O estado de alerta: a obser- vação crítica da natureza · Física na Escola, v. 5, n. 1, 2004...

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4 Física na Escola, v. 5, n. 1, 2004 Este artigo, abordando um fenômeno envol- vendo óptica, comenta uma observação mui- to interessante levada a cabo pelo autor, em uma de suas viagens pelo Rio Xingu. Embarcações companheiras do Rio Xingu A meados de abril de 2002, nas atividades da segunda etapa intermediária de ciências de nosso curso de Educação Indígena de terceiro grau (primeiro curso para formar especificamente professores indígenas de nível universitário no Brasil), percorremos o rio Xingu, desde o posto indígena Coluene até a aldeia Yudjá Tubatuba. O Rio Xingu atravessa a Terra Indígena do Parque do Xingu, na Ama- zônia legal, estado do Mato Grosso e possui uma riqueza étnica incompa- rável, formada de 14 povos diferentes. Na etapa entre Pavurú e Diaua- rum nos surpreendeu um fato que chamou a atenção de todos os que via- javam no barco de alumínio, impul- sionado velozmente pelo motor de po- pa, e que mereceu nossa reflexão. No fim da tarde, com o sol já bai- xo, à nossa esquerda, com a superfície da água assemelhando-se a um per- feito espelho, vimos projetada sobre o topo da vegetação próxima da mar- gem direita uma imagem escura que nos acompanhava, com a mesma velocidade de nossa lancha, “nave- gando” sobre as árvores. Próxima do rio, a mata ciliar era densa e coberta de trepadeiras e cipós emaranhados. Não foi difícil reconhe- cer nesta imagem escura a sombra de nossa embarcação. Movemos os bra- ços saudando a imagem e esta respon- dia simultaneamente. O problema é que intuitivamente esse não era o lu- gar da sombra. A observação detalhada da “som- bra” nos mostrou outra embarcação similar, invertida, viajando no mesmo sentido, com a tripulação cabeça para baixo: ambas imagens “coladas” pelo fundo da embarcação, e respondendo também simultaneamente a nossos sinais. Ainda mais surpresas nos esta- vam reservadas. Olhando a superfície da água entre a lancha e a margem do rio, des- cobrimos outro par de imagens simi- lares, que igualmente nos acompa- nhava (veja esboço na Figura 1). Nos distanciamos da margem, e as imagens sumiram; nos aproxi- mamos, e elas reapareceram . Quanto mais veloz a lancha, mais nítidas as imagens das quatro embarcações. Ali estavam as “embarcações companheiras” do rio Xingu, que só nos abandonariam no momento em que o sol se afundou no horizonte, pouco antes da chegada a nosso desti- no. Quero utilizar este episódio para ilustrar, a partir de um fato real, coti- diano, o que é Ciência, o que é atitude científica, qual o processo de fazer Ciência e de como podemos praticar uma educação em Ciência contextua- lizada, mesmo nos lugares mais dis- tantes e hostis. O estado de alerta: a obser- vação crítica da natureza Quando observamos o mundo que nos rodeia, há eventos que não podemos explicar imediatamente, ou porque não conhecemos esse mundo suficientemente bem ou porque estes eventos são realmente novos para nós. Em ambos os casos é fundamen- tal perceber, detectar o fenômeno que cria a necessidade da explicação. Devemos estar atentos continua- mente, sem descanso, para a obser- Carlos A. Argüello Faculdade de Ciências Exatas, Universidade do Estado de Mato Grosso, Brasil

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4 Física na Escola, v. 5, n. 1, 2004

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Este artigo, abordando um fenômeno envol-vendo óptica, comenta uma observação mui-to interessante levada a cabo pelo autor, emuma de suas viagens pelo Rio Xingu.

Embarcações companheiras do Rio Xingu

Ameados de abril de 2002, nasatividades da segunda etapaintermediária de ciências de

nosso curso de Educação Indígena deterceiro grau (primeiro curso paraformar especificamente professoresindígenas de nível universitário noBrasil), percorremos o rio Xingu, desdeo posto indígena Coluene até a aldeiaYudjá Tubatuba.

O Rio Xingu atravessa a TerraIndígena do Parque do Xingu, na Ama-zônia legal, estado do Mato Grosso epossui uma riqueza étnica incompa-rável, formada de 14 povos diferentes.

Na etapa entre Pavurú e Diaua-rum nos surpreendeu um fato quechamou a atenção de todos os que via-javam no barco de alumínio, impul-sionado velozmente pelo motor de po-pa, e que mereceu nossa reflexão.

No fim da tarde, com o sol já bai-xo, à nossa esquerda, com a superfícieda água assemelhando-se a um per-feito espelho, vimos projetada sobreo topo da vegetação próxima da mar-gem direita uma imagem escura quenos acompanhava, com a mesmavelocidade de nossa lancha, “nave-gando” sobre as árvores.

Próxima do rio, a mata ciliar eradensa e coberta de trepadeiras e cipósemaranhados. Não foi difícil reconhe-cer nesta imagem escura a sombra denossa embarcação. Movemos os bra-ços saudando a imagem e esta respon-dia simultaneamente. O problema éque intuitivamente esse não era o lu-gar da sombra.

A observação detalhada da “som-bra” nos mostrou outra embarcaçãosimilar, invertida, viajando no mesmosentido, com a tripulação cabeça para

baixo: ambas imagens “coladas” pelofundo da embarcação, e respondendotambém simultaneamente a nossossinais. Ainda mais surpresas nos esta-vam reservadas.

Olhando a superfície da águaentre a lancha e a margem do rio, des-cobrimos outro par de imagens simi-lares, que igualmente nos acompa-nhava (veja esboço na Figura 1).

Nos distanciamos da margem, eas imagens sumiram; nos aproxi-mamos, e elas reapareceram . Quantomais veloz a lancha, mais nítidas asimagens das quatro embarcações.

Ali estavam as “embarcaçõescompanheiras” do rio Xingu, que sónos abandonariam no momento emque o sol se afundou no horizonte,pouco antes da chegada a nosso desti-no.

Quero utilizar este episódio parailustrar, a partir de um fato real, coti-diano, o que é Ciência, o que é atitudecientífica, qual o processo de fazerCiência e de como podemos praticaruma educação em Ciência contextua-lizada, mesmo nos lugares mais dis-tantes e hostis.

O estado de alerta: a obser-vação crítica da natureza

Quando observamos o mundoque nos rodeia, há eventos que nãopodemos explicar imediatamente, ouporque não conhecemos esse mundosuficientemente bem ou porque esteseventos são realmente novos paranós. Em ambos os casos é fundamen-tal perceber, detectar o fenômeno quecria a necessidade da explicação.Devemos estar atentos continua-mente, sem descanso, para a obser-

Carlos A. ArgüelloFaculdade de Ciências Exatas,Universidade do Estado de MatoGrosso, Brasil

5Física na Escola, v. 5, n. 1, 2004 Embarcações companheiras do Rio Xingu

vação crítica do mundo que nos rodeiae, uma vez formulada a perguntafundamental, devemos ser confiantesna possibilidade da explicação. Nãohá mistérios eternos, há somente coi-sas que não sabemos explicar ainda.Essa confiança na existência de umaexplicação satisfatória, racional ecoerente com o corpo atual de conhe-cimentos, e a atitude contínua e per-sistente da observação crítica do en-torno são molas mestras que acionama Ciência e que nos torna observa-dores científicos.

Na nossa longa viagem pelo rioXingu aconteceram muitos fatos inte-ressantes, melhor detectados poralguns, quase despercebidos por ou-tros. Vimos atravessando as margensdo grande rio um veado, uma raposa euma jovem preguiça, além de inúmerosanimais. Alguns destes fatos nãogeram perguntas; são corriqueiros. Écomum um veado atravessar um rio anado. Mas a preguiça, com sua ex-trema lentidão de movimentos, não éum bom nadador, então nos pergun-tamos: o quê ela faz quase afogada nomeio de um rio de forte correnteza?

Explicações surgem, são hipótesesque seguem a pergunta formulada: apreguiça, sendo jovem e portantopouco experiente, pode ter caído deuma árvore da margem. Ou talveztenha sido perseguida por algum deseus predadores naturais e entrado norio como último recurso para escapar.Neste caso a hipótese, por não con-tradizer nossa experiência, o nossocorpo de conhecimentos sobre aregião, e ser coerente com estes,torna-se uma explicação possível esatisfatória. Resta-nos somente nosaproximarmos da margem e deixar apreguiça que resgatamos a salvo emuma árvore distante da água.

A necessidade de umaexplicação elaborada

Há também situações que fogema possibilidade de explicação imediata,convertendo-se em um desafio. Reco-nhecer e aceitar esse desafio consistena base da atitude científica em buscade uma explicação mais elaborada, eque muitas vezes contraria nossaintuição. Voltemos ao exemplo dasquatro embarcações companheiras.

Nossa intuição nos diz que asimagens devem ser provocadas pelareflexão da luz do sol na água calmado rio e a embarcação, ou a sombradesta, interrompendo esta luz, produzuma mancha escura com contornosdefinidos.

O quê a óptica básica nos diz? Quesó poderemos ver este fenômenoquando o ângulo determinado pelaaltura h da matas ciliares e a distânciad da embarcação até ela seja menor queo ângulo â que descreve a altura do sol(Figura 2).

Utilizamos aqui a conhecida leida reflexão, que assegura que o ângu-lo da incidência é igual ao ângulo dareflexão

Também sabemos que na incidên-cia normal sobre água (na vertical) érefletida tão-somente 2% da luz inci-dente.

Na reflexão rasante, o valor docoeficiente de reflexão chega ao seuvalor máximo, 100%, calculado utili-zando-se a lei de Fresnel. Podemosassim obter o valor exato do coefi-ciente de reflexão, parao ângulo de incidênciadeterminado que em nos-so caso sempre serámuito alto.

Na Figura 3 mostra-mos a iluminação diretaD e a refletida, R que inci-dem sobre a mata ciliar.

Portanto, a mata ciliar no lugarda sombra da embarcação experimen-ta uma diminuição de intensidade de50% na sua iluminação quando o solestá perto do horizonte.

A forma das imagenscompanheiras

Sobre um espelho plano horizon-tal colocamos um objeto opaco, e ilu-minamos o objeto com um feixeparalelo de luz. Observando o feixeluminoso refletido em uma tela ver-tical, obteremos duas sombras doobjeto, uma direita e outra invertidacomo mostra a Figura 4. A sombradireita A,B é formada pela luzrefletida na água e depois bloqueadapelo objeto. A sombra invertida B,C éformada pela luz bloqueada e depoisrefletida na água. Como o raio B co-incide em ambos casos, as duas som-bras aparecem ligadas pela sombra dabase do objeto.

Para completar nossa explicação,percebemos que as outras duas ima-gens não são nada mais que o reflexo

Figura 1. Esboço das embarcações companheiras.

Figura 2.

6 Física na Escola, v. 5, n. 1, 2004

Figura 5da mata ciliar, que contém a projeçãodas sombras, novamente a sua inten-sidade beneficiada pelo grande ânguloda reflexão.

O laboratórioA explicação dada, que parece

convincente, e está de acordo com asleis fundamentais da óptica geomé-trica e da Física, pode ser corroboradamontando um modelo onde reprodu-zimos as características dos parâme-tros relevantes do fenômeno obser-vado (Figura 4).

A persistência da imagem naretina

Quando diminuímos a velocidadeda embarcação, o fenômeno torna-sedifícil ou impossível de observar. Étambém muito difícil observar essefenômeno se nos deslocamos em umacanoa a remo. Em uma situação está-tica, com a embarcação parada, a ima-gem desta na mata não é perceptíveldevido à irregularidade da mata como“tela de projeção”, com partes emdiferentes profundidades e poder dereflexão variável. Quando viajamos aboa velocidade, com nossos olhosfocalizados nas sombras da embarca-ção, o olho não percebe as variações eirregularidades causadas pela posição

detalhada de partes datela de projeção (mataciliar), devido ao fenômeno de persis-tência da imagem detectada na retina.Por décimos de segundo nosso cérebropercebe uma “tela média de projeção”nesse intervalo de tempo. Quanto maisveloz a nossa viagem, mais elementosintervêm na média da observação emais nítida esta se torna.

Considerações finaisCom este roteiro resumido, preten-

demos mostrar como podemos apro-veitar fatos da vida cotidiana, contex-tualizando então nessa situação;enunciados, leis, métodos importan-tes da atividade científica, como exem-plo e guia de futurase diferentes ativi-dades.

Se bem e certoque a explicação teó-rica é suficiente eelementar, a ativi-dade de simulaçãoexperimental é fun-damental quando se trata de explicarfenômenos deste tipo a nossos alunosíndios, cuja cultura privilegia o desem-penho manual e está longe das carac-terísticas necessárias para a abstraçãocientífica que se reflete em fórmulas,

leis, princípios e enun-ciados de validade univer-sal.

Alguns poucos cano-eiros indígenas queobservaram este fenô-meno, tratam de asso-ciá-lo a explicações má-gicas. No entanto, dentroda escuridão da Oca(grande casa indígena

ReferênciasD. Halliday, R. Resnick, e K. Krane, Física 4(LTC, Rio de Janeiro, 1992).G. Fowles, Introduction to Modern Optics(H, Rand W. Inc., USA, 1968).

coletiva), uma simples experiênciarealizada com uma lanterna, umpedaço de espelho ou vidro e um objetoqualquer (semente, pedra, etc...) podemostrar à comunidade a existência deoutras formas de observar o mundo ede explicá-lo, que trazem a riqueza dopensamento quantitativo, experimen-tal e amplamente generalizador.

Este é um exemplo de educação emCiência a partir do contexto etno-cul-tural do aluno e dos conhecimentosprévios de seu povo.

Se há milhares de anos os índiosdo Xingu utilizam a canoa a remo, queainda hoje usam para pescar, há vá-

rias décadas tam-bém utilizam barcosde alumínio movi-dos a motor de popa,e esse é o contexto noqual realizam hojesuas grandes traves-sias.

Devemos tam-bém não ridicula-

rizar ou destruir impiedosamente opensamento mágico. Sentimos, nasgrandes distâncias navegadas, longede qualquer contato com a nossacultura, isolados nas entranhas daselva, também algo mágico nasquatro embarcações que nos acom-panhavam, em um mundo luminosode rios espelhados e densas matas.

Figura 4

Figura 3

Embarcações companheiras do Rio Xingu

Alguns canoeiros indígenasque observaram este fenô-

meno, tratam de associá-lo aexplicações mágicas, mas uma

simples experiência podemostrar à comunidade indí-gena a existência de outras

formas de observar o mundo