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Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística Rua Barão de Geremoabo, nº147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitário Ondina Salvador-BA Tel.: (71) 263 - 6256 – Site: http://www.ppgll.ufba.br - E-mail: [email protected]
OO EESSTTUUPPOORR EEMM BBEECCKKEETTTT
OO EESSTTUUPPOORR CCOOMMOO LLIIBBEERRTTAAÇÇÃÃOO EE TTRRAAGGÉÉDDIIAA EEMM EELLEEUUTTHHEERRIIAA
por
CELSO DE ARAÚJO OLIVEIRA JR.
Orientadora
Profª. Drª. Evelina de Carvalho Sá Hoisel
SALVADOR 2005
Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística Rua Barão de Geremoabo, nº147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitário Ondina Salvador-BA Tel.: (71) 263 - 6256 – Site: http://www.ppgll.ufba.br - E-mail: [email protected]
OO EESSTTUUPPOORR EEMM BBEECCKKEETTTT
OO EESSTTUUPPOORR CCOOMMOO LLIIBBEERRTTAAÇÇÃÃOO EE TTRRAAGGÉÉDDIIAA EEMM EELLEEUUTTHHEERRIIAA
por
CELSO DE ARAÚJO OLIVEIRA JR.
Orientadora
Profª. Drª. Evelina de Carvalho Sá Hoisel
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia como parte dos requisitos para obtenção do grau de
Mestre em Letras.
SALVADOR 2005
Biblioteca Central Reitor Macedo Costa - UFBA
O48 Oliveira Junior, Celso de Araújo. O estupor em Beckett : o estupor como libertação e tragédia em Eleutheria / Celso de Araújo Oliveira Jr. - 2005. 104 f. Orientadora: Profª Drª Evelina de Carvalho Sá Hoisel. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, 2005. 1. Beckett, Samuel, 1906-1989 – Crítica e interpretação. 2. Beckett, Samuel, 1906-1989.
Eleutheria. 3. Estupor. 4. Alexitimia. 5. Teatro irlandês – Sec. XX. 6. Teatro (Literatura) – Técnica – Sec. XX 7. Tragédia – Sec. XX. I. Hoisel, Evelina de Carvalho Sá. II. Universidade Federal da Bahia. Instituto de Letras. III. Título.
CDU - 821(417).09 CDD - 820.09
À memória de meu pai, que morreu antes do fim.
Agradecimentos
Aos colegas, companheiros de jornada, que me ajudaram a pensar;
aos amigos, pela paciência e entusiasmo;
à Escola de Teatro, que me deu régua e compasso;
e a Claudio Simões, meu amigo escritor, quase irmão, pelo olhar atento.
Agradeço especialmente à Profª. Drª. Eneida Leal Cunha pelo acolhimento.
Porque a alma humana é um abismo, eu é que sei.
Álvaro de Campos
RESUMO
O ESTUPOR EM BECKETT Estupor, alexitimia, tragédia, dramaturgia do século XX, Samuel Beckett. A fundamentação teórica e literária sobre os conceitos de estupor, de fraturas narrativas e de interrupção de fluxo narrativo. Os estudos sobre o efeito de estupor sob o ponto de vista da psiquiatria e da psicanálise, do ritmo e efeitos da narrativa. O estudo crítico sobre o estupor em William Shakespeare, Anton Tchekhov e Samuel Beckett. O sentido e a evolução dos pressupostos fundamentais da tragédia. O estupor como hýbris. A precipitação trágica do drama beckettiano a partir destes pressupostos. Uma gênese da poética beckettiana, através das suas relações filosóficas e da sua experiência como crítico literário e de arte. O retrato do artista enquanto crítico. As relações filosóficas de Beckett e a constituição do Beckett-escritor a partir do Beckett-crítico. Leitura dos escritos críticos de Beckett sobre a obra de James Joyce, de Marcel Proust e de pintores modernos, em articulações com exemplos da obra dramatúrgica e ficcional do autor. Leitura crítica do drama Eleutheria, escrito por Samuel Beckett em 1947. O estupor, enquanto hýbris, atuando como estratégia de libertação e motivo de ruína.
ABSTRACT
STUPOR IN BECKETT Stupor, alexitimy, tragedy, XXth century drama, Samuel Beckett. The literary and theoretic establishment of the concepts on stupor, on narrative breaks and interruption of the narrative flux. The studies about the stupor effect as it is seen in psychiatry and psychoanalysis, of the rhythm and the effects of a narrative. The critical study about the stupor in William Shakespeare, Anton Tchekhov and Samuel Beckett. The meaning of an evolution of the fundaments of tragedy. The stupor as hýbris. The tragic fall through these fundaments in the Beckettian drama. The genesis of a Beckettian poetics by his philosophic relations and by his work as a literary and art critic. The picture of the artist as a critic. Beckett´s philosophic relations and the development of the Beckett-the-writer through the Beckett-the-critic. Reading of Beckett´s writings on the works written by James Joyce, Marcel Proust and the modern painters, relating them with examples taken from the fictional works of the author. Critic reading of the play Eleutheria, written by Samuel Beckett in 1947. The stupor as hýbris, functioning as a strategy of liberation and cause of ruin.
1 INTRODUÇÃO
Nosso interesse pela dramaturgia de Samuel Beckett foi despertado muito cedo, depois
do forte impacto causado pela apresentação de um espetáculo teatral intitulado Kathastrophé
– o teatro de Samuel Beckett hoje, promovido pela Casa de Cultura Laura Alvim, no Rio de
Janeiro, no ano de 1986. O espetáculo, sob a direção de Rubens Rusche, fazia parte de um
projeto chamado “Beckett 80 anos” e trazia quatro pequenas peças escritas entre os anos de
1963 e 1982.
Logo em seguida, ingressamos no III Curso Livre de Teatro da Escola de Teatro da
Universidade Federal da Bahia, sob a coordenação de Luiz Marfuz, dando início, assim, à
nossa carreira profissional de ator. O resultado final do curso Livre foi a apresentação do
espetáculo Sim, uma coletânea de textos de Fernando Arrabal, um dos expoentes do chamado
“teatro do absurdo”, organizada por Cleise Mendes. Desta maneira, travamos contato com as
especificidades da dramaturgia do século XX e seus autores mais emblemáticos, inclusive
Beckett.
No ano de 1990, ingressamos na Escola de Teatro da UFBa, onde obtivemos o
Bacharelado em Artes Cênicas com habilitação em Direção Teatral. Durante o ano de 1991,
nos dedicamos à pesquisa intitulada A gênese de um sucesso, que fez parte do Programa de
Iniciação Científica CNPq/UFBa, sob orientação do professor Armindo Bião. Neste mesmo
ano, nosso texto A tragédia feminina (um estudo sobre as personagens femininas da Trilogia
Tebana de Sófocles) é publicado na Revista Hypérion Letras no. 2, do Instituto de Letras da
UFBa.
Durante o período da graduação, iniciamos uma série de exercícios de tradução de
textos dramáticos originalmente escritos em inglês ou de traduções inglesas de textos escritos
em outras línguas, cujo objetivo sempre fora a montagem dentro de salas de aula ou pequenas
mostras internas de cunho universitário. Faz parte destes exercícios o texto de A lacuna, de
Eugène Ionesco. Nosso projeto de graduação foi realizar a tradução e encenação de três peças
curtas de Samuel Beckett – Come and go (1965), Quad (1982) e What where (1983) – sob o
título de 3xNada.
Em 1996, ainda restrito ao circuito universitário, traduzimos e dirigimos a montagem
intitulada Restos, que era composta também por três peças curtas escritas por Beckett – Ohio
impromptu (1963), Play (1981) e Catastrophe (1982).
Já no exercício profissional, entre mais de duas dezenas de montagens encenadas,
traduzimos e dirigimos O médico a pulso (criada a partir de uma versão inglesa de Le
médécin malgré lui, de Moliére); traduzimos o texto de SubUrbia, do norte-americano Eric
Bogosian e ainda, mais recentemente, a peça A prostituta respeitosa, já diretamente do
original em francês de Jean-Paul Sartre, para a montagem de Márcio Meirelles.
Recentemente, nossa atividade profissional e acadêmica se voltou para realizar um
aprofundamento da relação textual da obra de Samuel Beckett, no qual buscamos
compreender alguns de seus procedimentos e estratégias dramatúrgicos. Nosso interesse aqui
é o de dar maior esteio teórico e metodológico que possa implementar nosso trabalho como
encenador.
Esta dissertação é composta por três capítulos interligados e complementares.
O primeiro capítulo traz a fundamentação teórica e literária sobre os conceitos de
estupor, de fraturas narrativas e de interrupção de fluxo narrativo. Para isto, ampliamos o
nosso horizonte metodológico e voltamos nosso olhar para os estudos sobre o estupor sob o
ponto de vista da psiquiatria e da psicanálise, do ritmo e efeitos da narrativa. Assim,
realizamos um estudo crítico sobre o estupor em Shakespeare, Tchekhov e Beckett. Ainda no
primeiro capítulo, fazemos um estudo sobre o sentido e a evolução dos pressupostos
fundamentais da tragédia, para provar que o estupor das personagens das peças de Beckett
funciona como hýbris e, desta maneira, analisamos a precipitação trágica do drama
beckettiano a partir destes novos pressupostos.
O segundo capítulo é a busca de uma gênese da poética beckettiana, através das suas
relações filosóficas e da sua experiência como crítico literário e de arte. Nesta parte da
dissertação, nossa intenção é fazer o retrato do artista enquanto crítico. Para isto,
estabelecemos as relações filosóficas de Beckett e, em seguida, analisamos a constituição do
Beckett-escritor a partir do Beckett-crítico, procedendo à leitura dos escritos críticos de
Beckett sobre a obra de James Joyce, de Marcel Proust e de pintores modernos, fazendo
articulações com exemplos da obra dramatúrgica e ficcional do autor.
O último capítulo é dedicado especificamente à leitura crítica do drama Eleutheria,
escrito por Beckett em 1947, numa abordagem que utiliza as duas partes anteriores como
subsídio. Desta maneira, vemos que o estupor, enquanto hýbris, atua como estratégia de
libertação, porém, tragicamente é também o motivo de ruína.
Como uma parte da bibliografia que pesquisamos não estava disponível em português,
optamos por traduzir os fragmentos utilizados no corpo de nossa dissertação para não
interromper o fluxo de leitura. Da mesma maneira, fizemos a tradução dos trechos de peças
de Beckett indisponíveis em língua portuguesa. Para isto, utilizamos a edição inglesa Samuel
Beckett - The complete dramatic works, da Faber and Faber, mesmo nas peças escritas
originalmente em francês pois, nesta edição, as traduções para o inglês foram realizadas pelo
próprio Beckett ou sob sua supervisão. O procedimento com Eleutheria ocorreu de maneira
diferente. Como a peça foi escrita originalmente em francês – assim como boa parte da obra
de Samuel Beckett – e não possui tradução inglesa do próprio autor, se fez necessário o nosso
aprendizado instrumental desta língua, na Aliança Francesa de Salvador, para a imersão no
texto original. Foi utilizada, como auxiliar, a tradução inglesa de Barbara Wright, cuja
disciplina empregada como tradutora pode ser considerada um exemplo de método para
tradução. A tradutora explica, numa nota que antecede à peça, que estudou todas as traduções
que Beckett fez de suas próprias obras e decidiu criar um vocabulário próprio a partir destas
traduções. Wright afirma que não utilizou nenhuma palavra que Beckett já não tivesse usado
em suas traduções próprias.
Todas as vezes em que foi utilizada a nossa tradução, tanto nos textos teóricos como
nos literários ou dramáticos, foi acrescida, a partir de sugestão da orientadora, a nota
‘[Tradução do autor desta dissertação]’. As únicas exceções são os vários trechos traduzidos
de Eleutheria que, apesar de não trazerem a nota explicativa, foram todos traduzidos por nós.
Desta maneira, utilizamos nossa experiência na tradução de peças de teatro para trazer para o
português fragmentos cruciais para a compreensão da obra.
SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 2 ESTUPOR E TRAGÉDIA 2.1 O estupor 2.2 O estupor no drama: Shakespeare e Tchekhov 2.3 O estupor entre a errância e o discurso espiral: Beckett 2.4 A tragédia e a idéia do trágico 2.5 O sentido de uma evolução do trágico: em busca de uma filosofia do trágico 2.6 A partida e a impossibilidade da partida: atos trágicos 2.7 A tragédia em Beckett: o estupor como hýbris 3 BECKETT ENQUANTO DEVIR DE ARTISTA SE NUTRE DAS EXPECTATIVAS FORMAIS
DO BECKETT CRÍTICO 3.1 O retrato do artista 3.2 As relações filosóficas de Beckett 3.3 O primeiro ensaio: Joyce. Em busca de um eixo formal 3.4 O segundo ensaio: Proust. Em busca de um eixo moral 3.5 O terceiro ensaio: a pintura de Pierre Tal Coat, de André Masson e de Bram Van Velde. Em busca do nada 4 ELEUTHERIA 4.1 A equação beckettiana em Eleutheria 4.2. A importância do nome 4.3 Eleutheria: Entre Círculos internos, vaudeville e meta-drama 4.4 Alexitimia e estupor entre o Tempo, a Liberdade e o Nada 4.5 Libertação e ruína em Eleutheria 5 CONCLUSÃO 6. BIBLIOGRAFIA
2 ESTUPOR E TRAGÉDIA
Não há nada a expressar, nada com que expressar, nada a partir do que expressar, nenhuma possibilidade de expressar, nenhum desejo de expressar, aliado à obrigação de expressar. Samuel Beckett
2.1 O ESTUPOR
A palavra estupor tem origem na palavra latina stupore e significa um estado de
entorpecimento ou de paralisia súbita, caracterizado pela diminuição dos movimentos,
pelo mutismo e pela aparente indiferença aos estímulos externos. Geralmente associado,
na psiquiatria, a um tipo de catatonia, o estupor é considerado um dos sintomas para o
diagnóstico de alguns tipos de esquizofrenia. Este estado mórbido é caracterizado a partir
do momento em que, mesmo estando desperto, o paciente passa a não reagir mais a
perguntas nem a estímulos externos, permanecendo imóvel, numa só posição.
G. C. Barnard, autor de Samuel Beckett – A new approach, publicado em 1970,
será o primeiro crítico a apontar a esquizofrenia como um elemento importante na obra de
Samuel Beckett. Antes de proceder ao exame profundo de alguns romances e dramas de
Beckett, Barnard, na introdução de seu estudo, toma como exemplo uma das primeiras
narrativas beckettianas, a coletânea de contos More pricks than kicks, e afirma que o
protagonista
Belacqua é freqüentemente mencionado com inveja pelos outros heróis beckettianos como aquele que conseguiu ser bem-sucedido ao abandonar a vida do dia-a-dia para viver em mundo dentro de sua própria imaginação [...] Com aparência rota, ele perambula como um catatônico e revela que seu coração realmente está no asilo de loucos da cidade. 1
Barnard justifica sua leitura e caracteriza a esquizofrenia da seguinte maneira:
Como a esquizofrenia possui tamanha importância na caracterização dos heróis de Beckett, é apropriado discutir seus principais aspectos aqui. O elemento essencial é um retraimento do interesse do mundo exterior e uma concentração no mundo interior de fantasia, mas há vários sintomas concomitantes e variações nos graus da enfermidade. Na forma catatônica da doença, o paciente permanece às vezes totalmente inerte e parece estar em estupor; [...] ele parece despido de afeto por qualquer pessoa, e este traço, normalmente, aparece ainda bem cedo no curso da psicose ou mesmo antes de seu início. O paciente [...] retirou sua libido das pessoas e a concentrou narcisicamente em seu próprio ego. 2
Entre os sintomas deste estupor catatônico a que Barnard se refere estão a aparente
ausência de afeto e a decadência física do indivíduo acometido. Além disso, a
1 BARNARD. G. C. Samuel Beckett – A new approach: a study of the novels and plays. Nova York, Dodd, Mead & Company, 1970. p. 4. 2 BARNARD. Op. Cit. p. 5.
esquizofrenia está associada a disfunções de pensamento e do discurso. Isto causa
interrupções de pensamento, interrupções de fluxos narrativos e mudanças bruscas de
assunto durante narrativas, por vezes impossibilitando a comunicação do indivíduo.
Desta maneira, percebemos que todos estes elementos estão presentes na
construção dramatúrgica das personagens de Beckett. Portanto, voltaremos ao texto de
Barnard no terceiro capítulo desta dissertação, quando faremos uma leitura da personagem
Victor Krap, do drama Eleutheria.
Como as disfunções de fluxo narrativo são comuns nos casos patológicos de
esquizofrenia, cabe aqui pesquisar estas interrupções e impossibilidades de produzir um
fluxo narrativo. Assim, chegamos ao conceito de alexitimia, termo com o qual,
recentemente, alguns psiquiatras vêm definindo esta incapacidade de comunicação. O
psicanalista clínico e pesquisador independente Mário Quilici define a palavra alexitimia a
partir da sua etimologia.
O termo alexitimia refere-se a pessoas que [...] não conseguem identificar e nem descrever seus sentimentos. O termo [...] vem do grego: a (que significa ausência), lexis (palavra) e Thymós (que significa emoção). [.] Os alexitímicos sofrem de incapacidade de descrever sentimentos próprios ou de reconhecer os sentimentos daqueles à sua volta. Não sabem discriminar emoções e nem distinguir emoções de sensações físicas. 3
A palavra grega Thymós, além de designar “emoções”, pode significar também
“alma” ou “espírito”. Desta maneira, podemos concluir que alexitimia pode ser definida
como ausência de palavras na alma.
Ao buscar uma possível causa ou algum fator que gerasse a alexitimia, chegamos a
outros textos que complementam a idéia inicial, reforçando o conceito de maneira a
aproximá-lo do estupor em Beckett.
O filósofo alemão Walter Benjamim, em Magia e técnica, arte e política, no
capítulo em que trata do Narrador, afirma que a primeira Guerra Mundial teria
3 QUILICI, Mário. Empatia, simpatia, intuição, intersubjetividade e alexitimia. In.: http://www.psipoint.com.br/arquivo_psicologias_empatia.htm. Acessado em 21 de dezembro de 2004.
manifestado um processo que se verifica até os dias de hoje: a extinção da possibilidade de
criar uma narrativa a partir de uma experiência terrível. Segundo Benjamim, “no final da
guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha”4. Apesar
de o estudo de Benjamin apontar para outro caminho, é este pequeno raciocínio de causa e
efeito o que nos interessa aqui. Esta impossibilidade de produção de um fluxo narrativo é
o que estamos chamando de estupor.
Porém, o texto fundamental para a conceituação de estupor e seus efeitos, aqui, é o
estudo sobre a narrativa, realizado pelo professor Pierre Le-Quéau, da Université de
Grenoble, na França. Em sua palestra proferida no ano de 2000 para o Grupo de pesquisa
interdisciplinar do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal
da Bahia (GIPE-CIT), intitulada O ritmo e os efeitos da narrativa, Le-Quéau abordará a
questão da narrativa nas “entrevistas não-diretivas de pesquisa” na teoria sociológica ou
antropológica. A intenção de Le-Quéau é aplicar o estudo das narrativas do ponto de vista
da fenomenologia, ressaltando a sua importância hermenêutica nos estudos ligados à
antropologia e à sociologia. Logo no início de seu estudo, Le-Quéau ressalta a importância
de que
a narrativa, longe de ser um reflexo mais ou menos fiel da realidade, é uma construção, uma criação. Há a mesma distância (ou a mesma proximidade) entre a narrativa e a vida que, na pintura, entre uma tela e a natureza ou, no teatro, entre uma peça e a realidade. Se a mímese [...] é bem uma imitação da realidade, essa imitação não supõe um constrangimento estreito e formal de proximidade com essa realidade. 5
Ainda segundo Le-Quéau, “na narrativa se manifesta a primeira capacidade criativa
do ser humano, que consiste em introduzir um tipo de ruptura no fluxo da vida, e um tipo
de descontinuidade na continuidade do real.” 6 Logo em seguida, ele falará sobre o que ele
chama de a cara do estupor. Ele afirma que “é sempre interessante observar o que
4 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 198. 5 LE-QUÉAU, Pierre. O ritmo e os efeitos da narrativa. Transcrição de palestra ministrada no GIPE-CIT: 7 de junho de 2000. p. 1. 6 LE-QUÉAU. Op. Cit. p. 2.
acontece quando uma narrativa não é possível: o patológico, nesse sentido, é sempre útil
para compreender o normal”. E prossegue dizendo que, “[...] de fato, há situações sociais
ou históricas nas quais não se pode produzir uma narrativa” 7.
É justamente neste ponto que Le-Quéau evocará a consciência que os gregos
possuíam da representação do estupor: a petrificação como conseqüência do cruzamento
do olhar humano com o das górgonas8. O que Le-Quéau afirma é que a petrificação
causada pelo contato do olhar das górgonas é, de fato, uma representação mitológica do
estupor. Desta maneira, percebemos que o pensamento grego já havia criado uma
representação para o estado de estupor. Passamos então ao estudo desta representação, na
Grécia Antiga.
Professor honorário do Collège de France e especialista em Estudos Comparados
de Religiões Antigas, Jean Pierre-Vernant afirmará, em A morte nos olhos, que a face do
terror está representada na máscara de Gorgó9.
Segundo Pierre-Vernant,
a máscara monstruosa de Gorgó traduz a extrema alteridade, o temor apavorante do que é absolutamente outro, o indizível, o impensável, o puro caos: para o homem, o confronto com a morte, esta morte que o olho de Gorgó impõe aos que cruzam seu olhar, transformando todo ser que vive [...] em pedra imobilizada, glacial, cega, mergulhada em trevas. 10
Ao estudar a questão da alteridade na Grécia Antiga, Vernant analisa as
representações de Gorgó enquanto “aquilo que, a todo momento e em qualquer lugar,
arranca o homem de sua vida e de si mesmo [...] para projetá-lo para baixo, na confusão e
no horror do caos”. 11
7 LE-QUÉAU. Op. Cit. p. 2. [Grifo nosso].
8 Cada uma das três personagens mitológicas, Esteno, Euríale e Medusa, mulheres que tinham serpentes por cabelos e transformavam em pedra quem as encarava. Fonte: Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0.
9 Gorgó (a górgona Medusa). VERNANT. A morte nos olhos. p. 12. 10 VERNANT, Jean-Pierre. A morte nos olhos – Figuração do Outro na Grécia Antiga: Ártemis e Gorgó. 2.ed. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. 11 VERNANT. Op. cit. p. 37.
Gorgó aparece no canto XI da Odisséia de Homero como imagem simbólica do
medo de Odisseu ao sair do Hades. Na Teogonia de Hesíodo, ela cumpre um papel
simétrico ao do cão Cérbero. Enquanto Cérbero impede que os mortos retornem ao mundo
dos vivos, a função de Gorgó é impedir a entrada dos vivos no mundo dos mortos: “Do
fundo do Hades, onde habita, a cabeça de Gorgó guarda, vigilante, as fronteiras do
domínio de Perséfone”12.
Porém, o que nos interessa aqui é a força simbólica de representação do estupor.
Para isto, Vernant analisa a facialidade da cabeça da Medusa.
Sua máscara exprime e preserva a alteridade radical do mundo dos mortos, do qual nenhum vivo pode aproximar-se. Para atravessar-lhe o umbral teria sido necessário encarar a face do terror, transformando-se como Gorgó, sob seu olhar, no que são os mortos: cabeças, cabeças vazias, desprovidas de sua força, de seu ardor.13
Porque, para Vernant,
o rosto do vivo, na singularidade de seus traços, é um dos elementos da pessoa. Mas na morte esta cabeça à qual nos vemos reduzidos, já agora inconsistente e sem força, como a sombra de um homem ou seu reflexo num espelho, está imersa na obscuridade, encapuzada de trevas. É uma cabeça vestida de noite. 14
E uma das conclusões a que ele chega é que
quando encaramos Gorgó é ela que faz de nós o espelho no qual, transformando-nos em pedra, contempla sua face terrível e se reconhece no duplo, no fantasma que nos tornamos ao enfrentar o seu olho [e simetricamente, através desta experiência] revela-se a verdade de nosso próprio rosto. 15
Jean-Pierre Vernant não chega a apontar sua análise para os efeitos que a
petrificação da experiência de olhar para a face do terror causa. Portanto, devemos retornar
à palestra de Pierre Le-Quéau.
O que Le-Quéau afirma é que a imagem do estupor associado à experiência do
olhar de Gorgó pode ser utilizada para descrever “toda a experiência limite que suspende o
trabalho da consciência e, por conseguinte, a possibilidade da narrativa”.16
12 VERNANT. Op. cit. p. 61. 13 VERNANT. Op cit. p. 60. [Grifo nosso] 14 Ibid. p. 61-62. 15 Ibid. p. 105-106. 16 LE-QUÉAU. Op. cit. p. 3.
Desta maneira, voltamos a Benjamin, quando ele afirma a impossibilidade de
produção de uma narrativa pelos soldados regressos das trincheiras da primeira Guerra
Mundial, inaugurando o século XX com a experiência do estupor diante do horror daquele
conflito. Para Benjamin, o início do século XX é marcado pelo desaparecimento da figura
tradicional do narrador, pois foi um século prodigioso na produção de momentos de caos e
horror.
Pierre Le-Quéau evita, em sua palestra, enumerar todas as figuras do estupor
moderno. Mas isto pode ser exemplificado notavelmente na experiência dos atentados
terroristas que destruíram as grandes torres do World Trade Center, na cidade de Nova
Iorque, em setembro de 2001. Há ali dois extremos da face do terror. Um, a face do
indivíduo local, coberto de pó e escombro, parecendo uma massa monocromática cinzenta,
de cuja fronte distinguia-se, nos olhos arregalados, “o olhar apavorado de quem foi solto
do inferno pra vir contar cá em cima os horrores que viu.”17
A outra experiência de impossibilidade de criação de um fluxo narrativo foi a dos
espectadores dos mesmos atentados, que viam os edifícios incendiados e sucumbindo, à
distância, através da transmissão ao vivo pela televisão, e ficavam, em suas casas, inertes,
sem conseguir descrever exatamente o que estavam observando. As emissoras de televisão
exibiam as imagens dos aviões atingindo os prédios repetidas vezes, como um engasgo,
como se aquelas imagens tivessem paralisado os fluxos narrativos naquele ponto, que
permanecia se repetindo, indefinidamente. Somente algumas horas após aquela
experiência, os espectadores começaram a criar fluxos narrativos que pudessem descrever
o que presenciaram pela televisão e começaram a compreender o que havia acontecido
naquela manhã e qual o significado daquelas imagens repetidas à exaustão pelas
emissoras.
17 SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2001. Ato II, cena I. p. 40.
Pierre Le-Quéau, apesar de se fixar em exemplos das duas grandes guerras
mundiais, encerra esta parte da sua palestra com a seguinte conclusão:
Minha hipótese [...] é que é uma aceleração do ritmo do tempo vivido que causa o estupor, a impossibilidade de narrar. Não é exatamente o horror mesmo, mas a primeira aparição dele: o evento único, sem precedente. É a novidade absoluta que causa uma ruptura no senso comum, e uma aceleração do tempo imposto que impede o trabalho da consciência que consiste em estabelecer uma ligação entre o passado e o presente. É o passado, acumulado na experiência coletiva – o senso comum – que pode dar uma forma inteligível ao presente: e finalmente o limite do inteligível é o memorável. O que não se pode lembrar, não existe.18
Assim, continuando a conceituação do estupor, nossa pesquisa nos conduz ao
estupor que não é causado apenas pelo horror, mas pelo excesso de um outro sentimento
tão devastador, o amor, que Beckett chama de “deserto de solidão” 19. Há situações em
que o excesso de amor provoca uma interrupção de fluxo narrativo, o que causará o estado
de estupor no amante.
Um bom exemplo disto é o que Roland Barthes analisa em Fragmentos de um
discurso amoroso, que ele chama de “amor inexprimível”. Barthes lembra que “Werther,
que outrora desenhava bem e muito, não consegue fazer o retrato de Charlotte” e cita as
palavras de Werther, a partir do próprio texto de Goethe: “Perdi [...] a força sagrada,
vivificante, com a qual criava mundos em volta de mim”.20 Ou seja, Barthes se utiliza do
exemplo do jovem Werther, em estado de estupor, incapaz de construir uma narrativa – no
caso, o desenho da amada – justamente por estar apaixonado por ela e não o poder
exprimir. Barthes diz que “o amor tem certamente alguma coisa a ver com minha
linguagem (que o alimenta), mas ele não pode se instalar na minha escritura”.21 Justamente
porque “querer escrever o amor é enfrentar a desordem da linguagem”22, então, ao tentar
escrever este amor e falhar na escritura, o amante entra em estado de estupor. É o amor
inexprimível que paralisa os amantes, impedindo-os até de expressar este amor. 18 LE-QUÉAU. Op. cit. p. 3. [Grifo nosso.] 19 BECKETT. Proust. p. 57. 20 BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Hortêncio dos Santos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986. p. 91. 21 BARTHES. Op. cit. p. 92. 22 BARTHES. Op. cit. p. 93.
Neste sentido, e em relação à memória, o estupor pode ser relacionado com o que o
criador da psicanálise, o alemão Sigmund Freud, chama de ‘sentimento de desrealização’.
Freud chega a esta conclusão no episódio chamado Distúrbio de memória na Acrópole 23,
em que ele narra, em uma carta a um amigo, uma experiência vivida por ele alguns anos
antes na Grécia. Neste texto, ele conta sobre a “situação psíquica, de aparência tão confusa
e tão difícil de descrever” que ele e seu irmão viveram ao rumarem de férias da Itália para
a Grécia. Após terem sido desencorajados, por um amigo, a visitarem a ilha de Corfu,
Freud e seu irmão compraram passagens num navio para Atenas e, na tarde seguinte,
viram-se diante da Acrópole. Naquele momento, o psicanalista teve um pensamento que o
surpreendeu: “Então tudo isso realmente existe mesmo”.24 Não que ele jamais houvesse
duvidado de que a Acrópole realmente existisse, mas sua dúvida era se algum dia chegaria
a visitá-la pessoalmente, por se tratar de uma viagem cara, que parecia impossível de ser
realizada quando Freud era adolescente. O fato marcante aqui é a surpresa de Freud, então
aos 48 anos de idade, que só foi analisado muito tempo mais tarde. Na análise posterior do
estado de espírito que tomou conta dos irmãos nesta ocasião, Freud produzirá um
raciocínio determinante do funcionamento desses sentimentos de desrealização. Para ele,
essas desrealizações [...] são processos complexos, vinculados a conteúdos mentais peculiares e vinculados a operações feitas a respeito desses conteúdos. [...] Esses fenômenos podem ser observados sob duas formas: a pessoa sente que uma parte da realidade, ou que uma parte do seu próprio eu, lhe é estranha. [...] Existe mais um outro grupo de fenômenos que podem ser considerados como suas contrapartidas positivas – é o que se conhece como [...] ‘déjá-vu’ [...] ilusões em que procuramos aceitar algo como pertencente ao nosso ego, do mesmo modo como, nas desrealizações, nos empenhamos em manter algo fora de nós. 25
Logo a seguir, Freud explica que “a segunda característica geral das desrealizações
– sua dependência do passado” – provocou seu distúrbio de memória na Acrópole.
Naquele momento, diante da antiga cidade grega, de uma certa maneira, eles estavam
23 FREUD, Sigmund. Um distúrbio de memória na Acrópole. In.: Obras completas – Edição eletrônica. v. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1969. 24 FREUD. Op. cit. 25 FREUD. Op. Cit.
realizando um sonho que sempre havia sido impossível, estavam realizando algo que
imaginavam, na infância, ser impossível. Desta maneira, vemos o estupor como uma
espécie de ‘desrealização’ onde o indivíduo experimenta, por qualquer motivo – seja a
visão da face do horror, ou uma experiência terrível ou aparentemente intransponível –
uma medida defensiva do ego a partir de dois vetores: do mundo externo real e do mundo
interno dos pensamentos e impulsos que emergem no ego. Sendo assim, essa experiência
de defesa pode estar na desrealização propriamente dita ou na ‘despersonalização’, que
Freud descreve como ‘personalidade dividida’, na tentativa de encontrar “uma explicação
não-científica para o fenômeno do dèjá-vu, onde o ego procura a prova de uma existência
anterior de nosso self mental”.26
A desrealização é a alteração da sensação a respeito de si próprio, enquanto a despersonalização é a alteração da sensação de realidade do mundo exterior sendo preservada a sensação a respeito de si mesmo. Contudo ambas podem acontecer simultaneamente. O aspecto central da despersonalização é a sensação de estar desligado do mundo como se, na verdade, estivesse sonhando. O indivíduo que experimenta a despersonalização tem a impressão de estar num mundo fictício, irreal, mas a convicção da realidade não se altera. A desrealização é uma sensação e não uma alteração do pensamento como acontece nas psicoses onde o indivíduo não diferencia realidade da fantasia. Na despersonalização o indivíduo tem preservado o senso de realidade apesar de ter uma sensação de que o que está vendo não é real. É comum a sensação de ser o observador de si próprio e até sentir o movimento de saída de dentro do próprio corpo de onde se observa a si mesmo de um lugar de fora do próprio corpo. 27
Tanto a desrealização quanto a despersonalização são fenômenos que podem estar
associados à experiência do novo. Este raciocínio nos leva ao pensamento do dramaturgo
alemão Heiner Müller, quando ele afirma que “a primeira forma da esperança é o medo, a
primeira aparição do novo, o espanto”.28
O espanto provocado pela experiência diante do novo pode causar o estupor e é o
grande motor da filosofia. É o que nos afirma o filósofo alemão Martin Heidegger, no seu
texto Qu’est-ce que la Philosophie? (sic). Neste texto, que faz parte de uma coletânea de
26 FREUD. Op. Cit. 27 Fonte: http://www.psicosite.com.br/tra/sod/dissociativo.htm Acessado em 27 de dezembro de 2004. 28 MÜLLER, Heiner. O espanto como a primeira aparição do novo – Para uma discussão sobre a pós-modernidade em Nova York. In.: KOUDELA, Ingrid D. (Org.). Heiner Müller – O espanto no teatro. São Paulo: Perspectiva, 2003. [Grifo nosso.]
conferências e escritos filosóficos, Heidegger fará um histórico da origem da filosofia,
buscando seu sentido, usando uma metodologia que remete a uma epistéme grega. Ao se
perguntar ‘O que é isto – a filosofia?’, ele conduz seu pensamento para o caminho trilhado
pelos filósofos gregos, quando se perguntavam ‘O que é isto – o belo?’ ou ‘O que é isto –
o conhecimento?’ ou ainda ‘O que é isto – a natureza?’. Trilhando o caminho do
significado das palavras em grego, Heidegger nos conduz à sua idéia de espanto (em
grego thaumázein). Segundo Heidegger,
o espanto é, enquanto páthos, a arkhé, da filosofia. [...] O páthos do espanto não está simplesmente no começo da filosofia [...]. O espanto carrega a filosofia e impera em seu interior. 29
Neste ponto, o filósofo alemão afirmará que reduzir a causa da filosofia ao espanto
é “uma atitude mental pouco grega”. Para Heidegger, o espanto é páthos. E ele afirma que
habitualmente se traduz páthos por “paixão, turbilhão afetivo”, porém, através da
etimologia, ele nos aconselha a traduzir como dis-posição, “palavra com que procuramos
expressar uma tonalidade de humor, que nos harmoniza e nos convoca por um apelo”.
Porque
somente se compreendermos páthos como dis-posição podemos também caracterizar melhor o thaumázein, o espanto. No espanto nos detemos (être en arrêt). É como se retrocedêssemos diante do ente pelo fato de ser e de ser assim e não de outra maneira. O espanto também não se esgota neste retroceder diante do ser do ente, mas no próprio ato de retroceder e manter-se em suspenso é ao mesmo tempo atraído e como que fascinado por aquilo diante do que recua. 30
É justamente depois de “nos determos” diante do espanto que podemos seguir
adiante. Quando nos vimos diante de situações sobre as quais não somos capazes de
produzir um fluxo narrativo que dê conta de transformá-las em memória e, assim, torná-las
realidade, experimentamos momentos de ‘desrealização’. A partir do momento que
conseguimos produzir uma narrativa a partir de uma experiência, então, saímos do estupor
e voltamos ao fluxo do real.
29 HEIDEGGER, Martin. O que é isto – a filosofia? In.: Conferências e escritos filosóficos. Tradução de Ernildo Stein. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 21-22. 30 HEIDEGGER. Op. cit. p. 22. [Grifo nosso.]
O que vimos até agora é que o estupor pode ser associado a um dos sintomas da
esquizofrenia e que, sob a forma de catatonia, está presente em alguns casos patológicos
desta doença. Além do estupor catatônico, podemos acrescentar a decadência física e,
principalmente, fraturas nas estruturas narrativas do indivíduo, o que produz uma
dificuldade na comunicação, principalmente a comunicação das emoções, o que se
convencionou chamar de alexitimia – a ausência de palavras na alma. Vimos também que
o homem grego já havia criado uma representação para estes fenômenos, associando-os à
figura da Medusa. Esta associação à máscara do terror representa a extrema alteridade que
“arranca o homem de sua vida e de si mesmo e o projeta na confusão e no horror do
caos”31. Estas cabeças vazias são a representação da suspensão do trabalho da consciência.
Para que a consciência dê conta da realidade, é necessário que haja um esforço para a
produção de um fluxo narrativo que empurre a experiência do real para o passado e, desta
maneira, transformando-o em memória, se possa continuar no fluxo do presente.
Vimos também a experiência do amor inexprimível, que coloca o indivíduo
apaixonado numa situação de desrealização, por ser incapaz de produzir um fluxo que
expresse seu amor. Incapaz de remeter os fatos do presente para a memória do passado, ele
se torna incapaz de viver no presente o seu amor. Pois o que não se pode lembrar não
existe.
Finalmente, vimos o espanto diante do novo. O espanto como páthos, diante do
qual nos detemos e só conseguimos seguir adiante após a produção de um fluxo narrativo
que dê conta deste novo.
1.2 O ESTUPOR NO DRAMA: SHAKESPEARE E TCHEKHOV.
Cabe-nos, agora, determinar em que momentos da literatura dramática universal
encontramos exemplos de representação do estupor e suas conseqüências. Pois, sendo o 31 VERNANT. A morte nos olhos. Op. Cit. p.37.
estupor uma representação da inação, a dramaturgia universal tem produzido exemplos
marcantes deste fenômeno, com conseqüências diversas. Faremos aqui a análise de
momentos de estupor (momentos de interrupção de fluxo narrativo) de personagens do
mestre elisabetano William Shakespeare, do realista russo Anton Tchekhov e, no próximo
outro item, destacaremos alguns exemplos da dramaturgia de Samuel Beckett.
Procuraremos, desta maneira, ampliar a abordagem do problema e exemplificar as
conclusões de nossa pesquisa para dar uma compreensão mais abrangente de nosso ponto
de vista.
Quem aproxima Beckett de Shakespeare é Martin Esslin, em seu livro intitulado O
teatro do absurdo, no capítulo chamado A tradição do absurdo. Esslin afirma que a obra
de Beckett pode ser considerada como uma extremidade de uma tradição teatral vinda dos
clowns de Shakespeare. Já a ligação entre Beckett e Tchekhov aparece em Raymond
Williams, no capítulo Impasse e aporia trágicos: Tchekhov, Pirandello, Ionesco, Beckett,
do livro Tragédia moderna. Para Williams, a aparente inação das personagens
tchekhovianas estaria ligada profundamente com o universo de Beckett.
A obra de William Shakespeare é de uma riqueza inegável, sua capacidade de
compor tipos humanos diferenciados é impressionante. Harold Bloom, crítico
especializado na poética shakespeareana, afirma que “Shakespeare tornou-se o grande
mestre da sondagem do abismo existente entre o ser humano e seus ideais”. 32
Nestas “sondagens”, o mestre inglês investiga momentos de fratura narrativa.
Retiramos de sua obra dramatúrgica dois momentos que consideramos exemplares da
representação do estupor e suas conseqüências. O primeiro exemplo é da peça Macbeth.
Após anunciarem o final da guerra e a vitória dos rebeldes da Escócia, três
feiticeiras predizem ao general Macbeth que ele será agraciado com o título de thane de
32 BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 31.
Cawdor e que será coroado rei. Quando Macbeth fica sabendo, pouco depois, que o rei
Duncan, seu primo, de fato acabara de nomeá-lo thane de Cawdor, ele passa a ter apenas
uma idéia que ao mesmo tempo o fascina e o aterroriza: realizar, através do assassinato de
Duncan, a etapa seguinte do cumprimento de seu destino. O rei então, para honrar e saudar
o primo pela sua nomeação, decide que passará a noite no castelo de Macbeth. Lady
Macbeth, que havia sido prevenida pelo marido sobre a profecia das feiticeiras, dissipa
com suas palavras eloqüentes qualquer sombra de hesitação que seu marido demonstra. À
noite, após apunhalar Duncan, inicia-se o caos interior de Macbeth, que o psicanalista
francês Daniel Sibony, em seu livro Na companhia de Shakespeare – Fúria e paixão em
doze peças, irá associar aos “remorsos, terrores e alucinações”33 experimentados pelo
atormentado Macbeth. Nosso exemplo se inicia exatamente neste momento: logo após
apunhalar o rei Duncan em seus aposentos, não antes de Lady Macbeth ter colocado
sonífero no vinho dos guardas responsáveis pela segurança do rei, Macbeth surge na cena
para reencontrar a esposa após ter realizado o feito, ainda segurando os punhais com os
quais acabara de cometer o assassinato. O general Macbeth, cuja experiência no fervor do
campo de batalha já o havia feito acostumar-se com o sangue alheio, parece hesitar diante
da máscara do terror.
MACBETH (olhando as mãos) É uma triste visão. LADY MACBETH Que tolice dizer que é visão triste.
E então, se referindo aos guardas que dormiam entorpecidos pelo sonífero, diz:
MACBETH Um riu, dormindo; o outro ouviu “Macbeth!”, Acordando-se os dois. Fiquei ouvindo; Mas eles só rezaram, pra depois Voltar ao sono [...] Disse um, “Louvado seja!”; o outro, “Amém”, Como se vendo estas mãos de carrasco. Não pude, ao seu pavor, dizer “Amém”,
33 SIBONY, Daniel. Na companhia de Shakespeare – Fúria e paixão em doze peças. Tradução de Mª de Lourdes Lemos Britto de Menezes. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 203.
Quando os ouvi dizer “Louvado seja”. LADY MACBETH Não pense tanto nisso. MACBETH Por que não pude eu dizer “Amém”? Precisava de bênçãos, mas o “Amém” Morreu-me na garganta. 34
O que se nota aqui é a total incapacidade de Macbeth em proferir a palavra que o
salvaria. Na sua hesitação, originada pelo remorso, Macbeth experimentou o estupor
causado pela visão do terror. E, em sua alucinação, pensa ter ouvido vozes:
MACBETH [...] Me parece
Que ouvi uma voz gritar! “Não dorme mais! Macbeth matou o sono” – [...] “Não dorme mais!” gritou pra toda casa. Matou o sono Glamis e então Cawdor Não dorme mais; Macbeth não dorme mais. 35
Num momento de despersonalização, Macbeth ouve a voz de sua consciência –ou
de seu remorso – como sendo uma voz alheia. Ao proferir a sentença de que não dormirá
mais, Macbeth realmente interrompe o descanso necessário à boa condução do
pensamento e assim perde o “bálsamo bom de mentes machucadas”. Num claro equívoco
de estratégia, segundo irá constatar Lady Macbeth em seguida, ele trouxe consigo as armas
do crime, em vez de deixá-las no local do assassinato; deslize que será imediatamente
repreendido por sua esposa:
LADY MACBETH [...] Por que trouxeste de lá os punhais? Precisam ficar lá. Volta e besunta Com o sangue os dois que dormem. MACBETH Nunca mais. Eu temo quando penso no que fiz; Não posso mais olhá-lo. 36
34 SHAKESPEARE, William. Macbeth. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. p. 216-217. [Grifo nosso.] 35 SHAKESPEARE. Op. cit. p. 217. 36 Ibid. p. 217.
Então, ele finaliza a cena, cheio de remorso, ao ouvir as batidas de alguém no
portão do castelo.
MACBETH Melhor não conhecer-me que tomar Consciência do meu feito. 37
O horror em Macbeth é tamanho, que faz Harold Bloom afirmar: “Na contramão
da fórmula aristotélica, Shakespeare inunda-nos com temor e pena, não para nos purgar,
mas com um propósito sem propósito, o qual interpretação alguma será capaz de explicar.”
38 E é este horror, representado pela sua incapacidade de proferir o “Amém” da salvação,
que precipita Macbeth em sua trágica aventura pelo poder e a glória.
O segundo exemplo shakespeareano é retirado de Hamlet, mais precisamente duas
passagens exemplares da personagem Ofélia, cujo processo de enlouquecimento
testemunhamos, nas passagens entre o segundo e o quarto atos.
Nas muralhas de Elsinor, na Dinamarca, o príncipe Hamlet – juntamente com seu
amigo Horácio e outros sentinelas – têm contato com um fantasma. Trata-se do espectro
do pai de Hamlet, morto há menos de dois meses. “Há algo de podre, no Estado da
Dinamarca”39. Hamlet é o escolhido para vingar o assassinato do pai. Na corte, Cláudio,
irmão do falecido rei e recém coroado, comemora suas bodas com Gertrudes, a mãe de
Hamlet, recém viúva. Parte do plano de vingança de Hamlet é simular sua própria loucura
para, assim, criar uma armadilha onde sucumba seu tio, Cláudio. Para não se desviar de
seu objetivo, Hamlet se afasta do amor de Ofélia, filha do conselheiro do rei, o patético
Polônio. Este julga que a loucura do jovem Hamlet reside na recusa do amor da filha.
Ofélia, grande vítima da simulação da loucura de Hamlet, é alvo de uma investida, logo no
segundo ato da tragédia. Shakespeare não dramatiza esta cena, que é narrada pela
37 Ibid. p. 218. 38 BLOOM. Op. cit. p. 634. 39 SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2001. p.30.
assustada Ofélia a Polônio e que nos serve de exemplo de como o Bardo representa a
loucura.
OFÉLIA Oh, meu senhor, meu senhor, que medo eu tive! [...] Bom senhor, eu estava costurando no meu quarto Quando o príncipe Hamlet me surgiu Com o gibão todo aberto, Sem chapéu na cabeça, os cabelos desfeitos, As meias sujas, sem ligas, caídas pelos tornozelos, Branco como a camisa que vestia, Os joelhos batendo um contra o outro, E o olhar apavorado De quem foi solto do inferno Pra vir contar cá em cima os horrores que viu. 40
Neste trecho inicial, podemos perceber a caracterização inequívoca que Ofélia faz
para descrever a loucura do príncipe Hamlet. A descrição minuciosa do desleixo na
vestimenta e na aparência física denota claramente a “decadência física” que Barnard nos
apresenta como um dos sintomas da esquizofrenia. Hamlet, na sua encenação da loucura,
escolhe os elementos certos. E Ofélia prossegue, narrando o que Hamlet fez.
OFÉLIA Me pegou pelo pulso e me apertou com força. Depois se afastou à distância de um braço E, com a mão na fronte, Ficou olhando meu rosto com intensidade Como se quisesse gravá-lo. Ficou assim muito tempo. Por fim, sacudindo três vezes a cabeça, Soltou um suspiro tão doloroso e fundo Que eu temi pudesse estourar seu corpo, Fosse o último suspiro. E aí, me soltou; Com a cabeça virada pra trás Foi andando pra frente, como um cego, Atravessando a porta sem olhar, Os olhos fixos em mim até o fim. 41
Hamlet, que muda de um estado emocional para outro, simula um estado de
alexitimia. Ao narrar seu encontro com o príncipe, Ofélia não descreve nenhuma palavra
que Hamlet tivesse pronunciado. Ele está impossibilitado de falar. A conclusão de Ofélia é
imediata: Hamlet está louco. E isto a apavora.
40 SHAKESPEARE. Hamlet. Op. Cit. p. 39-40. 41 SHAKESPEARE. Op cit. p. 40.
Hamlet acaba matando acidentalmente o velho Polônio no terceiro ato, o que
acabará por precipitar a loucura de Ofélia e, conseqüentemente, sua morte. Na quinta – e
última – cena do Ato IV, ficamos sabendo, através de Horácio, que Ofélia “está fora de
si”. Numa rápida descrição do estado de Ofélia, que ele faz para a Rainha, Horácio afirma:
HORÁCIO [...] Se irrita por qualquer migalha; fala coisas sem nexo, Ou com apenas metade do sentido. O que diz não diz nada [...]. As palavras, junto com os olhares, meneios e gestos Que ela faz, dão pra acreditar Que realmente ali há um pensamento, bastante incerto; Mas muito doloroso. 42
O que Horácio nos apresenta é um diagnóstico da loucura de Ofélia que, ao
contrário da loucura de Hamlet, não é uma encenação. A morte de seu pai a deixou
realmente louca. Mas esta loucura se manifesta justamente através das fraturas do fluxo
narrativo, nas mudanças bruscas de humor e na incapacidade de gerar uma narrativa que
dê conta da realidade a qual ela está vivendo. Diante da impossibilidade de transformar em
memória sua experiência dolorosa, Ofélia sucumbe à terrível desordem da linguagem,
falando de maneira desconexa, usando versos e rimas e até canções para tentar expressar o
caos que reina em sua alma, mudando de assunto, sem conseguir um fluxo coerente de
idéias nem de palavras.
OFÉLIA Onde está a radiosa rainha da Dinamarca? RAINHA O que foi, Ofélia? OFÉLIA (canta) Como distinguir de todos O meu amante fiel? Pelo bordão e a sandália; Pela concha do chapéu. RAINHA Ai, minha encantadora jovem, que significa essa canção? OFÉLIA O que diz? Não, presta atenção, por favor. (Canta.) Está morto, senhora, foi embora;
42 SHAKESPEARE. Op. cit. p. 101.
Está morto, foi embora, Uma lápide por cima E a grama verde, por fora. Oh, oh! RAINHA Mas querida Ofélia... OFÉLIA Ouve, por favor. (Canta.) Seu sudário, como a neve da montanha ... [...] O pranto do amor fiel Fez as flores perfumadas Descerem à tumba molhadas. REI Como está você, minha bela jovem? OFÉLIA Bem! E Deus vos ajude. Dizem que a coruja era filha de um padeiro. Senhor, nós sabemos o que somos, mas não o que seremos. Deus esteja em vossa mesa! REI Ela pensa no pai. OFÉLIA Por favor, nem uma palavra sobre isso; mas quando perguntarem que coisa significa, respondam assim: (Canta.) Amanhã é São Valentino E bem cedo eu, donzela, Pra ser sua Valentina Estarei em tua janela. E ele acorda e se veste E abre o quarto pra ela. Se vê a donzela entrando Não se vê sair donzela. RAINHA Gentil Ofélia! OFÉLIA Está bem, Ô!, sem praguejar, eu termino; (Canta.) Por Jesus e a Santa Caridade Vão pro diabo os pecados Os rapazes fazem o que podem Mas como eles são malhados! Disse ela: “Antes de me atracar, Você prometeu casar”. Ele responde: “Pelo sol, eu o tinha feito Se não fosses ao meu leito”. REI Há quanto tempo ela está assim? OFÉLIA Eu espero que tudo saia bem. Devemos ser pacientes. Mas não posso deixar de chorar pensando que o enfiaram nessa terra fria. Meu irmão tem que ser informado. Por isso eu agradeço vossos bons conselhos. Vem, minha
carruagem! Boa-noite, senhoras. Boa-noite, amáveis senhoras; boa-noite, boa-noite. (Sai.) 43
O que se vê aqui é o furor da loucura se manifestando na perda de controle do ego.
Ofélia, impossibilitada de produzir um fluxo narrativo, se precipita para a loucura e para a
tragédia, ao se jogar no rio e se afogar, sufocada no lodo.
Para Harold Bloom, em Hamlet: poema ilimitado,
o páthos aqui contido enseja um efeito extraordinário, exclusivo de Ofélia. O contraste entre “sufocar no lodo” e a visão da jovem ensandecida, flutuando e cantando velhas canções, provoca uma ressonância sublime, semelhante à percepção de Hamlet, de ser ele mesmo, igualmente, tudo e nada. 44
Para encerrar nossa aventura pelo estupor shakespeareano, parece notável que, no
livro de Harold Bloom, haja um capítulo intitulado O estupor das estrelas. O capítulo
analisa o embate da eloqüência de Hamlet em contraste com a retórica empolada de
Laertes, irmão de Ofélia, no momento em que Hamlet, tomando conhecimento da morte
de Ofélia, vê o corpo ser baixado à cova e enfrenta a fúria desmedida de Laertes. Ao
responder aos insultos de Laertes, “é Hamlet quem enfeitiça a platéia, de modo que
entramos em estado de estupor diante da transformação radical observada nesse grande
personagem”.45
Bloom, aqui, utiliza a palavra estupor no sentido da recepção por parte do
leitor/público ao ver a reação do herói. Até então incapaz de tomar uma atitude realmente
ativa em relação à sua vingança, ao amor de sua Ofélia e à usurpação de seu reino, neste
momento, Hamlet enfrenta Laertes com palavras e, assim, enfrenta Cláudio e faz sua voz
finalmente soar na Dinamarca, se afirmando como verdadeiro herdeiro de seu pai. É
Hamlet saindo de seu estupor, provocando, segundo Bloom, o estupor na platéia, para se
precipitar finalmente na tragédia que seu destino lhe guardava.
43 SHAKESPEARE. Op. cit. p. 101-103 44 BLOOM, Harold. Hamlet: poema ilimitado. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. p. 52. 45 BLOOM. Op. cit. p. 80.
Em Tchekhov, o estupor funcionará de maneira diferente, porém sempre
precipitando suas vítimas à tragédia. Segundo Raymond Williams,
Tchekhov foi herdeiro da principal tradição do realismo do século XIX na qual também trabalhou. E, no entanto, a partir de sua obra podemos seguir o curso de uma importante tradição do século XX, na qual a rejeição do realismo é quase absoluta. 46
Este paradoxo pode ser entendido a partir da maneira como
os indivíduos [em Tchekhov,] apresentam variações nas suas atitudes e responsabilidades, mas o sentido de um fracasso geral foi introduzido de maneira decisiva. A estrutura e o método do drama tchekhoviano começam a sofrer alterações que conduziriam à sua verdadeira originalidade. 47
Suas personagens, pouco a pouco, vão-se tornando parte de uma orquestração de
respostas a um destino comum. “Tchekhov é o realista do colapso”48. Numa sutil quebra
de sentido que, por vezes, se torna quase completa, algumas cenas de Tchekhov vão sendo
fundamentadas sobre uma crescente tensão trágica, em que a memória deficiente de um
passado que significou alguma coisa se choca com o presente, tão diverso, e se converte
numa esperança fragmentada em relação ao futuro. Isto pode ser visto principalmente em
As três irmãs (1901) e O jardim das cerejeiras (1904). Destacamos aqui dois exemplos da
ausência de palavras – e das conseqüências disto – na dramaturgia de Tchekhov.
O primeiro exemplo é uma cena do Ato 4 de As três irmãs. O batalhão do exército
se despede da cidade. O jovem barão de Tusenbach, apaixonado por Irina, uma das três
irmãs, finalmente conseguiu convencê-la a se casar com ele, apesar de ela não estar
apaixonada. Para Irina, este casamento é a única esperança de sair da cidade onde vive.
Porém, Tusenbach tem um rival, o desagradável Solioni que, na noite anterior, diante do
teatro, o desafiou para um duelo a pistola. É fato sabido que Solioni tem excelente
pontaria. Tusenbach se prepara para o duelo, sem que Irina saiba o que está para
acontecer. O importante aqui é observar o comportamento narrativo de Tusenbach. Ele,
46 WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. Tradução de Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 183. 47 WILLIAMS. Op cit. p. 188. 48 WILLIAMS. Op cit. p. 183.
que outrora parecia tão eloqüente, mesmo sabendo que está prestes a encarar seu inimigo
num duelo, mesmo sabendo que seu inimigo tem habilidade superior à sua, não consegue
falar de sua preocupação, o que poderia reverter a situação e evitar o seu desfecho trágico.
Mas a personagem tchekhoviana se precipita em direção à tragédia através do silêncio.
IRINA – [...] (Pausa.) Nossa cidade ficará deserta, agora. TUSENBACH – Minha querida, vou sair, mas voltarei. IRINA –Aonde vais? TUSENBACH – Preciso ir à cidade e depois acompanhar meus camaradas. IRINA – Não é verdade. Nikolai... por que estás tão distraído hoje? (Pausa.)
Que aconteceu ontem na porta do teatro? TUSENBACH – Daqui a uma hora estarei de volta e de novo contigo. [...] IRINA (pausa) – Tens o olhar tão inquieto... TUSENBACH – Não dormi a noite toda. Nada existe de terrível na minha vida,
nada que possa fazer-me medo... [...] Dize-me qualquer coisa. (Pausa.) Dize-me qualquer coisa.
IRINA – O que? Dizer o que? TUSENBACH – Qualquer coisa. IRINA – Vamos! Vamos! (Pausa.) TUSENBACH – Às vezes acontece que detalhes idiotas, mínimos assumem
grande importância na vida, sem compreendermos por que. [...] Preciso ir, é hora... Estás vendo aquela árvore? Está seca e, no entanto, a um simples roçar do vento, ela se balança como as outras. Parece-me que será assim que, quando estiver morto, participarei da vida, de uma maneira ou de outra. Adeus, minha querida... [...]
IRINA – Vou contigo. TUSENBACH (alarmado) – Não! Não! (Afasta-se, rapidamente. Detém-se na
aléia.) Irina! IRINA – Sim...? TUSENBACH (não sabendo o que dizer) – Hoje não tomei café. Mande
preparar... (Sai rápido.) 49
A impossibilidade de Tusenbach em produzir uma narrativa diante do horror
imaginado – o duelo – faz com que ele se precipite em direção à sua própria morte, sem
possibilidade de resgate. Irina, que pressente claramente que algo está acontecendo sem
que ela saiba, acaba sendo adjuvante neste quase suicídio de Tusenbach.
Olga, a mais velha das três irmãs, encerra a peça dizendo: “Ah, se pudéssemos
saber, se pudéssemos saber!” 50
O outro exemplo, que identificamos como um caso claro de alexitimia, é a cena do
Ato 4 de O jardim das cerejeiras, última peça escrita por Tchekhov, onde Lopakhin, ex-
49 TCHEKHOV, Anton. As três irmãs. Tradução de Maria Jacintha. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 1995. p. 99-100. 50 TCHEKHOV. As três irmãs.Op. cit. p. 108.
escravo da família dos Andreiêv, hoje é um rico comerciante que acabou de adquirir, em
um leilão, a casa e o terreno do jardim de cerejeiras onde seus pais foram escravos. É o
momento da mudança, no qual os antigos moradores estão indo embora para que o novo
proprietário transforme tudo aquilo em uma colônia de férias, loteando o jardim,
derrubando as cerejeiras seculares. Liuba Andreievna, mulher que teve uma vida luxuosa e
que se recusa em aceitar a nova condição de ex-proprietária falida, sugere a Lopakhin que
ele peça em casamento sua filha adotiva, a jovem Vária. Desta maneira, vemos a única
possibilidade de o jardim de cerejeiras permanecer, de certa forma, em nome da antiga
família. Liuba convence Lopakhin a pedir a mão de Vária e acerta os detalhes para aquele
momento mesmo: “Temos até champanhe...”51, diz Lopakhin. O momento é propício ao
pedido de casamento. Vária está apaixonada por ele e foi informada de que ele fará o
pedido naquele momento.
LOPAKHIN (olha o relógio) – Sim... (Pausa. De trás da porta ouvem-se risos sufocados e sussurros. Por fim, Vária entra.)
VÁRIA ( faz como se procurasse algo no meio dos embrulhos) – Que estranho... Não encontro em parte alguma...
LOPAKHIN – Está procurando o que? VÁRIA – Fui eu mesma que guardei, e agora não sei onde... (Pausa.) LOPAKHIN – O que pretende fazer agora, Várvara Mikhailovna? VÁRIA – Eu? Empreguei-me na casa dos Ragulin. Serei governanta... ou algo
assim... LOPAKHIN – Eles moram em Iasnievo, não é?... A setenta verstas52 daqui,
apenas... (Pausa.) Bem, assim sendo, tudo terminou nesta casa. VÁRIA ( continua a procurar) – Mas onde se meteu?... Talvez esteja na mala
grande... Sim, para mim a vida nesta casa terminou... LOPAKHIN – E eu irei a Kharkov. Agora mesmo, nesse trem. Negócios. Deixo
Epikhodov aqui...eu o contratei... VÁRIA – É mesmo? LOPAKHIN – No ano passado já nevava por esta época, lembra? E agora temos
um outono tão ensolarado e bonito. Apenas um pouco fresco...hoje de manhã fez três graus abaixo de zero...
VÁRIA – Não olhei... (Pausa.) De qualquer modo, o nosso termômetro está quebrado... (Pausa.)
UMA VOZ (vinda do pátio, pela porta) – Iermolai Alekseitch! LOPAKHIN (como se há muito estivesse aguardando esse chamado) – Já vou
indo, já vou! (Sai, apressado. Vária senta-se no assoalho, descansa a cabeça sobre a trouxa de roupas de cama e soluça em silêncio.) 53
51 TCHEKHOV, Anton. O jardim das cerejeiras. Tradução de Gabor Aranyi. São Paulo: Veredas, 1994. p.214. 52 Versta: antiga medida itinerária russa equivalente a 1.067 metros. Fonte: Dicionário Aurélio Eletrônico, versão 5.0. 53 TCHEKHOV. O jardim das cerejeiras. Op Cit. p. 215.
O que se vê nesta extraordinária cena de Tchekhov é o poder destruidor da
alexitimia. Lopakhin simplesmente não consegue fazer o que ele havia dito que faria – e
que ele deseja fazer. A impossibilidade de dar palavras às suas emoções acaba projetando
toda a ação da peça para um vazio desolador. Neste sentido, Tchekhov anuncia o que a
dramaturgia de Samuel Beckett iria levar às últimas conseqüências.
2.3 O ESTUPOR ENTRE A ERRÂNCIA E O DISCURSO ESPIRAL: BECKETT.
O estupor terá importância fundamental na dramaturgia e na obra ficcional de
Beckett. Cabe a nós agora aplicar estas abordagens especificamente na dramaturgia de
beckettiana.
Ludovic Janvier, um dos principais estudiosos sobre a vida e obra de Beckett, ao
analisar o discurso na obra beckettiana, chega a algumas conclusões interessantes ao
comparar o discurso e a errância em Beckett. Segundo ele,
o errar sem ilusão prossegue no falar sem repouso de todos os falantes pregados no chão – quem erra não pode ainda falar, quem fala não pode ainda errar – até que, enfim, abandonada a busca, o espaço do livro e do tempo de leitura sejam o espaço e o tempo de uma paralisação fora da busca, fora da tragédia, de uma estada na semiquietude enfim ganha ou um retiro na brancura do neutro. A errância e o discurso, ambos inquietos, percurso de palavras, percurso de um corpo, são duas imagens de uma mesma busca: a da alma, falando em sua habitação, com o único objetivo de se encontrar ali um dia. 54
O que se vê aqui é o contraste entre os heróis beckettianos: os que perambulam,
incapazes de criar um discurso coerente que efetue uma mudança e dê um objetivo às suas
vidas; e os presos ao solo (ou à cadeira, ou ao leito), incapazes de perambular com o
corpo, que sustentam discursos elípticos (ou espirais, ou esféricos) cujo fluxo
logaritmicamente tende ao infinito. Em ambos os casos, as conseqüências serão fatais:
destruição do corpo ou destruição da linguagem.
54 JANVIER, Ludovic. Beckett. Tradução de Léo Schlafman. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. p. 74-75
O estudioso irlandês A. J. Leventhal aborda, logo nas primeiras análises da obra de
Beckett, a questão da inércia e da imobilidade do herói beckettiano. Em sua palestra para o
Trinity College, em Dublin, proferida em 1963, Leventhal já afirmava o seguinte:
“Estase55, ou quase estase, é uma característica marcante das criações de Beckett. ‘Cette
intertie immortell’ é a maneira como o próprio Beckett reverencia a imobilização do
homem”.56
Por fim, Martin Esslin, um profundo conhecedor do teatro do século XX, irá
afirmar no seu livro O teatro do absurdo que “toda a obra de Beckett é uma tentativa de
dar nome ao inominável” e que “a linguagem nas peças de Beckett serve para expressar o
desmoronamento, a desintegração da linguagem”57.
Sendo assim, resta-nos decifrar os meios como esta destruição se realizará. Se
observarmos atentamente a obra de Beckett, veremos ali mais que a destruição da cena,
uma tentativa desesperada de resgatar alguns dos pressupostos fundamentais da
manutenção da arte dramática. Se, em seus romances, Beckett atinge os limites da
linguagem para provocar-lhe rupturas, no palco, ele resgata os elementos mais ancestrais
da dramaturgia para, com eles, construir sua obra e flagrar a tragédia do homem dos dias
de hoje.
A partir de agora, faremos uma análise da evolução do sentido da representação do
trágico no gênero dramático, tomando como ponto de partida a sua origem, na Grécia do
século V a.C.; e, levantando as diferentes noções do significado do trágico, através dos
estudos de alguns pensadores alemães desde o século XVIII até o século XX, buscaremos
seu sentido no drama Esperando Godot e em outras peças escritas por Samuel Beckett.
55 [Do gr. stásis, ‘parada’.] S. f. 1.Patol. Estagnação, no organismo, de matérias de consistência e de origem diversa, como sangue, urina, fezes, etc. 2.Fig. Entorpecimento, paralisia. Fonte: Dicionário Aurélio Eletrônico versão 5.0. 56 LEVENTHAL, A. J. The Beckett hero. In.: ESSLIN, Martin. (Org.). Samuel Beckett: a collection of critical essays. New Jersey: Prentice-Hall, 1965. p. 43. [Tradução do autor desta dissertação.] 57 ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. p. 75.
Assim, procuraremos identificar os elementos do gênero trágico na sua origem grega e na
obra dramatúrgica de Beckett, examinando de que maneira estes elementos evoluíram para
a manutenção do sentido do trágico na contemporaneidade, para afirmar que o estupor
funciona como hýbris nos dramas beckettianos.
2.4 A TRAGÉDIA E A IDÉIA DO TRÁGICO.
Os estudiosos são unânimes em afirmar que a tragédia alcançou a sua forma mais
perfeita na Grécia do século V a.C. Chega-se a afirmar que somente dos gregos se pode
aprender o significado da tragédia como necessária “beberagem curativa”.58 Toda a
dramaturgia ocidental que se subordina ao gênero tragédia foi elaborada tomando como
modelo os gregos. Porém, com a evolução histórica, se modificam valores e com isso há
uma evolução no fenômeno trágico, uma mudança de seu sentido mais profundo.
Para se conduzir uma análise da representação do fenômeno trágico e sua evolução
até a contemporaneidade é preciso voltar a quem inicialmente se dedicou ao seu estudo, o
grego do século V a.C., Aristóteles. Em relação à estrutura e aos modos do gênero trágico,
Aristóteles nos dá algumas pistas, porém não chega a esgotar a primeira questão a ser
tratada aqui, que é: qual a essência do fenômeno trágico? O escrito de Aristóteles pretende
determinar os elementos da arte trágica; seu objetivo é a tragédia, não a idéia de tragédia.
Na tragédia – que é uma obra de arte – sempre nos defrontamos com uma situação
humana limite. Porém não é a obra de arte em si que traz intrinsecamente a sua
tragicidade. Segundo Gerd Bornheim, “o trágico [só] é possível na obra de arte porque ele
é inerente à própria realidade humana”. Então, como explicar a dimensão trágica da
realidade humana? O homem como homem, em sua própria dimensão, não é trágico. É
58 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Trad. de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 123.
necessário se fazer uma separação ontológica para que surja o elemento possibilitador do
trágico, que é “aquele rasgo da natureza humana que em tais circunstâncias adquire ou não
uma coloração trágica”.59 É somente somado a um valor que o trágico pode aparecer no
real.
2.5 O SENTIDO DE UMA EVOLUÇÃO DO TRÁGICO: EM BUSCA DE UMA FILOSOFIA DO TRÁGICO.
Segundo Schelling,
O essencial da tragédia é [...] um conflito real entre a liberdade no sujeito e a necessidade, como necessidade objetiva. Esse conflito não termina com a derrota de uma ou de outra, mas pelo fato de ambas aparecerem indiferentemente como vencedoras e vencidas. 60
Portanto, o fenômeno trágico deve ser compreendido como “um fenômeno
dialético, pois a indiferença entre liberdade e necessidade só é possível pagando-se o preço
de o vencedor ser ao mesmo tempo o vencido, e vice-versa”. Pois,
a tragédia grega honrava a liberdade humana ao fazer seu herói lutar contra o poder superior do destino: para não ultrapassar os limites da arte, tinha de fazê-lo sucumbir, mas, para também reparar essa humilhação da liberdade humana imposta pela arte, tinha de fazê-lo expiar. 61
Neste sentido, então, quando se busca saber quais são os pressupostos
fundamentais da tragédia, deve-se alistar logo o herói trágico. O primeiro elemento básico
para que se possa verificar o trágico é o homem trágico. A tragédia então é, segundo
Höldering, um sacrifício que o homem oferece à natureza, a fim de levá-la à sua
manifestação adequada. O outro elemento não menos importante é a ordem ou o horizonte
existencial do homem: o cosmo, os deuses, a justiça, o bem ou outros valores morais, o
amor e até mesmo o sentido da realidade. A polaridade entre estes elementos é o que torna
59 BORNHEIM, Gerd. Breves observações sobre o sentido e a evolução do trágico. In.: ___. O sentido e a máscara. São Paulo, Perspectiva, 1992. p. 72. 60 SCHELLING. Fundamentos da completa doutrina da ciência. Apud. SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p.31. 61 SCHELLING. Op. cit. p. 32.
viável a ação trágica. O homem e o mundo em que ele se insere são os dois pólos
necessários para o surgimento do fenômeno trágico. “No momento em que esses dois
pólos [...] entram em conflito, temos a ação trágica”62.
A questão aqui é que o conflito entre estes dois pólos recebeu diferentes
interpretações através dos tempos. Desde a visão dogmática do jovem Schelling, no fim do
século XVIII, até a visão de Nietzsche, já no final do século XIX, passando por Goethe e
Kierkegaard, os pensadores se interessam em criar uma filosofia do trágico que supere a
visão aristotélica na criação de uma poética do trágico.
Seguindo por este raciocínio, buscando uma ‘filosofia do trágico’, chegamos a
Goethe, que, no início do século XIX, observou que “todo trágico baseia-se em uma
oposição irreconciliável. Assim que surge ou se torna possível uma reconciliação,
desaparece o trágico”63.
Segundo Szondi,
para Goethe, é essencial que o conflito não se dê primordialmente entre o herói trágico e o mundo exterior. Mas a dialética trágica mostra-se no próprio homem, em quem o dever e o querer tendem a se afastar e ameaçam romper a unidade de seu Eu. [...] Trágica é a cegueira com que ele, ludibriado acerca da meta de seu dever, precisa querer o que não tem o direito a querer.64
Goethe exclui a necessidade da morte como ato trágico, chegando a afirmar que “a
motivação fundamental de todas as situações trágicas é o ato de partir , e nesse caso não é
preciso nem veneno nem punhal, nem lança nem espada”.65 Goethe desloca a idéia
anterior da necessidade da morte como fator necessário para o ato trágico.
2.6 A PARTIDA E A IMPOSSIBILIDADE DA PARTIDA: ATOS TRÁGICOS
62 BORNHEIM. Op. Cit. p. 74. 63 GOETHE. Apud. SZONDI. Op. Cit. p. 48. 64 SZONDI. Op. Cit. p. 49 65 GOETHE. Apud. SZONDI. Op. Cit. p. 50.
Mais que atitudes trágicas relacionadas à morte e ao suicídio, o ato de partir , em
Goethe, pode ser considerado um ato trágico. Para Goethe, esta partida pode ser entendida
como uma despedida ou como o abandono da pessoa – ou uma situação – amada. Ora,
observamos aqui uma mudança de ponto de vista em relação à tragédia e às forças que
nela atuam. Não mais à morte cabe o papel do desfecho trágico. A “oposição
irreconciliável” que Goethe percebe entre o dever e o poder ao se afastarem um do outro
divide o que é uno, rompe a unidade do Eu. Desta maneira,
Goethe pode considerar como motivação de todas as situações trágicas o ato de partir porque percebia a sua estrutura dialética. A despedida é unidade, cujo único tema é a divisão; é a proximidade que só tem diante dos olhos a distância, que aspira pela distância, mesmo quando a odeia; é ligação consumada pela própria separação, sua morte, como partida.66
A definição do trágico de Kierkegaard é semelhante à de Goethe, porém possui
duas diferenças fundamentais. Enquanto Goethe fala de “oposição”, Kierkegaard escolhe a
palavra “contradição” para definir seu conceito de trágico. “O trágico é a contradição
sofredora. [...] A perspectiva trágica vê a contradição e se desespera acerca da saída”.67
A outra diferença é que, para Kierkegaard, o trágico só pode ser algo de provisório,
no sentido de que a falta de uma saída da contradição trágica não se encontra na realidade,
porém somente na “perspectiva”68 do homem. No ensaio Reflexo do trágico antigo sobre o
trágico moderno, que faz parte do Ou/ou [Entweder/Oder], Kierkegaard afirma que “para
que o conflito trágico tenha realmente profundidade, é preciso que as potências em
contradição sejam de mesmo tipo”69. Com Kierkegaard, o tema da crise da tragédia vem à
tona com uma força que já não dá margem a dúvidas; ele separa o fator de redenção e o
66 SZONDI. Op. Cit. p. 51. 67 KIERKEGAARD. Apud. SZONDI. Op. Cit. p. 59. 68 SZONDI. Op. Cit. p. 60. 69 KIERKEGAARD. Ancient tragedy’s reflection in the modern. In.: Either/Or: fragment of life. Traduzido do dinamarquês para o inglês por Alastair Hannay. Londres: Penguin, 1992. p. 142. [Tradução do autor desta dissertação.]
trágico e, com isso, prepara uma análise do trágico livre de qualquer atribuição metafísica.
Kierkegaard escreve que
Há uma diferença essencial entre a tragédia antiga e a moderna. [...] Nosso tempo é melancólico o suficiente para perceber que há algo chamado responsabilidade e isso possui um significado importante. [...] Por outro lado, o aparecimento de Cristo é, em certo sentido, a mais profunda tragédia, pois Cristo veio na plenitude do tempo e [...] tirou os pecados do mundo. 70
Assim, Kierkegaard prossegue afirmando que, ao contrário da tragédia antiga,
na tragédia moderna, a queda do herói não é realmente sofrimento mas ação. Nos tempos modernos, portanto, é a situação real e a personagem que predominam. O herói trágico [moderno] é subjetivamente refletido em si mesmo, e esta reflexão não só o expulsa apenas de todo contato direto com o Estado, a raça e o destino, mas freqüentemente o desliga de sua própria vida anterior. A tragédia moderna não tem, pois, primeiro plano épico, nem herança épica. [...] Na tragédia antiga o sofrimento é mais profundo, e a dor é menor; na tragédia moderna, a dor é maior e o sofrimento menor. [...] Por mais original que seja cada indivíduo, ele é filho de Deus, de seu tempo, de sua nação, de sua família, de seus amigos; nisto reside sua verdade; e se em toda essa relatividade quiser ser absoluto, torna-se ridículo. Nossa época perdeu toda definição substancial da família, do Estado, da geração; ela é forçada a abandonar inteiramente à sua sorte cada indivíduo, que se torna assim, no sentido mais exato da palavra, o seu próprio criador [...]; dessa forma, o trágico cessa. 71
Seguindo esta linha de pensamento, Nietzsche afirmará, em Assim falou
Zaratustra, que: “a tragédia nos conduz ao objetivo final, que é a resignação”.72 Para
Nietzsche, o sentido da tragédia está no reconhecimento da unidade da natureza da vida, e
a significação do herói trágico é a sua resignação – renúncia não apenas à vida, mas ao
desejo de viver. Os heróis da tragédia são purificados pelo sofrimento, no sentido de que a
vontade de viver, anteriormente inerente a eles, acaba por desaparecer. Nietzsche inaugura
uma forma de ver a tragédia como dissolução, que faz com que encaremos “o fato de que
tudo que é gerado deve estar preparado para se defrontar com esta dolorosa dissolução”. 73
70 KIERKEGAARD. Ancient tragedy’s reflection in the modern. p. 139-142. 71 KIERKEGAARD. Op. cit. p. 142-143. 72 NIETZSCHE. Apud. WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. Trad. Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 61. 73 NIETZSCHE. Apud. WILLIAMS. Op cit. p. 61.
Assim, temos um caminho de evolução do sentido do trágico enquanto idéia.
Partindo da dialética de Schelling, que coloca a tragédia entre a liberdade e a necessidade,
entre o querer e a impossibilidade de poder; o que nos leva ao conceito de Goethe da
dialética trágica de querer aquilo que não se tem o direito a querer, em que o ato de partir
assume o porte de ato trágico, não menos trágico que a morte. Goethe diz que o fator
trágico está na despedida, não necessariamente na morte do herói. Sendo a morte mesma
uma despedida, uma partida, e a idéia da partida, para Goethe, um ato trágico, a
impossibilidade da partida ganha cores de tragédia. Querer partir, mas não se ter o direito a
querer partir. Desejar a despedida, porém viver – ou sobreviver – nas fronteiras entre a dor
e o sofrimento, como nos coloca Kierkegaard, acreditando no desespero de Kierkegaard
como única saída possível para a sobrevivência. Assim, Nietzsche inaugura o século XX,
afirmando sem sombra de dúvidas que a tragédia é o fator que conduz o herói à
resignação.
Esta resignação é o fator de maior importância para a tragédia contemporânea.
Identificar a resignação como conseqüência do estupor do herói, como sua catástrofe, é um
dos pontos deste trabalho. Assim, percorremos o caminho e buscamos uma “ponte” entre o
sentido do trágico nos gregos, com Aristóteles, até o final do século XIX, chegando a
Nietzsche.
Desta maneira, percebemos a força do sentido do trágico como amálgama cultural
do ocidente, como afirma o teórico Raymond Williams em seu livro Tragédia moderna: “a
tragédia é, à primeira vista, um dos mais simples e mais poderosos exemplos dessa
continuidade cultural. Ela une, culturalmente, gregos e elisabetanos. Congrega helenos e
cristãos em uma atividade comum”.74 Williams ainda afirma que
74 WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. Tradução de Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 34.
desse modo, examinar a tradição trágica não significa necessariamente interpretar um único corpo de obras e pensamentos ou perseguir variações em uma suposta totalidade. Significa olhar crítica e historicamente para obras e idéias que têm algumas ligações evidentes entre si e que se deixam associar em nossas mentes por meio de uma única e poderosa palavra. 75
Sendo assim, visto que já verificamos o sentido e a evolução da idéia do trágico,
cabe a nós agora, passar ao estudo de alguns dos conceitos e elementos fundamentais para
a existência da tragédia.
2.7 A TRAGÉDIA EM BECKETT: O ESTUPOR COMO HÝBRIS
Em todos os estudiosos da idéia do trágico, há dois conceitos que aparecem como
essenciais para a existência do fenômeno trágico. São conceitos presentes em todas as
manifestações da literatura dramática que se submetem ao gênero trágico. São eles: os
conceitos de hýbris e de hamartia.
Segundo Marilena Chauí, na sua Introdução à história da filosofia, hýbris é uma
“palavra grega que significa tudo que ultrapassa a medida, excesso, desmedida; em geral,
indica algo impetuoso, desenfreado, violento, um ardor excessivo. Nos seres humanos, é
insolência, orgulho, soberba, presunção”.76
Porém, já em alguns dos filósofos pré-socráticos, podemos encontrar alguns
conceitos importantes para a elucidação das forças que atuam na essência do fenômeno
trágico. A hýbris (a desmedida) é a grande inimiga da justiça ou da medida. O pré-
socrático filósofo Heráclito afirmará: “O sol não pode transgredir as suas medidas, e se o
faz as Fúrias o perseguirão até que a justiça se restabeleça”.77
75 WILLIAMS. Op. Cit. p. 34. 76 CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: Dos pré-socráticos a Aristóteles. 2.ed. São Paulo: Companhia das letras, 2002. p. 502. 77 HERÁCLITO, Fragmento 94. In.: Heráclito: Fragmentos contextualizados. Tradução, apresentação e comentários de Alexandre Costa. Rio de Janeiro: Difel, 2000. p. 212.
A hýbris no caráter do herói é a causadora da falha trágica (hamartia) através de
uma ação. Na Poética, Aristóteles chama atenção para que não se reduza o herói ao
caráter, mas que ele seja compreendido através da ação.
Os homens possuem diferentes qualidades, de acordo com o caráter, mas são felizes ou infelizes de acordo com as ações que praticam. Assim, segue-se que as personagens, na tragédia, não agem para imitar os caracteres, mas adquirem os caracteres para realizar as ações. 78
Então, a tragédia é gerada pelas ações do homem e não por conseqüência de seu
caráter. Porém, jamais se trata de uma ação qualquer. Quando Aristóteles estuda a
natureza do herói trágico, ele determina a causa da sua tragicidade na hamartia: no erro,
na falta. Para Aristóteles “[...] resta a situação intermediária [...] do homem que nem se
destaca pela virtude e pela justiça, nem cai no infortúnio como resultado de vileza ou
perversidade, mas em conseqüência de algum erro”.79
Desta maneira, todo aquele que transgredir sua medida trará desequilíbrio para a
ordem, para o cosmo. Então, encontramos aí nitidamente configurados os dois pólos do
conflito trágico. De um lado, a justiça, a harmonia, a medida; do outro, aquilo que as
destrói, perturba ou desequilibra – a injustiça, a desmedida, a hýbris.
O princípio dos pseûdos (erro, engano, dissimulação) é a recusa em ouvir a voz da
phýsis (características naturais e essenciais de um ser)80: “[...] a teimosia da multiplicidade
que se afirma como independente e se recusa a confessar a unidade de todas as coisas”.81
“Na tragédia, deparamos com a existência humana entregue ao conflito que deriva
do entrelaçamento do ser e da aparência”82. O objeto fundamental da tragédia é, portanto,
muito mais a aparência que envolve a existência humana, somada a uma densidade que se
78 ARISTÓTELES. Poética. VI, 32. Trad. Baby Abrão. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 44. 79ARISTÓTELES. Poética. XIII, 70, p. 51. [Grifo nosso] 80 CHAUÍ. Op. Cit. p. 508. 81 HERÁCLITO. Fragmento 50. Op. Cit. p. 197. 82 BORNHEIM. Op. cit. p. 78.
alia a tal aparência. O desenvolvimento da ação trágica consistiria na progressiva
descoberta de aletheia.83 Não é a essência do herói, restrita a sua individualidade, que vem
à tona, mas a aparência na qual estava submerso: a aparência é ‘des-coberta’, e nela se
mostra a própria phýsis do herói. O problema não reside no seu ser, mas no seu modo de
ser. A partir dos erros da situação real, o herói revela-se à verdade. O herói adota, de um
modo consciente ou não, uma espécie de falsa máscara; ele age como se toda medida que
o transcendesse tivesse perdido sentido.
Toda tragédia pergunta se o homem encontra a sua medida em sua particularidade
ou se ela reside em algo que o transcende; e esta pergunta é feita para que ele veja que a
segunda hipótese é sempre a verdadeira. O não-reconhecimento dessa medida do homem
acarreta, pois, o trágico. O trágico reside no modo como a verdade – ou a mentira – do
homem é desvelada. E o que vale para a tragédia grega vale também para o fenômeno
trágico como tal. E, na medida em que os dois pólos mudam de natureza, se
metamorfoseiam, é o próprio sentido do trágico que se transforma, como foi visto
anteriormente.
Enquanto o homem permanece inserido na objetividade religiosa, ou submerso na
religação de uma ordem transcendente, a tragédia não se verifica. Mas, por outro lado, o
fenômeno trágico perde seu embasamento quando o homem se desprende totalmente dessa
religação; o trágico desaparece na medida em que a subjetividade do herói tende a se
tornar autônoma, despida de qualquer caráter substancial e objetivo.
Tragédia, em um sentido forte e pleno, é apenas a grega. Segundo Bornheim,
a debilidade da tragédia moderna deriva, precipuamente, do excesso de importância que se empresta à subjetividade, sobretudo quando considerada em seu aspecto moral. O homem cristão, a partir da decadência medieval, se fixa,
83 Verdade, realidade. Palavra composta pelo prefixo a- e pelo substantivo léthe (esquecimento). É o não-esquecimento, não-perdido, não-oculto; é o lembrado, encontrado, visível, manifesto aos olhos do corpo e ao olho do espírito. É ver a realidade. É uma vidência e uma evidência, na qual a própria realidade se revela, se mostra ou se manifesta a quem conhece. Fonte: CHAUÍ. Op. Cit. p. 494.
com exclusividade crescente, na vida interior, na ‘imitação de Cristo’ compreendida como tarefa subjetiva.84
Portanto, o problema fundamental da tragédia, tanto na antigüidade quanto na
contemporaneidade permanece o mesmo: qual é a medida do homem? Se, para uns, a
tragédia do herói contemporâneo desemboca no sem-sentido, Bornheim afirmará que o
“indivíduo reduzido a si mesmo resulta ridículo [...] e absurdo”.85
Mas por que dizer que o herói absurdo é trágico? Mais do que representar a
grandeza humana ou da dimensão cósmica do homem, ele transmite o nonsense da
existência. Ao analisar os aspectos trágicos da obra de alguns dramaturgos do século XX,
Raymond Williams afirma que
o tema mais geral de irrealidade, fracasso na comunicação e ausência de sentido é, agora, com efeito, tão difundido que passa a ser virtualmente, em si mesmo, uma convenção dramática. [...] A convenção da ilusão absoluta e da inabilidade do homem em se comunicar parece então, simplesmente, o mais recente e o mais burguês dos lugares-comuns. Mas, se assim é, corremos o risco de não dar atenção às poucas obras que vão além das fórmulas e criam essa experiência em profundidade.
O exemplo mais notável é Esperando Godot, de Beckett.86
Se formos tomar como exemplo os heróis absurdos Vladimir e Estragon,
protagonistas do drama Esperando Godot, escrito em francês, por Samuel Beckett, em
1948, podemos perceber a separação ontológica que possibilita o fenômeno trágico.
Qual o cosmo em Esperando Godot? Qual a ordem em que essas personagens se
inserem? Qual foi a falta cometida (hamartia) por eles? Qual foi sua desmedida (hýbris)?
Qual a verdadeira face de Vladimir e Estragon (phýsis)? O que é desvelado (aletheia) com
o motor da ação da peça? Sem dúvida, Vladimir e Estragon trazem dentro de si uma
sensação de culpa oculta que permeia quase todo o drama:
84 BORNHEIM. Op cit. p. 83. 85 BORNHEIM. Op. cit. p. 88. 86 WILLIAMS, Raymond. Impasse e aporia trágicos. In: Tragédia moderna. Trad. Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 201.
VLADIMIR – Eis o homem! Põe a culpa no sapato quando o culpado é o pé. [...] (Pausa.) Gogo.
ESTRAGON – O que é?
VLADIMIR – E se a gente se arrependesse?
ESTRAGON – Do quê?
VLADIMIR – Oh ... (Reflete.) Não é preciso entrar em detalhes.
ESTRAGON – De ter nascido?
(Vladimir dá uma gargalhada que reprime instantaneamente, com a mão no púbis, o olhar crispado.)
VLADIMIR – Não se pode nem mais rir.87
Há uma força invisível que os impede até de rir. Que os impede de sair dali. De
certa maneira, estas personagens estão imersas em uma subjetividade religiosa, porém elas
não conseguem sequer defini-la ou mesmo localizá-la. Há exemplos abundantes de
referências cristãs e bíblicas que permeiam toda a peça e que trazem nitidamente as noções
de culpa e redenção.
VLADIMIR – Você já leu a Bíblia?
ESTRAGON – A Bíblia... (pensa.) Acho que dei uma espiada.
[...]
VLADIMIR – Eram dois ladrões, crucificados na mesma hora que Nosso Salvador. Um deles...
ESTRAGON – Nosso o quê?
VLADIMIR – Nosso Salvador. Dois ladrões. Diz-se que um foi salvo e o outro ... (Procura o antônimo.) ... condenado.
ESTRAGON – Salvo de quê?
VLADIMIR – Do inferno.
ESTRAGON – Eu já vou indo. (Não se move.)88
Em determinado momento do segundo ato, quando Godot já não dá sinais de
aparecer, da mesma maneira que não apareceu no primeiro ato, Estragon e Vladimir têm
um acesso de desespero que os fazem apelar para este Deus invisível:
ESTRAGON – Você acha que Deus está me vendo? [...] (parando, dedo em riste, com a voz mais alta que tem) Deus tenha piedade de mim!
VLADIMIR – E de mim? 87 BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução de Flávio Rangel. Col. Teatro Vivo, São Paulo, Abril Cultural, 1976. p. 13-14. 88 BECKETT. Op. Cit. p 14-16.
ESTRAGON – De mim! De mim! Piedade! De mim!89
Esse desespero que não cessa é o mesmo desespero que Kierkegaard expõe. O
desespero que não mata, que se alimenta do próprio desespero. “Desta forma, estar
mortalmente doente é não poder morrer.”90
Mas qual seria a hýbris que move Vladimir e Estragon?
Se a desmedida é uma ação causadora da falha trágica, a desmedida de Vladimir e
Estragon é a sua inércia e a sua resignação em acreditar que Godot virá um dia e que suas
vidas irão melhorar com esta chegada. É justamente na ausência total de iniciativa para
mudar sua situação que a dupla trágica/absurda se impede de trazer ordem ao seu cosmo.
VLADIMIR – Então vamos fazer o quê?
ESTRAGON – Não vamos fazer nada. É mais prudente.91
Eles não têm a certeza de que Godot virá, de que Godot marcou naquele dia, ou
naquele local. Porém, qualquer possibilidade de movimento para tirá-los deste labirinto
sem saída é abortada antes mesmo de ser colocada em teste. Neste sentido, Beckett utiliza
uma estratégia bastante comum ao gênero lírico, ao fazer com que suas personagens
reproduzam um determinado trecho de diálogo, como um refrão repetitivo:
ESTRAGON – Vamos embora.
VLADIMIR – Não podemos.
ESTRAGON – Por que?
VLADIMIR – Estamos esperando Godot.92
Este trecho, que se repete sete vezes ao longo de todo o corpo da peça, os coloca
sempre em situação de inércia. Mesmo em momentos em que uma variante que sugere
89 BECKETT. Esperando Godot. Op. Cit. p. 146-147. 90 KIERKEGAARD, Soren. O desespero humano. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2003. p. 23. 91 BECKETT. Esperando Godot. Op. Cit. p. 27. 92 BECKETT. Esperando Godot. Op. Cit. p. 18, 86, 116, 127-128, 134, 149, 164.
uma saída é colocada em cena, o final do trecho sempre resulta em inércia, devido à
indicação do autor. É desta exata maneira que Beckett encerra o primeiro e o último ato de
sua peça:
VLADIMIR – Então, vamos?
ESTRAGON – Vamos.
(Eles não se movem.)93
Vemos aqui uma impossibilidade de partir. Se, para Goethe, a partida é um ato
trágico, a impossibilidade da partida será, para Beckett, também um ato trágico. A
impossibilidade da partida é o fator detonador da tragédia aqui.
Ao se buscar no texto de Godot uma noção de erro, no sentido aristotélico de
hamartia, há uma pista bastante evidente que sugere um ato trágico não realizado no
passado das personagens. Eis um trecho esclarecedor:
VLADIMIR – [...] Por outro lado, o que adianta desanimar agora? A gente devia ter pensado em desistir quando o mundo era jovem, ali por 1900. [...] A gente poderia se atirar da Torre Eiffel de mãos dadas; estaríamos entre os primeiros. Éramos respeitáveis nesse tempo. Agora é tarde. Eles não nos deixariam nem subir lá.94
A hamartia de Vladimir e Estragon, o erro provocador de sua tragédia, teria sido,
portanto, o fato de eles não terem desistido a tempo. À medida que a peça segue, a espera
de Godot vai-se tornando limítrofe do insuperável, porém “a angústia da espera não é
sempre violenta; tem seus momentos de calma”95. A aletheia, o desvelar-se, aquilo que se
descobre durante a ação da peça, toda a busca angustiada em descobrir qual a solução que
irá transformar o caos em cosmo, a busca por algo que trará a ordem àquele caos, resultará
em absurdo. A verdadeira face do herói é uma máscara absurda. Logo no primeiro ato,
eles se perguntam:
93 BECKETT. Esperando Godot. Op. Cit. p.100, 187. 94 BECKETT. Esperando Godot. Op. Cit. p.11. 95 BARTHES, Roland. A espera. In.: Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Hortêncio dos Santos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986. p. 95.
ESTRAGON – Qual nosso papel nisso?
VLADIMIR – Nosso papel?
ESTRAGON – Pense bem.
VLADIMIR – Nosso papel? De suplicantes.
ESTRAGON – Só isso? 96
No final do segundo – e último – ato, depois de toda a peripécia seguida de
catástrofe, logo antes de receberem a notícia de que Godot não virá naquele dia, Vladimir
faz uma profunda reflexão que revela a verdadeira phýsis de sua personagem; assim como
nos apresenta, sem disfarces ou desvios, a trágica situação de eterno-retorno em que se
encontra juntamente com Estragon. A conclusão é aterradora: eles jamais sairão deste
redemoinho, deste engasgo, desta agulha engasgada. Estão condenados eternamente a este
não-fim:
VLADIMIR – Eu estava dormindo, enquanto os outros sofriam? Estarei dormindo agora? Amanhã, quando eu estiver pensando que acordei, que direi do dia de hoje? Que junto com Estragon, meu amigo, neste lugar, até o cair da noite, eu esperei por Godot? [...] Sem dúvida. Mas o que haverá de verdade em tudo isso? (Estragon, que tentara em vão tirar os seus sapatos, cochilou de novo. Vladimir o contempla.) Ele não saberá de nada. Ele falará dos golpes que recebeu e eu lhe darei uma cenoura. (Pausa.) Com um pé na cova e um nascimento difícil. Do fundo do buraco, indolentemente, o coveiro aplica seu fórceps. Temos tempo de envelhecer. O ar está cheio de nossos gritos. (Escuta.) Mas o hábito é uma grande surdina. (Olha Estragon.) Também para mim alguém está olhando, também sobre mim alguém estará dizendo: Ele está dormindo, ele não sabe de nada, deixe-o dormir. (Pausa.) Não posso mais continuar. (Pausa.) O que foi que eu disse?97
Vladimir e Estragon são integrantes, como afere Martin Esslin, de uma “dupla
cômica” deslocados de seu universo original. Incapazes de descobrir sua culpa, ao se
defrontarem com um mundo fora de ordem, buscam incessantemente saber qual sua
responsabilidade na total desordem de seu mundo. Essa busca, porém, longe de trazer
alívio e acarretar o retorno à ordem, resulta em absurdo.
96 BECKETT. Esperando Godot. Op.cit. p. 30-31. 97 BECKETT. Esperando Godot . Op. Cit. p. 178. [Grifo nosso.]
Porém, não é apenas em Esperando Godot que encontramos exemplos que nos
fazem afirmar o estupor (a inércia, a inação) como causa da desgraça das personagens de
Beckett. Embora Godot nos ofereça muitos exemplos, há outros tão relevantes quanto à
inércia de Vladimir e Estragon.
Na peça Play, escrita em inglês (e traduzida para o francês pelo próprio autor, sob
o título de Comédie), entre os anos de 1962 e 63, há três personagens dos quais vemos
apenas as cabeças que emergem de grandes urnas cinzentas. São duas mulheres (W1 e
W2) e um homem (M) cujos monólogos, entrecortados, nos dão a entender que eles
participaram de um triângulo amoroso (esposa, marido e amante) e hoje estão os três, cada
um por si, sozinhos, repetindo suas histórias infinitamente (numa referência clara a um dos
cantos do Inferno, de Dante). Num determinado momento, já no final da peça, a esposa,
W1, afirma:
W1 – Silêncio e escuridão era tudo o que eu queria. Bom, parece que consegui um pouco dos dois. Sendo que são uma coisa só. Talvez seja muito mesquinho ficar rezando e pedindo mais.98
Este desejo de permanecer em silêncio, na escuridão, é uma busca desesperada pela
inação total, pela inércia, onde tudo cessa.
Outro bom exemplo são as falas finais das personagens/espelho Leitor/Ouvinte, em
Ohio Impromptu, uma das últimas peças de Beckett, escrita em inglês, em 1981,
especialmente para os alunos da Ohio State University. Onde o Leitor diz:
LEITOR – [...] Então a triste história foi contada pela última vez, eles se sentaram como que petrificados. Pela única janela do quarto, a madrugada não trouxe luz. Da rua, nenhum som de movimento. Ou estavam enterrados em sabe-se lá que pensamentos que não prestaram atenção? À luz da manhã. Ao som da rua. Sabe-se lá que pensamentos. Pensamentos não, não pensamentos. Profundezas da mente. Enterrados em sabe-se lá que profundezas da mente. No vazio da mente. Onde nenhuma luz alcança.
98 BECKETT, Samuel. Play. In: The complete dramatic works. Londres: Faber & Faber, 1986. p. 316. [Tradução do autor desta dissertação.]
Nenhum som. Então se sentaram como que petrificados. A triste história contada pela última vez. (Pausa.) Não resta mais nada a dizer. 99
Este ‘vazio da mente’, estes ‘não-pensamentos’ são sintomas do estupor que está
acometendo a personagem e cuja conseqüência destruidora mais imediata é o “não restar
mais nada a dizer”.
Há ainda o exemplo que será tratado adiante, do protagonista de Eleutheria (1947),
Victor Krap, cujo estupor, enquanto estratégia de libertação, será alçado à categoria de
hýbris e causará a ruína de tudo que o cerca: a família, o amor e a si mesmo.
99 BECKETT, Samuel. Ohio impromptu. In: The complete dramatic works. Londres: Faber & Faber, 1986. p. 447-8. [Tradução do autor desta dissertação.]
2 BECKETT ENQUANTO DEVIR DE ARTISTA SE NUTRE DAS EXPECTATIVAS
FORMAIS DO BECKETT CRÍTICO
Ubi nihil vales, ibi nihil velis.
Arnold Geulincx
3.1 O RETRATO DO ARTISTA
Segundo o poeta Paulo Leminski, “talvez nenhum escritor do século XX apresente
o ser humano nas mais extremas fronteiras de abjeção e precariedade como”100 [...]
Beckett. No posfácio que Leminski escreve à sua tradução do romance Malone Morre, ele
repete as palavras “desespero”, “decadência” e “destruição” para resumir a atmosfera geral
da obra beckettiana, chegando mesmo a afirmar que “Beckett é um virtuose de vazios”101.
Além das obras de ficção, Beckett também foi um crítico que exerceu sua função
com acuidade e referências notáveis. Este acervo crítico é composto de suas leituras sobre
literatura – a obra de seu mestre, James Joyce, e de Marcel Proust – e comentários sobre
pintura contemporânea. Apesar de não ter sido um crítico literário muito profícuo, os
impasses estéticos de Beckett como escritor ficcional já foram-se delineando nas suas
análises críticas. Aqui, destacamos três exemplos de seu método de análise, nos quais
podemos realmente observar vários dos temas beckettianos sendo forjados pelo senso
crítico do autor.
O primeiro é o artigo Dante...Bruno. Vico...Joyce, parte de uma coletânea de
artigos críticos publicada no volume intitulado Our exagmination round his factification
for incamination of Work in progress, composto por escritos de diversos jovens discípulos
de Joyce, em 1929. Beckett faz uma análise de Finnegan´s wake, obra-prima de James
Joyce, então chamada de Work in progress. Neste artigo, alguns dos elementos formadores
da estrutura narrativa beckettiana, que determinamos como o eixo formal da sua obra, já
podem ser identificados.
O segundo exemplo tomado é Proust, longo ensaio crítico sobre Em busca do
tempo perdido, em que podemos identificar o eixo moral e ético da obra de Beckett e
alguns elementos referentes à função da persona em relação ao Tempo. 100 LEMINSKI, Paulo. Beckett, o apocalipse e depois. In.: BECKETT, Samuel. Malone morre. Tradução e posfácio de Paulo Leminski. São Paulo: Brasiliense, 1986. p.147. 101 LEMINSKI. Op. cit. p.153.
O terceiro modelo exemplar são os diálogos com Duthuit, publicados em 1949, nos
quais Beckett deixará claro o eixo estético temático que norteará seu próprio trabalho,
através da análise e comentários sobre a obra de três pintores modernos: Pierre Tal Coat,
André Masson e Bram Van Velde.
Uma coincidência que chama a atenção é o fato de que, ao iniciar sua produção
notadamente identificada como portadora de uma estética própria – “beckettiana” –, ele
simplesmente interrompe sua verve crítica e passa a escrever apenas obras de cunho
artístico. É neste período, inaugurado pela publicação das obras Esperando Godot e
Molloy, que Beckett passará a escrever tendo suas próprias idéias como manancial – como
ele mesmo irá declarar em 1961: “Então comecei a escrever as coisas que sinto”.102 É
importante observar que, antes deste período, ele já havia publicado alguns poemas, uma
coletânea de novelas reunidas sob o título de More pricks than kicks, a novela Primeiro
amor e os romances Murphy e Watt.
Samuel Beckett nasceu em uma família protestante irlandesa, em Dublin, na Sexta-
feira Santa do ano de 1906, no dia 13 de abril. Filho de um fiscal de pesos e medidas e de
uma dona de casa que participava de obras de caridade, o pequeno Samuel Beckett
estudou na renomada Portora Royal School, escola primária freqüentada anteriormente por
Oscar Wilde, e no Trinity College. Entre os anos de 1926 e 1927, toma os primeiros
contatos com a França e a Itália. No ano de 1928, parte para Paris, onde trabalha como
conferencista de inglês na École Normale Supérieur e na Sorbonne e trava contato com
James Joyce, “de quem se torna íntimo”103. No ano seguinte, escreve e publica
Dante...Bruno. Vico...Joyce. Em 1930, publica Whoroscope, poema-monólogo, em que
René Descartes figura como protagonista. Logo depois, escreve e publica Proust,
monografia crítica sobre a obra-prima Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Em
102 Entrevista a Gabriel D’Aubarède, para a revista francesa Nouvelle Littéraire. In.: ANDRADE, Fábio de Souza. Samuel Beckett: O silêncio possível. Cotia – SP: Ateliê Editorial, 2001. p.190. 103 JANVIER, Ludovic. Beckett. Tradução de Léo Schlafman. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. p. 10.
1933, escreve o conjunto de novelas que constituirão More pricks than kicks, obra que dá
início à sua produção como escritor. Neste mesmo ano, exila-se em Londres e visita o
Bethlem Royal Hospital, asilo de internamento de loucos, nos arredores da capital inglesa,
onde adquire conhecimento sobre esquizofrenia. Entre o início de 1934 e o final de 35, ele
se submete a processo psicoterapêutico na Tavistock Clinic com o renomado psicanalista
Wilfred Bion, discípulo de Freud. Sob sugestão de Bion, Beckett assiste a uma série de
palestras de C. G. Jung sobre cisão e desassociação nas neuroses e psicoses104. Insatisfeito
com a vida em Londres, passa uma temporada na Alemanha nazista e retorna a Paris. Em
1938, dá início à sua escrita de grandes romances, com o lançamento de Murphy. Com a
deflagração da 2ª Guerra Mundial, Beckett se alia a um grupo de resistência contra o
avanço nazista. Em 1941, ocorre a morte de James Joyce. Em 1942, Beckett foge de uma
fiscalização da Gestapo e refugia-se com a mulher no interior da França, onde escreve
Watt. Em 1945, escreve Primeiro amor, em francês. Dois anos depois, escreve Eleutheria,
abrindo o ciclo teatral. Em 1948, inicia a trilogia de romances com Molloy, seguido por
Malone morre. No ano seguinte, escreve Esperando Godot, peça que irá lançá-lo de vez
no cenário teatral mundial, depois da estréia em 1952. Em 1949, encerra a trilogia de
romances com a publicação de O inominável. Sua trajetória como escritor então será
ascendente até a nomeação e premiação com o Nobel de literatura, no ano de 1969,
outorgado pela Academia Sueca, cuja declaração foi a seguinte: “Beckett tem exposto a
miséria do homem do nosso tempo através de novas formas dramáticas e literárias. Suas
[...] vozes mudas em tom menor guardam em si a libertação para os oprimidos e o conforto
para os desgraçados”.105
104 Fonte: CONNOR, Steven. Beckett and Bion. Transcrição de conferência realizada na Goldsmiths College. Londres, 1998. Disponível em <http://www.bbk.ac.uk/english/skc/beckbion/> Acesso em 16 de janeiro de 2005. 105 NELSON, Bonnie E.; MILLER, Walter James. (Org.) Samuel Beckett’s Waiting For Godot and other works. New York: Monarch Press, 1971. p. 5. [Tradução do autor desta dissertação.]
3.2 AS RELAÇÕES FILOSÓFICAS DE BECKETT
É preciso identificar as relações filosóficas de Beckett, no sentido de criar um
contexto filosófico onde sua obra possa ser inserida para, em seguida, estabelecer em que
pontos estas relações contribuirão para a poética beckettiana.
No ano de 1930, Beckett lê Schopenhauer e Kant. Depois, não lerá mais filosofia,
por se considerar pouco dotado para isto, como ele mesmo dirá posteriormente numa de
suas raras entrevistas.106 Porém, vários estudiosos, como Martin Esslin e Ludovic Janvier,
entre outros, são unânimes em afirmar que Beckett possui relações filosóficas que não
podem ser ignoradas.
A filosofia figura de maneira tão proeminente na obra de Beckett que muitos
críticos consideram conveniente tratá-lo preferencialmente em termos filosóficos.
Frederick Hoffman se refere às novelas escritas por Beckett como “indagações
epistemológicas” e às peças como “reflexões sobre a existência de Deus”107. Martin Esslin
vê
um paralelo verdadeiramente surpreendente entre a filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre e a intuição criadora de Beckett, que nunca expressou conscientemente qualquer atitude existencialista. [...] Para Beckett tanto quanto para Sartre, o homem tem o dever de encarar a condição humana como reconhecimento de que a raiz de nossa existência está no nada, a liberdade, e a necessidade de nos criarmos constantemente por intermédio de uma sucessão de escolhas. 108
O próprio Beckett – tanto em sua poesia, como na ficção e nos roteiros
cinematográficos – constantemente faz referências diretas aos filósofos como Heráclito,
106 Gabriel D’Aubarède entrevistou Beckett em 16 de fevereiro de 1961, para a revista Nouvelles Littéraires. Nesta rara entrevista, Beckett afirma categoricamente, após ser questionado sobre a influência que os filósofos contemporâneos teriam tido em seu pensamento: “Nunca leio os filósofos”. Ao ser questionado por quê, ele responde laconicamente: “Nunca entendo nada do que eles escrevem”. Fonte: ANDRADE, Fábio de Souza. Samuel Beckett – O silêncio possível. p. 189. 107 HOFFMAN, Frederick J. Samuel Beckett: The language of the self. In.: NELSON, Bonnie E.; MILLER, Walter James (Org.) Samuel Beckett’s Waiting For Godot and other works. New York: Monarch Press, 1971. p. 14. 108 ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. p.54.
Descartes e Berkeley.109 Em todas as suas criações literárias, ele usa livremente conceitos
e imagens – por vezes detalhes das próprias vidas – destes e de outros pensadores,
incluindo Santo Agostinho, Kierkegaard e Wittgenstein.110 Em entrevistas, Beckett faz
referências a Heidegger e Sartre.111 Obviamente, portanto, há um valor considerável em
observar as relações filosóficas de Beckett – diretas ou indiretas, explícitas ou implícitas –
com filósofos modernos ou da Antigüidade.
Heráclito, que viveu na Grécia antiga (530 – 470 a.C.), é representativo do
pensador profundo que aceita as provas mesmo quando estas não são aquelas que ele
deseja ver. Heráclito buscou apaixonadamente encontrar a prova da permanência e da
unidade na Natureza, mas teve de admitir que a única coisa que ele pôde enxergar foi a
mudança e a diversidade. Seus fragmentos servem de exemplo: “Não é possível entrar
duas vezes no mesmo rio”112 e “Eu busco a mim mesmo.”113. Para alguém que vive e atua
na modernidade, a leitura de Heráclito irá afirmar a crença de que o tempo é mais real que
o espaço. Para as personagens de Beckett, o fluxo heraclitiano não está apenas no mundo
exterior, mas pode ser experimentado no mundo interior. A consciência também flutua.
Não se pode contemplar o mesmo rio duas vezes com a mesma mente. No romance Como
é, por exemplo, Beckett chega a citar Heráclito numa passagem:
sobre a barriga enlameada vi um dia abençoado com o devido respeito a Heráclito o Obscuro no píncaro do céu anil se elevando entre suas grandes asas
109 Beckett cita Heráclito (530 – 470 a.C.) no romance Como é, como será exemplificado a seguir. René Descartes (1596 – 1650), considerado o pai da filosofia moderna, autor da célebre frase Cogito ergo sum (Penso, logo existo) é a personagem que monologa no longo poema de Beckett intitulado Whoroscope, publicado em 1930. Finalmente, George Berkeley (1685 – 1753) é o autor da frase Esse est percipi (Ser é ser percebido) que Beckett utilizará como epígrafe na publicação do roteiro de Film, seu único texto escrito exclusivamente para o cinema. 110 Ruby Cohn, em seu artigo Philosophical fragments in the works of Samuel Beckett, publicado sob organização de Martin Esslin no volume Samuel Beckett: a collection of critical essays apresenta longamente estas referências. 111 Beckett disse em entrevista a Tom Driver no Columbia University Forum – no verão de 1961: “Quando Heidegger e Sartre falam de um contraste entre o ser e a existência, pode ser que estejam certos, não sei, mas sua linguagem é filosófica demais pra mim. Não sou um filósofo.” Fonte: ANDRADE, Fábio de Souza. Samuel Beckett – O silêncio possível. p. 190. 112 HERÁCLITO. Fragmento L. In.: Heráclito: Fragmentos contextualizados. Tradução, apresentação e comentários de Alexandre Costa. Rio de Janeiro: Difel, 2000. p.205. 113 HERÁCLITO. Fragmento CVI. Op. cit. p.214.
negras estendidas imóveis o corpo de neve de não sei que pássaro-fragata o gritante albatroz dos mares do sul a história que eu sabia meu Deus a natural os bons momentos que tive 114
Em Como é, Beckett cria um narrador que se dá conta de sua própria existência, criando
uma espécie de inventário de estados pelos quais ele teria passado, lembrando que foram
tantos estados na sua vida em tantas diferentes versões destes.
O filósofo sofista Górgias de Lentini, nascido em Siracusa (483 – 375 a.C.),
afirmou: “Nada possui existência real; e mesmo se existisse não poderia ser conhecido;
mesmo se algo pudesse ser conhecido, não poderia ser comunicado”115. Neste sentido,
Beckett pode ser considerado uma espécie de Górgias moderno. “A questão crucial das
personagens beckettianas parece ser esta: de que maneira se pode expressar algo que é
inexprimível?”116
Mestre de Platão e principal personagem dos Diálogos, Sócrates (467 – 399 a.C.)
afirma no Fédon: “Uma vida que não foi examinada não merece ser vivida”117. Porém, o
herói beckettiano vai além: ele se dá conta dolorosamente de que a vida, mesmo
examinada, não merece o sacrifício, e ainda assim ele precisa continuar, analisando a si
mesmo, colocando-se à prova no hiato entre a natureza do Eu e da Realidade.
Segundo Martin Esslin, Beckett citou, numa entrevista, uma frase de Santo
Agostinho (345 – 430 d.C.) que figurará como uma das passagens marcantes de
Esperando Godot: “Não se desespere, um dos ladrões foi salvo. Não seja presunçoso, um
dos ladrões foi condenado”.118
No mundo físico, repleto de vários fluxos constantes particulares, Descartes
enxergava, na generalidade, verdades matemáticas fixas e imortais que ele considerava
114 BECKETT, Samuel. Como é. Tradução de Ana Helena Souza. São Paulo: Iluminuras, 2003. p. 42. 115 Apud. NELSON, Bonnie E.; MILLER, Walter James. (Org.) Samuel Beckett’s Waiting For Godot and other works. New York: Monarch Press, 1971. p.15. [Tradução do autor da dissertação.] 116 LEVENTHAL, A. J. The Beckett hero. In.: ESSLIN, Martin (Org.). Samuel Beckett: a collection of critical essays. New Jersey: Prentice-Hall, 1965. p. 37. [Tradução do autor da dissertação.] 117 Apud. NELSON, Bonnie E.; MILLER, Walter James. Op. cit. p.15. 118 ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
como sendo a essência das coisas. E, da mesma maneira, sempre houve pensadores que
afirmassem existir dois níveis de realidade: um mundo material, transitório, diverso,
imperfeito, subjetivo, um mundo do tornar-se ou da existência; e outro, o mundo das
idéias abstratas, imaterial, perfeito, objetivo, um mundo do ser ou da essência. Estes
pensadores enxergam o mundo material como resultado dos sentidos do homem, assim
como o mundo das idéias relaciona-se com sua mente. É desnecessário reafirmar que, para
estes filósofos, o mundo abstrato, mental, está num nível hierarquicamente superior ao
mundo real.
Um dos mais influentes filósofos modernos, o dinamarquês Sören Kierkegaard
(1813 – 1855), re-examinou estas relações. Tanto para Kierkegaard, assim como para
Heráclito, a subjetividade permanece numa ordem superior que a objetividade; o tornar-se
(existência) é inferior ao ser (essência). Kierkegaard afirma em Either/Or que “toda
verdade abstrata sobre a natureza do mundo, justamente por ter sido criada pela abstração
da experiência humana, morre e se torna mera casca de verdade”.119 Desta maneira, não
pode haver verdade fora da experiência individual. Em O desespero humano, Kierkegaard
discorre sobre o efeito psicológico provocado no homem pelo fato de, através do seu
intelecto, ele precisar lidar constantemente com generalizações, abstrações, essências.
Todo o restante de sua natureza urge por experiências reais, pela existência, pela expressão
completa. Este conflito entre mente e coração leva à crise do desespero. O homem fica
paralisado pelo desespero, pela angústia. De quê? Por quê? Porque, se ele quebrar o seu
modo de vida objetivo, de mente limitada, as possibilidades serão infinitas e nada será
determinado. Para Kierkegaard,
quem desespera não pode morrer. Dessa maneira, como um punhal não serve para matar pensamentos, também o desespero, verme imortal, fogo inextinguível, não devora a eternidade do eu, que é seu próprio sustentáculo. [...]
119 KIERKEGAARD, Søren. Either/Or: fragment of life. Traduzido do dinamarquês para o inglês por Alastair Hannay. Londres: Penguin, 1992. [Tradução do autor da dissertação.]
Bem longe de consolar o desesperado, ao contrário, o insucesso do seu desespero em destruí-lo é uma tortura. 120
É interessante perceber o enfoque existencialista de algumas das obras de Beckett,
principalmente as criadas em francês. Porém, mesmo antes de sua opção pela língua
francesa, já podemos notar este enfoque. Por exemplo, o ensaio crítico Proust, cuja
escritura e influências na obra de Beckett serão analisadas com mais detalhes adiante,
publicado em inglês, em 1931, flerta claramente com a filosofia existencialista. E, mesmo
algum tempo depois, em 1961, podemos observar a peça Dias felizes, escrita em inglês e
que, em parte, é concebida a partir de conceitos claramente existencialistas.
No entanto, é preciso afirmar que Beckett, apesar de tudo, não estava interessado
em fazer filosofia. Seu interesse sempre pareceu outro. A nós, encontramos uma possível
explicação para o enigma filosófico beckettiano numa carta dirigida a um amigo pouco
íntimo, que ficou conhecida como a “Carta alemã”. Neste precioso documento, Beckett
expressa claramente alguns de seus anseios como escritor e ainda seu descontentamento
com as estratégias literárias contemporâneas a ele. Além disso, nos sugere uma explicação
para a opção de escrever em francês, língua na qual irá escrever grande parte de suas
principais obras. Na “Carta alemã”, endereçada a um tal Alex Kaun, após expor sua
justificativa para negar a tradução dos poemas de um escritor alemão sugeridos por Kaun,
Beckett diz:
Está se tornando mais e mais difícil, até sem sentido, para mim, escrever num inglês oficial. E, mais a mais, minha própria língua me parece como um véu que precisa ser rasgado para chegar às coisas (ou ao Nada) por trás dele. Gramática e Estilo. Para mim, eles parecem ter se tornado tão irrelevantes quanto o traje de banho vitoriano ou a imperturbabilidade do verdadeiro cavalheiro. Uma máscara. Tomara que chegue o tempo, graças a Deus que em certas rodas já chegou, em que a linguagem é mais eficientemente empregada quando mal empregada. Como não podemos eliminar a linguagem de uma vez por todas, devemos pelo menos não deixar por fazer nada que possa contribuir para sua desgraça. Cavar nela um buraco atrás do outro, até que aquilo que está à espreita por trás – seja isto alguma coisa ou nada – comece a atravessar; não consigo imaginar um objetivo mais elevado para um escritor hoje. 121
120 KIERKEGAARD, Søren. O desespero humano. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2003. p. 24. 121 BECKETT, Samuel. “Carta alemã”, tradução de Fábio de Souza Andrade. In: ANDRADE, Fábio de Souza. Samuel Beckett: o silêncio possível. Cotia – SP: Ateliê Editorial, 2001. p. 169.
O que fica claro aqui é que Beckett tinha, já em 1937, um programa estético, ético
e político bem definido. É justamente o germe inicial deste programa que nós
investigaremos a partir de agora. Pois acreditamos que, mesmo com toda a influência da
filosofia na obra de Beckett, este germe está em sua produção como crítico literário e de
arte.
3.3 O PRIMEIRO ENSAIO: JOYCE. EM BUSCA DE UM EIXO FORMAL
Em 1929, o jovem Beckett publicou um ensaio que, juntamente com outros artigos
de outros jovens intelectuais, discípulos de Joyce, recebeu o emblemático título de Our
exagmination round his factification for incamination of Work in progress122. Esta
coletânea de ensaios era uma exegese da obra-prima de James Joyce, então chamada de
Work in progress e, mais tarde, finalizada sob o título de Finnegans’ wake. Segundo o
estudo de Walter James Miller, da New York University e de Bonnie E. Nelson, da
Hofstra University, o denso romance de Joyce usa a teoria jungiana de inconsciente
coletivo, segundo a qual o inconsciente de cada pessoa contém memórias recalcadas não
apenas de sua própria experiência, mas também da experiência total de toda a raça
humana. E essas memórias flutuam através da mente do adormecido protagonista H. C.
Earwicker que, neste estado de adormecimento, passa a existir enquanto todo ser humano
do sexo masculino: de Adão a Noé, a Romeu, Darwin, Huck Finn e ao próprio Earwicker.
O título do ensaio de Beckett é Dante...Bruno. Vico...Joyce. Logo no título de sua
crítica, Beckett imediatamente se autoproclama um amante das técnicas de linguagem
joyceanas e, no ensaio propriamente, ele se apropriará desta linguagem, “conscientemente
122 Uma tradução possível, em português, deste título tão original seria: Nossa exagminação sobre a fatificação dele para o encaminhamento do Trabalho em processo.
se emaranhando no método joyceano”123. Ele faz produtivas comparações entre Joyce e
Dante, em parte, de maneira cartesiana. Ele caracteriza o Inferno de Dante como a
‘estática ausência de vida’ da malícia absoluta; o Paraíso, como a ‘estática ausência de
vida’ da virtude absoluta. E, entre as duas, encontra a arte dinâmica: o Purgatório, que
está em constante movimento de vitalidade. E Beckett enxerga o Work in progress de
Joyce inteiramente inserido dentro do nível do purgatório, contendo todas as tensões
existentes entre o bem e o mal, o masculino e o feminino, a mente e o corpo, a
objetividade e a subjetividade, em todos os pólos opostos. Beckett afirma que o Work de
Joyce se caracteriza pela sua ‘absoluta ausência do Absoluto’. Enquanto forma, Beckett vê
o Purgatório dantesco como um cone: um formato que implica numa progressão
ascendente, em direção ao Paraíso, em direção ao absoluto, à perfeição extática. Mas o
purgatório joyceano é esférico: seu formato implica num movimento circular, na direção
de uma repetição cíclica, em constante fluxo.
Estas observações revelam que, mesmo antes dos trinta anos de idade, Beckett
enfatizaria uma das características marcantes de seu trabalho posterior: sua complexidade
material pode estar contida numa forma simples desde que fiel ao tema. É nesta análise
que podemos antever a ação esférica que irá caracterizar, por exemplo, o drama Esperando
Godot.
Escrita em francês, em 1948, e descrita pelo autor como uma “Tragicomédia em
dois atos”, Esperando Godot não obedece à estrutura tradicional de, no ato I, fazer a
apresentação de personagens seguido de complicação, conflito e clímax, para, no segundo
ato, proceder à curva descendente da ação, em direção à resolução. Um esquema de
descrição da ação do primeiro ato seria: 1. As personagens “passivas” (Vladimir e
Estragon) passam o tempo esperando. 2. As personagens “agentes” (Pozzo e Lucky)
123 DILKS, Dr. Stephen. Beckett Bethicketted. In.: NTRY 1.2: Literary e-zine. http://www.samuel-beckett.net/sd.html. Acesso em 14 de dezembro de 2004.
atravessam a ação. 3. As personagens “passivas” recebem uma mensagem (de que Godot
não poderá estar lá naquele dia). 4. As personagens “passivas” decidem continuar
esperando. No segundo ato, o esquema de ação funcionará exatamente da mesma forma. A
estrutura de ação do primeiro ato descreve um círculo, e a estrutura do segundo ato, da
mesma maneira, um outro círculo. Assim, há uma implicação clara de que a ação do
passado irá se repetir no futuro de maneira cíclica em repetições infinitas. Porém, há
diferenças cruciais entre o primeiro e o segundo atos. Ambos os atos começam e se
encerram de maneira idêntica para Vladimir e Estragon, mas para Pozzo e Lucky (agentes
da ação) há mudanças extremas. No segundo ato, Pozzo está cego e Lucky perdeu o poder
do discurso, os dois estão cambaleantes e inseguros, sua condição sugere que eles estão
mais próximos da decadência de Vladimir e Estragon. Não ficamos sabendo qual a causa
desses efeitos, que parecem ser simplesmente o curso natural das coisas. O que podemos
saber com certeza é que eles estão em uma espiral descendente. Esta forma nos sugere
que, se por um lado, a vida é cíclica e, por outro, é uma espiral descendente, em ambos os
casos, a vida parece ser repetitiva, vazia, entediante, destituída de um sentido de progresso
e totalmente sem propósito.
Esperando Godot, portanto, é um exemplo do eixo formal vislumbrado por
Beckett na obra de Joyce. Porém, há outros exemplos. Em uma de suas últimas peças para
teatro, Rockaby, escrita em inglês, em 1980, vemos uma mulher precocemente envelhecida
que ouve sua própria voz gravada, enquanto faz movimentos repetitivos de ir e vir, numa
cadeira de balanço. A voz que a mulher ouve parece vir de sua própria consciência e se
repete, com pequenas modificações, numa estrutura que mais parece um poema. Aos
poucos, o texto parece convergir numa espiral descendente, até que os movimentos e a voz
cessem, e a mulher finalmente possa fechar os olhos definitivamente.
Porém, será em Quad, uma peça sem palavras escrita para a televisão, em 1982,
que Beckett levará os movimentos cíclicos e a ação repetitiva a um grau infinito. Neste
exercício matemático de análise combinatória, quatro figuras humanas, cobertas dos pés à
cabeça por panos que não permitem que elas sejam identificadas, andam sobre um
quadrado imaginário no chão, ora em solos, ora em duplas, ou trios e quartetos, repetindo
exaustivamente seus movimentos (cujos trajetos são minuciosamente descritos nas
anotações de direção e notas explicativas). Não há um fim. Os elementos da ação são
dispostos de uma determinada maneira que a seqüência de movimentos seja ininterrupta,
como um moto-contínuo. Este mesmo método já havia sido utilizado em duas outras peças
de curta duração: Come and go e Play.
Em Come and go, escrita em inglês, em 1965, e dedicada a John Calder, três
mulheres identificadas apenas pelos nomes – Ru, Flo e Vi – e pelas cores com que estão
vestidas – vermelho, amarelo e roxo –, cujos rostos permanecem sob a sombra de seus
chapéus, criam uma movimentação matematicamente simétrica. Simetria esta que também
se repete no texto falado. Neste dramatículo (como Beckett define) de pouco mais de cinco
minutos, são pronunciadas apenas cento e vinte palavras, distribuídas igualmente em
quarenta palavras para cada personagem, numa economia e condensação de linguagem
espantosas.
E, finalmente, na peça Play, escrita em inglês, entre 1962 e 1963, Beckett cria
umas de suas obras mais instigantes, em que ele se utiliza de referências marcantes do
martírio no inferno da Divina comédia, de Dante, para colocar suas personagens – duas
mulheres e um homem – enterradas até o pescoço, dentro de grandes urnas, fazendo-as
repetir infinitamente a história de suas desventuras amorosas. Ao final da peça, depois de
percebermos que as três personagens não têm saída, Beckett comanda, na indicação de
direção: Repeat play 124.
Em todos estes exemplos, o que vemos é a estratégia da repetição cíclica utilizada
como estrutura que nos diz: ‘isto é ruim, e pode ficar ainda pior’. A resposta que Beckett
nos dá aos seus próprios enigmas é desesperadora. Não há saída possível.
3.4 O SEGUNDO ENSAIO: PROUST. EM BUSCA DE UM EIXO MORAL
Em 1931, “encomendado por um editor londrino”125, Beckett faz publicar seu
longo ensaio intitulado Proust, sobre o autor de Em busca do tempo perdido, iniciando seu
exame com uma frase intrigante: “A equação proustiana nunca é simples”.126 Beckett irá
sutilmente analisar o tempo perdido entre seus dois pólos: diluição da persona no tempo –
a danação; e o alçar vôo da persona na verdadeira memória, que é a arte que eterniza – a
redenção. A busca de Beckett aqui é pela “estrutura nervosa sutil”, como afirma Martin
Esslin, em Beckett: a busca do eu. Nas entrelinhas da análise beckettiana, se antevê a
formulação da poética radical da narrativa que Beckett não tardará em colocar à prova em
sua própria criação literária.
Beckett conduzirá sua leitura de Proust buscando quatro pilares, de cujos
significados podemos extrair uma idéia do que viria a se tornar uma poética beckettiana.
Estes quatro pilares construídos a partir da leitura de Em busca do Tempo perdido são: o
Tempo, o Hábito, a Memória e o binômio Amor/Amizade.
Beckett afirmará, logo no início do seu ensaio, que “as criaturas de Proust são,
portanto, vítimas desta circunstância e condição predominante: o Tempo. [Pois], não há
como fugir das horas e dos dias. Nem de amanhã nem de ontem”.127
124 Repetir a peça. 125 ESSLIN. O teatro do absurdo. Op. cit. p.28. 126 BECKETT. Proust. Tradução de Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 9. 127 BECKETT. Proust. Op. Cit. p.11.
Logo em seguida, Beckett analisará os efeitos do tempo sobre as pessoas,
afirmando que “não estamos meramente mais cansados por causa de ontem, somos outros,
não mais do que éramos antes da calamidade de ontem. [...] As aspirações de ontem foram
válidas para o eu de ontem, não para o de hoje”.128 Ele segue aqui um raciocínio que, em
conceito, lembra o fragmento de Heráclito: “Não é possível entrar duas vezes no mesmo
rio”.129
Este modo de ver a ação do Tempo sobre os sujeitos é algo que marcará a escrita
dramatúrgica e ficcional de Beckett. Temos o exemplo da primeira seqüência de
Esperando Godot, na qual os dois protagonistas, logo após se encontrarem, no início de
mais um dia, têm este pequeno diálogo
VLADIMIR – Então você está aí de novo. ESTRAGON – Estou?
Logo em seguida, um outro:
VLADIMIR – E eles não lhe bateram? ESTRAGON – Se me bateram? Claro que me bateram. VLADIMIR – Os mesmos de sempre? ESTRAGON – Os mesmos? Não sei. 130
O Tempo marcará a obra de Beckett de maneira a não deixar dúvidas sobre a sua
natureza destruidora, assim como, em Proust, o Tempo interfere nas vidas e percepções
das personagens. Desta maneira, Beckett vê as personagens comprimidas entre o futuro e o
passado.
O indivíduo é o sítio de um constante processo de decantação, decantação do recipiente contendo o fluido do tempo futuro, indolente, pálido e monocromático, para o recipiente contendo o fluido do tempo passado, agitado e multicolorido pelo fenômeno de suas horas. 131
Ao ler Proust, Beckett descobre que “o entendimento tácito de que o futuro pode
ser controlado é destruído”.132 Na primeira parte de sua análise, além de discutir as
128 BECKETT. Proust. Op cit. p. 11-12. 129 HERÁCLITO. Fragmentos. In.: Heráclito: Fragmentos contextualizados. Tradução, apresentação e comentários de Alexandre Costa. Rio de Janeiro: Difel, 2000. p. 205. 130 BECKETT. Esperando Godot. Tradução de Flávio Rangel. São Paulo: Abril Cultural, 1976. p. 10. 131 BECKETT. Proust. Tradução de Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 13. 132 BECKETT. Proust. Op. Cit. p. 14.
questões do tempo e da sua força destruidora e inelutável, para concluir as relações do
tempo nos sujeitos, Beckett irá apontar sua lente para o foco das relações humanas e da
mobilidade, chegando a tocar na questão da tensão humana entre o querer e o poder.
O observador inocula o observado com sua própria mobilidade. Além disso, quando se trata de um caso de inter-relação humana, encontramo-nos face ao problema de um objeto cuja mobilidade não é meramente função da mobilidade do sujeito, mas independente e pessoal: dois dinamismos intrínsecos e separados, carentes de um sistema de sincronização. De modo que, seja qual for o objeto, nosso desejo de posse é, por definição, insaciável. Na melhor das hipóteses, tudo o que se der no Tempo (todo produto do Tempo), seja na Arte ou na Vida, só poderá ser possuído sucessivamente, por uma série de anexações parciais – e nunca integralmente, de uma só vez. 133
A idéia que Beckett faz do Tempo prefigura de maneira bastante explícita em
Esperando Godot, quando a personagem Pozzo, após ser argüida sobre quando Lucky
teria ficado mudo, responde:
POZZO (subitamente furioso) – Você não cessa de me atormentar com suas histórias sobre o tempo!? É abominável. Quando! Quando! Um dia, será que isso não lhe basta, um dia como qualquer outro dia, um dia ele ficou mudo, um dia eu fiquei cego, um dia vamos ficar surdos, um dia nascemos, um dia morremos, o mesmo dia, o mesmo segundo, será que isso não lhe basta? (Mais calmo.) O nascimento ocorre com um pé na cova, a luz brilha um instante, e depois surge novamente a noite. 134
Para Beckett, “Memória e Hábito são atributos do cronocarcinoma” 135, ou seja, do
‘tumor do tempo’, e é nestes dois atributos que ele irá seguir sua análise sobre a “tragédia
que se abaterá nas relações humanas, cujo fracasso é preestabelecido”, na história entre
Marcel e Albertine, protagonistas de Em busca do Tempo perdido.
O Hábito será o objeto da próxima análise de Beckett. Para ele, “respirar é um
hábito. A vida é um hábito. Ou melhor, a vida é uma sucessão de hábitos, posto que o
indivíduo é uma sucessão de indivíduos”.136
Em Godot, Beckett irá se utilizar deste conceito do hábito. Ao final do longo
monólogo reflexivo de Vladimir, o vagabundo chega à conclusão de que “o ar está cheio
133 BECKETT. Proust. Op. Cit. 15-16. 134 BECKETT. Esperando Godot. Op. cit. p. 176. 135 BECKETT. Proust. Op. Cit. p. 16. [Grifo nosso] 136 BECKETT. Proust. Op. Cit. p. 17.
de nossos gritos”. Em seguida, ele se cala, tentando escutar os ecos de seus gritos e
conclui: “Mas o hábito é uma grande surdina”.137
O autor vê o Hábito como algo a ser desprezado e arrancado da alma dos homens
para que haja alguma possibilidade de redenção. Num aparente desprezo por aqueles que
hierarquizam os hábitos e o exortam, Beckett afirmará que
a exortação ao cultivo de um hábito faz tanto sentido quanto a exortação ao cultivo da coriza. [...] Porque a devoção perniciosa ao hábito paralisa nossa atenção, anestesia todas as servas da percepção cuja cooperação não lhe seja absolutamente essencial. 138
Para Beckett, o Hábito impede o único modo de triunfar sobre o Tempo, que são os
períodos de transição, de adaptação entre uma situação e outra, com a criação de novos
hábitos. Não há possibilidade de um indivíduo ‘ser’ quando ele está inserido totalmente
dentro do hábito. Portanto, “viver perigosamente” é “um triunfante soluço em meio ao
vácuo – como o hino nacional do eu verdadeiro, exilado do hábito”139. Porque, ao
contrário,
a criatura de hábitos dá as costas àquele objeto que nem à força poderá corresponder a um ou outro de seus preconceitos intelectuais, que resiste às proposições de seu esquadrão de sínteses, organizado pelo Hábito segundo princípios de economia de energia. 140
Na relação entre sofrimento e hábito, Beckett ainda conceitua sua relação com o
Tédio e os reajustes necessários às novas situações impostas pelo Tempo.
A obrigação fundamental do Hábito [...] consiste no perpétuo ajustar e reajustar de nossa sensibilidade orgânica às condições de seus mundos. O sofrimento representa a omissão desse dever, seja por negligência ou ineficácia; o tédio representa seu cumprimento adequado. O pêndulo entre esses dois termos: Sofrimento – que abre uma janela para o real e é a condição principal da experiência artística –, e o Tédio – com seu exército de ministros higiênicos e aprumados, o Tédio que deve ser considerado como o mais tolerável, já que [é] o mais duradouro de todos os males humanos. 141
137 BECKETT. Esperando Godot. Op. Cit. p. 178. 138 BECKETT. Proust.Op. Cit. p. 18-19. 139 BECKETT. Proust.Op. Cit. p.18. 140 BECKETT. Proust.Op. Cit. p. 23 141 Ibid. p. 28.
Fica claro, nesta passagem, o ponto de vista radical que Beckett tem do sofrimento
como motor da arte e do tédio como conseqüência esperada e adequada ao poder do
hábito. Esta visão pode ser percebida em várias de suas obras posteriores.
É o sofrimento de ter sido retirado do hábito que move o narrador de Primeiro
amor, novela que Beckett escreverá em 1945. O narrador de Primeiro amor está
totalmente inserido no tédio confortável entre a pífia plantação de tomates, cravos e
jacintos e seu pequeno quarto. Sua pequena e confortável prisão do hábito é ameaçada
apenas quando este é interrompido após a morte de seu pai. Durante uma das longas
sessões no vaso sanitário – com diarréia ou prisão de ventre, nem ele sabe ao certo –, o
narrador é obrigado a abandonar sua casa e passa a viver entre o cemitério, onde
constantemente vai visitar o túmulo do pai, e um banco à beira do rio, que passa ser sua
nova morada. Quando ele já está construindo este novo hábito confortável, aparece Lulu,
uma prostituta gorda e estrábica, com quem ele irá morar, criando sempre novos hábitos.
Beckett encerra a parte de seu ensaio que fala sobre o Hábito com uma citação do
próprio texto de Proust: “Se não existisse o Hábito, a Vida teria, por certo, uma aparência
deliciosa para todos aqueles a quem a Morte ameaça a cada momento, isto é, para toda a
Humanidade”.142
O segundo pilar da sua análise da obra proustiana é baseado nas questões da
Memória. A memória, segundo Beckett, é auxiliar do Hábito.
O homem de boa memória nunca lembra de nada, porque nunca esquece nada. Sua memória é uniforme, uma criatura de rotina, simultaneamente condição e função de seu hábito impecável, um instrumento de referência e não de descoberta. [...] Porque sua memória é um varal e as imagens de seu passado são roupa suja redimida, criados infalivelmente complacentes de suas necessidades de reminiscência. 143
Porém, há dois tipos de memória, com articulações diferentes e que surgem em
circunstâncias diferentes, provocando conseqüências diferentes. Uma delas é a memória
142 PROUST. Apud. BECKETT. Proust. Op. Cit. p. 28. 143 BECKETT. Proust. Op. Cit. p. 29-30.
voluntária, aquela primeira, escrava do hábito, que Beckett chamará de “testamento do
indivíduo”, pois é a “memória uniforme da inteligência”, cuja reprodução é confiável. Na
memória voluntária, “não há grande diferença” [...] “entre a memória de um sonho e a
memória da realidade”.
A memória voluntária insiste na mais necessária, salutar e monótona forma de plágio – o plágio de si mesmo. Democrata incondicional, não faz qualquer distinção entre os Pensamentos de Pascal e uma propaganda de saponáceo. 144
Em contraposição, “a memória involuntária é explosiva”, não pode ser controlada,
nem sequer está à mercê dos desejos de utilização do sujeito. Sua função é criar entre o
presente e o passado, revelando a experiência do real. “Mas a memória involuntária é um
mágico rebelde e não se deixa importunar. Escolhe seu próprio tempo e lugar para a
operação do milagre”.145
Esta memória involuntária, Beckett identificará em vários momentos de Em busca
do Tempo perdido, quando as personagens sofrerão transportes para o passado e para as
sensações experimentadas neste passado, deflagrados por pequenos elementos ou gestos
quase prosaicos, mas de grande importância dentro do contexto em que estão inseridos. O
ruído da batida de uma colher num pires, alguém roçando levemente um guardanapo
engomado nos lábios, um odor, pequenos elementos que assumem o papel do mágico que
irá operar o milagre de, através da memória involuntária, reproduzir a experiência do real,
justamente no contraste de tempo entre passado (um passado que o hábito – ou novos
hábitos – julgavam esquecidos e que a memória voluntária tratou de descolorir) e o
presente, dando ao sujeito a percepção de que ele está vivo e atrelado a uma rede que
envolve sua memória e seus hábitos como artífices do Tempo.
Resta o caminho do amor – que Beckett definirá como o “deserto de solidão e
recriminações que os homens chamam de amor”146 – e da amizade.
144 BECKETT. Proust. Op. Cit. p. 32-33. 145 BECKETT. Proust. Op. Cit. p. 33. 146 BECKETT. Proust.Op. Cit. p.57.
No exame da estrutura proustiana, ele produzirá reflexões que irão realmente
definir muito de suas próprias opções estéticas, como quando ele afirma que
[...] se o amor [...] é função da tristeza do homem, a amizade é função de sua covardia; e se nenhum dos dois pode concretizar-se, devido à impenetrabilidade (ao isolamento) de tudo que não for cosa mentale, ao menos o fracasso da posse terá, talvez, a nobreza do que é trágico, enquanto que a tentativa de se comunicar onde não é possível qualquer comunicação não passa de vulgaridade simiesca ou horrendamente cômica, como o delírio que sustenta o diálogo com a mobília.
E, ainda, que a amizade [...] é a negação da solidão irremediável à qual cada ser está condenado. A amizade pressupõe uma aceitação quase piedosa das aparências. A amizade é um expediente social [...]. Não tem qualquer significação espiritual. 147
Podemos perceber aqui, claramente, através das suas conceituações para o binômio
Amor / Amizade, que Beckett observa funções muito bem definidas no surgimento e
manutenção de uma e de outra.
Se tomarmos dois exemplos da sua obra posterior, podemos observar a influência
destes conceitos muito bem marcados na composição da linha de pensamento que irá
nortear a criação de suas personagens. O primeiro exemplo é a relação de amor entre Nagg
e Nell, no drama Fim de partida, escrito em francês, em 1956. Nagg e Nell são os pais do
protagonista, Hamm, e vivem dentro de latões de lixo, no pequeno ambiente onde todos
habitam, sob os cuidados de Clov. Nagg e Nell dirigem um ao outro pequenos gestos e
palavras de amor, sempre evocando um passado, através da memória, quase como um
meio de sobrevivência deste amor. Falar do amor alimenta o amor. Falar do passado
alimenta o futuro e os afasta da consciência fatal do presente.
NELL (elegíaca) – Ah, ontem! 148
Este suspiro elegíaco ao “ontem” é como um refrão que se repete, durante uma
cena que beira o patético: os velhos Nagg e Nell, cada um em seu latão, procuram
147 BECKETT. Proust. Op. Cit. p. 67. 148 BECKETT. Fim de partida. Tradução e apresentação de Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 57, 64.
reacender a chama da sua paixão. Falar de um passado é reescrevê-lo, criando memórias
de uma felicidade no passado, para tornar o presente suportável.
NELL – Que foi, meu velho? (Pausa.) Hora do amor? NAGG – Você estava dormindo? NELL – Ah não! NAGG – Um beijo! NELL – Não dá. NAGG – Vamos tentar. As cabeças tentam com esforço aproximar-se, não chegam a se tocar, separam-se. NELL – Por que esta comédia, todos os dias? 149
Um outro exemplo, que pode ser entendido como o valor da amizade associada à
covardia é, perto do final, o argumento que Hamm utiliza para tentar convencer Clov a não
abandoná-lo. Hamm utiliza um argumento que estabelecerá uma relação da amizade com a
piedade. A necessidade da amizade como meio de sobrevivência, através da pena.
HAMM – [...] (Pausa. Tom profético, com volúpia) Um dia você ficará cego, como eu. Estará sentado num lugar qualquer, pequeno ponto perdido no nada, para sempre, no escuro, como eu. (Pausa.) Um dia você dirá, estou cansado, vou me sentar, e sentará. Então você dirá, tenho fome, vou me levantar e conseguir o que comer. Mas você não levantará e nem conseguirá o que comer. (Pausa.) Ficará um tempo olhando a parede, então você dirá, vou fechar os olhos, cochilar talvez, depois vou me sentir melhor, e você os fechará. E quando reabrir os olhos, não haverá mais parede. (Pausa.) Estará rodeado pelo vazio do infinito, nem todos os mortos de todos os tempos, ainda que ressuscitassem, o preencheriam, e então você será como um pedregulho perdido na estepe. (Pausa.) Sim, um dia você saberá como é, será como eu, só que não terá mais ninguém, porque você não terá se apiedado de ninguém e não haverá mais ninguém de quem ter pena.150
Porém, o valor da amizade como covardia pode ser exemplificado mais largamente
na relação entre os dois vagabundos de Esperando Godot. Vladimir e Estragon se
suportam por necessidade e covardia.
VLADIMIR – Quando eu penso ... em todos estes anos ... eu me pergunto o que é que você seria sem mim. (Decidido.) Você seria um feixe de ossos, nesta altura dos acontecimentos. Sem dúvida. 151
A amizade entre Vladimir e Estragon tem apenas a utilidade de mantê-los em
alguma segurança. Qualquer possibilidade de aprofundamento da relação, no sentido de
um abrir sua subjetividade para o outro, é imediatamente rechaçada, como pode ser visto,
149 BECKETT. Op. Cit. p. 57. 150 Ibid. p. 86. 151 BECKETT. Esperando Godot. Op. Cit. p. 10.
depois do episódio no qual Estragon, que esteve dormindo, deseja contar um sonho a
Vladimir.
ESTRAGON – Tive um sonho. VLADIMIR – Não me conte. ESTRAGON – Sonhei que... VLADIMIR – Não conte! ESTRAGON (num gesto que abarca o Universo) – Isto aqui lhe basta, não é?
(Silêncio.) Você não é gentil, Didi. Se eu não contar meus pesadelos particulares para você, vou contar para quem?
VLADIMIR – Que eles fiquem particulares. Você sabe muito bem que eu não os suporto.
ESTRAGON (friamente) – Às vezes me pergunto se não seria melhor que a gente se separasse.
VLADIMIR – Você não iria muito longe. ESTRAGON – Na verdade, seria uma atitude inconveniente, muito inconveniente.
(Pausa.) Você não acha, Didi, que seria muito inconveniente? (Pausa.) 152
Desta maneira, percebemos que, a partir da leitura crítica da obra de Marcel Proust,
Beckett encontra o esteio para fundamentar o eixo moral e ético de sua escrita. As relações
entre o Tempo (Krónos) e seus dois auxiliares, o Hábito (Éthos) e a Memória (Mnéme),
criam uma equação que dá um valor ao binômio Amor / Amizade (Philía).
3.5 O TERCEIRO ENSAIO: A PINTURA DE PIERRE TAL COAT, DE ANDRÉ MASSON
E DE BRAM VAN VELDE. EM BUSCA DO NADA
Nos três diálogos com Georges Duthuit, publicados em 1949, Beckett é argüido
ostensivamente sobre o trabalho dos pintores modernos Pierre Tal Coat, André Masson e
Bram Van Velde. Logo no primeiro diálogo, Beckett admite que o artista deva preferir “a
expressão de que não há nada a expressar, nada com que expressar, nada a partir do que
expressar, nenhuma possibilidade de expressar, nenhum desejo de expressar, aliado à
obrigação de expressar”.153
152 BECKETT. Esperando Godot. Op. Cit. p. 23-24. 153 BECKETT. Três diálogos com Georges Duthuit (1949). Tradução de Fábio de Souza Andrade. In.: ANDRADE, Fábio de Souza. Samuel Beckett: O silêncio possível. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. p.175. Fábio de Souza Andrade ainda acrescenta uma nota explicativa, chamando atenção que a tradução perde o sentido positivo da formulação original, que a necessidade da dupla negação mascara em português: nothing to express significa não apenas que não há nada a expressar, mas também que há justamente este nada a ser expresso.
Esta prerrogativa se torna quase como um axioma da peça Esperando Godot,
evidenciado logo na primeira frase dita em cena:
ESTRAGON – Nada a fazer. 154
No último diálogo com Duthuit, Beckett argumenta que
Van Velde é o primeiro a desistir deste automatismo estetizado, o primeiro a admitir que ser artista é falhar, como ninguém ousou falhar, que o fracasso é o seu mundo e que recuar diante dele é deserção [...] incapaz de agir, obrigado a agir, ele gera um ato expressivo, mesmo que apenas de si mesmo, de sua impossibilidade e de sua obrigatoriedade.155
Nesses escritos críticos, criados anteriormente à sua produção maciça, Beckett
parece nos afirmar que, se o artista deseja dizer a verdade, ele deve começar como Górgias
de Lentini156 começou, admitindo que não sabemos nada e que não possuímos meios
eficazes de expressar esta ignorância. Este ‘nada’, este zero, pode ainda ser usado como
ponto de partida se nós desistirmos da pseudo-clareza e nos lançarmos ao novo, em
direção a uma arte honesta que contemple as questões em vez de re-manufaturar as
mesmas respostas rápidas e gastas.
Mas este ‘nada’ a que Beckett se refere deve ser compreendido no sentido que
Kierkegaard nos oferece: o ‘nada’ que o homem encara na sua crise de desespero. Antes
de poder sair desta armadilha, ele precisa admitir que as possibilidades são infinitas, e que
nada é certo. É apenas com a disposição de encarar a possibilidade do ‘nada’ que o homem
pode encontrar a Eternidade.
Beckett irá retomar a questão do binômio tentar / falhar na novela Pioravante
marche, escrita em inglês, em 1983. “Tudo desde sempre. Nunca outra coisa. Nunca ter
154 BECKETT. Esperando Godot. Op. Cit. p. 9. 155 ANDRADE, Fábio de Souza. Samuel Beckett: O silêncio possível. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. p.175. 156 Górgias de Lentini (483 – 375 a.C.), filósofo siciliano da Antigüidade, criou a seguinte formulação: Nada tem existência real; mesmo que existisse, não poderia ser conhecido; e mesmo que pudesse ser conhecido, não poderia ser comunicado.
tentado. Nunca ter falhado. Não importa. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar
melhor”.157
Percebe-se claramente que o eixo de estrutura, o ético e o temático, assim como o
eixo estético, presentes na escrita beckettiana, são criados a partir da experiência de
Beckett como crítico. Todo o mundo circular de Joyce, apontado em Our exagmination
round his factification for incamination of Work in progress; os pólos de danação e
redenção relativos ao tempo em Proust; e ainda as discussões sobre o valor do ‘nada’
enquanto motivo para a criação artística e sobre a impossibilidade do homem criar sobre
este ‘nada’, que estão presentes nos diálogos com Duthuit; tudo isso inscreve Beckett na
situação-limite do crítico que, ao analisar a obra de outros artistas, vê, como única
possibilidade de saída para suas posições estéticas, atuar ele próprio como artista, para
construir uma obra que dê conta de seus impasses estéticos e éticos.
Quando se consideram os depoimentos críticos de Beckett dentro do contexto de
sua criação artística, pode-se formular uma consistente estética beckettiana. O homem
contemporâneo está paralisado pela confusão tanto do seu mundo interior quanto do
mundo exterior. Sua personalidade é fragmentada; sua consciência está em conflito e em
constante fluxo. Ele é incapaz de ter certeza nas suas percepções ou mesmo expressar as
percepções de modo a estar habilitado a se comunicar. De que maneira então ele pode agir
como um Eu único? O mundo exterior, privado de idéias absolutas, longe tanto do paraíso
quanto do inferno, está imerso num estado de caos ainda maior.
157 BECKETT. Pioravante marche. Tradução de Miguel E. Cardoso. Lisboa: Gradiva, 1988. p. 7.
4 ELEUTHERIA
We must prevent Eleutheria at all costs.
Samuel Beckett, em carta ao diretor teatral Alan Schneider, datada de 4 de maio de
1975.
4.1 A EQUAÇÃO BECKETTIANA EM ELEUTHERIA
A equação beckettiana nunca é simples. Nosso olhar se voltará agora para uma
peça teatral muito pouco conhecida, tanto no meio literário quanto no mundo do teatro
como um todo. O motivo para que isto aconteça é que esta peça jamais foi encenada e,
mesmo num futuro próximo, haverá pouca chance de ser levada aos palcos, simplesmente
porque esta peça foi banida do Inventário de Samuel Beckett, The Beckett Estate. E ainda
mais, apesar de ter sido escrita há quase 60 anos, apenas em 1995 uma versão integral do
texto foi publicada no original em francês e traduzida com certa polêmica para o inglês. 158
Escrita em francês, entre os meses de janeiro e março de 1947, Eleutheria foi a
primeira peça de Samuel Beckett, seguida por Esperando Godot, de 1948. Segundo o
estudioso holandês Marius Buning, Eleutheria foi preterida pelo encenador francês Roger
Blin – que preferiu realizar a primeira montagem de Godot – porque a peça tinha muitas
personagens (o que necessitaria de um elenco mais numeroso) e tinha exigências
cenográficas mais dispendiosas, ao contrário de Esperando Godot, cuja montagem admitia
apenas cinco atores e praticamente nenhum cenário.
A advertência escrita pelo editor Jérôme Lindon para a edição francesa de
Eleutheria, de 1995, deixa clara a recusa de Beckett em publicar a peça. Segundo Lindon:
Samuel Beckett não queria que se publicasse Eleutheria. Foi a primeira peça que ele havia escrito em francês, no final dos anos 40. [...] Ele me deu Eleutheria e Esperando Godot para ler. Se ele aceitou voluntariamente que se publicasse a segunda de suas peças em 1952, um pouco antes da montagem de Roger Blin no Teatro Babylone, ele se opôs à publicação de Eleutheria assim como eventuais representações no palco. [...] Ele falou ainda, poucos dias antes de sua morte, a alguns amigos íntimos, a propósito de um projeto de publicação de suas Obras Completas: “Em nenhuma circunstância deve figurar Eleutheria”. 159
158 A polêmica sobre as traduções em inglês de Eleutheria é exposta na palestra Eleutheria revisited, ministrada por Marius Buning, presidente da Dutch Samuel Beckett Society (Sociedade Holandesa de Samuel Beckett), em 1997, na qual ele apresenta e compara a tradução norte-americana de Michael Brodsky (segundo ele, repleta de erros de tradução e estilo) com a versão britânica escrita por Barbara Wright (cuja tradução, segundo Buning, é exemplarmente mais bem sucedida.) 159 LINDON, Jérôme. Avertissment. In.: BECKETT, Samuel. Eleutheria. Paris: Les Éditions de Minuit, 1995. p. 7. [Tradução do autor desta dissertação]
Sejam quais forem os motivos do autor para esta rejeição, não nos cabe aqui
especular. Apenas desejamos firmar nossa visão de que Eleutheria é definitivamente
muito melhor do que o próprio Beckett considerou.
Nossa leitura deverá seguir o seguinte método: em primeiro lugar, faremos a
análise do significado do título da peça, além de uma breve apresentação das personagens,
o significado de seus nomes e suas ações principais; em seguida, iremos apresentar uma
leitura de cada um dos três atos, buscando identificar na escritura de Eleutheria os três
eixos apontados no segundo capítulo desta dissertação. Desta maneira, buscaremos
apontar em quais momentos da peça podemos identificar: o eixo formal, representado pela
ação circular herdada de James Joyce; o eixo moral e ético, demonstrando como estão
representados o Tempo, o Hábito, a Memória, o binômio Amor/Amizade, assim como a
Música, de acordo com a análise beckettiana da obra de Marcel Proust; e ainda as relações
de Eleutheria com o Nada, numa articulação com o eixo estético observado nos
comentários de Beckett sobre os pintores modernos. Ao mesmo tempo, iremos proceder a
um exame da peça, buscando as referências para a afirmação de que o estupor do
protagonista, relacionado aos elementos da esquizofrenia e da alexitimia, funciona como
Hýbris e, portanto, ocasiona a tragédia na sua ação.
4.2. A IMPORTÂNCIA DO NOME
A ação de Eleutheria, diferente de todas as outras peças de Beckett, se passa em
Paris. Se observarmos as outras peças de Beckett, percebemos que todas se passam em
algum lugar não específico. Esperando Godot se passa à beira de um deserto, cuja
descrição, na indicação de cenário sugere apenas “Uma estrada. Uma árvore”.160 A mesma
indefinição de local se verifica em Fim de partida: “Interior sem mobília. Luz
160 BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução de Flávio Rangel. São Paulo: Abril Cultural, 1976. p. 9.
cinzenta.”161 Em Eleutheria é diferente. O autor especifica, logo após a lista de
personagens: “LUGAR: Paris. TEMPO: Três tardes de inverno consecutivas.”162 Segue-se
uma longa descrição de um cenário dividido em duas partes. De um lado, o interior de
uma pequena sala na casa da família Krap, cuja riqueza e decoração elegante devam
contrastar com a outra metade do palco, o quarto de pensão onde vive Victor – filho dos
Krap – onde não há nada, apenas uma pequena cama. Além disso, logo ficamos sabendo
que a peça é composta de três atos. Nenhuma outra peça escrita por Samuel Beckett possui
três atos.163 A ação de Eleutheria se passará em Paris, com referências diretas a ruas que
realmente existem.
Segundo Martin Esslin,
A primeira peça de Beckett, Eleutheria [...] se ocupa dos esforços de um jovem para se libertar de sua família e de toda obrigação social. Em Eleutheria [...] o palco é dividido em dois: à direita, o herói jaz em sua cama, apático e passivo; à esquerda, sua família e amigos discutem seu caso sem jamais dirigir-se diretamente a ele. Aos poucos, a ação vai mudando da esquerda para a direita e finalmente o herói consegue reunir energia suficiente para libertar-se de seus grilhões e separar-se completamente da sociedade. 164
Porém, a peça funciona de maneira um pouco diferente deste esquema sugerido por
Esslin. São três atos. Apesar de o palco estar sempre dividido em duas partes, a ação do
primeiro se passa totalmente na sala de estar da casa da família Krap. No segundo ato, a
ação é deslocada para o quartinho de Victor, assim como no terceiro e último ato. Beckett
deixa clara a sua intenção ao colocar esta distribuição de cenário na indicação em que
descreve a cenografia da peça: “O quarto de Victor move-se imperceptivelmente em
direção ao salão dos Krap, como a sujeira em direção ao limpo, o sórdido em direção ao
respeitável, o vazio em direção ao estorvado”.165
161 BECKETT, Samuel. Fim de partida. Tradução e apresentação de Fábio de Souza Andrade. São Paulo, Cosac & Naify, 2002. p. 37. 162 BECKETT, Samuel. Eleutheria. Paris: Les Éditions de Minuit, 1995. p. 17. 163 À exceção de Esperando Godot e Dias felizes (Happy days, escrita em inglês, em 1961, e depois traduzida para o francês pelo próprio autor sob o título de Oh, les Beaux jours), ambas com dois atos cada, toda a dramaturgia de Beckett será limitada a peças em apenas um ato único. 164 ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. p. 31-32. 165 BECKETT. Eleutheria. Op. cit. p. 13.
O título da peça já sugere o tema que será tratado no drama: a liberdade. Segundo
Ludovic Janvier, “é da liberdade que trata o debate que opõe Victor Krap [...] à
família”166. A palavra Eleutheria vem do grego eleútheros, e funciona como elemento de
composição, significando ‘livre’, ‘liberdade’. Portanto, eleutheria significa ‘libertação’.167
Desta maneira, podemos aferir que a ação de Victor Krap, sua inação, é uma estratégia de
libertação, principalmente de sua família.
A lista de personagens que se opõem a Victor deve ser estudada com cuidado. Os
nomes destas personagens trazem pequenos trocadilhos em inglês que não podem passar
desapercebidos. O primeiro deles é o M. Henri Krap, pai de Victor, um velho escritor
“cínico, de humor afiado, lascivo” que, cansado do casamento e da própria vida, ao se
saber acometido de um câncer na próstata, espera conformado pela morte breve e
inevitável.
M. KRAP – [...] Eu sou a vaca que, diante dos portões do abatedouro, compreende todo o absurdo das pastagens. Seria melhor ter pensado nisso mais cedo, lá, quando estava no pasto verde e tenro. Tanto faz. A ela resta ainda atravessar o pátio. Isto, ninguém pode tirar dela.168
O senhor Krap é a personagem de maior destaque no primeiro ato da peça. É ele
que conduzirá a ação do ato até o final surpreendente. É importante notar o significado da
sonoridade do nome ‘Krap’ que se pronuncia da mesma maneira que ‘crap’, cujo
significado, em inglês vulgar, é ‘merda’, ‘bosta’, e ainda na forma de verbo ‘to crap’ que
significa ‘defecar’169. Assim, Beckett já inicia sua lista de personagens com um trocadilho
infame. O próprio senhor Krap irá ressaltar o significado vulgar de seu sobrenome, quando
é interrogado sobre qual tipo de literatura ele prefere escrever. Ele cinicamente responde:
“Ao gênero merda”170. Beckett iria escrever outro personagem com o mesmo sobrenome,
166 JANVIER, Ludovic. Beckett. p. 73. 167 Fonte: Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0. 168 BECKETT. Eleutheria. Paris: Les Éditions de Minuit, 1995. p.29. 169 Fonte: Novo Michaelis Dicionário Ilustrado Inglês-Português. Vol. 1. 41.ed. 170 BECKETT. Eleutheria. Op. cit. p. 43.
acrescido apenas de um ‘p’ ao final. Na peça Krapp´s last tape, escrita em inglês, em
1958, o protagonista é “um velho de aspecto cansado: Krapp”171.
Seguindo a lista de personagens, encontra-se Mme. Violette Krap, a mãe de Victor.
Igualmente cansada do casamento, suas preocupações se concentram em Victor e em seu
próprio corpo. A senhora Krap sofre com um útero em prolapso172. Seu esforço em trazer
o filho de volta pra casa é tão grande que ela chega a contratar um torturador chinês,
chamado Tchoutchi, para ameaçar o filho e forçá-lo a retornar. Ela é definida pelo marido
das maneiras mais hostis e sarcasticamente mordazes. Ele a chama de: “aquela massa de
órgãos gastos”173; e ainda se refere a ela como: “minha mulher, aquela catástrofe”174.
O próximo a figurar na lista de personagens é Victor. Filho dos Krap, Victor
abandonou a casa da família, os estudos e a noiva, mora num quarto de pensão decadente e
passa os dias prostrado em sua cama ou, quando tem fome, revira latas de lixo em um
bairro decadente de Paris. Ele é o que se pode chamar de um ‘eleuterômano’: uma pessoa
obcecada pela liberdade. Victor, em inglês, significa ‘vencedor’175. Vence, através da
prostração, a força que tenta subjugá-lo e conquista sua libertação, pagando o preço da
tragédia em sua família.
Os trocadilhos e jogos de palavras com os nomes das personagens prosseguem com
Mme. Meck176, amiga da família, que faz uma visita aos Krap, preocupada com a situação
de Victor. Viúva de um general, ela se orgulha de as últimas palavras de seu falecido
esposo terem sido pela França:
MME. MECK – “Vive la France!”. Depois, entrou em coma.177
171 BECKETT. Krapp´s last tape. In.: The complete dramatic works. Londres: Faber & Faber, 1986. p. 215. 172 A versão francesa da peça utiliza o formato ‘bas-ventre qui tombe’, a tradução de Barbara Wright sugere ‘prolapsed womb’. Optamos traduzir em português, a partir da versão inglesa. 173 BECKETT. Eleutheria. Op. cit. p. 39. 174 BECKETT. Eleutheria. Op. cit. p. 57. 175 Fonte: Novo Michaelis Dicionário Ilustrado Inglês-Português. Vol. 1. 41.ed. 176 O significado da palavra ‘mec’, em francês, é ‘alcoviteiro’, ‘gigolô’. Fonte: Dictionnaire de l'Académie française, 9.ed. Version informatisée. 177 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 35.
No segundo ato da peça, Mme. Meck tentará inutilmente tirar Victor da pensão
onde ele se encontra, usando a força física de seu chofer e de uma espécie de guarda-
costas, ex-criado de seu falecido marido.
Há ainda o casal formado pelo Dr. Piouk e por Marguerite, irmã da Sra. Krap. A
palavra ‘piouk’, pronunciada em francês, tem a mesma sonoridade da palavra inglesa
‘puke’, cujo significado é ‘vômito’178. O Dr. Piouk é médico e se diz um interessado pela
humanidade, cujos problemas ele sugere resolver da seguinte maneira, como ele expressa
perto do final do primeiro ato da peça:
DR. PIOUK – [...] Eu proibiria a reprodução. Eu aperfeiçoaria os preservativos e outros meios de anticoncepção e generalizaria o seu uso. Eu criaria um corpo de médicos para praticar o aborto, controlado pelo Estado. Condenaria à pena de morte todas as mulheres culpadas por dar crianças à luz. Afogaria os recém-nascidos. Militaria a favor da homossexualidade, e eu mesmo me daria como exemplo. E, para ativar melhor as coisas, eu encorajaria, por todos os meios, o recurso da eutanásia, sem, contudo, exigí-la como uma obrigação. É isso, em linhas gerais. 179
O Dr. Piouk aparecerá no segundo ato com uma sugestão de oferecer uma pílula de
veneno para Victor, a fim de que o jovem, ao ver uma possibilidade de realmente morrer,
seja ‘curado’ de sua melancolia. Será justamente Mme. Piouk, irmã de Mme. Krap, que
dará a definição para o estado de Victor e apresentará a angústia da família com aquela
situação, num diálogo com o senhor Krap.
MME. PIOUK – Mas alguma coisa precisa ser feita! Nós não podemos deixá-lo daquele jeito.
M KRAPP – De que jeito? MME. PIOUK – Naquele estado de ... de inércia sórdida. 180
É justamente nesta ‘inércia sórdida’ que identificamos o estupor que acomete Victor Krap.
Completando o quadro de personagens cujos nomes possuem um duplo sentido,
está Mademoiselle Olga Skunk, noiva de Victor. A palavra ‘skunk’ possui três
significados, em inglês: no sentido literal, é o nome de um animal extremamente mal-
cheiroso, que no Brasil é chamado de ‘jaritataca’; no sentido coloquial, significa ‘pessoa
178 Fonte: Novo Michaelis Dicionário Ilustrado Inglês-Português. Vol. 1. 41.ed. 179 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 50. 180 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 33.
vil’; e, como gíria, tem o significado de ‘esculhambado’181. É a Olga Skunk que o senhor
Krap fará um pedido em relação a seu filho.
M KRAP – Eu peço apenas que você diga sim. MLLE SKUNK – Dizer sim? A quê? M KRAP – Um pequeno pedido. MLLE SKUNK – Não, não, não posso. M KRAP – Prometa. Eu estou morrendo. (Silêncio.) Finja que está viva, pelo
meu filho. MLLE SKUNK – Sim, sim, tudo que o senhor quiser. M KRAP – Pra que ele possa parecer vivo. MLLE SKUNK – Sim, sim, eu prometo. M KRAP – Você não entendeu. MLLE SKUNK – Eu prometo, eu prometo. 182
Assim, a lista de personagens oriundos da classe alta está completa. Curiosamente,
as outras personagens da trama, representantes das classes menos abastadas, não possuem
trocadilhos em seus nomes. Há um Espectador que, no terceiro ato, intervirá de maneira
marcante. Ele não apenas tenta persuadir Victor a se explicar, como outros tentaram antes,
mas também vocifera contra a própria peça Eleutheria, chamando-a de “porcaria”183 e
ironiza com o nome de seu autor, depois de ler o programa da peça:
ESPECTADOR – Beckett (ele deve pronunciar: Béké.) Samuel. Béké, Béké, isso deve ser um cruzamento de judeu da Groenlândia com um caipira de Auvergnat.184
Há ainda: Tchoutchi, o torturador chinês já mencionado anteriormente; Mme Karl,
a senhoria da pensão onde Victor vive; Thomas, o chofer da Mme Meck que, juntamente
com Joseph, o guarda-costas, ameaçam Victor em seu quarto; Jacques e Marie, criados da
casa dos Krap, que estão noivos; e o Ponto do teatro.
Porém, a personagem mais importante a partir do segundo ato, que estará
praticamente o tempo todo ao lado de Victor será o Vidraceiro, que foi chamado para fazer
reparos no vidro da janela que foi deliberadamente quebrada por Victor com seu sapato. O
181 Fontes: Novo Michaelis Dicionário Ilustrado Inglês-Português. Vol. 1. 41.ed. e Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0. 182 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 57-58. 183 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 136. [O termo utilizado por Beckett é ‘navet’, cujo significado literal é ‘nabo’ mas pode ser compreendida como ‘coisinha sem importância’, a tradução de Barbara Wright opta por ‘ rubbish’, cujo significado é ‘porcaria’.] 184 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 136.
Vidraceiro, “como representante do senso-comum da humanidade e homem prático,
questiona, numa série de interrogações, os motivos que levaram Victor a optar por aquela
vida sórdida, mas não obtém sucesso”.185 A função dramática do Vidraceiro é, por vezes, a
de uma personagem-coro, servindo como intermediário entre o que se passa no palco e os
questionamentos da platéia. Juntamente com Michel, seu quase letárgico filho de dez anos
de idade, o Vidraceiro será protagonista de um dos diálogos mais tocantes, que finaliza o
segundo ato da peça e que, em muitos elementos, se assemelha com o diálogo de Vladimir
com o Menino, em Esperando Godot.
V IDRACEIRO – [...] Diga, Michel. M ICHEL – Sim, papai. V IDRACEIRO – Você está feliz comigo? M ICHEL – O que é isso, feliz, papai? V IDRACEIRO – Qual a sua idade? M ICHEL – Dez anos, papai. V IDRACEIRO – Dez anos. (Silêncio.) E você não sabe o que é isso que eu te
disse, feliz? M ICHEL – Não, papai. V IDRACEIRO – Sabe, quando tem alguma coisa que te dá prazer. A gente se sente
bem, não é? M ICHEL – Sim, papai. V IDRACEIRO – Então, é mais ou menos isso – feliz. (Silêncio.) E aí, você é feliz? M ICHEL – Não, papai. V IDRACEIRO – E por quê? M ICHEL – Não sei, papai. V IDRACEIRO – É porque você vai pouco à escola? M ICHEL – Não, papai, eu não gosto da escola. V IDRACEIRO – Você preferia brincar mais com seus amiguinhos? M ICHEL – Não, papai, eu não gosto de brincar. V IDRACEIRO – Eu não sou malvado com você, sou? M ICHEL – Ah, não, papai. V IDRACEIRO – E o que é que você gosta de fazer? M ICHEL – Não sei. V IDRACEIRO – Como é que não sabe? Tem que haver alguma coisa. M ICHEL (após uma reflexão) – Eu gosto quando eu estou na cama, antes de
dormir. V IDRACEIRO – E por quê? M ICHEL – Não sei, papai. Silêncio. V IDRACEIRO – Aproveite, então, ao máximo. M ICHEL – Sim, papai. Silêncio. V IDRACEIRO – Venha cá pra eu te dar um beijo. (Michel avança. O Vidraceiro
beija-o no rosto.) Você gosta quando eu beijo você? M ICHEL – Não muito, papai. V IDRACEIRO – E por quê?
185 BUNING, Marius. Eleutheria revisited. Transcrição de palestra ministrada no Teatro Quijano. Ciudad Real, Espanha. 2 de dezembro de 1997. Disponível em <http://samuel-beckett.net/Eleutheria_Revisited.html Acesso em 10 de janeiro de 2005. [Tradução do autor desta dissertação.]
M ICHEL – Me pinica, papai. V IDRACEIRO – Viu, você soube dizer por que é que você não gosta quando eu te
beijo. M ICHEL – Sim, papai. V IDRACEIRO – Então, diga por que você gosta quando você está na cama. M ICHEL (após uma reflexão) – Eu não sei, papai. Silêncio. V IDRACEIRO – Você ainda está com fome? M ICHEL – Sim, papai. V IDRACEIRO (entregando-lhe seu sanduíche) – Tome, coma isso. M ICHEL (hesitante) – Mas este é seu, papai. V IDRACEIRO (com energia) – Coma! Silêncio. M ICHEL – O senhor não está com fome, papai? V IDRACEIRO – Não. M ICHEL – E por quê? Silêncio. V IDRACEIRO – Eu não sei, Michel. Silêncio. Cortina. 186
E assim termina o segundo ato de Eleutheria. Em Esperando Godot, o diálogo
se dá quase como um reflexo, um eco, desta cena anterior, da seguinte maneira:
VLADIMIR – E por que é que ele [Godot] não bate em você? O MENINO – Não sei não, senhor. VLADIMIR – Ele deve gostar de você. O MENINO – Não sei não, senhor. VLADIMIR – Ele dá bastante comida pra você? (O menino hesita.) Dá ou não dá? O MENINO – Dá sim, senhor. VLADIMIR – Você não é infeliz? (O menino hesita.) Hein? Não ouviu? O MENINO – Ouvi sim, senhor. VLADIMIR – E então. O MENINO – Não sei não, senhor. VLADIMIR – Você não sabe se é infeliz ou não? O MENINO – Não, senhor. VLADIMIR – É como eu. [...] 187
Vêem-se, no contraste entre estas duas cenas, algumas semelhanças de temática e
forma. Da mesma maneira, haverá esta semelhança com outras peças de Beckett,
posteriores à escritura de Eleutheria.
4.3 ELEUTHERIA: ENTRE CÍRCULOS INTERNOS, VAUDEVILLE E META-DRAMA
A peça começa com a senhora Krap, imóvel, sentada diante de uma mesa. Esta
primeira imagem da peça será evocada, em 1980, na peça Rockaby, cujo início apresenta a
mesma força imagética de uma mulher “prematuramente envelhecida. Cabelos grisalhos 186 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 113-115. 187 BECKETT. Esperando Godot. Op. Cit. p. 94-95.
desgrenhados. Olhos imensos na face branca sem expressão. [...] Completamente
imóvel”.188 Em Eleutheria, o silêncio da cena é quebrado por batidas na porta. É o criado
Jacques anunciando a chegada da irmã da senhora Krap, a senhora Piouk. Após pedir o
chá para Marie, a criada, noiva de Jacques, as irmãs começam a conversar. A senhora
Piouk informa à irmã que está recém casada com um médico, o Dr. André Piuok e, logo
em seguida, deseja saber como está Victor. É a primeira vez que ouvimos falar em seu
nome:
MME PIOUK – Como está Victor? MME KRAP – Ainda na mesma, ainda lá, naquele buraco dele. Nós nunca o
vemos. (Pausa.) Não vamos falar nele. 189
Logo após sermos informados sobre alguns detalhes do Dr. André Piouk, Jacques
retorna informando a chegada da Mme Meck, amiga da família. As três senhoras, juntas,
se assemelham em muito às três mulheres sentadas num banquinho, na peça Come and go.
Este pequeno drama de apenas cinco minutos de duração, escrito em inglês, em 1965, nos
apresenta Flo, Vi e Ru, três mulheres vestidas de maneira formal, cada uma de uma cor
diferente. Alternadamente, cada uma das três sai de cena, deixando as outras duas a sós.
Neste momento, uma das duas em cena sussurra um segredo sobre a que saiu. Quando a
que saiu retorna, elas mudam de assunto. Todas as três possuem um segredo que jamais
deveria ser revelado para as outras. No caso das senhoras Krap, Meck e Piouk, ficamos
sabendo que o senhor Krap está com problemas na próstata e que tanto a senhora Meck
quanto a senhora Krap possuem úteros em prolapso. Logo em seguida, temos mais
informações sobre o estado de espírito de Victor. Ele quase não sai da cama, apesar de não
estar doente e, quando tem fome, revira latas de lixo no bairro de Passy. Ficamos sabendo
também que a senhora Krap, mensalmente, envia-lhe dinheiro, para que ele sobreviva.
Neste momento, entra o senhor Krap.
188 BECKETT. Rockaby. In.: The complete dramatic works. Londres: Faber & Faber, 1986. p. 433. 189 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 23.
Esta seqüência inicial, semelhante a uma cena de vaudeville, com seus fuxicos e
tiradas irônicas, na verdade parece ser mais que apenas uma tradicional apresentação de
personagens. As cenas da sala de estar da família Krap são escritas num estilo que nos
remete à Cantora careca, obra-prima de Eugène Ionesco. Representada pela primeira vez
em 1950, em Paris, A cantora careca é uma peça repleta de jogos de palavras e trocadilhos
cuja ação se passa numa noite, na sala de estar do Sr. e Sra. Smith – um casal de ingleses
da classe-média alta – quando eles recebem a visita de outro casal, os Martin. Eles se
engajam em cenas cujos diálogos parecem uma “conversa desordenada e sem nexo [...]
aparentemente vazia de enredo ou narrativa”.190 Porém, as semelhanças entre Eleutheria e
A cantora careca encerram-se aqui, pois a peça de Beckett não possui, segundo Marius
Buning, “o mesmo frenesi e colapso dramático de Ionesco”.191
Toda a seqüência inicial prepara a cena para a entrada da grande personagem do
primeiro ato: o senhor Krap. Num certo sentido, o senhor Krap é um espelho de seu filho,
Victor. Ambos são – ou foram – escritores, e o senhor Krap insinua que o que o filho está
fazendo agora teria sido um antigo desejo seu, cuja realização cabe agora a Victor. Apesar
de não termos uma ação circular – como vemos claramente em Esperando Godot, Fim de
partida e Dias felizes, por exemplo –, os círculos de Eleutheria parecem ser internos, não
na ação, mas na psicologia das personagens, principalmente na ligação que se dará entre o
senhor Krap e Victor, pai e filho.
A postura do senhor Krap em relação à opção do filho é clara quando ele afirma:
M KRAP – Meu filho está no direito dele.192
O drama segue. Numa conversa com o Dr. Piouk, a quem o senhor Krap acaba de
ser apresentado, há um diálogo muito interessante que nos remete à idéia de meta-drama,
190 ESSLIN. O teatro do absurdo. Op. Cit. p.278. 191 BUNING, Marius. Eleutheria revisited. Op. cit. 192 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 36.
onde as personagens parecem estar cientes de que estão representando papéis em uma
peça:
M KRAP – Eu me pergunto qual será a sua função nesta comédia. DR. PIOUK (após uma madura reflexão) – Espero ser útil de alguma maneira.
[...] E o senhor, caro senhor, seu papel está bem delineado? M KRAP – Ele foi eliminado. DR. PIOUK – Mas o senhor ainda está no palco. M KRAP – Pode se dizer que sim. DR. PIOUK – Se o senhor fizer um pouco de esforço, poderá conseguir manter os
patetas entretidos.193
Segue-se a este diálogo outro semelhante, entre as mesmas personagens, cuja
temática é o fato de o senhor Krap ter sido escritor. Segundo Ludovic Janvier, “fazendo os
personagens escritores, fazendo-se escritor, fazendo coincidir o traçado da escrita com o
contrário, a reivindicação de liberdade, Beckett inscreve e salva a única liberdade
possível”194. Porém, esta liberdade não é oferecida a Henri Krap.
DR. PIOUK – O senhor é escritor, monsieur? M KRAP (indignado) – Com que direito você ... DR. PIOUK – Percebe-se isto, pelo modo como o senhor se expressa. M KRAP – Vou ser franco com você. Eu fui escritor. [...] DR. PIOUK – De qual gênero. M KRAP – Não compreendi. DR. PIOUK – Estou falando dos seus escritos. A qual gênero o senhor dava
preferência? M KRAP – Ao gênero merda. MME PIOUK – É mesmo? DR. PIOUK – Em prosa ou em verso? M KRAP – Um dia um, um dia outro. DR. PIOUK – E o senhor considera agora que sua obra esteja completa? M KRAP – Deus me esvaziou. DR. PIOUK – O senhor não se sente tentado a escrever um pequeno livro de
memórias? M KRAP – Isso estragaria minha agonia. 195
E o final do primeiro ato nos conduz a três cenas protagonizadas pelo senhor Krap
que, como Hamm, de Fim de partida, está impossibilitado de levantar-se e sair de sua
cadeira. Após a saída de todos, o senhor Krap se vê sozinho com a senhorita Skunk.
Aproveitando este momento, ele a faz tirar o casaco e subir a saia, numa cena que sugere
abuso sexual. No meio da cena, ela o chama, sem se dar conta, de pai. Em seguida, ele
193 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 39-40. 194 JANVIER, Ludovic. Beckett. Tradução de Léo Schlafman. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. p. 74. 195 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 43-44.
pede a ela que se finja de viva, para que seu filho pareça vivo. E, logo após, pede a ela um
beijo, que ela recusa. A chegada da senhora Krap em cena desfaz a atmosfera de abuso
sexual. Olga Skunk consegue escapar. O casal Krap mantém um diálogo que, em
determinado momento, passa a ser sobre as tentativas de aborto que a senhora Krap teria
feito, quando estava grávida de Victor.
M KRAP – [...] Quantas vezes você tentou se livrar dele? MME KRAP (com a voz baixa) – Três vezes. M KRAP – E não conseguiu nada? MME KRAP – Só enjôos. M KRAP – Só enjôos. (Pausa.) E depois você disse ... como era? ... aquele jeito
engraçado que você tinha de dizer? MME KRAP – Jeito engraçado? M KRAP – Claro... como era? ... “Já que ele está aí mesmo”. MME KRAP – “Vamos deixar ele ficar, já que ele está aí mesmo”. M KRAP (animado) – É isso! É isso: “Vamos deixar ele ficar, já que ele está aí
mesmo”. (Pausa.) A gente estava num barquinho. O seu chapéu tinha uma pluma. Eu parei de remar. A onda nos balançou. (Pausa.) A ele também, a onda balançou. (Pausa.) Você tem certeza que ele é meu?
MME KRAP (após uma reflexão) – Há, uns ... setenta por cento de chances. M KRAP – Minha cotação está aumentando. 196
Em seguida, no momento em que a senhora Krap está de saída, ele pede ainda um
beijo. Ela nega. Está atrasada para um compromisso. O primeiro ato se encerra com uma
longa cena entre o senhor Krap e o criado Jacques que lembra, em muito, algumas
passagens de Fim de partida. A cena apresenta a íntima relação entre patrão e empregado,
em que o patrão, no caso de Eleutheria, está impossibilitado de levantar-se e o criado, por
razões sociais, jamais se sentaria na presença do patrão. Jacques sugere deixar as portas do
salão abertas para que o senhor Krap possa ouvir a música que está sendo escutada na área
de serviço e deixa o patrão sozinho, ouvindo os ecos do Quarteto Kopek, tocando o
Quarteto de cordas em lá bemol, de Schubert197. Ao contrário do que acontece na obra de
Marcel Proust, a música aqui, em vez de libertar, oprime. O senhor Krap sufoca e se agita
ao som da música de Schubert, a qual chama de “abominação”. Se, para Beckett, “a
música é o catalisador da obra de Proust. É ela que afirma, para sua descrença, a
196 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 61-62. 197 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 64. Beckett sugere, em indicação de cena, que a música toque enquanto o senhor Krap se agita, deixando-a tocar por “um bom minuto, se possível”.
permanência da personalidade e a realidade da arte. A música sintetiza os momentos de
privilégio”198, em Eleutheria, a música será motivo de aflição. Beckett não permite nem
que a música surja como válvula de escape para a pressão que ele mesmo cria. Esta
relação com a música aparecerá também em outras peças de Beckett, como é o caso de
Rough for theatre I, escrita em francês, no final dos anos 50, na qual um mendigo cego –
identificado como A – está “arranhando seu violino” numa esquina em ruínas, quando um
outro mendigo – identificado como B –, numa cadeira de rodas, chega e exclama:
B – Música! (Pausa.) Então não é um sonho. Finalmente! Nem uma visão, pois elas são mudas para mim e eu fico mudo diante delas. 199
A música de Schubert foi ainda inspiração para uma das últimas peças escritas por
Beckett, em 1982, sob encomenda da rede de televisão estatal do sul da Alemanha, a
Südeutscher Rundfunk. O título desta peça para televisão é Nacht und träume, o mesmo
título de um lied de Schubert, cujos sete últimos compassos servem como trilha musical
para esta peça sem palavras, na qual um sonhador observa o seu ‘eu’ no sonho e suas
mãos, a direita e a esquerda, movendo-se independentemente, quase como num balé
formado por 30 movimentos.
Em Eleutheria, depois de gritar para que Jacques pare a música que o incomoda, o
senhor Krap pedirá ao criado que não o abandone mais. O primeiro ato se encerra numa
pequena cena entre patrão e empregado, de efeito surpreendente. O senhor Krap, depois de
ter pedido um beijo a Olga Skunk e à sua esposa, e estes beijos lhe terem sido negados,
pedirá um beijo ao criado Jacques.
M KRAP – Jacques. JACQUES – Sim, senhor. M KRAP – Eu gostaria que você me desse um beijo. JACQUES – Certamente, senhor. Na bochecha de monsieur? M KRAP – Onde você quiser. (Jacques beija M Krap.) JACQUES – De novo, senhor? M KRAP – Obrigado.
198 BECKETT. Proust. Op. Cit. p. 99. 199 BECKETT. Rough for theatre I. In.: The complete dramatic works. Op. Cit. p. 227. [Tradução do autor desta dissertação.]
JACQUES – Muito bem, senhor. (Ele torna a erguer-se.) M KRAP – Tome. (Oferece-lhe uma nota de cem francos.) JACQUES (pegando a nota) – Oh, não era necessário, senhor. M KRAP – Sua barba pinica. JACQUES – A do senhor também pinica um pouco. M KRAP – Você beija bem. JACQUES – Eu faço o melhor que posso, senhor. (Silêncio.) M KRAP – Eu devia ter sido homossexual. (Silêncio.) O que é que você acha? JACQUES – De quê, monsieur? M KRAP – Da homossexualidade. JACQUES – Eu acho que deve ser mais ou menos a mesma coisa, senhor. M KRAP – Você é um cínico. 200
Depois de se despedir do senhor Krap, Jacques o deixa sozinho, imóvel, na sala.
Então, o senhor Krap pede:
M KRAP – Cortina. 201
É o fim do primeiro ato. No início do segundo ato, saberemos que o senhor Krap morreu
nesta noite, sozinho. Seu corpo foi descoberto por volta da meia-noite, pela senhora Krap,
imóvel, na sala.
4.4 ALEXITIMIA E ESTUPOR ENTRE A LIBERDADE E O NADA
O segundo ato se inicia no final da tarde do dia seguinte. Finalmente poderemos
ver bem o jovem Victor Krap. Ele está sozinho em seu pequeno quarto, “sordidamente
vestido”, andando de um lado para o outro. Num determinado momento, ele pára no meio
do palco, olha para o público e vai dizer alguma coisa. Mas desiste, e volta a andar de um
lado para o outro. Pára novamente, olha para a platéia e diz, “muito embaraçado,
procurando as palavras”:
V ICTOR – Eu preciso dizer que ... eu não sou ... (Ele se cala.) 202
Se levarmos em conta que já estamos bastante informados do estado de Victor e
soubemos, durante todo o primeiro ato, do processo de decadência em que ele se encontra,
vemos aqui, claramente uma intenção do autor em criar um efeito de suspensão na platéia.
200 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 65-66. 201 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 67. 202 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 71.
O protagonista, sobre o qual sabemos estar naquele estado de “inércia sórdida” há dois
anos e meio, de quem se falou praticamente durante o primeiro ato inteiro, finalmente
aparece aos olhos do público, para balbuciar de maneira vacilante que tem algo a dizer,
mas não sabe.
Deixemos um pouco de lado a ação do segundo ato para analisarmos um ponto que
consideramos fundamental para a compreensão do sentido desta obra. É para Victor que
dirigiremos nosso olhar a partir de agora. Sendo ele o pivô central da peça, é preciso fazer
algumas considerações e lançar uma luz para a compreensão de sua estrutura enquanto
personagem, levando em conta o significado do título da peça e sua obsessão pelo Nada.
Se a palavra Eleutheria significa ‘libertação’ em grego, como foi visto anteriormente, e se
a peça gira em torno da libertação de Victor, é preciso entender qual o sentido para
‘liberdade’ que Victor nos dará. E se está certo, como quer Ludovic Janvier, que “Victor
Krap reivindica [...] a liberdade de ser nada, opondo ao mundo da tagarelice, da utilidade,
dos sentimentos da procriação, sua recusa total de entrar no jogo. Contra todo o mundo,
ele ‘se defende’ pela força de inércia”203, precisamos entender também o valor do ‘nada’
para Victor. Pois, se uma das influências filosóficas de Beckett é o pensamento do filósofo
belga Arnold Geulincx, autor da máxima Ubi nihil vales, ibi nihil velis (Onde nada vales,
nada deves desejar), entendemos que as relações com o Nada, em articulação com a
Liberdade, formam um esteio importante para a leitura da peça. Há exemplos bastantes, no
texto de Eleutheria. Eis algumas passagens exemplares das questões envolvendo a
Liberdade e o Nada.
No segundo ato, depois de ser violentamente coagido a desistir de seu objetivo,
Victor é confrontado pelo Vidraceiro a explicar-se a si mesmo.
V IDRACEIRO – Você sabe que chegou a hora de você se explicar. V ICTOR – Me explicar? V IDRACEIRO – Claro, isso não pode continuar assim.
203 JANVIER. Ludovic. Beckett. Tradução de Léo Schlafman. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. p. 19.
V ICTOR – Mas eu não estou entendendo nada. Além do mais, eu não tenho que dizer nada a você. Quem é você? Eu nem te conheço. Me deixe em paz. (Pausa.) E saia daqui.
V IDRACEIRO – Mas claro, claro, ia fazer muito bem pra você, se você se explicasse um pouco.
V ICTOR (gritando) – Eu estou dizendo que eu não estou entendendo nada. V IDRACEIRO – Explicar-se, não, não é isso que eu quero dizer, eu não coloquei
direito. Definir-se, é isso. Chegou a hora de você se definir. Você fica aí sentado como um ... como é que eu posso dizer? Como um furúnculo escorrendo pus. Como uma purulência, é isso. Ganhe um pouco de contorno, pelo amor de Deus.
V ICTOR – Por quê? V IDRACEIRO – Assim, toda essa coisa pode parecer que faz algum sentido. Até
aqui você tem sido impossível. Ninguém pode acreditar ... Mas você está se tornando simplesmente nada, meu pobre amigo.
V ICTOR – Talvez tenha chegado a hora de que alguma coisa tenha se tornado simplesmente nada.204
Mais tarde, no mesmo ato, depois de ter usado de sua parca força física para
rechaçar a senhora Meck de seu quarto, com a ajuda do Vidraceiro, este o interroga sobre
de onde Victor teria tirado a coragem para aquela demonstração de violência.
V ICTOR – Eu defendo meus bens, quando posso. V IDRACEIRO – Seus bens! Que bens? V ICTOR – Minha liberdade. V IDRACEIRO – Sua liberdade! Essa é boa, sua liberdade! Liberdade pra fazer o
quê? V ICTOR – Pra fazer nada. 205
O Vidraceiro, assumindo a função de coro, numa cena posterior, em que dialoga
com o Dr. Piouk, apresenta questionamentos, como uma espécie de interlocutor da ação da
peça e o pensamento do público.
V IDRACEIRO – Tem que haver uma razão, pelo amor de Deus! Por que ele se deixou cair deste jeito? Por que esta vida absurda? Por que concordar em morrer? Razões! O próprio Jesus tinha suas razões. Não importa o que ele venha a fazer, nós temos que saber mais ou menos o porquê. Senão, ele vai acabar sendo rejeitado. E nós vamos rejeitá-lo também. Com quem você pensa que está lidando? Com os estetas?
DR. PIOUK – Decididamente, eu não sei. V IDRACEIRO – Será que o senhor não consegue enxergar que nós estamos dando
voltas numa coisa que não faz o menor sentido? Precisamos achar um sentido para isto, caso contrário, não há outra opção senão descer as cortinas. 206
No terceiro ato, o alexitímico Victor será forçado a falar, sob ameaça de tortura,
sobre a liberdade e o nada.
204 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 84-85. 205 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 90. 206 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 110-111.
V ICTOR – Minha vida é uma vida consumida pela própria liberdade. [...] Eu sempre quis ser livre. Não sei por quê. Nem sei exatamente o que isto quer dizer: ser livre. Mesmo que você arrancasse as minhas unhas, eu não saberia dizer. Mas, mesmo que eu não consiga colocar em palavras, eu sei o que é. Eu sempre desejei isso. E ainda desejo. Isso é tudo o que eu desejo. Primeiro eu era prisioneiro das pessoas. Então eu as deixei. Depois, eu fiquei prisioneiro de mim mesmo. Foi pior. Então eu me deixei. (Volta ao silêncio.) [...]
ESPECTADOR – Você se deixou. [...] Como é que você conseguiu fazer isto? V ICTOR – Sendo o mínimo possível. Não me movendo, não pensando, não
sonhando, não falando, não ouvindo, não percebendo, não sabendo, não querendo, não sendo capaz, e por aí adiante. Eu acreditava que minha prisão estava aí. [...]
ESPECTADOR – E a morte? A morte, ponto final. Isso não te atrai? V ICTOR – Se eu estivesse morto, eu não saberia que estava morto. Esta é a única
coisa que eu tenho contra a morte. Eu quero gozar a minha morte. É aí que está a liberdade: ver-se a si mesmo morto. 207
Voltando à ação do segundo ato, há ali duas passagens que consideramos
fundamentais: a notícia da morte do senhor Krap, que é recebida por Victor através da
senhora Meck; e a visita que Olga Skunk faz ao quarto do ex-noivo, para realizar o desejo
do senhor Krap.
O que é intrigante na primeira cena mencionada é que, aparentemente, a notícia da
morte do pai, em si, não retira Victor de seu estupor, porém a preocupação – quase uma
obsessão – do rapaz em determinar a hora exata da morte assume um contorno que nos
chama a atenção por vermos aí uma referência a uma obra anterior. Na novela Primeiro
amor, escrita em francês, em 1945, o protagonista / narrador afirma, logo no início:
Fui, não faz muito tempo, visitar o túmulo de meu pai, isso eu sei, e anotei a data de seu falecimento, de seu falecimento apenas, pois a de seu nascimento me era indiferente, naquele dia. [...] Alguns dias depois, porém, querendo saber com que idade ele havia morrido, tive de voltar ao seu túmulo, para anotar a data de seu nascimento. Essas duas datas limites, eu as escrevi num pedaço de papel, que guardo bem comigo. 208
Em Eleutheria, durante uma discussão entre a senhora Meck e Victor:
MME MECK – Você não tem mais nenhum interesse por ela? [Olga Skunk] V ICTOR – Não. MME MECK – Nem por ninguém? V ICTOR – Não. MME MECK – A não ser por você mesmo. V ICTOR – Nem isso.209
207 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 146-149. 208 BECKETT, Samuel. Primeiro amor/Premier amour. Tradução de Waltensir Dutra. Ed. bilíngüe. Rio de Janeiro: Nova Frinteira, 1987. p.06. 209 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p.79-80.
A senhora Meck acaba disparando:
MME MECK – Seu pai morreu. Silêncio. [...] MME MECK – Victor! (Silêncio.) Você me ouviu? Seu pai morreu. V ICTOR (virando-se) – Sim. Quando ele morreu? MME MECK – Não vá me dizer que você está realmente interessado. V ICTOR – A hora me interessa. MME MECK – Ele morreu ontem à noite, sentado na cadeira dele. V ICTOR – Mas a que horas? MME MECK – Ele estava vivo às oito horas. Jacques está certo disto. E foi
encontrado morto por volta da meia-noite. V ICTOR – Quem o encontrou? MME MECK – Sua pobre mãe. V ICTOR – À meia-noite. MME MECK – Por volta disso. V ICTOR – O cadáver já estava rígido? MME MECK – Você é completamente desnaturado.210
Para o protagonista / narrador de Primeiro amor, estabelecer o ano da morte de seu
pai tem uma função. Ele associa seu casamento com a morte de seu pai, pois, após a morte
do pai, ele foi expulso da casa onde morava e, assim, acabou conhecendo a mulher com
quem veio a se casar. Saber a data da morte do pai e equacioná-la com a sua própria data
de nascimento lhe informará com que idade ele se casou.
Para Victor, a importância de estabelecer a hora exata da morte do pai parece estar
relacionada à cena marginal ao primeiro ato, que Beckett descreve detalhadamente logo no
início da peça, numa longa nota explicativa. Assim, percebemos que Victor deseja saber o
que ele próprio estava fazendo, quando seu pai morreu. E a resposta é: ele estava “deitado
e imóvel”211, em seu quarto.
A segunda cena que destacamos neste ato é a cena entre Victor e Olga Skunk.
MLLE SKUNK – Você não vai me dar um beijo? V ICTOR – Não. MLLE SKUNK – Você não me acha bonita? V ICTOR – Não sei. MLLE SKUNK – Antigamente você me achava bonita. E queria ir pra cama
comigo. V ICTOR – Antigamente. MLLE SKUNK – Você não quer mais ir pra cama comigo? V ICTOR – Não. MLLE SKUNK – Com quem então?
210 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p.80-81. 211 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p.7.
V ICTOR – O quê? MLLE SKUNK – Com quem você quer ir pra cama? V ICTOR – Com ninguém. MLLE SKUNK – Mas isso não é possível. (Silêncio.) Você não está sendo franco!
(Silêncio.) Você sabe que eu te amo? V ICTOR – Você me disse. MLLE SKUNK – Você não tem pena de mim? V ICTOR – Não. MLLE SKUNK – Você quer que eu vá embora? V ICTOR – Sim. MLLE SKUNK – E que não volte nunca mais? V ICTOR – Sim. (Silêncio.) MLLE SKUNK – O que foi que fez você mudar tanto? V ICTOR – Não sei. MLLE SKUNK – Você não era assim antes. O que é que fez você ficar assim? V ICTOR – Não sei. (Pausa.) Eu sempre fui assim. MLLE SKUNK – Claro que não! Isso não é verdade! Você me amava. Você
trabalhava. Você conversava com seu pai. Viajava. Você ... V ICTOR – Era tudo um blefe. E agora, chega! Vá embora.212
Podemos perceber aqui claramente alguns dos sintomas do estupor esquizofrênico
apontados por Barnard, já mencionados anteriormente, no primeiro capítulo desta
dissertação. Victor “parece despido de afeto por qualquer pessoa” e “retirou sua libido das
pessoas e a concentrou narcisicamente em seu próprio ego”.213
Após receber visitas de quase todas as personagens, numa estratégia dramatúrgica
que lembra uma “comédia de boulevard” 214, com suas entradas e saídas, o segundo ato se
encerra depois de termos visto Victor se mostrando incapaz de sair do estupor voluntário
no qual mergulhou.
O segundo ato é encerrado com a bela cena – apresentada anteriormente – entre o
Vidraceiro e seu filho Michel, na qual podemos perceber, além da semelhança com a cena
de Esperando Godot, um espelho da relação entre Victor e seu falecido pai.
4.5 LIBERTAÇÃO E RUÍNA EM ELEUTHERIA
Será apenas no terceiro – e último – ato que Victor, depois de ter sido ameaçado de
tortura, falará de seus motivos e estabelecerá a chave para a compreensão de Eleutheria: a 212 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p.91-92. 213 BARNARD. G. C. Samuel Beckett – A new approach: a study of the novels and plays. Nova York, Dodd, Mead & Company, 1970. p.5. 214 ESSLIN. O teatro do absurdo. Op. Cit.p.298.
articulação entre a Liberdade e o Nada, como foi exposto anteriormente no início deste
capítulo.
O terceiro ato se inicia com um sonho agitado de Victor.
V ICTOR (durante um pesadelo) – Não... não...alto demais...a pedra...meu corpo...papai...seja corajoso...garoto corajoso. (Silêncio. Ele se agita. Mais alto.) Braçada... cinco braçadas grandes....na maré baixa... maré baixa... fundo...fundo, fundo demais. (Silêncio. [...]) Os olhos...mil navios...as torres...circuncisão...fogo....fogo (Silêncio.)215
Logo, o sonho de Victor será interrompido pela presença do Vidraceiro que, mais
uma vez, foi ali consertar o vidro da janela. Quem surge também é o criado Jacques, que
veio preparar Victor para o funeral do pai. Neste ponto, Beckett se utilizará amplamente
dos efeitos do meta-teatro, chegando, inclusive a colocar um Espectador para interromper
o espetáculo, saindo da platéia e interferindo diretamente na ação da peça. Na presença do
Espectador, aliado ao Vidraceiro, sob a ameaça de Tchoutchi, o torturador chinês, se dará
o embate quase filosófico de forças, cujo resultado são os monólogos explicativos de
Victor. Ao final, Victor expressa a Olga Skunk sua decisão de permanecer naquele quarto
de pensão.
V ICTOR – Dois anos não são o suficiente. (Pausa.) Uma vida inteira não é suficiente. Minha vida será longa e horrível. (Pausa.) Porém, menos horrível que a sua. (Pausa.) Eu jamais serei livre. (Pausa.) Mas eu me sentirei sempre à beira da liberdade. (Pausa.) Minha vida, vou te dizer o que vou fazer com o resto dela: vou esfregar minhas correntes uma na outra. Da manhã até a noite e da noite até a manhã. Esse pequeno ruído inútil será a minha vida. Não digo minha alegria. Isso eu deixo para você – a alegria. Minha calma. Meu limbo. (Pausa.) E você vem me falar de amor, de razão, de morte! (Pausa.) Não! Então, vá embora daqui, vá embora!216
Logo depois, o Dr. Piouk, que acompanhou de perto a situação do jovem Victor,
finalmente dá seu diagnóstico ao Vidraceiro.
DR. PIOUK – É esquizofrenia.217
215 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p.119. 216 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p.162. 217 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p.163.
A peça se encerra com um pequeno diálogo melancólico entre a dona da pensão e
Victor, criando um efeito anti-climático de uma coda e sugerindo o prolongamento da
situação de inércia sórdida do protagonista.
V ICTOR – Madame Karl. MME KARL – O que é? V ICTOR – Madame Karl. MME KARL – O QUE É? V ICTOR – A senhora tem um segundo cobertor para me dar? MME KARL – Por quê? Você está sentindo frio, na cama? V ICTOR – Sim. MME KARL – Ah, bem, logo, logo a primavera está aí. (Silêncio.) Você quer
comer alguma coisa? V ICTOR – Não. MME KARL – Tem sopa, está boa. (Silêncio.) Um pão com queijo? (Silêncio.)
Você vai acabar ficando doente. (Silêncio.) Não sou eu que vai lhe dar assistência. (Silêncio.) Que tristeza! (Sai.)218
Como um Hamlet, que submerge no simulacro de loucura para desmascarar um
assassino, Victor desmascara o mundo que o cerca “recusando-se a dar forma ao que lhe
parece ser simulacro, ilusão”219. Este desmascaro, singelo grito de desespero, causa a ruína
de tudo que o cerca. Victor finalmente encerra Eleutheria “com as costas magras voltadas
para a humanidade”.220
É justamente neste “virar as costas” que identificamos sua hýbris. Sua desmedida é
a insolência em permanecer na alexitimia, embriagado em sua eleuteromania, que
desorganiza a ordem da família e da vida produtiva: seu cosmo. O final que Beckett
reserva para Victor é a ordem do estupor. O que nos provoca terror e piedade é o espelho
patético que Victor representa. Seu erro não o iguala aos deuses, ao contrário, em sua
busca desesperada por liberdade para ser ‘nada’, ele se torna dejeto. Eleutheria é a sua
libertação.
Do outro lado do fio da obra de Beckett, em sua última peça – What where, escrita
em 1983 – encerra-se sua busca pelo ‘nada’:
Estou só. No presente, como estive, permaneço.
218 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p.166. 219 JANVIER. Beckett. Op. Cit. p.73. 220 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p.167.
É inverno. O tempo passa. Isto é tudo. Faça sentido a quem fizer. Eu desligo.221
221 BECKETT, Samuel. What where. In.: The complete dramatic works. Londres: Faber & Faber, 1986. p.476.
5 CONCLUSÃO
Façamos justiça. É preciso incluir Victor Krap e seu estupor trágico na galeria de
grandes personagens criadas por Samuel Beckett. Desta maneira, ele figurará com
merecimento ao lado de Vladimir e Estragon, de Esperando Godot; ao lado de Hamm e
Clov, de Fim de partida; e ao lado da pobre Winnie, de Dias felizes. Acreditamos que ele
possua a força dramática necessária para isto. E mais.
Coloquemos Victor Krap ao lado das grandes personagens da dramaturgia do
século XX. É possível colocá-lo sem temor ao lado de Clara Zahanassian, de A visita da
velha senhora, de Dürrenmat; e de Bérenger, que se recusa a transformar-se em
rinoceronte, na peça de Ionesco; e ainda ao lado de Alaíde, com sua memória fragmentada,
nos universos de Nélson Rodrigues. E mais.
Podemos colocar Victor Krap na galeria onde figuram Édipo, Hamlet e tantos
outros companheiros trágicos de infortúnio. Porque, se “a alma humana é um abismo”,
como teima em afirmar o poeta português, cabem neste abismo muitas almas. Eu é que sei.
Resta-nos a tarefa que ora nos prescrevemos: verter para a língua portuguesa todo o
embate entre o nada e a liberdade contidos em Eleutheria. Fazer uma tradução completa
da primeira obra teatral de Samuel Beckett para proporcionar ao leitor em língua
portuguesa o prazer – e a angústia – da leitura desta que consideramos sua obra-prima.
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