô) o Senhor. Tal como o OutroDiscípulo, também eles vêm com um olhar histórico (tempo aoristo) a identidade doSenhor. O sopro de Jesus sobre eles é o sopro criador (emphysáô), com o Espírito, paraa missão frágil-forte do Perdão, Jubileu Divino do Espírito. Este sopro, este alento, sóaparece neste lugar em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma belaponte para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (naphah TM / emphysáô LXX) criadorde Deus no rosto do homem.

    2. O texto luminoso do Livro dos Atos dos Apóstolos 2,1-11 mostra-nos todos reunidosno Cenáculo e varridos ou recriados pelo vento impetuoso do Espírito, que varre as teiasde aranha que ainda nos tolhem, e pelo seu fogo que nos purifica. O Espírito senta-se(kathízô) – bela e significativa expressão! – sobre nós, novo Mestre que orienta e guia anossa vida. Verificação: eis-nos a falar outras línguas, dádiva do Espírito! Milagre:cessam incompreensões, divisões, invejas, ciúmes, ódios e indiferenças, e nasce ummundo novo de comunhão e comunicação plenas, pois todos nos entendemos tão bemcomo se se tratasse da nossa língua materna. Entenda-se aqui por «língua materna», nãoa língua do país em que nascemos, português no nosso caso, mas aquela linguagem queexiste entre a mãe e o seu bebé, da palavra antes das palavras, divina e humana lalação.

    Chame-se-lhe confiança, intimidade, ternura. Impõe-se, nesta bela comunidade, umaatitude de vigilância permanente, pois será sempre grande a tentação de querer levar oEspírito à letra! E aí está a advertência vinda dos Coríntios, cujo falar em línguasninguém entende (1 Coríntios 14,2), sendo preciso o recurso a intérpretes (1 Coríntios14,28). Todos consideraríamos um absurdo a existência de um intérprete entre a mãe e oseu bebé para traduzir aquela lalação que os dois tão bem entendem!

    3. É esta divina lalação (alálêtos) (Romanos 8,26) – única vez no Novo Testamento –,do Espírito que nos ensina a compreender que «Jesus é Senhor» (1 Coríntios 12,3) e queDeus é Pai (ʼ  Abbaʼ ) (Gálatas 4,6; Romanos 8,15). Anote-se também a importanteafirmação de que «a cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum»

    (1 Coríntios 12,7) e «não para proveito próprio» (1 Coríntios 10,33), sendo que o que

  • 8/16/2019 O Espírito Santo e nós.pdf

    2/4

    define o proveito comum é a edificação, não de si mesmo, mas dos outros (1 Coríntios10,23-24).

    4. A tradição situa no Cenáculo as duas cenas acima descritas. É a sala da CeiaPrimeira, do último serão de Jesus com os seus discípulos, da Aparição do Senhor aos

    seus Apóstolos, da eleição de Matias, da descida do Espírito Santo no Pentecostes,enfim, o primeiro lugar de encontro da primeira comunidade cristã reunida em oraçãocom Maria (Atos 1,13-14), a primeira sede da Igreja nascente, a mãe de todas as Igrejas,a primeira domus-ecclesia [«casa-igreja»] do mundo, situada uns duzentos metros a sulda muralha de Jerusalém, um local muito próximo da Porta de Sião. O atual edifícioremonta ao trabalho dos Padres Franciscanos no século XIV, e sucedeu a outrasconstruções sucessivamente edificadas e destruídas, desde a basílica de Santa Sião[ Hagía Sion], do século IV. Sintomaticamente, por se encontrar no quarteirão sul deJerusalém, o primitivo Cenáculo resistiu à destruição romana da guerra de 70, pois osromanos atacaram e destruíram a cidade a partir da parte norte, mais facilmenteexpugnável.

    5. Associada às cenas acima identificadas, a sala superior do Cenáculo [15,30 metrospor 9,40 metros] assemelha-se ao Sinai com os fenómenos então lá registados. Veja-se,a propósito, a bela descrição que deles faz Fílon de Alexandria (± 20 a.C.-50 d.C.):«Deus não tinha boca ou língua, mas, com um prodígio, fez que um rombo seproduzisse no ar, que um sopro se articulasse em palavras pondo o ar em movimento.Este transformou-se em fogo que tinha forma de chamas […], e uma voz ressoava domeio do fogo e descia do céu, e esta voz articulava-se no idioma próprio dos ouvintes».Mas também Babel é evocada em contraponto: em Génesis 11,7, «ninguémcompreendia mais a língua do seu próximo», mas em Atos 2,6, «cada um compreendiana sua própria língua materna».

    6. O Espírito Santo é também enviado em missão. E é Aquele que recebe o que é doFilho (João 16,14 e 15), e que o Filho recebeu do Pai. O Filho é a transparência do Pai.O Espírito Santo é a transparência do Filho. O ensinamento do Espírito Santo é omesmo que Jesus fez e que recebeu do Pai, mas vem depois do de Jesus (João 14,26), eprocessa-se, ao contrário do de Jesus, não com palavras sensíveis que tocam os órgãosda audição de um público determinado, mas na interioridade da inteligência e docoração de cada ser humano. Este ensinamento interior do Espírito Santo é comparado àunção de óleo (chrísma) que penetra lentamente, como diz o Apóstolo: «Vós recebestesa unção (chrísma) que vem do Santo e todos conheceis (oídate)» (1 João 2,20); ou

    então: «a unção (chrísma) dele vos ensina (didáskei) acerca de todas as coisas» (1 João2,27). É a unção que lentamente penetra em nós, ocupa o nosso interior, suaviza asnossas asperezas, cura as nossas dores e faz nascer entre nós comunidade e comunhão.

    7. Ensinamento novo. Não exterior, com sons e palavras, mas que atinge diretamente aspregas da inteligência e do coração. É assim que a linguagem nova do Espírito afeta aomesmo tempo o português e o chinês, o inglês e o russo, o católico, o muçulmano e ohebreu. É como quando, em vez de se porem a falar cada um a sua línguaincompreensível para o outro, o português e o chinês entregassem uma flor um ao outro!É assim que fala o Espírito, é assim que age o Espírito, Pessoa-Dom, fonte de dons (1Coríntios 12,3-13).

  • 8/16/2019 O Espírito Santo e nós.pdf

    3/4

    8. O Salmo 104 põe-nos a contemplar hoje as obras maravilhosas de Deus, cheias doseu alento, que são a alegria de Deus (v. 31), e a alegria de Deus é a nossa alegria (v.34). De notar que a temática de Deus que se alegra é muito rara na Escritura. Aparecehoje no meio deste mundo novo e maravilhoso. Tema, portanto, para recuperar, pois étambém a fonte da nossa alegria!

    9. Nós somos do tempo da missão do Espírito. Note-se a fortíssima vinculação: «OEspírito Santo e nós» (Atos 15,28).

    10. Deus habitando em nós (João 14,24). Deus connosco (Apocalipse 21). Cidade nova,Consolação nova, Bênção nova, Paz nova, não com a medida do mundo, mas de Deus(João 14,27; Salmo 67).

    O medo não habita a nossa casa

    O medo transforma a nossa casa em fortaleza

    Tranca portas e janelas

    Esconde-se debaixo da mesa.

    Mas vem Jesus e senta-nos à mesa

    Começa a contar histórias e estrelas

    Leva-nos até ao colo de Abraão, até à Criação,

    Sopra sobre nós um vento novo,

    Rasga uma estrada direitinha ao coração:

    Chama-se Perdão, Espírito, Amor, Nova Criação.

    Varrido para o canto da casa pelo vento,

    Rapidamente todo o medo arde.

    Ardem também bolsas, portas e paredes,

    E surge um lume novo a arder dentro de nós

    Mas esse não nos queima nem o podemos apagar.

  • 8/16/2019 O Espírito Santo e nós.pdf

    4/4

    Estamos lá tantos à roda desse vento, desse fogo,

    Com esse vento, com esse fogo dentro,

    Portugueses, russos, gregos e chineses,

    Começamos a falar e tão bem nos entendemos,

    Que custa a crer que tenhamos passaportes diferentes.

    E afinal não temos.

    Vendo melhor, maternais mãos invisíveis nos embalam,

    Nos sustentam.

    Sentimos que estamos a nascer de novo,

    Percebemos que somos irmãos,

    Filhos renascidos deste vento, deste lume.

    E não é verdade que falamos,

    Mas que alguém dentro de nós fala por nós,

    Chama por Deus,

    Como um menino pelo Pai.

    António Couto