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A CONSTRUÇÃO DE UM CONSENSO NEOLIBERAL: O CASO DO JORNAL
O ESTADO DE S. PAULO NAS ELEIÇÕES DE 1998
Letícia Crespo Bomfim
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em
História Social e do Território na Universidade
do Estado do Rio de Janeiro - FFP e Bolsista
CAPES.
e-mail: [email protected]
Introdução
O trabalho procura discutir a participação desempenhada pela imprensa na
sociedade contemporânea, tomando como estudo de caso, através de reportagens internas
e editoriais, o posicionamento do jornal “O Estado de São Paulo” no contexto de eleições
presidenciais de 1998, quando o candidato/presidente Fernando Henrique Cardoso
conquista sua reeleição, havendo a manutenção do modelo econômico neoliberal no
Brasil. Desta forma, o trabalho aproxima-se da concepção presente em Gramsci, que
remete a um conjunto de instituições a intenção de interferir na busca em torno da
construção de uma visão de mundo.
No que diz respeito à eleição de 1998, na qual Fernando Henrique Cardoso é
candidato à reeleição ao cargo de Presidente da República, Rubim (2000) afirma que
“[...] traz a novidade de se realizar em um momento terminal da
transição. Isto é, uma circunstância na qual as ambiguidades e possibilidades
de uma transição se afunilam em torno de um projeto dominante cada vez mais
hegemônico: a inserção do país em uma globalização, sob a égide neoliberal.”
(RUBIM, 2000, p. 28)
Assim, o processo eleitoral analisado se situa dentro de um panorama
internacional de expansão de um projeto político e econômico neoliberal, que se
disseminou nas décadas de 1970 e 1980 a partir de governos europeus e norte-americano,
chegando na década de 1990 aos países periféricos, como o Brasil. O neoliberalismo surge
inicialmente como proposta teórica no imediato pós-Segunda Guerra Mundial, reagindo
contra o intervencionismo estatal na economia – o que ameaça a liberdade política e
econômica, garantia do livre mercado –, assim como contra o Estado de bem-estar social
e a busca pelo Estado-mínimo1, num intento de retomada de determinadas noções do
liberalismo do século XIX, modificando aspectos da gestão pública, do sistema produtivo
e homogeneizando a cultura por todo o mundo.
Segundo Filgueiras (2000), no neoliberalismo
“o objetivo maior, e quase único, da política econômica deve ser o de defender
a moeda, assegurando a estabilidade dos preços, e garantir o cumprimento dos
contratos e da ‘livre concorrência’. Esta última deve ser viabilizada através da
desregulamentação, em geral, e do mercado de trabalho, em particular, com
destaque para a flexibilização das relações trabalhistas. No plano internacional,
se materializa na livre mobilidade de capitais e mercadorias, com a derrubada
de restrições ao comércio e a livre circulação do capital financeiro.
Do ponto vista social, também não deve haver políticas ativas que
procurem diminuir as igualdades entre os indivíduos [...]. Em resumo, em todas as instâncias – econômica, social e política –, o
pensamento neoliberal tem como referência maior os indivíduos sendo a
própria sociedade concebida como um mero somatório destes”.
(FILGUEIRAS, 2000, p. 45-46)
O primeiro governo FHC, dentro daquele contexto global, foi a consolidação de
um projeto conservador. Para Barbosa e Silva, “A posse de Fernando Henrique Cardoso
em janeiro de 1995 é carregada de significações. Representa o ajuste e a organização do
projeto liberalizante em solo brasileiro. E, em parte como consequência disso, o
fechamento de uma “Era”, seus erros e sua história” (SILVA, 2008, p. 56). A “Era”
referida naquela passagem se trata da “Era Vargas”, período de forte intervenção estatal
na economia e na sociedade. Segundo Fernando Henrique Cardoso proferiu em seu
Discurso de Despedida do Senado Federal, em dezembro de 1994, já eleito presidente da
República, esse passado em seu governo seria superado, pois era sinônimo de atraso frente
ao processo de globalização – processo este que implicava políticas liberais.
“Ao governo FHC coube a tarefa de aprofundar o processo de “ajuste”
da política e da economia brasileira, iniciado por Collor e interrompido pelo
processo de impeachment em 1992, à nova ordem internacional, marcada pela
hegemonia neoliberal e conduzida pela agenda de reformas propostas por
organismos financeiros internacionais (Banco Mundial, FMI, BID) e pelo o
que se convencionou chamar de consenso de Washington, um conjunto de
medidas orientadas para o mercado para serem aplicadas pelos governos de diversos países da América Latina. [...] Com o lançamento do plano de
estabilização macroeconômica, conhecido como Plano Real2, e com a eleição
1 De acordo com Brandão, “A função central do Estado não seria mais a de regular as relações econômicas,
mas sim a de possibilitar as condições necessárias para a realização do modelo de acumulação dessa nova
fase do capitalismo, que privilegia a lógica do capital financeiro”. Sendo mínimo apenas para as políticas
sociais. (BRANDÃO, 2013, p. 44-45) 2 Afirma Filgueiras que o Plano Real é “um produto econômico, político e ideológico de confluência [...]
de três fenômenos [...]: a hegemonia da doutrina e das políticas liberais, a difusão do processo de
reestruturação produtiva [...] e a reafirmação do capitalismo – [...] enquanto um sistema de produção
de FHC para a presidência de 1994, um novo pacto hegemônico começou a ser
formado no país. O ajuste neoliberal do governo FHC [...].” (BRANDÃO,
2013, p. 25)
Isto pois, Fernando Henrique Cardoso implementou um amplo programa de
reformas do Estado que compreendeu a modificação na legislação trabalhista,
previdenciária, tributária e administrativa, assim como a quebra de monopólios estatais,
desregulamentação financeira, abertura econômica e privatizações.
O processo de disseminação dos ideais neoliberais, em âmbito global e interno
brasileiro, teve como grande apoio os meios de comunicação, que se esforçaram em
construir um consenso em torno do modelo político e econômico neoliberalista.
“aclamado de forma dominante nas academias e demais centros de
produção de conhecimento, foi vulgarizado para o grande público, com apoio
e influência decisivos da mídia. Os seus princípios passaram a ser aceitos,
consciente ou inconscientemente, pela maior parte da população,
evidenciando-se, assim, a constituição de uma hegemonia na forma de se
pensar a vida sem sociedade [...]”. (FILGUEIRAS, 2000, p. 43)
Segundo Kucinski, no neoliberalismo, os jornais com pautas uniformes, difundem
um discurso que enfatiza a necessidade da adoção de política neoliberais, sendo isto
natural e inevitável. Assim, “[...] a mídia fala em nome do interesse público, mas serve
ao interesse privado” (KUCINSKI, 2005, p. 119). Assim, inserido neste contexto,
Fernando Henrique Cardoso torna-se “garoto-propaganda” de um projeto conservador,
de desmonte do Estado, de reformas e privatizações que ganhou espaço na mídia –
discussão que será abordada de forma mais aprofundada adiante, no caso das eleições de
1998 no jornal O Estado de S. Paulo.
A imprensa como partido
De acordo com uma concepção liberal, a mídia apresenta sua própria imagem
como neutra e objetiva; vende uma ideia de que ela possui uma responsabilidade social,
de que é uma prestadora de serviços da população, tendo como função informar sobre
aquilo que acontece no mundo. Esta autoimagem defende ainda que, entre as suas
mundializado ou globalizado.” (FILGUEIRAS, 2000, p. 30-31). O Plano Real somado à um programa de
reformas do Estado – que englobava amplas reformas – trabalhista, econômica, administrativa, da
previdência, a reforma tributária e as privatizações – estruturaram o ajuste neoliberal no Brasil.
funções, compete à mídia fiscalizar o Estado, ser representante do povo e expressar a
verdade sobre os fatos. Ela se apresenta como uma observadora independente de
interesses sociais, políticos ou econômicos.
No entanto, a mídia não é uma ferramenta de informações imparcial. Ao contrário,
ela está envolta pela subjetividade daqueles que produzem as informações que ela
transmite. Tendo a imprensa como objeto de estudo, Maria Capelato afirma que “A
imprensa constitui um instrumento de manipulação de interesses e intervenção na vida
social. [...] A categoria abstrata imprensa se desmistifica quando se faz emergir a figura
de seus produtores como sujeitos dotados de consciência determinada na prática social”
(CAPELATO, 1988, p. 21).
Manuel Catells (2017) afirma que é por meio da comunicação que o ser humano
se relaciona com o meio social; a comunicação é fundamental para o alcance da definição
e aplicação de um projeto político, social e econômico em uma sociedade. E, sendo assim,
este meio é também palco das relações de poder. Logo, a mídia e sua informação é uma
forma de poder 3.
Esta premissa vem do fato de que o objeto deste trabalho devido à sua visibilidade,
possui o controle da informação, um papel significativo de influir e mediar causas e
agendas políticas e de governo, as relações sociais, a opinião pública, o de atuar
politicamente no meio no qual se insere, privilegiando alguns assuntos em detrimento de
outros (FONSECA, 2011). A produção midiática não é apenas um material de difusão de
informações, mas contribui para moldar valores.
Para Gramsci, a conquista do poder se dá na esfera da luta pela hegemonia,
conquistada a partir de conflitos que se dão nas esferas econômica e política, mas também
naquilo que diz respeito ao plano ético-cultural. Ao analisar o pensamento gramsciano,
Dênis de Moraes explica que a hegemonia “não deve ser entendida nos limites de uma
coerção pura e simples, pois inclui a direção cultural e o consentimento social a um
universo de convicções, normas morais e regras de conduta, assim como a destruição e a
superação de outras crenças e sentimentos diante da vida e do mundo” (MORAES, 2010,
3 Para Castells, as relações de poder são o que define o que é institucionalizado e o que é valorizado na
sociedade. “O poder é a capacidade relacional que permite a um ator social influenciar assimetricamente as
decisões de outro(s) ator(es) social (is) de formas que favoreçam a vontade, os interesses e os valores de
ator que detém o poder [...]” (CASTELLS, 2017, p. 57).
p. 55). Sendo assim, para Gramsci, a construção de hegemonia se faz através de um
determinado consenso, não apenas través de uma força material.
Ao pensar o processo pelo qual se dá a obtenção da hegemonia, Gramsci analisa
os contornos do Estado, entendido por ele como Estado ampliado.
“Fica claro que a definição de Estado até aqui esboçada procura evitar uma
concepção que o reduziria ao aparelho coercitivo. A construção do consenso
também encontrava lugar nesse Estado. De modo resumido, mas nem por isso
menos significativo, Gramsci apresentava sua concepção de maneira já
clássica, ‘Estado = sociedade política + sociedade civil, ou seja, hegemonia
encouraçada de coerção’ (Q 6, § 88, p. 763-764), ou como dirá mais adiante,
no mesmo QuadernoI, ‘Estado (no sentido integral: ditadura + hegemonia’
(Q6, § 155, p. 810-811).” (BIANCHI, 2008, P. 177)
A sociedade política refere-se ao Estado no sentido restrito, responsável pelos
mecanismos de repressão através dos aparelhos de coerção, que garantem a disciplina
daqueles que não consentem. A sociedade civil, por sua vez, é a responsável pela
manutenção, difusão ideológica. Segundo Gramsci, é a sociedade civil espaço de luta pelo
consenso onde atuam os aparelhos privados de hegemonia. Bianchi (2008), em seu
estudo sobre o filósofo Gramsci, destaca o caráter material, de conformação de uma
hegemonia desses aparelhos:
“A luta de hegemonias não é apenas luta entre ‘concepções de mundo’, como, por exemplo, aparece no Quaderno 10, ela é também luta dos
aparelhos que funcionam como suportes materiais dessas ideologias,
organizando-as e difundindo-as.
A lista de tais aparelhos hegemônicos é grande, mas conhecida: igreja,
escolas, associações privadas, sindicatos, partidos e imprensa são alguns deles.
A função desses organismos é articular o consenso das grandes massas e sua
adesão à orientação social impressa pelos grupos dominantes.” (BIANCHI,
2008, P. 179)
Segundo Dênis de Moraes, este conceito de hegemonia desenvolvido por Gramsci
coloca luz sobre a participação dos meios de comunicação no mundo contemporâneo,
pois, tidos como aparelho privado de hegemonia e, sendo os produtores dos conteúdos
que circulam por esse meio uma classe com privilégios, organizam e difundem uma
“frente teórica”, constroem uma visão de mundo homogênea (MORAES, 2010, p.8).
Assim, o caráter partidário da imprensa é enfatizado; a imprensa assume o papel de
partido político quando atende a alguma ação ou objetivo de uma classe, interfere de
forma subjetiva no que é divulgado, oferece uma visão da realidade que atenda a um
projeto político assumido nas entrelinhas, a uma opinião dominante e constrói uma
opinião pública. A função partidária se dá no sentido de proporcionar organização a uma
atitude dominante.
Gramsci, quando aborda a temática do jornalismo faz isso no sentido do que ele
chama de “jornalismo integral”, definido assim por ser um jornalismo que tem a
preocupação de expandir sua atuação, criar um público que será seu consumidor e
também criar suas necessidades e não apenas um jornal que atende certas necessidades
deste público. O jornal, como empresa capitalista, visa obter lucros, por isso deve atrair
um maior número de pessoas que o consomem, transmitindo conteúdos que unifiquem a
opinião pública; assim atua no campo econômico e simbólico.
Partindo desta perspectiva, a informação transforma-se em uma mercadoria dentro
de uma lógica de mercado. Para Dênis de Moraes, os meios de comunicação foram
confiscados pelos poderes econômicos e financeiros. “A informação assumiu a dianteira
na rotação vertiginosa do capitalismo global. Tornou-se fonte alimentadora das
engrenagens indispensáveis à hegemonia do capital, uma espécie de “mais-valia
decisória” que se qualifica como recurso básico de gestão e produção” (MORAES, 2004,
P. 18).
A eleição de 1998 e a relação da Imprensa e FHC: o estudo de caso do jornal O
Estado de S. Paulo
Já durante o Governo Itamar Franco, quando indicado ao Ministério da Fazenda,
Fernando Henrique já aparecia nas páginas da imprensa com uma imagem favorecida. O
Plano Real, bem sucedido em seu plano de estabilização da economia fez com que a mídia
se alinhasse cada vez mais a sua imagem, apoiando o político para a campanha eleitoral
de 1994 e durante todo o seu primeiro mandato.
Kucinski (1999) afirma ainda que o apoio midiático ao governo FHC e o que ele
representava era determinante, principalmente em momentos de grandes críticas ao
presidente e a escândalos de seu governo – nem mesmo durante estes acontecidos este
apoio se altera. Além disso, destaca-se na era Fernando Henrique a homogeneidade do
discurso do jornalismo brasileiro em torno deste apoio, em torno de um jornalismo
econômico em sua essência que tinha como principal objetivo persuadir seu público, o
que, por sua vez, impediu o debate das questões que se colocavam naquele contexto.
O discurso da mídia, assumidamente favorável à FHC, acabou por ter a função de
ser um meio de desinformar a população e de propagar as verdades do governo porque,
para que o presidente não fosse prejudicado, muitos fatos relevantes de assuntos
polêmicos ou problemas advindos das decisões do governo, eram sufocados, não foram
noticiados ou, quando o eram, eram amenizados, não tinham análises profundas. A
mobilização midiática, em sua maioria, se dava com o intuito de manter o projeto político
e econômico neoliberal, preocupando-se em apresentar ao público suas vantagens.
Estas seleções, enquadramentos de alguns fatos do governo FHC, ou
esquecimento, não deixam de ser fazer presentes nem mesmo quando o projeto de
“modernização” pretendido por Cardoso não impede uma grande instabilidade econômica
e social que assola seu primeiro governo: a política econômica, estabelecida a partir do
Plano Real – ao qual estavam relacionadas aquelas reformas proposta pelo governo FHC
–, tornou o Brasil muito frágil a conjunturas econômicas externas, fazendo com que o
país sofresse de forma quase imediata aos impactos das crises internacionais, como a do
México (1994), Ásia (1997) e Rússia (1998). Isto deveu-se ao fato de que o Plano Real
era muito dependente do capital internacional, segundo Filgueiras (FILGUEIRAS, 2000,
p. 117).
Tal processo de dependência teve efeitos negativos no Brasil: as medidas de
austeridade tomadas pelo governo para que a crise se aprofundasse no país tornou difícil
a sustentação do Plano Real. A economia brasileira passa então por períodos de recessão
e estagnação econômica; o nível de desemprego alcança patamares elevados4, assim como
os números de falências e inadimplências. Além disso, a balança comercial tornou-se
4 A taxa de desemprego, do período que vai de 1992 até 1995 vinha sendo reduzida, devido a retomada do
crescimento econômico brasileiro. Porém, no ano de 1998, a taxa de desemprego que era de 4,64% aumenta,
chegando a 7,59%. Apesar de o governo manter um discurso de que o crescimento do desemprego era
consequência de uma conjuntura externa, “[...] a política de estabilização, calcada na valorização do câmbio
– durante quatro anos e meio –, numa ampla abertura comercial e em elevadas taxas de juros – que
restringem a possibilidade de crescimento econômico [...] tinha responsabilidade no aumento nas taxas de
desempregados (FILGUEIRAS, 2000, p. 170 – 173). Soma-se a este quadro o fato da piora da qualidade
de ocupação dos brasileiros. No país, o número de pessoas com carteira assinada havia diminuído 1,6%,
enquanto o trabalho informal, sem carteira assinada, havia aumentado.
deficitária, pois a abertura econômica aumentou as importações em 80%, enquanto as
exportações cresceram apenas 20%.
Seguiu-se a isto um processo de desnacionalização, devido a união das vendas de
empresas estatais brasileiras ao mercado, aumentando de forma considerável a
participação estrangeira na economia brasileira e, em contrapartida, reduzindo a
participação nacional.
Somam-se ainda a esta conjuntura o aumento do déficit público e da dívida
interna, o que comprometeu o orçamento público e acarretando no aumento de impostos.
O mesmo ocorreu com a dívida externa que cresceu de forma muito rápida, repercutindo
no crescimento da dependência externa do Brasil.
Vale ser destacado que foi em 1998, durante as repercussões da crise russa no
Brasil, diferentemente de outras conjunturas de crise enfrentada pelo governo presidido
por Fernando Henrique Cardoso, que, mais uma vez, o Brasil recorre à ajuda financeira
do Fundo Monetário Internacional (FMI).
É nesse quadro político, econômico e social que se encontrava o Brasil, que se faz
o estudo de caso do periódico O Estado de S. Paulo. Para isto, primeiro se faz necessário
analisar o jornal, suas características.
O periódico O Estado de São Paulo (OESP), chamado de A Província de São
Paulo até antes de 1889, foi fundado no ano de 1875 sob a organização e liderança de um
grupo5 nomeado pelo Congresso Republicano de Itu, em 1874, e constituído também por
diversos integrantes da sociedade do café 6 – já é percebido que, desde o seu início, o
jornal atende aos interesses de uma classe, de uma elite agrária. O jornal desenvolve seu
trabalho em torno de ideias republicanas, apresentando-se como autônomo em relação às
discussões políticas e sociais no Brasil, independente do Partido Republicano Paulista
5 Teve como principais articuladores Américo Brasiliense, atuando na cidade de São Paulo, e Campos Sales,
atuando em Campinas. 6 Principalmente fazendeiros de café do Oeste Novo paulista Américo Brasílio de Campos, Antônio Carlos
de Sales, Antônio Pompeu de Camargo, Bento Augusto de Almeida Bicudo, Cândido Vale, o major Diogo
de Barros, Francisco de Sales, Francisco Glicério de Cerqueira Leite, Francisco Rangel Pestana, João
Francisco de Paula Sousa, João Manuel de Almeida Barbosa, João Tibiriçá Piratininga, João Tobias de
Aguiar e Castro, José Alves de Cerqueira César, José de Vasconcelos de Almeida Prado, José Pedroso de
Morais Sales, Manuel Elpídio Pereira de Queirós, Martinho Prado Júnior e Rafael Pais de Barros.
(PRP), partido nascente na época. Esta autonomia era buscada, pois seus representantes
acreditavam ser a única forma de desempenhar um trabalho livre crítico.
“[...] é importante ressaltar que o conservadorismo de O Estado de S. Paulo
não se traduz em submissão ao Estado e nem mesmo ao governo, ou a partidos
políticos. Embora seus dirigentes tenham ocupado eventualmente cargos
públicos [...] ou participado ativamente de partidos políticos, o jornal não se
tornou um porta-voz, a não ser de seu próprio projeto político” (SPONHOLZ,
1999, p. 45).
Em 1885, Júlio Mesquita começa a integrar a equipe do periódico como redator-
gerente, envolvendo-se junto ao jornal com duas campanhas: a abolição da escravatura –
mais assumido pelo jornal – e a proclamação da República. Já em 1888, Júlio Mesquita,
ao lado de Rangel Pestana, passa ao cargo de codiretor do jornal. E, em 1891, com a
eleição de Rangel Pestana para Senado, Mesquita o substitui na direção de A Província
de São Paulo. Desde então, a direção do jornal está nas mãos da família Mesquita.
Analisando o periódico publicado entre os anos de 1927 e 1937, Capelato (1980)
aponta características próprias, as referências do jornal O Estado de São Paulo que se
destacam na imprensa brasileira e que estão em sua maioria presentes atualmente. Ela
ressalta característica como a defesa dos princípios liberais, sua própria definição de se
constituir oposição aos governos constituídos e sua preocupação e uso político da
“opinião pública”. OESP age conforme seus interesses particulares, seus valores,
propondo programas com os quais a classe dominante se identifique. Os representantes
do jornal não ficam omissos diante dos acontecimentos da história do Brasil, ao contrário,
tem uma participação ativa nos debates que se colocam, buscando influenciar e direcionar
o comportamento de seus leitores. Desta forma, o que é produzido no jornal se faz com o
intuito de atuar politicamente, idealizando um projeto de futura para o Brasil, projeto este
calcado em bases da doutrina liberal.
“O modelo político defendido pelo periódico é considerado ‘ideal’ para o país
norteia-se pelos princípios liberais e consubstancia-se na prática da democracia [...]”
(CAPELATO, PRADO, 1980, p. 91). Ainda segundo Capelato e Prado, desde o início do
século XX, o periódico expõe ideias contrárias à interferência do Estado na economia,
pois defende que ir contra o princípio liberal de liberdade de mercado ocasiona em atraso.
Ao Estado cabia apenas garantir os direitos naturais do homem, justiça, segurança,
liberdade, propriedade (CAPELATO, PRADO, 1980, p. 98). Soma-se a estas ideias o
apoio de O Estado de São Paulo a entrada de capitais estrangeiros, alegando que era uma
instigação ao desenvolvimento, já que o Brasil não possuía capacidade de investimento.
Segundo a posição assumida pelo periódico, é a opinião pública que faz e desfaz
um governo. No entanto, este vetor não é independente, é também manipulado, criado e
atraído, principalmente pela imprensa e, desta forma, é mobilizada pelo OESP intentando
legitimar seu posicionamento político.
Fonseca (1994) destaca outras características do periódico analisado. O
tradicionalismo torna-se uma característica importante, é por este meio que se estima a
moral, a religião e o passado, seus heróis e legado, que serviriam como exemplo de como
agir no presente e no futuro. Além disso, o conservadorismo é também presente em OESP.
Em relação à análise dos editoriais e matérias internas d’O Estado de S. Paulo
durante o processo eleitoral de 1998, é possível perceber que o periódico se posiciona de
forma favorável ao candidato-presidente Fernando Henrique Cardoso. Tal análise se deu
principalmente em torno de alguns temas centrais: o projeto de privatizações e de
reformas; as crises econômicas internacionais e as medidas do governo brasileiro quanto
aos seus reflexos no país; o Plano Real, que completou quatro anos no ano estudado; e
por fim, a disputa entre os candidatos à presidência – principalmente o destaque negativo
dado a Luis Inácio Lula da Silva no jornal O Estado de S. Paulo.
As temáticas que se relacionam com o processo de privatizações, assim como o
de reformas – da Previdência e tributária, principalmente – ganham um amplo espaço nas
páginas de OESP
O projeto de privatizações do Governo FHC ocupa um grande espaço nas páginas
do jornal, seja no que concerne às disputas políticas e judiciais em torno disto ou no que
diz respeito às vantagens consideradas por O Estado de S. Paulo. No periódico, a visão
que se apresenta é a de que as privatizações trariam benefícios tanto ao governo, que
atrairia investimentos interno e externo, como para os consumidores, que teriam mais e
melhores ofertas de serviço. As privatizações passam a ser, para o jornal a principal arma
brasileira no que diz respeito ao combate à crise econômica, além de ser fundamental na
consolidação da estabilização econômica.
Já as reformas, seriam para no periódico um óbvio interesse nacional, pois
significariam um enorme crescimento da qualidade de vida dos brasileiros, isto porquê
acarretaria em crescimento econômico – levando a criação de postos de emprego,
melhores serviços de infraestrutura e o equilíbrio das contas públicas.
O que chama a atenção no estudo da fonte é o fato de que o periódico por diversas
vezes, em especial no que concerne aos editoriais, retira do governo, de Fernando
Henrique Cardoso e suas decisões, a responsabilidade pelo contexto social e econômico
interno brasileiro, tornando culpados outros sujeito que faziam parte dos embates
políticos da época. Isto ocorre tanto no que se refere ao atraso das reformas, considerados
pelo jornal fundamentais, quanto nos reflexos da crise no Brasil.
Para o jornal a oposição no Congresso e até mesmo fora dele, no caso de Lula,
dificultava as melhorias propostas por FHC; estavam mais interessados em desmoralizar
o governo de FHC entravando as reformas por ele propostas. Para O Estado de S. Paulo,
o governo ficaria de mãos atadas para enfrentar o déficit público de forma eficiente se o
Congresso não entendesse a gravidade da questão para o Brasil.
Quando analisado o contexto das eleições presidenciais de 1998, ficam em
evidência as crises mundiais que também atingem a economia brasileira. E sobre essa
temática são destacados em diversos editoriais do jornal as medidas de Fernando
Henrique Cardoso para enfrentar a crise e o apoio dos editorialistas a todas elas,
antecipando um futuro de austeridade e a necessidade do sacrifício popular. Para Soares
(SOARES, 2009, p. 173), “Fazendo isso, os editoriais restringiram-se a interpretações de
curto alcance da crise, pautando-se por argumentações que desresponsabilizavam as
políticas econômicas pela força do impacto da crise mundial.”
O discurso dominante no jornal é o de que as dificuldades econômicas pelas quais
passava o Brasil eram efeito do cenário econômico-financeiro internacional, de seus
“desacertos e distorções”. Mesmo tendo provocado arrocho salarial e a piora da qualidade
de vida da população, as medidas tomadas por Cardoso eram inevitáveis, necessárias na
tentativa de amenizar as consequências da crise internacional. Segundo colocam os
editorialistas, naquele momento o tema era crise e os motivos de descontentamento eram
culpa de FHC. Porém, mesmo que as medidas tomadas por seu governo não tenham tido
êxito maior, nenhum outro governante brasileiro teve melhores resultados que Fernando
Henrique Cardoso.
Os quatro anos de Plano Real marcaram a eleição de 1998. A estabilidade
conseguida por este Plano ainda era conteúdo das matérias internas do jornal, além de ser
motivo de comemoração, de defesa da continuidade do projeto implementado por FHC
no Brasil. Segundo OESP fica claro que sem a implantação do real, seriam impraticáveis
as transformações conseguidas desde 1994, como o fato de o governo, economia e
sociedade voltaram a funcionar; foi dado fim a superinflação que assolava o Brasil; entre
1994 e 1997, houve redução do número de miseráveis, assim como da concentração de
renda e a taxa de mortalidade infantil.
“[..] o real é mais do que uma moeda firme, assim como o Real é mais do que
um plano bem-sucedido. Apesar dos juros e do câmbio, da dívida e do déficit,
da crise asiática e do saco de maldades; apesar do desemprego e da dengue, da lentidão do governo em acudir quem fica na pior e de sua relutância em
reconhecer erros e omissões evidentes; apesar dos maus passos e dos maus
parceiros do presidente, e seu soberbo desdém pelos críticos e de seu tão
comentado distanciamento das situações de comoção popular – o fato essencial
é que nunca o País mudou tanto para melhor, em tão pouco tempo, em regime
de democracia plena.” (23/06/1998, p.2)
A eleição presidencial do ano eleitoral analisado teve como destaques principais
os candidatos Fernando Henrique Cardoso, que, como foi mencionado, era um caso
particular por ser ele candidato/presidente, e Luis Inácio Lula da Silva, principal
candidato da esquerda naquele contexto. Como ficou evidente nos editoriais
apresentados, O Estado de S. Paulo adere ao governo e às suas medidas. No que diz
respeito ao segundo candidato, ocorre o extremo oposto. Lula, nos editoriais e algumas
matérias, faz parte da oposição despreparada e responsável pelo aprofundamento dos
problemas econômicos e sociais que atingem o Brasil, que busca a todo tempo
desestabilizar o então atual governo em benefício de sua candidatura e é um risco para o
futuro.
Considerações finais
O posicionamento do jornal objeto deste estudo se justifica no seu apoio a uma
agenda neoliberal que faz oposição à intervenção estatal na economia e defende redução
de gastos públicos, privatizações e abertura econômica ao mercado estrangeiro. Tendo
como um aspecto importante de seu funcionamento a manutenção de um
conservadorismo na sociedade brasileira.
Através da análise dos editoriais e matérias internas do jornal O Estado de S. Paulo
do ano de 1998, fica claro o alinhamento do periódico com o Governo Fernando Henrique
Cardoso e o que ele representa para um projeto neoliberal. Partindo da perspectiva de
Gramsci de que há um conjunto de instituições que visam interferir na sociedade política
e culturalmente, em busca de um consenso acerca de uma concepção de mundo,
conhecidos como aparelhos privados de hegemonia, é possível perceber que o jornal O
Estado de S. Paulo atuou como tal em defesa da reeleição de Fernando Henrique Cardoso
assim como da manutenção de um projeto neoliberal conservador.
Fontes
O Estado de S. Paulo, 1998.
Localização: Biblioteca Nacional, Seção de Periódicos. Coleção microfilmada
O acervo de O Estado de S. Paulo também está disponível para a consulta on-line através
do sítio:https://acervo.estadao.com.br/;
Referência Bibliográfica
BIANCHI, Alvaro. Eterno / provisório e Estado / Sociedade Civil. In. Idem. O
laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008
BRANDÃO, Rafael Vaz da Motta. Ajuste Neoliberal no Brasil: desnacionalização e
privatização do sistema bancário no governo Fernando Henrique Cardoso. Tese
(Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História Social da
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013.
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