O ESTADO CONDENSADO Mecânica Quântica à vista desarmada

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O ESTADO CONDENSADO Mecânica Quântica à vista desarmada J.M.B. Lopes dos Santos, CFP e Departamento de Física, Faculdade de Ciências, Universidade do Porto

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O ESTADO CONDENSADOMecânica Quântica à vista desarmada

J.M.B. Lopes dos Santos,CFP e Departamento de Física, Faculdade de Ciências, Universidade do Porto

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Conteúdo

1 O estado condensado: mecânica quântica à vista desarmada 51.1 Um indiano desconhecido escreve a Einstein . . . . . . . . . . .. . . 51.2 Estados da matéria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71.3 A estatística de Bose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81.4 A concretização experimental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .10

1.4.1 A temperatura de condensação . . . . . . . . . . . . . . . . . 101.4.2 O arrefecimento com Lasers . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111.4.3 Armadilha Magnética . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14

1.5 Observação do condensado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151.5.1 Oscilador harmónico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151.5.2 Oscilador quântico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161.5.3 Uma pausa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

1.6 O que é um condensado? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171.6.1 Dualidade onda-corpúsculo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171.6.2 A função de onda do condensado . . . . . . . . . . . . . . . 211.6.3 Interferência de condensados . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

1.7 Notas finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241.7.1 O laboratório BEC . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241.7.2 Supercondutores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241.7.3 Condensado de Higgs . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

1.8 Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26

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4 CONTEÚDO

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Capítulo 1

O estado condensado: mecânicaquântica à vista desarmada

1.1 Um indiano desconhecido escreve a Einstein

Em 1924, Satyendra Nath Bose, um jovem indiano totalmente desconhecido, enviou aAlbert Einstein um manuscrito cuja publicação tinha sido recusada, solicitando a suaatenção e comentário. Nesse trabalho, o jovem Bose apresentava uma dedução da fór-mula de Planck para a distribuição de energia pelas diferentes frequências do espectroda radiação térmica. Tal como Einstein fizera a propósito do efeito fotoeléctrico, Bosedescreveu a radiação como sendo um gás de partículas. No entanto, introduzia uma ma-neira completamente nova de enumerar os estados possíveis dessas partículas. Einsteininteressou-se pelo trabalho, traduziu-o para alemão e recomendou a sua publicação narevistaZeitschrift für Physik,com o seguinte comentário:

“Na minha opinião, a dedução de Bose da fórmula de Planck constitui umavanço importante. O método usado aqui também dá a teoria quântica dogás ideal, conforme mostrarei noutro local, com maior detalhe” [1].

A aplicação do método de contagem de Bose a um conjunto de partículas cujo númerototal é conservado, referida no comentário ao artigo de Bose, foi o último trabalho deEinstein no domínio da Física Estatística1. Einstein previu a existência de um novotipo de fase da matéria: um condensado. Não se apoquente o leitor se não souber o queé um condensado; é esse o assunto deste artigo.

Há uma curiosa dualidade associada às descobertas dos estados condensados damatéria. A primeira descoberta não foi a previsão teórica deEinstein em 1925, massim a descoberta experimental de Kammerlingh Onnes, em 1911, de que o mercúrioconduzia electricidade sem qualquer resistência abaixo deuma temperatura absolutade 4K. Este estado supercondutor é bastante complexo e a sua descrição teórica mi-croscópica só surgiu 46 anos mais tarde, em 1957, com a teoriade John Bardeen, LeonCooper e Robert Schrieffer (teoria de BCS). Em 1986 foram descobertos materiais comuma versão diferente do estado supercondutor, os supercondutores de alta temperatura,caracterizados, não apenas por uma temperatura de transição para o estado supercon-dutor mais alta, mas também por um conjunto de propriedades invulgares ainda não

1Einstein já estava dedicado ao projecto, que nunca terminou, de unificar as interacções gravíticas comas interacções electromagnéticas, as únicas conhecidas naaltura.

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6 Capítulo 1. O estado condensado: mecânica quântica à vista desarmada

completamente compreendidas. Por outro lado, o estado condensado mais simples foio previsto teoricamente por Einstein em 1925. Neste caso, foi a realização experimentalque se revelou difícil: só foi possível 70 anos mais tarde, em1995, por Carl Wieman eEric Cornell do JILA (Joint Institute forLaboratoryAstrophysics, uma colaboração daUniversidade do Colorado e do NIST,NationalInstitute ofStandards andTechnology)e Wolfgang Ketterle do MIT. Simplicidade conceptual e facilidade de concretizaçãoandam muitas vezes de costas voltadas!

O fascínio dos físicos por estes estados da matéria pode ser ajuizado pelo númerode Prémios Nobel que lhe podemos associar: nove, oito dos quais nas últimas cincodécadas! Eis a lista completa:

• 1913 - Heike Kamerlingh Onnes; o prémio foi atribuído pelos seus trabalhossobre produção de baixas temperaturas. Kammerlingh Onnes foi o primeiro aobservar o fenómeno da supercondutividade: certos metais têm resistência nulaabaixo de uma dada temperatura. Esta descoberta é referida na menção do Nobel.

• 1962 - Lev Landau; Landau foi um físico teórico brilhante cominúmeras contri-buições em todos os ramos da física. O Nobel foi atribuído pelos seus trabalhosteóricos sobre o estado superfluido do Hélio líquido. Neste estado (um conden-sado) o hélio pode fluir sem qualquer viscosidade.

• 1972 - John Bardeen, Leon N. Cooper, Robert Schrieffer; prémio atribuído pelaexplicação microscópica da supercondutividade dos metais. O estado supercon-dutor é um estado condensado de pares de electrões.

• 1973 - Leo Esaki, Ivar Giaever, Brian D. Josephson; Josephson, ainda comoestudante, previu a passagem de corrente sem resistência através de uma camadaisoladora muito fina interposta entre dois supercondutores.

• 1978 - Pyotr Kapitsa, Arno Penzias, Robert Woodrow Wilson; Kapitsa recebeumetade do prémio Nobel pelos seus trabalhos experimentais em Hélio super-fluido.

• 1987 - J. Georg Bednorz, K. Alex Müller; estes dois cientistas da IBM supreen-deram o mundo ao descobrir materiais cerâmicos supercondutores com tempe-raturas de transição muito mais altas do que se julgava possível. Esta descobertaabriu caminho ao desenvolvimento de supercondutores que podem operar a tem-peraturas acima da temperatura de liquefacção do azoto, abrindo perspectivas deaplicações de enorme potencial económico. O prémio Nobel foi atribuído noano seguinte ao da descoberta. Estes materiais ainda hoje desafiam a explicaçãoteórica.

• 1996 - David M. Lee, Douglas D. Osheroff, Robert C. Richardson; pela desco-berta da supefluidez de um outro isótopo de Hélio, o3He. Ao contrário do4He,os átomos de3He são fermiões. Têm um estado superfluido, muito semelhanteaos dos electrões dos metais, mas apenas abaixo de uma temperatura de cerca de0,002K!

• 2001 - Eric A. Cornell, Wolfgang Ketterle, Carl E. Wieman; finalmente a reali-zação experimental do condensado previsto por Einstein.

• 2003 - Alexei A. Abrikosov, Vitaly L. Ginzburg, Anthony J. Leggett; Abriko-sov e Ginzburg (com Landau) desenvolveram na década de 50 umadescrição do

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1.2. Estados da matéria 7

comportamento do condensado supercondutor na presença de um campo mag-nético. Leggett recebeu o prémio pelo seu trabalho teórico sobre as fases con-densadas do Hélio 3.

Esta lista, contudo, não é completa. Menciona apenas prémios associados a estadoscondensados que podemos produzir em laboratório. Acontece, que a nossa compre-ensão de três das quatro interacções fundamentais, Electromagnética, Fraca e Forte, achamada Teoria Padrão de Física de Partículas, tem na base umcondensado. Por outraspalavras, os físicos consideram que o Universo inteiro estánum estado condensado!

O objectivo deste artigo é partilhar com o leitor que não é físico (se for, recomenda-se que leia apenas a bibliografia onde encontrará material mais interessante) este fas-cínio pelos estados condensados da matéria. Naturalmente contentar-nos-emos com omais simples, o de Einstein, chamado condensado de Bose-Einstein. Começaremos portentar perceber o que é que os físicos chamamestadoou faseda matéria; visitaremoso trabalho de Bose e Einstein para perceber o que foi este novoprocesso de contageme como é que ele implicou a existência de um estado condensado; discutiremos breve-mente as dificuldades que tiveram de enfrentar os físicos para concretizar este estadoda matéria; terminaremos com a discussão da natureza fundamental e singular destetipo de fases, isto é, o facto de constituírem objectos macroscópicos com propriedadesquânticas manifestas, algo que habitualmente só se observaem sistemas de dimensõesatómicas ou moleculares.

1.2 Estados da matéria

A todos nós foi ensinado, em criança, que os estados da matéria são três: sólido, líquidoe gasoso. Depois tornamo-nos mais sofisticados e aprendemosque afinal havia umquarto: o estado de plasma, em que as cargas positivas dos núcleos e as cargas negativasdos electrões estão separadas em vez de se reunirem em átomose moléculas. Afinal oque é um estado da matéria?

A matéria é feita de partículas muito pequenas e em grande número; um grama dequalquer material tem cerca de 1023 de partículas2. Essas partículas podem agrupar-sede muitos modos diferentes. Em formas extremamente complexas, de comportamentoessencialmente imprevisível, como, por exemplo, um ser humano. A descrição, aindaque parcial, de tais agregados escapa-nos; sabemos, por experiência própria, quão difí-cil é prever o resultado de uma interacção com um tal “sistema”. Felizmente para nós,os átomos e moléculas também se agrupam em sistemas muito mais simples, passíveisde uma descrição relativamente completa através da enumeração de um conjunto redu-zido de propriedades macroscópicas3: volume, densidade, pressão, temperatura, com-pressibilidade, resistência eléctrica, etc. Quando os físicos identificam um conjunto depropriedades que caracterizam um modo de organização dos átomos e moléculas falamde uma fase ou estado da matéria; fases diferentes implicam em geral conjuntos dife-rentes de propriedades. Por exemplo, o diamante e o cobre podem ser caracterizados

2Se o número não lhe diz nada, imagine o leitor que enche uma caixa de 1m×1m×0,5m de moedas deum cêntimo; cobre completamente um campo de futebol com estas caixas empilhadas até uma altura de 50metros; considera um milhão de campos de futebol assim preparados; ainda não chegou lá! Tem que repetiristo 100 000 vezes para ter 1023 moedas de um cêntimo.

3Propriedades macroscópicas só podem ser definidas e medidasem corpos cujas dimensões são muitosuperiores às dimensões atómicas. Por exemplo, faz sentidofalar na resistência eléctrica de um fio de cobremas não na de um átomo de cobre. Hoje em dia, a distinção entre sistemas macroscópicos e microscópicostende a esbater-se e os físicos estudam muitos sistemas de dimensões intermédias. Isso implica, muitasvezes, a introdução de novos conceitos e modos de descrição.

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por algumas propriedades comuns: densidade, módulo de Young, capacidade térmicamássica, condutividade térmica, etc. São ambos fases sólidas. Contudo, o cobre tem apossibilidade de condução de corrente eléctrica que está praticamente ausente no casodo diamante. Por isso há um conjunto de propriedades adicionais necessárias à ca-racterização do cobre; resistividade eléctrica, coeficiente de Hall, etc. Dizemos que ocobre está numa fase “metálica” e o diamante numa “fase isoladora”. Embora sejamambos sólidos, sabemos que parte da carga electrónica do cobre forma um líquido, quepode escoar e fluir na presença de perturbações eléctricas e éresponsável pelas suaspropriedades metálicas4.

O leitor compreenderá, então, que os físicos não se contentem com três ou mesmoquatro estados ou fases da matéria. O assunto deste artigo é um tipo muito especial defases da matéria: as fases condensadas. A maior parte das fases da matéria podem serdescritassem qualquer referência a conceitos quânticos. É certo que afísica quânticaé a base da explicação das características particulares de qualquer fase, já que sãoas leis da física quântica que regem o movimento dos átomos que constituem todas asfases. Para compreender os valores de resistividade do cobre, por exemplo, é necessáriaa física quântica. Todavia, a definição de resistência eléctrica só envolve conceitosclássicos, muito anteriores à descoberta da mecânica quântica. Ora, no caso das fasescondensadas, é a própriadescriçãoque é intrinsecamente quântica; as propriedadesmacroscópicas que descrevem uma fase condensada são de natureza quântica; por issoas fases condensadas, mostram mecânica quântica “à vista desarmada”.

1.3 A estatística de Bose

Voltemos então aos trabalhos de Bose e Einstein. Como foi possível re-aprender acontarno início do século XX? Um exemplo simples ajuda-nos a perceber o que estavaem causa.

Suponha o leitor que tem duas bolas semelhantes para colocarem duas caixas e queo faz do seguinte modo (figura 1.1). Lança uma moeda ao ar e coloca a primeira bolaconsoante o resultado: caixa esquerda para caras e direita para coroa, por exemplo.Usa o mesmo procedimento para a segunda bola. Se repetir istomuitas vezes, quantasvezes espera ter uma bola em cada caixa?

A resposta envolve um processo de contagem. Todos os estadosfinais têm igualprobabilidade de ocorrência. Há um estado com as duas bolas na caixa da esquerda,outro com as duas bolas nas caixa da direita edois estados com uma bola em cadacaixa. Se não acredita, imagine que a primeira bola é preta a segunda é branca. Nãoespera, certamente, que a resposta seja diferente para bolas iguais? Portanto a respostacorrecta é que cerca demetade das vezes haverá uma bola em cada caixa(fig. 1.1a).

Para determinar o comportamento de sistemas de muitas partículas, os físicos fazemjogos semelhantes a este: as bolas são as partículas; as caixas são os estados (as orbitaisde que se ouve falar quando se estuda Física na disciplina de Química).

As especificações que determinam o valor das propriedades macroscópicas de agre-gados de muitas partículas são, em geral, compatíveis com muitas configurações mi-croscópicas. A seguinte analogia pode ajudar a compreendereste conceito: quandodescrevemos uma mão de bridge como tendo quatro cartas de paus, três de espadas,

4Quando pousamos um cubo de cobre numa mesa este “líquido” nãose acumula na parte inferior porqueestá carregado electricamente. A repulsão electrostáticaentre electrões domina completamente a atracçãogravítica da Terra e obriga a que se espalhem o mais uniformemente possível no interior do cobre.

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1.3. A estatística de Bose 9

(a) (b)

2

1

3

4

1

2

3

Figura 1.1:(a) Numa contagem clássica, de partículas distinguíveis, com dois estados possíveis para cada

partícula, um sistema de duas partículas tem quatro configurações distintas ; (b) para obter a distribuição de

Planck, Bose teve de admitir que os estados de partículas como os fotões se contam de maneira diferente; só

há uma configuração com as duas partículas em estados diferentes.

cinco ouros e uma copa, não ficamos a conhecer a mão, já que há muitas mãos possí-veis compatíveis com esta descrição. De facto, a distribuição mais comum de naipes(o equivalente à descrição macroscópica) será a que for compatível commaismãos(cada mão equivale a uma configuração ou estado microscópico). Daqui se vê a im-portância dacontagemdas configurações microscópicas, para saber que propriedadesmacroscópicas são as mais prováveis num dado sistema.

Bose concluiu que, se em vez de bolas estiver a lidar com partículas de luz, paraobter a fórmula de Planck tinha de assumir uma maneira de contar o número total deconfigurações correspondentes a uma dada distribuição de partículas (bolas) pelos es-tados (caixas) diferente da referida acima. No caso correspondente ao nosso exemplo,duas partículas e dois estados, só existeumaconfiguração com uma partícula em cadaestado; trocar as partículas não dá um novo estado; elas são,de um modo fundamental,indistinguíveis. Ou seja, se as bolas obedecessem à mesma lei de contagem de con-figurações que os fotões, a probabilidade de haver uma bola emcada caixa seria 1/3,não 1/2 (fig. 1.1b). Esta alteração pode parecer inócua, mas torna-se muito importantequando o número de estados e de partículas é muito grande comoé o caso de um sis-tema macroscópico. Com dez orbitais com uma partícula em cada uma, na maneiraclássica de contar há 10×9× . . .×1 = 10! = 3628800, mais de três milhões de con-figurações distintas; na maneira usada por Bose, há apenasuma! Por outro lado, comas dez partículas na mesma orbital, temos sempre um único estado, qualquer que seja a“estatística de contagem”: clássica, de partículas distinguíveis como no caso das bolas,ou de Bose, para partículas indistinguíveis, bosões. Se fôssemos distribuir bosões pororbitais de um modo totalmente aleatório, o peso relativo deestados com muitos bo-sões na mesma orbital seria muito superior ao do caso clássico, simplesmente porque aredução do número de configurações microscópicas é tanto maior quanto mais orbitaisforem ocupadas.

Einstein aplicou este processo de contagem a um sistema de partículas sem quais-quer forças de interacção mútua (de repulsão ou de atracção); por outras palavras, a umgás. A situação habitual de um gás de partículas distinguíveis é a de um movimentodesordenado das partículas, com energias médias tanto maiores quanto mais elevada

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10 Capítulo 1. O estado condensado: mecânica quântica à vista desarmada

for a temperatura. A relação entre a energia de cada partícula e a temperatura é atémuito simples: a energia cinética média de cada partícula é proporcional à temperaturaabsoluta,T, emKelvin:

〈ε〉 =32

kBT

em quekB é uma constante universal (independente do gás), designadapor constantede Boltzmann.

Para bosões, partículas indistinguíveis com configuraçõescontadas de acordo coma receita de Bose, o resultado é muito diferente. Em particular, abaixo de uma certatemperaturaTc (temperatura de condensação de Bose-Einstein) uma fracçãofinita daspartículas prefere ocupar o estado de mais baixa energia possível. Essa fracção crescerapidamente abaixo deTc, aproximando-se da unidade (todos os bosões no estado demais baixa energia). A maior parte dos bosões não tem qualquer agitação térmica,mesmo a temperaturas finitas (diferentes deT = 0K). Esta condensação resulta da pre-ferência relativa de bosões pelo mesmo estado. Num gás clássico com dez partículashá mais de três milhões de configurações com uma partícula porestado e apenas umacom as dez partículas no mesmo estado. Num gás de bosões há apenas uma configu-ração microscópica em qualquer dos casos! E recorde-se, nãoestamos a lidar com dezpartículas, mas sim com 1023!

1.4 A concretização experimental

1.4.1 A temperatura de condensação

Por que razão decorreram 70 anos entre a previsão de Einsteine a realização experi-mental de Wieman, Cornell e Ketterle? Bosões não são difíceis de encontrar. É umfacto que electrões, protões e neutrões, constituintes do átomo, obedecem ao princípiode exclusão de Pauli e não podem condensar directamente poisnão podem estar maisdo que dois no mesmo estado orbital e mesmo assim só se tiveremspin diferente. Con-tudo, um átomo com um número par destas partículas comporta-se como um bosão;tais átomos existem em grande abundância.

A condensação que Einstein previu dizia respeito a partículas que não interagem.Ora, se estiverem suficientemente próximas, todas as partículas exercem forças mútuas;a única maneira de nos aproximarmos do sistema descrito por Einstein é usar um gástão diluído, com tais distâncias entre as partículas, que possamos ignorar as forças quecada partícula exerce nas outras.

Acontece que a temperatura abaixo da qual surge a fase condensada é tanto menorquanto menor for a densidade do gás: um gás muito diluído só condensa a temperaturasmuito baixas. É aqui que surge o problema que demorou tantos anos a ser ultrapassado:ao baixar muito a temperatura de qualquer substância, ela solidifica! Mesmo que o gásesteja muito diluído, as partículas colidem de quando em quando. A temperaturasmuito baixas, a sua energia cinética é tão pequena, que acabam por agregar-se e osistema solidifica. As partículas estão agora próximas umasdas outras e as forças entreelas são significativas.

Todavia, existe uma escapatória para este dilema. A solidificação requer colisões detrês partículas; a conservação de energia numa colisão de baixa energia de duas partícu-las não permite que se agreguem; se existir uma terceira partícula, esta pode transportara energia em excesso resultante da agregação das outras duase a solidificação podeiniciar-se. Como as colisões de três partículas são extremamente raras, a solidificação

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1.4. A concretização experimental 11

(a) (b)

Figura 1.2: (a) A baixas energias duas partículas não podem ficar agregadas numa colisão porque isso

implicaria uma diminuição de energia; (b) mas, numa colisãoentre três partículas, a terceira partícula pode

transportar a energia que é retirada às outras duas que ficam agregadas. Como num gás diluído as colisões

de três partículas são extremamente raras, a solidificação pode demorar muito tempo e a fase gasosa diz-se

metastável.

demora um tempo tão longo que a fase gasosa permanece, emboraa fase estável sejasólida: a fase gasosa diz-se metastável. Para garantir a existência de uma fase gasosametastável é necessário diluir tanto o gás, que a temperatura de condensação atingevalores extremamente próximos do zero absoluto: cerca de 10−9

K = 0,000000001K!Como é que se arrefece um gás de bosões a temperaturas tão baixas? Um frigorífico

não serve; a temperatura de um congelador é−18oC ou seja 255K; o azoto líquido,

usado em tantas demonstrações de efeitos de “baixas temperaturas”, só nos leva a 77K;com hélio líquido, presente em inúmeros laboratórios de física e em unidades médicasde ressonância magnética, só conseguimos cerca de 1K. Nem o espaço inter-estelar temtemperaturas tão baixas. Mesmo longe de qualquer estrela, atemperatura da radiaçãocósmica de fundo é cerca de 3K; o Universo é frio mas não tanto.

Surpreendentemente, o arrefecimento de uma nuvem de átomosa temperaturas tãobaixas consegue-se iluminando-os com luz laser. Lasers paraarrefecer? E então aque-les lasers usados para cortar metal ou para vaporizar inimigos, como se vêem nos fil-mes?

1.4.2 O arrefecimento com Lasers

Desde o trabalho de Einstein em 1905 e de Bohr em 1913 que sabemos que quandoum sistema físico absorve radiação, o faz em pacotes discretos de energia, os fotões.A absorção ou emissão só é possível se a diferença de energia entre os dois níveis deenergia do átomo for igual à energia do fotão, que é proporcional à frequência da ra-diação,E1−E2 = h f . Um feixe laser a passar por uma nuvem de átomos idênticos,com uma frequência longe de qualquer ressonância (h f 6= Ei −E j , para qualquer par deníveis atómicos) não sofre qualquer absorção; mas se a frequência do laser estiver pró-xima de uma condição de ressonância os átomos podem absorverfotões; ao absorverum fotão recebem um impulso na direcção de propagação do mesmo e ficam sujeitos auma força na direcção de propagação do Laser5.

O arrefecimento com laser utiliza oefeito Döppler, que consiste na variação dafrequência da radiação com o movimento relativo da fonte e receptor. O leitor já deveter notado que o som de uma sirene de carro de polícia ou ambulância parece baixarligeiramente de frequência (som mais grave) quando passa por si; ou seja, se a fontese deslocar em direcção a si, ou o leitor em direcção à fonte, afrequência é mais alta

5Os níveis de energia dos átomos não têm uma energia exactamente definida, pelo que a absorção podeocorrer numa gama estreita de frequências em torno da condição de ressonância.

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12 Capítulo 1. O estado condensado: mecânica quântica à vista desarmada

Iabs

nR nL

nLnR

z

zv

F =− α v

v

Figura 1.4:Uma nuvem atómica entre dois feixes, de frequência abaixo dafrequência de ressonância (red-

tuned); devido ao efeito Döppler, o máximo de absorção dos fotões do feixe L ocorre para uma velocidade

com o sentido positivo do eixoOz; para fotões do feixeR para uma velocidade com o sentido oposto. Em

consequência, há mais absorção de fotões de um dado feixe se avelocidade do átomo tiver o sentido oposto

ao da propagação do mesmo; um átomo com uma velocidade segundo zpositiva (v > 0) absorve mais fotões

do feixe L, ficando portanto sujeito a uma força de sentido oposto ao do seu movimento. Esta absorção

selectivatrava o movimento do átomo, pois a força sobre cada átomo é oposta à respectiva velocidade.

(som mais agudo); quando a fonte e o leitor se afastam a frequência é mais baixa (sommais grave). Não é difícil compreender porquê. Imagine-se frente a uma máquina detreino de ténis que lhe manda uma bola por segundo. Se começara correr em direcçãoà máquina, o tempo entre bolas sucessivas é inferior a um segundo, porque cada bolapercorre uma distância, da máquina até si, ligeiramente inferior à da bola anterior;a frequência (número de bolas recebidas por segundo) é maiordo que se estiver emrepouso em relação à fonte. Por outro lado, se se afastar da máquina, recebe menosdo que uma bola por segundo porque cada bola percorre uma distância superior à bolaanterior.

No caso de uma onda progressiva temos uma

Figura 1.3:Um átomo só emite ouabsorve radiação de um conjunto discreto defrequências, determinadas pelas diferençasde energias dos níveis entre os quaistransita.

alternância de máximos e mínimos a viajar nadirecção de propagação da onda a uma dada ve-locidade. A frequência vista pelo receptor é dadapelo número de máximos (oscilações comple-tas) por unidade de tempo, detectados no re-ceptor; se este se move em direcção à fonte,o intervalo de tempo entre máximos diminui ea frequência aumenta; se o receptor se afastarda fonte acontece o inverso. Esta variação defrequência com o movimento relativo da fonte ereceptor é oefeito Döppler.

Imaginemos agora uma nuvem de átomosem agitação térmica, iluminada por dois feixesde direcções opostas,L eRe com frequências li-geiramente abaixo de uma ressonância (fig. 1.4).Os átomos que se movem em direcção ao feixeL, por exemplo, vêem a respectiva

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1.4. A concretização experimental 13

frequência mais alta e portanto mais próxima da ressonância; absorvem fotões destefeixe e ficam sujeitos a uma força de sentido oposto ao do seu movimento. Por outrolado, estes átomos estão a afastar-se da fonte do feixeR, a respectiva frequência ficamais afastada da ressonância e quase não absorvem fotões desse feixe. O mesmo racio-cínio pode ser aplicado a átomos que se movem na direcção oposta, o que nos conduz àseguinte conclusão: a força sobre cada átomo tem o sentido oposto ao da respectiva ve-locidade! Mais: quando a velocidade é nula, ou muito pequena, a força é praticamentezero porque a absorção é muito pequena e quase igual para fotões dos dois feixes. Co-locando a nuvem atómica no cruzamento de três pares de feixesde sentidos opostosem direcções perpendiculares, verifica-se que a força resultante sobre cada átomo temo sentido oposto à respectiva velocidade, e que é proporcional ao valor de~v, ~F ∝ −~v,exactamente como se os átomos se movessem num meio viscoso. Deste modo é pos-sível reduzir muito a velocidade dos átomos, o que corresponde a baixar a temperaturada nuvem atómica. Todavia, este processo de arrefecimento,desenvolvido por SteveChu (Universidade de Stanford) e aperfeiçoado por William Phillips (NIST) e ClaudeCohen-Tannoudji (École Normal Supérieure, Paris), nobelizados em 1997, não resolvetodos os problemas.

Para começar, a temperatura não é suficientemente baixa. Consegue-se arrefecer anuvem a cerca de alguns microkelvin (1µK = 10−6

K) que é ainda quase 1 000 vezessuperior à temperatura necessária para a condensação. Depois, uma nuvem com átomostão lentoscai! O peso dos átomos, em pouco tempo, imprime velocidades na direcçãovertical descendente que são da ordem de grandeza das velocidade de agitação térmicados átomos. A nuvem cai ao chão!

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14 Capítulo 1. O estado condensado: mecânica quântica à vista desarmada

B

Figura 1.5:Armadilha magnética quadrupolar; os átomos com momento paralelo ao campo magnético

deslocam-se para regiões de campo mais elevado e afastam-sedo centro da armadilha; mas os átomos com

momento magnético oposto ao campo são atraídos para o centroda armadilha onde a intensidade do campo é

menor. Na realidade este tipo de armadilha só funciona com umcampo rotativo que impede que o momento

dos átomos se inverta no centro, onde o campo é nulo. Usando umterceiro campo oscilante, com frequência

apropriada, é possível inverter o sentido do momento magnético de um átomo confinado. Esse átomo passa

a ser repelido e afasta-se da armadilha.

1.4.3 Armadilha Magnética

Os átomos usados nestas experiências têm momentos magnéticos, o que significaque se comportam como ímanes minúsculos. Um íman com o seu momento alinhadona direcção de um campo magnético de outro íman é actuado por uma força na direcçãoem que o campo aumenta de intensidade; se o seu momento tiver adirecção oposta aocampo, a força é no sentido do campo decrescente. Para evitara queda da nuvem, usam-se elaboradas configurações de campos magnéticos que, em virtude da interacção comos momentos magnéticos dos átomos, os mantêm confinados por forças magnéticas auma região que, em geral, tem uma forma esférica ou elipsoidal. Este dispositivo recebeo nome dearmadilha magnética (trap)(fig. 1.5). Note-se que só ficam confinados osátomos com momentos magnéticos com sentido oposto ao do campo da armadilha.

Muito bem, temos uma nuvem de átomos, presos na nossa armadilha, mas a umatemperatura demasiado alta para observar a condensação. Como é que continuamos aarrefecê-los? A solução de Wieman, Cornell e Ketterle, foi inspirada num processo queusamos todos os dias para arrefecer líquidos demasiado quentes: soprar! Num líquidopróximo da temperatura de ebulição, as moléculas mais energéticas escapam da suasuperfície; ao soprar, removêmo-las da vizinhança do mesmo. Deste modo removemosselectivamente as moléculas de maior energia; a energiamédiadas moléculas que ficambaixa e a temperatura diminui.

No caso da armadilha são os átomos mais afastados do centro que têm maior ener-gia. Usando campos magnéticos oscilantes com frequências próximas das ondas derádio é possível criar umburaco6 a uma distância determinada do centro da armadilhapor onde os átomos escapam. Se o buraco for criado longe do centro da armadilhaescapam os átomos mais energéticos e a temperatura desce. Variando a posição dobu-raco (o que se consegue variando a frequência do campo oscilante)consegue-se baixar

6O que acontece de facto é que o campo magnético oscilante permite inverter o momento magnético dosátomos; as forças magnéticas da armadilha deixam de ser atractivas e passam a ser repulsivas para átomoscom o momento magnético invertido. Variando a frequência docampo oscilante varia a região da armadilhaonde ocorre a inversão do momento magnético.

Page 15: O ESTADO CONDENSADO Mecânica Quântica à vista desarmada

1.5. Observação do condensado 15

cada vez mais a temperatura até atingir a temperatura de condensação.

1.5 Observação do condensado

Suponhamos então que conseguimos produzir a fase condensada. Como é que o ve-mos? Como é que podemos certificar-nos da sua existência?

Figura 1.6:Primeira observação de um condensado de Bose-Einstein. A figura representa a densidade da

nuvem num corte plano a três temperaturas. É visível o aparecimento de um pico central, com densidade que

cresce rapidamente abaixo da temperatura de condensação. Aagitação térmica de um gás clássico implica

uma distribuição de partículas numa região muito maior que ado pico central. Os átomos da nuvem eram de87Rb . [1]

Wieman e Cornell conseguiam observar a nuvem, iluminando-a(com radiaçãolonge de ressonâncias) e observando-a à transmissão. Onde anuvem é mais densadifunde mais radiação e aparece mais escura à transmissão. Oque observaram, aobaixar a temperatura, foi o aparecimento de uma zona central, de dimensões muitomenores que o esperado para a temperatura da nuvem, e de densidade muito elevada,contendo a maior parte do átomos da nuvem (figura 1.6). Por queé que identificaramesta observação com a formação da fase condensada?

1.5.1 Oscilador harmónico

Para prosseguir temos agora de gastar algum tempo a discutiro que é seguramente osistema mais importante de toda a Física: o oscilador harmónico.

Numa armadilha magnética, um átomo confinado (momento magnético oposto aocampo) tem uma posição de equilíbrio no centro da armadilha;nessa posição a forçamagnética de confinamento anula-se. Se se afastar, fica sujeito a uma força de retorno

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16 Capítulo 1. O estado condensado: mecânica quântica à vista desarmada

kBT

ρ( )y

ρ( )yx

T

E

y

0

Figura 1.8: Os níveis de energia de um oscilador harmónico; as linhas horizontais no painel superior

representam as energias quantificadas de oscilação. O comprimento das linhas dá uma indicação da distância

do centro a que a partícula pode ser encontrada a cada energia. Num gás clássico, os níveis de energia estão

significativamente ocupados até energias da ordem dekBT em queT é a temperatura absoluta ekB a constante

de Boltzmann. O resultado seria um perfil de densidade semelhante à linha a tracejado no painel inferior,

ρT (x). Mas se a maior parte dos átomos estiver no estado fundamental o perfil de densidade é muito mais

estreito,ρ0(x).

ao centro que é proporcional ao seu afastamento. É esta relação entre força e afasta-mento do equilíbrio que define um oscilador harmónico.

Esta proporcionalidade implica um resultado

t

y

Figura 1.7:A frequência de um osciladorharmónico não depende da amplitude daoscilação.

muito importante: o átomo oscila em torno daposição de equilíbrio e fá-lo com uma frequênciaque é independente do seu afastamento máximo,a amplitude do movimento. Se o afastamentomáximo aumentar, o átomo percorre um distân-cia maior em cada oscilação; contudo a força émaior e o átomo move-se com maior aceleraçãoe, consequentemente, maior velocidade. Parauma força harmónica, proporcional ao deslocamento do equilíbrio, estes dois efeitoscompensam-se e a frequência,f , é constante: é característica de cada oscilador.

Já a energia da oscilação é tanto maior quanto maior for a amplitude do movimento.A temperatura de um gás é uma medida da energia média das suas partículas. Assim,conhecendo a temperatura da nuvem atómica e as características da armadilha (o valorda força restauradora) é possível saber qual é a amplitude média das oscilações, ouseja, o tamanho da nuvem atómica.

1.5.2 Oscilador quântico

A descrição que fizemos do oscilador harmónico ignorou os aspectos quânticos domovimento do mesmo. Embora os osciladores macroscópicos nos pareçam poder terqualquer valor de energia, Planck mostrou que a energia de umoscilador harmónicoestá quantificada em múltiplos de um valor proporcional à respectiva frequência,E =

Page 17: O ESTADO CONDENSADO Mecânica Quântica à vista desarmada

1.6. O que é um condensado? 17

E0, E0 + h f, E0 + 2h f . . .., conforme se mostra na figura 1.8. Isto é verdade mesmopara um corpo macroscópico a oscilar preso a uma mola; mas, para uma frequência de1Hz, isto é, uma oscilação por segundo, a energia valeh f = 6,6×10−34

J, uma energiaridiculamente pequena7.

Na experiência de Cornell e Wieman a energia de agitação térmica,kBT, em queTé a temperatura em Kelvin ekB a constante de Boltzmann, era muito superior ah f , emque f era a frequência de oscilação de um átomo na armadilha. Num gás clássico osátomos distribuem-se por todos os níveis até uma energia da ordem da energia média deagitação térmica. A energia é proporcional ao quadrado da amplitude do movimento,E ∝ y2

0; por isso os estados de energia mais elevada (da ordem dekBT) correspondema maiores afastamentos do centro da armadilha e determinam otamanho da nuvem.

O fenómeno previsto por Einstein consiste precisamente em quase todos os átomosperderem a agitação térmica e ocuparem apenas o estado orbital do oscilador com maisbaixa energia, a temperaturas inferiores à de condensação.Nesse caso a distância aque podem ser encontrados do centro da armadilha é muito maispequena do que numestado de energia da ordem dekBT e o perfil de densidade atómica fica muito maisestreito, tal como Wieman e Cornell observaram (fig. 1.8).

1.5.3 Uma pausa

Até este momento, descrevemos a maneira peculiar de contar descoberta por Bose, asrespectivas consequências para o comportamento de um gás antevistas por Einsteine fizemos uma breve discussão da descoberta experimental. A tarefa que nos restaé aprofundar um pouco a natureza quântica da fase condensadae descrever algumasexperiências notáveis que a evidenciam de um modo muito directo. Se o leitor quiserrecuperar o fôlego, este é um momento apropriado para fazer uma pausa!

1.6 O que é um condensado?

1.6.1 Dualidade onda-corpúsculo

Muito bem, os bosões são partículas que parecem preferir juntar-se num só estado, ode mais baixa energia, a espalharem-se desordenadamente por muitos. É só isso, umcondensado?

Mesmo que fosse só isso, já seria surpreendente, como referiu Einstein em 1925[1]:

...and the differences between distinguishable and indistinguishable statecounting ...express indirectly a certain hypothesis on themutual influenceof the molecules which for the time being is of a quite mysterious nature8.

7Quando lidamos com oscilações de átomos em sólidos, por exemplo, esta quantificação pode tornar-semuito importante SekBT ≪ h f , o oscilador encontra-se quase só no seu estado de mais baixaenergia e temuma energia média muito inferior akBT. Einstein usou este facto para explicar que os calores específicosdos sólidos tendem para zero à medida que a temperatura desce, em vez de ficar constantes, como previa afísica estatística clássica (ver Artigo ?? deste livro). Nocaso da condensação de Bose-Einstein observadapor Cornell e Wieman é o limite oposto (kBT ≫ h f) que se verifica.

8...e as diferenças entre contagem de estados distinguíveise indistinguíveis...exprimem indirectamenteuma certa hipótese sobre a influência mútua das moléculas, que, por agora, é de uma natureza bastantemisteriosa.

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18 Capítulo 1. O estado condensado: mecânica quântica à vista desarmada

A condensação de Bose-Einstein é uma bela ilustração desta misteriosa influência mú-tua: os átomos “preferem” estar juntos no mesmo estado, apesar de não interagiremuns com os outros!

Nesta segunda parte vamos discutir uma maneira diferente dedescrever um con-densado, que é aplicável, não apenas ao condensado de Bose-Einstein, mas tambéma situações mais complexas como o Hélio superfluido ou os supercondutores. Comoveremos, esta descrição torna mais evidente a natureza intrinsecamente quântica destafase.

Um das ideias centrais da Mecânica Quântica é a da dualidade onda-corpúsculo. Sejá leu, ou ouviu, alguma exposição popular sobre este assunto poderá ter ficado com anoção de que os conceitos de onda e partícula são, de um modo algo misterioso, fundi-dos em Mecânica Quântica. Os estados condensados são uma ilustração notável destafusão. Para vermos porquê temos de voltar ao sistema preferido dos físicos, o osciladorharmónico.

t

y(t)

Figura 1.9: Duas oscilações com a mesmaamplitude e fases diferentes.

Classicamente um oscilador harmó-nico é uma partícula que oscila em tornode uma posição de equilíbrio com umafrequência independente da sua ampli-tude. A sua coordenada de posição é de-terminada por dois parâmetros: uma am-plitude,y0, que é valor máximo do afas-tamento em relação à posição de equilí-brio, e uma fase,ϕ(t), que determina emque parte da oscilação completa se en-contra a partícula. A forma matemáticada posição é

y(t) = y0cos(ϕ(t)) ,

em queϕ(t) = 2π f t + ϕ0.

A fase é um ângulo, medido em radianos. Seϕ(t) = 0, ±2π ,±4π , . . ., a coor-denaday(t) está num máximo; seϕ(t) = ±π ,±3π , . . ., num mínimo; seϕ(t) =±π/2,±3π/2, . . ., a partícula passa na posição de equilíbrio. Quando o tempo avançade 1/ f , a fase avança de 2π e a função cosseno tem uma oscilação completa. A fi-gura 1.9 mostra duas oscilações com fases diferentes e a mesma amplitude.

A descrição quântica (que é a verdadeira) é muito diferente.Enquanto que nadescrição clássicay0 e a energia,E ∝ y2

0, podem ter quaisquer valores, no casoquântico os valores de energia estão quantificados,

E0, E0 +h f, E0 +2h f + . . .

e para cada um destes valores existe um estado caracterizadopor uma função de onda,como no caso das orbitais do átomo de hidrogénio. Em cada um destes estados o valorda coordenada de posição é incerto e apenas podemos especificar a respectivadistribuição de probabilidade. Para o estado de mais baixa energia (estadofundamental), a distribuição de probabilidade tem exactamente o aspecto da curvamais estreita no painel de baixo da figura 1.8 da página 16. O valor médio da posição

Page 19: O ESTADO CONDENSADO Mecânica Quântica à vista desarmada

1.6. O que é um condensado? 19

������������������������������������������������������������������������

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������������������������������������

������������������������������������

(b)

(d)

(c)

(a)

Figura 1.10:O movimento geral transversal de uma corda elástica presa nas extremidades pode parecer

muito complicado. Contudo, certos movimentos são muito simples, (b) a (d). Nestes movimentos todos

os pontos da corda têm uma oscilação harmónica em fase, com a mesma frequência, entre duas posições

extremas (a cheio e a tracejado) que definem uma onda simples ao longo da corda. No movimento mais

geral, (a), o deslocamento de cada ponto é a soma destes movimentos harmónicos.

〈y〉 é nulo em qualquer instante. Contudo, podemos comparar posições em instantesdiferentes calculando a média do produto dey no instante inicial,t = 0 e no instantet,〈y(t)y(0)〉. O resultado dado pela mecânica quântica é, precisamente,

〈y(t)y(0)〉 ∝ cos(2π f t) .

É como se afaseda oscilação estivesse indefinida num estado quântico; com afaseindefinida o valor de posição pode variar entre−y0 ey0 e o valor médio é nulo,〈y〉 = 0; mas quando consideramos dois instantes de tempo diferentes, 0 et, obtemosuma diferença de fase bem definida,∆ϕ = 2π f t e conseguimos ver a oscilação. Sejacomo for, esta é uma maneira interessante de pensar os estados dos osciladores: aindefinição dey resulta da indefinição da fase da oscilação.

Um pouco atrás afirmámos que o oscilador harmónico era o modelo físico maisimportante. Está na altura de o provar. A razão é a seguinte:

Qualquer sistema oscilatório é equivalente a um conjunto deosciladoresharmónicos independentes!9

Um exemplo simples ajuda-nos a compreender esta afirmação. Acorda de uma guitarrapode ter movimentos de oscilação muito variados. Os praticantes deste instrumento sa-bem obter timbres distintos mudando a maneira de dedilhar a corda. Contudo, existeum conjunto muito especial de movimentos, designados pormodos normais, em quetodos os pontos da corda executam um movimento harmónico simples com a mesmafrequência e relações de fase bem definidas (figura 1.10). Nestes movimentos a ampli-tude de oscilação varia ao longo da corda como uma onda simples, com comprimento

9Na realidade, qualquer sistema oscilatóriolinear; em geral, os osciladores são lineares para oscilaçõesde pequena amplitude.

Page 20: O ESTADO CONDENSADO Mecânica Quântica à vista desarmada

20 Capítulo 1. O estado condensado: mecânica quântica à vista desarmada

de onda bem definido, dado porλ = 2L (fig. 1.10b),λ = L, (fig. 1.10c),λ = 2L/3(fig. 1.10d), etc., em queL é o comprimento a corda. No movimento mais geral o des-locamento de cada ponto é simplesmente asomados deslocamentos correspondentes acada modo normal.

Na descrição do movimento de um sistema oscilante contínuo,umcampono jargãodos físicos, usamos a letraψ para designar o deslocamento de cada ponto; é o análogoda coordenaday(t). Mas a corda não é uma partícula, tem muitos pontos, e temos deidentificar cada um por uma coordenada de posiçãox, que varia de 0 aL, o compri-mento da corda. Um modo normal de comprimento de ondaλ corresponde, então, aum deslocamento da corda,

ψλ (x,t) = ϕλ (x)cos(2π fλ t)

em que a funçãoϕλ (x) caracteriza a variação da amplitude de vibração com a posição.As linhas representadas a cheio na Figura 1.10b-d são gráficos deϕλ (x) paraλ = 2L, Le 2L/3.

Ora cada modo normal é um oscilador independente. O que nos diz a mecânicaquântica sobre osciladores? A respectiva energia pode serE0, E0+h fi , E0+2h fi + . . .,em quefi é a frequência do modo. É como se pudéssemos ter zero, uma, duas excita-ções e assim por aí adiante, todas com a mesma energiah fi . Temos, portanto, umaondacom o comprimento de ondaλ do modo normal, mas as energias são exactamente asque esperamos se pudermos ter zero, uma, duaspartículas,todas idênticas e todas coma mesma energia10, h fi . Chegamos aqui à raiz da famosa dualidade onda-corpúsculo:

Quando fazemos o tratamento quântico de um sistema contínuooscilante(onda), os modos normais são os estados que podem conter 0, 1, 2, . . .partículas.

Cada tipo de partícula está associado ao tratamento quântico de um dado campo (sis-tema contínuo oscilante) e podemos dizer que:

As partículas em mecânica quântica são as oscilações quânticas de umcampo!

Confuso? Naturalmente! É um conceito difícil, pouco familiar; num primeiro encontronão nos apercebemos do seu alcance e poder. Mas antes de prosseguirmos repare-sedesde já como se desvanece o mistério referido por Einstein relativamente à indistin-guibilidade dos bosões.

As caixas da figura 1.1 da página 9 sãoestados, ou seja, modos de vibração deum campo; assim, ter duas partículas numa caixa equivale a ter um modo com duasexcitações e o outro no estado de mais baixa energia; para dois modos, temos doisestados deste tipo para o campo, conforme o modo que estiver excitado. Ter umapartícula em cada caixa é ter os dois modos no primeiro estadode excitação. Isto fixamaisumestado do campo. Pense-se, por exemplo na corda de guitarra.Ao especificara amplitude de cada modo normal estamos a determinar completamente o movimento(o estado) da corda. Neste contexto não existe o conceito de troca de partículas.

Considerando, então, dois modos do campo e duas excitações,é óbvio que só po-demos tertrêsestados:

10Outra característica dinâmica de uma partícula é o seu momento linear, p. No caso de uma onda pro-gressiva (não uma estacionária, como as que representámos na figura 1.10) o momento é determinado pelocomprimento de onda,λ , do modo normal de que a partícula é uma excitação,p = h/λ .

Page 21: O ESTADO CONDENSADO Mecânica Quântica à vista desarmada

1.6. O que é um condensado? 21

1. Modo A com as duas excitações (partículas), energiaE0 + 2h fA e modo B noestado de mais baixa energia,E0;

2. Modo A com uma excitação, energiaE0 +h fA, modo B também com uma exci-tação, energiaE0 +h fB;

3. Modo A no estado de mais baixa energia,E0, e modo B com duas excitações,energiaE0 +2h fB.

A indistinguibilidade das partículas surge muito naturalmente desta representação.

1.6.2 A função de onda do condensado

Repare-se que quando fazemos a teoria quântica de um oscilador, a coordenaday(t)passa a ter um estatuto diferente: deixa de ser uma grandeza com um valor bem de-finido em qualquer instante e passa a ser caracterizada por uma distribuição de pro-babilidade, que depende da energia do oscilador. Analogamente, a grandezaψ(x,t)já não tem um valor bem definido em todos os instantes, como teria, por exemplo, odeslocamento transversal de uma corda em física clássica; passa também a ser carac-terizada por uma distribuição de probabilidade. Os estadosde um campo quântico sãoespecificados indicando quantas excitações (partículas) existem em cada modo normal(oscilador). Quando cada oscilador do campo tem uma energiabem definida (ou sejaum número de partículas bem definido) o valor médio do campo〈ψ(x,t)〉, tal comoo da coordenada de um oscilador,〈y(t)〉, é nulo pois a respectiva fase de oscilação étotalmente indefinida.

No caso de um campo podemos fazer algo que não podemos no caso de um únicooscilador: podemos relacionar valores do campo em pontos diferentes do espaço, istoé, para valores dex diferentes, calculando, por exemplo, o valor médio

〈ψ(x,t)ψ(x′,t)〉.

Num gás normal, em que muitos modos diferentes estão excitados, esta função anula-se rapidamente com o afastamento dos pontosx e x′; os diferentes modos têm com-primentos de onda diferentes e, por isso, relações de fase muito diferentes entre doisquaisquer pontos. Todavia, quando só há praticamente um modo excitado (todos osbosões no mesmo estado) existe uma relação de fase bem definida entre dois quaisquerpontos, mesmo com afastamento macroscópico, pois cada modotem um comprimentode onda bem definido. Nesse caso esta função não se anula, nem para afastamentomacroscópico dex e x′. Estacoerênciade fase a distâncias macroscópicas é a caracte-rística essencial de todas as fases condensadas. Usando esta característica, é possíveldescrever o condensado de um modo muito directo: assumindo que a fase está bemdefinida em cada ponto e que o valor médio do campo quântico é não nulo,

〈ψ(x,t)〉 6= 0.

No caso da condensação de Bose-Einstein (no limite de muitaspartículas,N ≫ 1)pode-se mostrar que esta descrição é equivalente à de Einstein. Mas é muito mais geral,pois aplica-se também a sistemas com fortes interacções entre partículas como o Héliosuperfluido ou os supercondutores. Esta função

f (x, t) = 〈ψ(x,t)〉

é designada porfunção de onda do condensado.

Page 22: O ESTADO CONDENSADO Mecânica Quântica à vista desarmada

22 Capítulo 1. O estado condensado: mecânica quântica à vista desarmada

Num estado normal, sem condensação,f (x,t) tem um valor nulo (para quaisquervalores dex e t); ou seja, é uma grandeza que não entra na descrição de uma fase nor-mal. Quando ocorre a condensação torna-se necessário introduzir uma nova grandezafísica macroscópica: o valor médio do campo quântico do qualas partículas são asexcitações. Neste sentido trata-se de uma nova fase11 ou estado da matéria, conformediscutimos na secção 1.2 (página 7). Mas é uma fase muito peculiar: a grandeza quea caracteriza não existe em física clássica, é o valor médio de um campo quântico. Aondaassociada às partículas do sistema passa a ter um valor não nulo em regiões dedimensões macroscópicas. A dualidade onda-corpúsculo salta à vista!

1.6.3 Interferência de condensados

Na literatura especializada, fala-se por vezes docondensadoe das partículas do sistemacomo se fossem entidades distintas. E, em certa medida, são!Quando um sistemacondensa, aparece um novo objecto, um valor não nulo de um campo quântico, quepode variar de ponto para ponto,f (x,t) = 〈ψ(x,t)〉. Se quisermos definir as excitações(as partículas) deste campo, temos de considerar as suas vibrações em torno deste novovalor de equilíbrio. Estas excitações não são, em geral, idênticas às partículas originais.Mas, juntamente com o condensado, são as entidades que proporcionam a descriçãomais simples e económica das propriedades do sistema. A temperatura nula,T = 0K, ocampo está no seu estado de mais baixa energia e nesse sentido, não existem excitações.As propriedades físicas do sistema são então totalmente determinadas pela função deonda do condensado e pelo modo como ela se modifica na presençade perturbaçõesexternas. A temperatura finita temos de considerar a presença de partículas adicionais,mas o condensado persiste até à temperatura de condensação.

A maior parte das propriedades surpreendentes das fases condensadas, a capacidadedo Hélio fluir sem viscosidade, a ausência de resistência eléctrica e a expulsão docampo magnético nos supercondutores,etc.,explica-se, não em termos das partículasoriginais, mas sim em termos das propriedades do condensado: do valor de〈ψ(x,t)〉 eda maneira como se altera mediante perturbações externas.

Neste sentido, o pico central das imagens reproduzidas na figura 1.6 da página 15,pode ser considerado uma visualização directa de〈ψ(x,t)〉. A muito baixas tempera-turas esse pico é a única coisa que sobra12. Não há excitações, não há partículas; oque estamos a “ver” é o vácuo, um estado sem partículas. Contudo, é um vácuo muitoespecial, pois o valor médio do campoψ(x,t) associado aos bosões originais é dife-rente de zero e tem um valor que diminui do centro para a periferia da armadilha. Épois, um vácuo não homogéneo, com propriedades distintas deponto para ponto e, porisso, capaz de difundir luz. Note-se como descrevemos este estado em termos de umcampo, a função de onda do condensado, em vez de usarmos a linguagem de Bose ede Einstein que privilegia as partículas originais do sistema: é outra vez a dualidadeonda-corpúsculo em acção!

Em Janeiro de 1997, O grupo de Ketterle no MIT [2] publicou resultados de umnotável experiência, que quase torna palpável esta descrição do condensado. Usandouma combinação de meios magnéticos e ópticos criaram uma armadilha dupla e con-finaram em regiões distintas, separadas de cerca de 40µm, duas nuvens de átomos desódio. Arrefeceram as nuvens por “evaporação” até obter um condensado em cada

11Atenção! Faseda matéria (no sentido de fase sólida, líquida, metálica ou condensada) efasede umcampo ou de uma oscilação: a mesma palavra para significados muito diferentes.

12Em rigor, o que se mede é a densidade, que é proporcional a|〈ψ(x,t)〉|2.

Page 23: O ESTADO CONDENSADO Mecânica Quântica à vista desarmada

1.6. O que é um condensado? 23

queda de

8 mm

(40 ms)

interferências

condensadosindependentes

-20 -10 0 10 20

0.5

1

1.5

2

2.5

3

3.5

4

t2

-20 -10 0 10 20

0.5

1

1.5

2

2.5

3

3.5

4

t1

-20 -10 0 10 20

0.5

1

1.5

2

2.5

3

3.5

4

t0

Figura 1.11:Painel da esquerda: dois condensados de Bose-Einstein, independentes, sobrepostos, apre-

sentam franjas de interferência, exactamente como se estivéssemos a sobrepor duas ondas. Painel da direita:

no topo representam-se duas ondas, descritas pela equação de Schrödinger, confinadas por potenciais har-

mónicos centrados emx = −8 ex = 8. Se removermos o potencial de confinamento, as ondas expandem-se

e, ao sobreporem-se (em baixo), observamos interferências: onde as fases coincidem temos um máximo

de intensidade; onde as fases diferem deπ temos cancelamento e um mínimo de intensidade (o que está

representado é o quadrado da amplitude da onda).

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24 Capítulo 1. O estado condensado: mecânica quântica à vista desarmada

uma. Seguidamente, desligaram as armadilhas e deixaram os condensados expandir-seaté se sobreporem. Ao fim de cerca de 40ms os dois condensados sobrepuseram-se.A medição óptica da densidade revelou umas belas franjas de interferência, alternada-mente claras e escuras exactamente como se tivessem sobreposto duas ondas com fasesbem definidas (figura 1.11). O valor médio do campo〈ψ(x,t)〉 tem uma amplitude euma fase e comporta-se exactamente como uma onda.

1.7 Notas finais

1.7.1 O laboratório BEC

O condensado de Bose-Einstein constituiu-se como um laboratório de excelência parao estudo de efeitos quânticos. A utilização de meios ópticose magnéticos permite umaenorme latitude de manipulação e observação de fenómenos estáticos e dinâmicos nocondensado. Por exemplo, para certos átomos, é possível variar a interacção mútua derepulsiva para atractiva, por variação do campo magnético externo. Investigadores doJILA fizeram a experiência de tornar atractivas as interacções de um condensado deátomos de85Rb a uma temperatura de apenas 3nK. O condensado contraiu-se inicial-mente, como esperado, mas depois expandiu-se muito rapidamente, ficando no fim umvestígio do condensado original, juntamente com muitos átomos fora do condensado.É como se, ao mudarmos o campo magnético, o condensado original correspondesse aum falso vácuo, com energia demasiado elevada. Ao reajustar-se às novas condiçõesexternas, liberta essa energia na forma de excitações, partículas do vácuo final. Nestesentido é uma “explosão” com criação de partículas, uma aptametáfora para a criaçãodo Universo através do Big Bang. Na referência [3] encontra-se um pequeno vídeoproduzido a partir de desta experiência.

No mesmo Instituto, o grupo de Deborah Jin [4] tem-se dedicado a estudar gasesultrafrios de fermiões, partículas que obedecem ao princípio de exclusão de Pauli eque não podem condensar directamente. Contudo, é possível oemparelhamento defermiões e a formação de condensados destes pares, de um modosemelhante ao queocorre em supercondutores. No condensado de átomos, ao contrário do que acontececom os supercondutores habituais, é possível manipular parâmetros experimentais quepermitem explorar novos regimes de emparelhamento que não ocorrem em supercon-dutores.

1.7.2 Supercondutores

Mencionámos várias vezes o estado supercondutor como exemplo de estado conden-sado. Num metal normal existe um líquido de electrões de condução, que pode escoar-se na presença de perturbações externas. Por isso é relativamente fácil produzir umacorrente eléctrica num metal. No entanto, este processo dissipa energia. A perturbaçãoexterna (por exemplo, um campo eléctrico) fornece energia aos electrões mas estes co-lidem com os iões do sólido e aumentam a respectiva agitação térmica. O filamento deuma lâmpada ou a resistência de uma chaleira aquecem quando atravessadas por umacorrente eléctrica. Na ausência da perturbação externa a corrente decai rapidamentepara zero.

Num supercondutor podem existir correntes sem dissipação de energia e sem per-turbação externa. O condensado existente num supercondutor diz respeito aos electrõesde condução. Como estes são fermiões, a condensação directado campo associado à

Page 25: O ESTADO CONDENSADO Mecânica Quântica à vista desarmada

1.7. Notas finais 25

partícula electrão não é possível. Por isso a condensação é mais complexa e diz res-peito a um campo associado aparesde electrões. Seja como for, as propriedades fun-damentais dos supercondutores estão directamente ligadasàs propriedades deste novoobjecto macroscópico, o condensado de pares de electrões. Ocondensado tem estadosde equilíbrio em que existem correntes eléctricas. O3He, uma substância compostapor isótopos de Hélio que são fermiões, também tem fases superfluidas resultantes doemparelhamento de átomos de Hélio. Ao contrário dos supercondutores convencio-nais, os pares têm momento angular e spin não nulos, o que resulta numa variedade defases mais ricas do que nos supercondutores. O emparelhamento nos supercondutoresde alta temperatura também envolve pares de momento angulardiferente de zero.

Um dos fenómenos mais importantes da supercondutividade é ofacto de o campomagnético não penetrar num material supercondutor: o efeito de Meissner-Oschenfeld.Podemos relacionar este efeito com o condensado do seguintemodo. Como os elec-trões têm carga o seu movimento origina campos magnéticos. Isto é, o campo quânticoassociado aos electrões e o campo magnético influenciam-se mutuamente: estão “aco-plados”. Quando um campo electrónico (de pares) condensa, epassa a ter um valormédio não nulo, as equações que descrevem o campo magnético alteram-se. O re-sultado é um campo magnético que decai rapidamente para zerono interior de umsupercondutor13: o efeito de Meissner-Oschenfeld.

1.7.3 Condensado de Higgs

Finalmente convém mencionar uma relação importante deste fenómeno de condensa-ção a temperaturas ultrabaixas, com física que ocorre no extremo oposto do espectrode energias. O CERN espera pôr em funcionamento em 2007/2008um dos mais com-plexos e dispendiosos aparelhos de Física, o LHC (Large Hadron Collider); algunsdos detectores usados no LHC têm o tamanho de uma catedral [5]. O resultado maisfundamental que se espera obter deste acelerador é a detecção de uma partícula muitoespecial, o bosão de Higgs. Ora, o modelo padrão da física de partículas afirma queo Universo em que vivemos é umcondensadodo bosão de Higgs: o valor médio dorespectivo campo quântico é não nulo. O Higgs que a experiência do CERN esperaencontrar é, naturalmente, a excitação do campo de Higgs em torno do valor finito quetem no vácuo. Os bosões “originais”, definidos a partir do valor nulo do campo, exis-tem em grande quantidade em todo o lado. Claro que não os vemos, pois aspartículasreais são excitações.

O condensado de Higgs tem uma consequência muito importante. O campo deHiggs e a respectiva condensação foram propostos no modelo padrão de Física de par-tículas, como sendo os mecanismos responsáveis pelas massas finitas de todas as par-tículas que conhecemos. Sem condensação só existiriam partículas sem massa, comoos fotões!

É interessante notar que o mecanismo pelo qual a condensaçãodo Higgs origina amassa de quase todas as partículas é inteiramente semelhante ao do efeito de Meissner-Oschenfeld dos supercondutores. O campo do bosão de Higgs está também acopladoaos campos associados às outras partículas. Ao condensar o Higgs, as equações quedescrevem esses outros campos são modificadas. Os termos adicionais determinamuma energia mínima de uma excitação desses campos; precisamente, a energia mínimade um partícula de massam é a sua energia em repousoE = mc2.

13Se o campo externo for demasiado elevado, pode destruir o estado supercondutor.

Page 26: O ESTADO CONDENSADO Mecânica Quântica à vista desarmada

26 Capítulo 1. O estado condensado: mecânica quântica à vista desarmada

Finalmente podemos concluir: os condensados são importantes, poque estão, lite-ralmente, em toda a parte; o Universo está num estado condensado!

1.8 Agradecimentos

Agradeço ao Prof. Vítor Rocha Vieira o convite para realizara palestra que originoueste artigo, a forma meticulosa como o reviu, e as sugestões para o seu melhoramento;ao Centro de Física do Porto e Departamento de Física da Faculdade de Ciências, Uni-versidade do Porto, o apoio para a realização deste trabalho.

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Bibliografia

[1] Subtle is the Lord, Abraham Pais, Oxford University Press, NY, 1982.

[2] Observation of Interference Between two Bose Condensates, M. R. Andrews, C. G.Towsend, H.-J. Miesner, D .S. Durfee, D. M. Kurn,W. Ketterle, Science,275,637,1997.

[1] JILA: BEC and ultra cold atoms website:http://jilawww. olorado.edu/be /.

[3] Implosion and explosion of a Bose-Einstein Condensate “Bosenova”, http://www.nist.gov/publi _affairs/bosenova.htm.

[4] Website do grupo de Deborah Jin no JILA: http://jilawww. olorado.edu/~jin/index.html[5] Large Hadron Collider, Physics World,19, issue 10, p20., 2006.

[6] Nobel Lecture: Bose-Einstein Condensation in a dilute gas:the first 70 yearsand some recent experiments, E. A. Cornell and C. E. Wieman, Rev. Mod. Phys.74,875, 2002.

[7] Bose-Einstein Condensation in Dilute Gases, C. Pethick and H. Smith, CambridgeUniversity Press, 2001.

[8] Bose-Einstein condensation in the alkali gases; some fundamental concepts.A. J.Leggett, Rev. Mod. Phys. 73, 307-356, 2001.

[9] BEC, supercondutores e superfluidos, Margarida Telo da Gama,in O Código Se-creto,Colecção Ciência Aberta, Gradiva, 2005.

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