O ÉTICO E O ESTÉTICO EM ADORNO -...

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FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DOUTORADO EM EDUCAÇÃO MAURICIO JOÃO FARINON O ÉTICO E O ESTÉTICO EM ADORNO Porto Alegre 2012

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FACULDADE DE EDUCAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

DOUTORADO EM EDUCAO

MAURICIO JOO FARINON

O TICO E O ESTTICO EM ADORNO

Porto Alegre 2012

Mauricio Joo Farinon

O TICO E O ESTTICO EM ADORNO

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao, da Faculdade de Educao, na Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PU-CRS, como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Educao.

Orientadora: Professora Doutora Nadja Mara Amilibia Hermann

Porto Alegre 2012

Mauricio Joo Farinon

O TICO E O ESTTICO EM ADORNO

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao, da Faculdade de Educao, na Ponti-fcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PUCRS, como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Educao.

Aprovada em 12 de janeiro de 1012.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________ Professora Orientadora - Professora Dra. Nadja Mara Amilibia Hermann PUCRS

_______________________________________________________________

Professor Convidado - Professor Dr. Marcos Villela Pereira PUCRS

_______________________________________________________________ Professor Convidado - Professor Dr. Alexandre Fernandez Vaz UFSC

_______________________________________________________________

Professor Convidado - Professora Dra. Mrcia Tiburi - Universidade Presbiteriana Mackenzie

Porto Alegre Janeiro de 2012

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao ( CIP )

Bibliotecria responsvel ngela Saadi Machado - CRB 10/1857

P285p Farinon, Mauricio Joo

O tico e o esttico em Adorno / Mauricio Joo Farinon. 2011. 101 f. ; 30 cm.

Tese (Doutorado em Educao) Pontifcia Universidade Catlica

do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011. Orientador: Prof. Dra. Nadja Mara Amilibia Hermann.

1. Adorno, Theodor W., 1903-1969. 2. Educao - Filosofia. 3.

Pensamento crtico. I. Hermann, Nadja, orientador. II. Ttulo.

CDU: 37.01

Bibliotecria responsvel ngela Saadi Machado - CRB 10/1857

AGRADECIMENTOS

minha esposa, Betnia Beledeli Farinon, pela companhia compreensiva e apoio em todos os

momentos. Com ela aprendi o significado do ser outro.

Aos meus pais, pelas palavras de incentivo, pela presena marcante, o carinho inigualvel. Por

estarem sempre comigo. Aos meus irmos, com suas famlias. Principalmente ao meu irmo

Altair, por todo apoio nesta conquista.

Um agradecimento especial minha querida orientadora, professora Dra. Nadja Hermann.

Com rigor, carinho e amizade, indicou o caminho intelectual a ser percorrido. Fez de mim

muito mais que um doutor; a ela devo parte do que sou.

Ao professor Dr. Cludio Dalbosco, pelas excelentes contribuies dadas para esta pesquisa,

seja com membro da banca de qualificao, seja como colega e amigo na Universidade de

Passo Fundo. Sempre bom poder contar com amigos dispostos a contribuir em nossos em-

preendimentos.

Agradeo, tambm, aos amigos Clnio Lago, Eliana Xerri, Clara Furtado, Vanderlei Carbona-

ra, Adilsom Eskelsen. Grandes lembranas dos momentos vividos na PUC e em outros espa-

os. Com vocs estes quatro anos ganharam um sentido especial.

A todos os meus alunos(as) e ex-alunos(as). Na convivncia e debates em aula foi possvel

entender muito do que significa a tica, o que significa o outro, o que significa educao.

Ao Programa de Ps-Graduao em Educao, da PUC-RS, pela oportunidade de estar inte-

grado neste reconhecido programa e por possibilitar a concluso de mais esta etapa em minha

formao. Agradeo, tambm, a CAPES, pelo apoio financeiro, via bolsa de pesquisa, durante

os quatro anos do doutorado.

Meus agradecimentos a todos que, de uma ou outra forma, acompanharam estes quatro anos

de curso. Todos fazem parte da minha histria e so personagens fundamentais em minha

vida.

RESUMO

tica, esttica e educao so os conceitos bsicos presentes nesta investigao, a qual

tem como paradigma orientador, a Teoria Crtica de Theodor Adorno. A partir das bases que

permitem conceber o sujeito ps-metafsico em Adorno, sob que condies possvel defen-

der o alargamento da experincia como meio de constituio da subjetividade, a qual a base

da conscincia moral, e que significao tica surge para a educao, tendo em vista o sujeito

que, moralmente, precisa ser constitudo com base na experincia? Partindo deste problema, o

objetivo geral discutir a noo de subjetividade ps-metafsica em Adorno, a fim de estabe-

lecer, baseado em tal sujeito, uma significao tico-educativa capaz de nortear a formao do

humano e o desenvolvimento da conscincia moral. Como indicativo terico, a tese prope

que, no momento em que a educao se torna promotora de enriquecimento das experincias

formativas, possvel o alargamento do modo como ocorre a constituio e formao do su-

jeito tico. Isto nos conduz constituio do meio no qual o ser humano est inserido, meio

este denominado linguagem. Portanto, a defesa sobre o plasmar lingstico como o desafio

tico da formao humana. Articula-se a esttica como fundamento sob o qual possvel de-

fender tal alargamento do conceito de experincia e de constituio da subjetividade. O per-

curso terico inicia com a discusso sobre o modo como ocorre a constituio da subjetivida-

de e da conscincia moral em Kant, cujo alicerce est nos conceitos de finalidade e liberdade,

para, aps, compreender a mudana proposta por Adorno, no qual a esttica est em ntima

relao com a tica, o que se evidencia a partir dos termos concreto, constelao, comunica-

o e contedo de verdade. O mtodo analtico conceitual, gerando um confronto entre estas

duas vertentes filosficas, ao mesmo tempo em que prope significao prtica educacional

em ambiente escolar. A proposta de reconhecimento do outro enquanto concretude que cons-

titui e habita um meio lingstico, e a necessidade de a sala de aula ser o local privilegiado no

qual este meio deve ser plasmado, uma alternativa tica para a formao, a partir da qual

possvel vislumbrar a escola enquanto local de desenvolvimento e qualificao do humano.

Palavras-chaves: tica. Esttica. Educao. Formao. Plasmar lingustico.

ABSTRACT

Ethics, aesthetic and education are the basic concepts in this present investigation, which has

as its guiding paradigm, critical theory of Theodor Adorno. Form the basis the allow us to

conceive the post-metaphysical subject in Adorno, under what conditions is possible defend

the enlargement of the experience like a way of the constitution of the subjectivity, which is

the basis of the moral consciousness, and that ethic signification comes to the education, in

view of the subject that, morally, need to be constituted based on the experience? Starting

from this problem, the general goal is to discuss the post-metaphysical subjectivity notion in

Adorno, to establish, based in such subject, an ethical and educational meaning, able to guide

the human formation and the moral consciousness development. As theoretical indicative, the

thesis proposes that, in the moment that the education becomes an enrichment promoter of

the formation experiences, is possible the enlargement of the way that happens the

constitution and the development of the ethic subject. This guides us to the constitution of the

environment in which the mankind is inside, this environment is called language. Therefore,

the defense is about the linguistic shape as the ethical challenge of human development. It is

articulated the aesthetic as a foundation under which is possible to defend the enlargement of

the concept of the experience and the constitution of the subjectivity. The theoretical

approach starts with a discussion on how the constitution of subjectivity and moral

consciousness in Kant happens, whose foundation lies in the concepts of order and freedom,

to, after, understand the change proposed by Adorno, in which aesthetics is intimately related

to ethics, as is evident from the terms of concrete constellation, communication and real

content. The method is analytical and conceptual, creating a confrontation between these two

philosophical strands, while proposing significance to educational practice in the school

environment. The propose o recognize the other as a concrete, who is inserted in a linguistic

environment, and the necessity for the classroom to be an ideal place in which this

environment should be shaped, is an ethical alternative to the formation, from which we can

glimpse the school as a place of development and qualification of the human.

Keywords: Ethics. Aesthetic. Education. Formation. Linguistic shape.

LISTA DE ABREVIATURAS ANTR Antropologia de um ponto de vista pragmtico.

CRPu Crtica da razo pura. CRPr Crtica da razo prtica.

DE Dialtica do esclarecimento. DN Dialtica negativa. DOD Discurso sobre a origem e fundamentos das desigualdades entre os homens.

EE Educao e emancipao. EXP Experincia e criao artstica paralipmenos Teoria Esttica.

FMC Fundamentao da metafsica dos costumes. K Kierkegaard.

MC Metafsica dos costumes. MET. Metafsica.

MM Mnima moralia. OPF Observaes sobre o pensamento filosfico.

PS Palavras e sinais modelos crticos 2. SDMP Sobre a discordncia entre moral e a poltica a propsito da paz perptua.

SO Sobre sujeito e objeto

TE Teoria esttica.

SUMRIO INTRODUO .................................................................................................................................... 9

1. ASPECTOS TICOS DA CONSTITUIO E DA FORMAO DO HUMANO SEGUNDO KANT .............19

1.1 A constituio transcendental do sujeito tico em Kant. ........................................................22

1.2 O ideal de Reino dos fins e a determinao moral do sujeito transcendental. ........................26

2 THEODOR ADORNO E A CONCEPO DE PENSAMENTO PS-METAFSICO. ...................................33

2.1 Discusso em torno do conceito de sujeito. ........................................................................33

2.2 A concepo de verdade em seu ncleo histrico ..................................................................38

2.2.1 Tenso entre verdade e procedimento. ...............................................................................39

2.2.2 A perda da evidncia e o impulso ao esclarecimento ..........................................................41

2.3 Constelao e contedo de verdade: marcas do pensamento ps-metafsico em Adorno. ....44

3. A IMPOSSIBILIDADE DO REINO DOS FINS MEDIANTE A FORA DO IMPERATIVO CATEGRICO:

UMA CONTRAPOSIO FUNDADA EM ADORNO ..............................................................................49

4 O PROJETO TICO, ESTTICO E FILOSFICO EM ADORNO ..............................................................57

4.1 A vinculao entre experincia e racionalidade esttica. .......................................................59

4.2 A dinmica entre aproximao do outro e construo de si. ..................................................65

5 O TICO E O ESTTICO NA FORMAO HUMANA ..........................................................................74

5.1 Entre o eu e o outro: ou quando a presena nos mantm humanos. ......................................74

5.2 A tica e a esttica em sua dimenso pedaggica ..................................................................86

CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................................................92

REFERNCIAS ....................................................................................................................................96

INTRODUO

A investigao que aqui se apresenta tem como foco a relao entre tica, esttica e

educao. No so poucos os esforos em torno desse tema, o que gera uma infinidade de

referenciais tericos, de modo que no seria difcil a repetio de investigaes j existentes,

o que comprometeria a pretenso deste trabalho. Nesse sentido que a tese pretende uma

significao tico-educativa tendo como base a noo de sujeito esttico em Theodor Adorno.

Em linhas gerais, entende-se por sujeito esttico o indivduo que se constitui, tanto moralmen-

te quanto em termos de conhecimento, mediante a experincia sensvel, a relao efetiva e

permanente. Isso remete noo de esttica enquanto percepo, a dimenso sensvel que no

caracteriza. Viso realizar um direcionamento efetivo, estabelecendo as conexes entre as ba-

ses conceituais provindas da filosofia, seja no mbito da tica quanto da esttica, e a prtica

educativa em sentido amplo e especfico. Entendo a prtica educativa, em sentido amplo, en-

quanto processo de esclarecimento efetivado em todos os nveis de relao e, em sentido es-

pecfico, como aquela sistematicamente desenvolvida em ambiente escolar.

Ao abordar a constituio esttica da subjetividade ou, em outros termos, a proposta

de um sujeito esttico, fica posto um vnculo direto com a noo de formao. O sujeito est-

tico precisa ser constitudo, por mais que sejamos seres sensveis por natureza. Mas a sensibi-

lidade, no sentido de mera percepo, no a nica forma de se entender este tema, pois ele

envolve a noo de mimese (a possibilidade de riqueza de experincia ordenada pelo encontro

permanente com aquilo que me diferente) e expresso (o modo prprio de o sujeito falar,

derivado da riqueza mimtica). Desse modo possvel afirmar que a pobreza de linguagem

revela a pobreza mimtica.

Mimese no imitao, mas o brao que se estende, o corpo que encontra resso-

nncia na realidade, permitindo a dialtica do tato, conforme defendido nas Minima Moralia.

Adorno rejeita a imitao de modelos, alegando que ele impede a autonomia. Se admitirmos a

existncia de modelos, esses so imitveis. Porm, um ser emancipado no se fixa na imita-

o, mas tende construo de uma sociedade cujos integrantes sejam capazes de pensar se-

gundo o ideal kantiano de fazer uso do prprio entendimento, sem a tutela ou modelagem de

outrem. E essa possibilidade perpassa necessariamente pelo processo educacional.

No entanto, esse processo segue uma tendncia tica, orientado pelas questes bsicas:

que mundo, que ser humano, que sociedade ns queremos. Desse modo se justifica a necessi-

dade de pensar a formao escolar sob ideais ticos, no constituda exclusivamente de co-

nhecimentos intelectuais. Em Theodor Adorno, o problema da formao moral se situa den-

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tro da perspectiva esttica, o que remete a uma abordagem da dimenso do outro. O outro o

maior e permanente desafio racionalidade, e todas as categorias iluministas no do conta da

apreenso e significao plena deste outro. O comportamento da razo pura ou do esprito

absoluto, por exemplo, em relao ao que me diferente, de ser condio para todo o senti-

do: tudo para a razo, e todo objeto dos sentidos tem existncia desqualificada ou no

admitido como fato se no passar pela elaborao subjetiva. Essa a noo de constituio

via sujeito, o para mim, base terica para legitimar toda dominao. A existncia se torna

desqualificada quanto a prioridade est na representao que fao daquilo com quem me rela-

ciono, reduzindo a existncia do outro, sua efetividade, sua concretude, a algo secundrio

frente ao meu entendimento sobre ele. Assim que surgem conceitos frios, pois no admitem

o outro para alm do sentido j apreendido e para alm do momento vivido, como se, ao con-

trrio do dinamismo da histria, nossas compreenses no precisassem mudar.

O fator decisivo que originou a tese que aqui se apresenta est constitudo por dois e-

lementos. Primeiro, se deve ao percurso seguido pelos meus estudos em Filosofia e, segundo,

pela minha insero no mundo educacional, em mbito acadmico, mas, principalmente, na

educao bsica. Ao concluir meu mestrado em Filosofia fui levado a analisar pelo avano

nos estudos a relao entre a constituio do sujeito e os desafios para a educao. Assim,

direcionei meus estudos a um esforo congregador entre aspectos terico-sistemticos em

Filosofia e os desafios em significar com base neste estudo terico eticamente, a educa-

o. Realizarei esta abordagem explorando, principalmente, os conceitos de experincia est-

tica e subjetividade, defendendo a possibilidade de, mediante o ideal de enriquecimento de

experincias formativas, alargar o sentido de constituio e formao do sujeito tico.

Ao me inquietar com o tema acerca da constituio do sujeito epistemolgico e tico

direcionei-me, necessariamente, a Immanuel Kant, e s condies racionais puras ao ajuiza-

mento nesses dois mbitos. Em termos ticos surgem as noes de fim ltimo e liberdade co-

mo suporte noo de dever. O amor incondicional ao dever se constitui na condio ao a-

gente moral e sociedade baseada em seres racionais que estabelecem ligao sistemtica a

partir de leis comuns o que pode ser entendido como reino dos fins. Desta incondicionalida-

de possvel derivar a concepo de autonomia, pois a nica determinao interna, posse do

sujeito. Neste ponto que se justifica a necessidade de retornar a Kant, pois com este filsofo

o conceito de autonomia foi inserido como critrio epistemolgico e moral. Sobre isto ocorre

um incisivo ideal educacional, pois tal critrio precisa ser formado, desenvolvido no ser hu-

mano. Tentativas de imploso deste ideal ocorreram com os regimes totalitrios (por exemplo,

o Nacional Socialismo na Alemanha e a Ditadura Militar no Brasil), para os quais, a fora de

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determinao era dada pela ideologia absolutista. Porm, a Teoria Crtica retoma o conceito

de maioridade, pondo como condio para a prpria democracia.

O que surge ao analisar a obra kantiana sobre moral, que o encontro ocorre via amor

ao dever. Todo senso moral deriva deste postulado. No pelo outro, propriamente dito, mas

somente por no poder entrar em contradio com minha prpria razo, que aceito o cumpri-

mento do dever, aqum a qualquer tendncia pessoal. Um ponto que merece destaque como

se desenvolve a conscincia moral, a conscincia do dever, no ficando evidente como ocorre

a passagem da conscincia comum para uma fundamentao dos costumes. Uma possvel

indicao poderia ser encontrada no texto Resposta pergunta: o que esclarecimento,

quando possvel vislumbrar que a liberdade de fazer uso pblico da razo se constitui na

condio para exercer o poder originado a partir do entendimento, no seu bom uso. O que fica

incerto como o ser humano chega a desenvolver as condies para exercer a liberdade do

uso pblico da razo, pois negada, pelo autor, a fora decisiva dos exemplos nessa constitui-

o.

O que pode ser vislumbrado a necessidade de um efetivo ardor educativo para que o

ser humano no venha a fazer mau uso de suas foras. Nesse sentido que recorro a Adorno

para buscar elementos que efetivam essa realizao, encontrando nos conceitos de concreto,

vnculo, comunicao de diferenciados e sociedade atomizada, indicaes tericas bsicas ao

desenvolvimento da conscincia moral. Tudo isso baseado na concepo de subjetividade

esttica. Destaco, ento, que o percurso traado neste texto indispensvel, pois parte do sen-

tido lgico-formal a partir do qual ocorre a formao da conscincia moral em Kant para, em

Adorno, pontuar o contraponto da formao moral mediante a nfase na experincia efetivada

no encontro com os outros, o que remete experincia esttica, sensvel. Dessa experincia

surge o sentido tico da educao enquanto promotora de clulas de humanidade e como o

espao do plasmar lingstico.

Retomando a discusso da responsabilidade moral baseada na ausncia de contradio

da razo com seus princpios, que Kant se distancia de seu antecessor iluminista, Jean-

Jacques Rousseau. No filsofo francs, o respeito ao outro no por ser ele racional, mas se

alicera na noo de ser sensvel. Trago Rousseau presente, no por ser um autor decisivo

nesta investigao, mas para pontuar um paralelo entre dois autores da mesma poca histrica,

no que se refere s bases da obrigao moral. Tem-se aqui a indicao da possibilidade de

encontro entre diferentes, movido pela virtude da piedade, como condio para a humanidade.

O desenvolvimento moral, que a existncia da humanidade propriamente dita, para alm da

animalidade, ocorre quando o indivduo capaz de sair de si e, movido pela virtude da pieda-

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de, guiado pela razo, pelo ir em direo ao outro. Nesse sentido, a proposta iluminista de

Rousseau um vislumbre moderno do ideal tico adorniano acerca do encontro.

Estar autorizado a agir somente por ser um dever prescrito pela razo , conforme a-

cima descrito, uma tica de coerncia lgica. Em olhar diferenciado, a autorizao a agir ocor-

re pelo fato de o outro solicitar minha ao, o que gera uma resposta inevitvel. do outro, o

diferente de mim e que, por isso, se constitui em desafio para o pensamento, que vem a obri-

gao, o que remete a uma interdependncia planetria constitutiva de um imperativo de res-

posta guiada pela no colocao do si mesmo no centro da discusso, mas guiada pela neces-

sidade comum de existncia qualificada. Tal qualificao nos remete considerao priorit-

ria do local e do momento que o outro ser humano vive, com suas escolhas, suas decises,

suas experincias e o estado atual que o indivduo se encontra.

Dentro do pensamento de Kant, o desafio que surge delinear como ocorre a constitu-

io da conscincia moral e se, a partir dessa constituio, possvel assegurar a realizao do

seu ideal de reino dos fins, conceito norteador a partir do qual ocorrem os vnculos. Nesse

ponto que se torna vlida a investigao abordando os paradigmas de Kant e de Adorno,

para, na tenso entre os dois autores em evidncia: apontar a diferena provinda de Adorno ao

modo como o sujeito constitudo. Nessa direo que ocorre uma radical mudana: a for-

mao deve levar a uma ampliao e enriquecimento do nvel de experincia, pressuposto

para o agir moral. Experincia e agir moral encontram ntima relao: experincia no mero

trato, manejar ou proceder sobre algo, mas est vinculada capacidade de se comunicar, no

sentido de dilogo, momento em que os opostos entram em relao e se autoconstituem. A

obrigao moral no se deve a um rigor lgico, de coerncia interna da prpria razo, mas de

um dever cuja base est na necessidade da ao por puro amor vida, no enquanto universal

conceitual, mas enquanto vida do efmero, a concretude, o ente do ser. Em termos ticos en-

contramos um ponto determinante: todo princpio de valor, toda regra de ao deve partir do

sensvel, a concretude que habita o mundo imediatamente.

O fundamento terico adorniano se apoiar, principalmente, nas obras Dialtica do es-

clarecimento, Dialtica Negativa, Teoria Esttica, e Minima Moralia, apesar de percorrer as

demais obras, buscando nelas alguns esclarecimentos terminolgicos necessrios. Em Kant, a

base est na Crtica da razo pura, Crtica da razo prtica, Metafsica dos costumes e Fun-

damentao da metafsica dos costumes.

Atribuir ao efmero (o carter prprio de transitoriedade) o valor de princpio arran-

car o fundamento das garras da abstrao. Deve-se estar atento ao prprio termo vida: a cons-

tatao feita na Minima moralia de que no h mais vida, ou, que no h vida correta na falsa,

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tem seu corretivo o fato de vida estar carregada do significado originado pela relao per-

manente com o mundo sensvel, e no pelo conceito abstrato. essa vida a origem da filoso-

fia e, onde ela est em ausncia, ali que deve surgir o pensamento. Baseado nisso que re-

corro Minima moralia, Teoria esttica e Dialtica negativa, com a finalidade de compre-

ender o direcionamento que dado ao modo de constituio do sujeito moral.

As discusses sobre a Teoria Crtica de Adorno sofrem de uma marca histrica que, a

meu ver, muito reducionista em se tratando de atualizao ou, mesmo, da anlise referente

aos seus conceitos decisivos. Refiro-me ao episdio nazista, pontuado na figura de Auschwitz.

Apesar da importncia que a perseguio e extermnio, principalmente aos judeus, significa-

ram para Adorno em questes pessoais e tericas, situar sua produo considerando somente

tal fato, oculta outras dimenses fundamentais. Em se tratando de educao, tenho claro que

para ele o essencial evitar que Auschwitz se repita, impedindo o renovar das causas de tal

regresso. Fazendo referncia ao ttulo deste projeto de tese, O tico e o esttico em Adorno,

merece ateno a cunhagem de sua concepo de esttica e a devida vinculao com a tica,

que est aqum do evento nazismo, encontrando sua origem na crtica tradio metafsica,

principalmente na figura de Immanuel Kant, e sua proposta de fundamentos da moralidade.

Destaco, tambm, o ideal de experincia formativa como constituidora da conscincia, bem

como sua noo fundante de dialtica negativa e a relao dessa com a rigorosidade no ato de

pensamento e na constituio da verdade.

Como o interesse central desta pesquisa a significao tico-educativa que surge a

partir do sujeito ps-metafsico em Theodor Adorno, o problema que direciona a investigao

est delineado nos seguintes termos: a partir das bases que permitem conceber o sujeito ps-

metafsico em Adorno, sob que condies possvel defender o alargamento da experincia

como meio de constituio da subjetividade, a qual a base da conscincia moral, e que

significao tica surge para a educao, tendo em vista o sujeito que, moralmente, precisa

ser constitudo com base na experincia? O sujeito ps-metafsico ou, para Adorno, o sujeito

esttico, compreendido a partir da relao estabelecida com os fragmentos de alteridade,

aquilo que permanece aps o ato compreensivo e que exige continuao da experincia sens-

vel como condio para ampliao da conscincia.

Diante da contextualizao apresentada e do problema proposto, a tese defendida : no

momento em que educao se torna promotora de enriquecimento das experincias formati-

vas, possvel o alargamento do modo como ocorre a constituio e formao do sujeito ti-

co. Isso nos conduz constituio do meio no qual o ser humano est inserido, meio esse de-

nominado linguagem. Portanto, a defesa sobre o plasmar lingustico como o desafio tico da

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formao humana. Para tanto, articula-se a esttica como fundamento sob o qual possvel

defender tal alargamento do conceito de experincia e de constituio da subjetividade. Es-

tando as experincias em processo de constante formao, o desafio tico-educativo desen-

volver a conscincia da necessidade de vnculos de responsabilidade, em contraposio ao

ideal de seres atomizados (monadas), e movidos unicamente pelo critrio da razo pura que

dita o amor ao dever. Somente assim possvel vislumbrar um estado humano, ou estado de

reconciliao, em situao de encontro e comunicao de antteses no hostis. Juntamente

com a compreenso de educao em sua funo de plasmar da linguagem, surge a relao

com a noo adorniana do novo. Por mais que tenhamos a necessidade de nos adaptarmos a

determinadas normas, costumes, tradies, valores, condio mnima para haver convivncia

social, a educao deve permitir a manifestao da riqueza individual e a novidade que a au-

toconstruo pode revelar. Isso significa pensar na coeso, sem coao, mas mediante a valo-

rizao daquilo que no outro outro, ou seja, valorizao do diferente no outro, seu carter de

novidade.

Vale destacar alguns pontos que marcam o horizonte desta pesquisa. Como primeiro

aspecto, a referncia est na alterao que a ao humana sofreu em suas configuraes.

improvvel que nossos antepassados tivessem o senso de que seus atos pudessem interferir

sobre a vida em escala planetria e as consequncias se estendessem por sculos ou, at mes-

mo, que fossem irreversveis. Seus vislumbres se estendiam por poucas geraes e estavam

situadas nos limites locais. Somente este alargamento j pe a necessidade de repensar os

fundamentos ticos da ao humana em estreito vnculo com o ato pedaggico. Admitindo

que educar no instruir, decisivo analisar como constituir a conscincia moral na conside-

rao desta interdependncia planetria, com a tarefa de desenvolver a conscincia da ao e

do alcance da ao.

No segundo aspecto, fao referncia ao sentido que o mito de Prometeu assume em

perodos da cincia e tecnologia avanadas, como se vivencia a partir da revoluo industrial,

e no auge dessa cincia, nos sculos XX e XXI. possvel afirmar que as descobertas da ci-

ncia elevaram o ser humano a uma condio de desacorrentamento diante da prpria nature-

za, permitindo a sobrevivncia, reproduo e o prolongamento da vida para alm dos limites

considerados, at ento, como naturais. A capacidade de prever os fenmenos naturais permi-

te a construo de estruturas para resistir ao poder da natureza ou aes para minimizar vti-

mas diante de tal poder. A princpio parece que nada restou do temor que assombrava o ho-

mem primitivo e o fazia endeusar a natureza na busca das explicaes para seus dilemas.

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Porm, como j alertavam Adorno e Horkeimer na Dialtica do esclarecimento, este

processo de desmistificao acabou por gerar uma nova potncia mtica, hoje configurada no

poder da cincia e da tecnologia. Dessa forma que ocorreu um novo acorrentamento, e con-

tinuando com a Dialtica do esclarecimento, quando se pensa haver rompido com a necessi-

dade natural, percebe-se o quanto estamos sujeitos a ela. assim que o ideal kantiano de reino

dos fins, na posio privilegiada do humano como fim, e nunca como meio para as aes,

deve ser estendido tambm natureza externa ao humano, considerando-a por ela mesma, e

no na administrao que impe o para-mim, e o sentido que surge somente via razo.

Esta pesquisa legitima-se na necessidade de repensar os fundamentos da moralidade

para alm do antropocentrismo, o que significa repensar o local a partir do qual o ser humano

se posiciona diante daquilo como que se relaciona. Em termos morais, o sujeito transcendental

e a razo pura encontram seu limite: o outro no objeto, e o dualismo a oposio radical

alteridade. Objetificar reduzir o sentido quilo dado pela razo; dualismo admitir um pri-

meiro como portador de todo sentido, e um segundo em permanente nsia pela incluso nesse

sentido previamente dado. Admitir a alteridade, o outro, propor uma relao em configura-

es diferenciadas, ou seja, a partir da comunicao entre diferenciados, o que pressupe

comportamento mimtico e expressivo. Mimtico, no sentido de acolhida do outro, e expres-

sivo, enquanto resposta a esta diferena que se impe. Mimese e expresso se convertem, a-

qui, em elementos altamente ticos. Em primeiro lugar por exigirem uma educao dos senti-

dos, na capacidade de receber essa alteridade e no consider-la anttese hostil. Em segundo

lugar, por exigirem a resposta em termos de permisso ao outro continuar em sua reserva de

sentido, para alm da interpretao que visa reduzir o outro quilo que digo dele.

Destaco um terceiro e ltimo aspecto na apresentao dos horizontes de sentido da

pesquisa. Vive-se um tempo de excessos: no possvel negar o excesso de poder que impera

nas relaes entre seres humanos, e entre ser humano e natureza; o poder de produo tornou-

se ilimitado; o poder do conhecimento permite transcender os limites da natureza humana

(prolongamento da vida para alm das capacidades naturais; substncias que ampliam a resis-

tncia fsica). Porm, tem-se a carncia de referenciais normativos e at de referncias (ou

evidentes exemplos) do que o homo humanus, para alm do homo faber ou do homo sapi-

ens. possvel admitir que a existncia do elemento produtivo (faber), do elemento do pen-

samento desenvolvido, no subsiste sem o alicerce do homo humanus, em sua capacidade de

sentir-se responsvel e agir em prol de todos os outros seres, o que exige alicerces de valores

e de um elevado senso tico. Diante disso a pesquisa assume a incisiva relevncia por apontar

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alguns resultados que podem auxiliar na discusso e fundamentao do agir educativo, pauta-

do pelo ideal de humanidade.

Sob esta tica, e com esta pesquisa, questiono o ideal kantiano de que, pela fora do

imperativo categrico seria possvel instituir o reino dos fins. Vislumbrar um estado humano

cuja base est na ligao sistemtica de todos os seres racionais sob leis comuns condiz com a

pretenso de colocar o indivduo humano como o primeiro absoluto. possvel pensar o hu-

mano apenas na ligao entre humanos? Absolutizando o humano, no se cai no mesmo pro-

blema que se quis superar durante os milnios de pensamento filosfico o mito? A ligao

sistemtica de todos os seres racionais segundo leis comuns como sendo o alicerce da morali-

dade se configura em abstracionismo moral, pois o mundo do sculo XX percebeu a urgncia

da interdependncia entre todos os seres vivos. Apoiando Hans Jonas, o imperativo que haja

vida, independente de onde quer que ela esteja. Assim que o centro da investigao tica

est na vida em sua ampla manifestao. No em uma ligao entre seres racionais, mas em

ligao cuja base o princpio vital, o que no significa outra coisa seno a centralidade na

relao, e o reconhecimento da natureza em ns carter de pertena natureza e dependn-

cia dela.

Defendendo um giro no eixo sustentador da ao moral, enfatizando o alargamento da

experincia a partir da perspectiva adorniana de esttica o que derivar, no captulo final, no

termo comunicao de diferenciados e, ciente da responsabilidade da educao em promo-

ver este alargamento como base da educao tico-esttico, que aproximo filosofia e educa-

o, cuja base est no pensamento de Theodor Adorno.

Diante disso, indico o objetivo central deste trabalho, que discutir a noo de subje-

tividade ps-metafsica em Adorno, a fim de estabelecer, baseado em tal sujeito, uma signifi-

cao tico-educativa capaz de nortear a formao do humano e o desenvolvimento da cons-

cincia moral a partir da funo esttica como formadora da tica.

Com este norte traado, proponho cinco captulos como estrutura investigativa. No

primeiro captulo o objetivo analisar a concepo e a constituio do sujeito moral em

Kant, cujo significado a constituio metafsica do humano. Desenvolvo releitura e anlise

sobre a proposta kantiana de que, nos conceitos de finalidade e liberdade, esto a base do

sujeito moral, norteado pelo imperativo categrico fundamentado no critrio racional da lei

moral. Esta discusso primeira fundamental para, posteriormente, conseguir situar a crtica

adorniana a esse modelo de constituio, de modo que, o segundo captulo visa analisar a

concepo de pensamento e subjetividade na perspectiva ps-metafsica de Theodor Adorno,

perspectiva essa no orientada pela base racional da lei, mas analisando o exato momento da

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deciso, momento da efetividade prtica, quando ocorre o contato com o outro. Dada a priori-

dade desse momento, sobre ele deve recair todo o interesse terico-filosfico. Para tanto, par-

to da concepo de sujeito em Aristteles para compreender o significado da afirmao ador-

niana de que, hoje, o sujeito destitudo de subjetividade e, em contrapartida, apresentam-se

quais as condies dadas pelo autor para que haja a subjetividade. Esse recurso a Aristteles

deve-se possibilidade de situar ali o surgimento da fora de determinao interna do indiv-

duo. Situo aqui um aspecto decisivo na argumentao, pois, no auge da modernidade, ocorre a

insuficincia dessa fora interna do sujeito e, contrapondo tambm a perspectiva kantiana,

esta fora interior ao indivduo humano passa a ser administrada por vontades a ele exteriores.

Vislumbra-se, assim, o colapso da base conceitual do seu imperativo categrico, baseado no

poder da autodeterminao. Ocorre uma relao entre a noo de sensibilidade e entendimen-

to, em Kant, e a noo de perda de evidncia, em Adorno, quando o entendimento no mais

encontra material confivel para o ato de sntese. Mesmo no tendo sido pontuado por A-

dorno, com a concepo de constelao e contedo de verdade, ocorre uma possvel soluo

para tal problema. No centro da concepo de pensamento ps-metafsico est a ideia de de-

terminao e de verdade portadora de ncleo temporal, contrariando radicalmente a concep-

o tradicional das ideias eternas e imutveis de Plato, ou do critrio transcendental do tem-

po e do espao em Kant. Assim que, partindo do princpio temporal, o critrio da histria

em sua transitoriedade, o outro constante desafio, nunca simples ideia ou resultado final.

Partindo dessa compreenso, o terceiro captulo visa propor as crticas ao imperativo

categrico, alegando a impossibilidade de, mediante a fora de tal imperativo, objetivar o rei-

no dos fins. O amor ao dever gera um vnculo baseado estritamente no critrio de coerncia

lgica como fundamento para a ao moral, fazendo o humano to abstrato que perde a efeti-

vidade dos vnculos concretos. Se junta a isso o problema de que no possvel vislumbrar,

nas trs obras sobre moral (Crtica da razo prtica, Metafsica dos costumes, Fundamenta-

o da metafsica dos costumes), o modo como o ser humano desenvolve a conscincia moral.

Do mesmo modo, no so evidentes as condies que permitem ocorrer, efetivamente, a tran-

sio da conscincia moral vulgar para uma metafsica dos costumes.

No quarto captulo o desafio estabelecer as bases tericas para a concepo de su-

jeito esttico em Adorno, e o que demarca o mbito artstico nesse autor, ou seja, quando uma

obra pode ser considerada arte. Conseguindo situar este sujeito e o mbito da obra de arte,

torna-se possvel compreender o real desafio racionalidade diante da constante reserva de

sentido que compe o outro, o diferenciado. Na concepo de sujeito esttico encontra-se a

possibilidade de realizao da dialtica do esclarecimento, esse processo de sada do ser hu-

18

mano de seu estado de menoridade, rumo a um patamar de entendimento que, ainda em Kant,

chama-se esclarecimento e autonomia.

Finalizando o itinerrio terico, o quinto captulo visa localizar qual a significao -

tico-educativa que surge a partir dessa concepo de sujeito esttico. Recorro a alguns concei-

tos decisivos e que representam um incisivo desafio educao. Refiro-me especificamente

noo de sensibilidade, identificao, vnculos de responsabilidades, clulas de humanidade,

comunicao de diferenciados, em contraposio ao ideal de ser humano e sociedade atomi-

zados. A educao deve gerar a paz, o que, em Adorno, se caracteriza como a possibilidade de

comunicao entre diferentes, sem nsia de domnio, cuja marca est na ausncia do medo,

no do desconhecido que gera o mito, mas de poder ser diferente sem temor, sem o risco de

ser considerado anttese hostil. A educao , aqui, concebida a partir do plasmar lingstico,

da constituio de clulas de humanidade e como possibilitadora no novo.

Seguindo esse horizonte terico-investigativo, a educao e posta diante do desafio de

aperfeioar cada vez mais a humanidade em ns, tornando-nos aptos a coabitar com a vida

onde quer que ela esteja, a partir de sua riqueza prpria. No o pensamento que nos humani-

za, ele somente nos converte em animais racionais. Cabe ao movimento de esclarecimento da

conscincia, gerar as condies para que a vida seja possvel neste local que habitamos. Ou

seja, constituir o meio prprio que possibilita a humanidade, o que no se fundamenta em um

puro amor ao dever, ou coerncia lgica do pensamento, sendo urgente desenvolver a cons-

cincia da interdependncia universal como fundamento para a possibilidade de pensar o hu-

mano e de seu prprio existir.

1. ASPECTOS TICOS DA CONSTITUIO E DA FORMAO DO HUMANO SEGUNDO KANT

Em se tratando de filosofia e educao, ou se referindo ao termo formao, temos o

grande desafio de estabelecer os fundamentos para a constituio da subjetividade apta a pro-

duzir, a significar o conhecimento e, tambm, apta a agir moralmente. A pergunta poderia ser

sintetizada da seguinte maneira: quem , como se forma o sujeito humano, e quais as bases

ticas de tal constituio? A pretenso dessa investigao no apresentar um esquema ge-

ral das respostas que surgiram na tradio filosfica, cujo bero est ainda na tragdia grega,

mas sim, pontuar dois paradigmas que considero decisivos nesta abordagem: a busca pelos

universais fundados nos conceitos da razo, em Kant, e a defesa do singular sensvel, em A-

dorno. Destaca-se que a referncia Kant necessria para melhor apresentar a posio de

Adorno em relao defesa do singular sensvel. Desse modo, metodologicamente, a refern-

cia Kant apenas de passagem.

Diante do problema da subjetividade, o que segue uma releitura de alguns tpicos do

pensamento kantiano para, ento, pontuar a crtica adorniana aos constituintes da ideia norte-

adora, em Kant, denominada reino dos fins. Para tanto, sero percorridos dois caminhos teri-

cos, dois modos de conceber a formao moral. O ponto de partida est em como Kant com-

preende a constituio da liberdade e autonomia, de conscincia e representao, e o ideal de

reino dos fins, isso baseado nas obras Fundamentao da metafsica dos costumes (FMC),

Metafsica dos costumes (MC), e as obras magnas Crtica da razo pura (CRPu) e Crtica da

razo prtica (CRPr). O contraponto, em Adorno, segue com um dilogo entre suas obras,

buscando, no jogo de tenses textuais, que marcam sua produo, as bases da constituio

sensvel da moralidade e os fundamentos de sua afirmao de sujeito destitudo de subjetivi-

dade, ou, o fato de no haver mais sujeito.

Immanuel Kant, com o carter transcendental que define o sujeito, remete a um estrei-

tamento na noo de constituio, ou seja, como se forma o sujeito do conhecimento e o sujei-

to moral. Agora, a fora constituinte to somente interna, como condio de possibilidade de

qualquer regra prtica autnoma. Assim, no h interferncia externa, de circunstncias con-

tingentes, de um soberano, de divindades, na formao da natureza interna. Essa definida

como posse do indivduo que, no interior da experincia, interage movido pela rigidez inaba-

lvel derivada da marca constituinte do reino dos fins, ou seja, a considerao do humano

como portador de grandeza absoluta, sem possibilidade de ser meio. Essa grandeza deve estar

na base de qualquer princpio prtico ningum pode querer atentar contra o fundamento do

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reino, entendendo tal fundamento como sendo a grandeza do indivduo, ser fim em si mesmo

(cf. CRPr, MC e FMC). A noo de fim decisiva para Kant, em questes morais, como des-

taca Macarena Marey:

Um sistema de fins implica [...] no somente uma classificao de deveres ticos, mas tambm uma compreenso da moralidade, que notavelmente mais ampla que a preocupao moral dos agentes na vida cotidiana sobre a autorizao moral de suas aes [...]. A moralidade uma esfera que inclui a questo [...] sobre quais so os fins, entendidos no como meros objetos do arbtrio, mas como princpios prticos supremos que informam o plano de vida de um agente, cuja efetiva aceitao con-dio necessria de qualquer pretenso de moralidade (MAREY, 2010, p.75 tradu-o nossa).

Na tica kantiana, a conscincia desses princpios prticos supremos deveria estar na

base das aes, a partir dos quais se evidenciaria como o agente est conduzindo suas aes,

qual o seu fio condutor. Na noo de ser humano como reino de fins est, para a mesma

autora, o princpio prtico, ou o fim geral, o projeto fundamental [...] que d forma ao plano

de vida de um agente (ibidem, p.76).

No sculo XX, Theodor Adorno elabora uma crtica, principalmente com base filosfi-

co-esttica, que pode ser concebida como sendo o diagnstico da crise enfrentada pelo sujeito

transcendental e pelo almejado reino dos fins kantiano. E atribuo o adjetivo crise, no no sen-

tido de no aceitar a humanidade como fim ltimo, mas aos moldes transcendentais do sujei-

to, e aos moldes do imperativo categrico, que no conseguiram dar conta da realizao de

sua tarefa: o reino dos fins. Em outras palavras, o problema no est no reino dos fins, na hu-

manidade como fim ltimo, mas em sua ideia de fundo, na sua teoria legitimadora, a qual no

percebeu o carter determinante das contingncias histricas, que podem impor o limite da

prpria humanidade a barbrie extrema, aniquiladora de todo sujeito. Isso pelo fato de que,

como nico ser dotado de entendimento na terra, o ser humano pode estabelecer voluntaria-

mente fins para si mesmo (HFFE, 2009, p.32). Um regime totalitrio, por exemplo, pode

pretender considerar como humano apenas um determinado grupo, ou determinado modo de

vida. A base racional que pe o humano como fim prope princpios prticos altamente nega-

tivos queles que no se adequarem a essa determinada concepo de humano1.

A ideia de fundo, anteriormente mencionada e que passvel de discusso, reside no

reconhecimento da lei moral como determinante para a ao. At admite-se uma referncia

esfera prtica, mas o fundamento est dado sempre pela lei, a qual estritamente racional, e

nenhum elemento sensvel pode sustentar o dever. o que Kant chama de vontade conduzida

1 Esta discusso ser bem pontuada no quinto captulo.

21

pela representao das regras: a vontade a faculdade de determinar a sua causalidade pela

representao de regras, por conseguinte, medida que so capazes de aes segundo propo-

sies fundamentais, por conseguinte tambm segundo princpios prticos a priori (pois s

estes tm aquela necessidade que a razo exige para a proposio fundamental) (CRPr, 57).

Para Douglas Garcia Alves Jnior, a vontade, em Kant, uma faculdade pela qual o sujeito,

ao ser propriamente afetado pela sensibilidade, que lhe impe quereres, , ao mesmo tempo,

capaz de sobrepor-lhe a representao de um dever que ele mesmo concebe atravs da razo

(ALVES JUNIOR, 2005, p.41). Esta representao do dever a representao da lei moral2, a

qual, conforme a segunda crtica (64), nos ordena a sua mais estrita observncia. O ajuiza-

mento, enquanto ato do entendimento, enquanto direcionado no ao emprico, mas ao conte-

do conceitual o juzo diz o conceito no oferece muita dificuldade acerca do que, segundo

a lei moral, precisa ser feito, a ponto de que at o entendimento mais comum e menos exerci-

tado, mesmo sem experincia do mundo, no soubesse lidar com ele. Essa facilidade retm o

ser humano em um ambiente seguro, pois basta clareza lgica para aplicar a regra. Porm, da

lei moral at a ao, reside um espao que deve ser habitado pelo ser humano, a tomada de

deciso. Esse problema foi levantado por Kant, quando afirma: se a lei somente pode pres-

crever a mxima das aes, e no as prprias aes, isso constitui um indcio de que deixa

uma folga para a livre escolha no seguir (conformar-se com) a lei, isto , que a lei no pode

especificar precisamente de qual maneira algum deve agir e quanto algum precisa fazer

atravs da ao para um fim, que tambm um dever (MC, p. 233). Contudo, este espao

livre, de promessa de deciso em como agenciar a lei prtica, iluminado por um nico

pressuposto, a prpria lei moral, que est em ns como o cu estrelado est acima de ns3.

A questo que se impe, e que ser alvo das discusses : A fora provinda da lei mo-

ral e do amor ao dever suficiente para mover o ser humano a partir de um fio condutor mo-

ralmente adequado humanidade? E, como a educao poderia interferir neste processo de

constituio da moralidade e na consequente edificao do humano? Sobre esta ltima recai

todo o esforo dessa investigao.

A proposta terica aqui desenvolvida segue, alm das interrogaes acima, outros pro-

blemas: possvel defender um alargamento da experincia como sendo a base da constitui-

2 Conforme a Crtica da razo prtica a lei moral descrita nos seguinte imperativo: Age de tal modo que a mxima de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princpio de uma legislao universal (7, p.54). 3 Metfora utilizada por Kant para expressar a grandeza da lei moral no interior do ser humano. Na concluso da Crtica da razo prtica (288), afirma: Duas coisas enchem o nimo de admirao e venerao sempre nova e crescente, quanto mais frequentemente e persistentemente a reflexo ocupa-se com elas: o cu estrelado acima de mim e a lei moral em mim.

22

o da subjetividade e da conscincia moral? Em que termos se daria tal defesa? A experin-

cia pode significar um alargamento necessrio conscincia moral? Quanto de autnomo e

quanto de heternomo existe na condio humana?

Com isto fao a abertura das discusses que constituem este primeiro captulo, visando

firmar, ao final da tese, uma re-significao tico-educativa com base no sujeito ps-

metafsico ou esttico em Adorno. Neste primeiro momento pretendo, ento, realizar uma

anlise do modelo de constituio da subjetividade baseado no imperativo categrico. Alm

dos motivos j destacados, optei por seguir um dilogo com Kant devido s constantes inter-

faces que o filsofo de Frankfurt estabelece com o de Knigsberg, principalmente em ques-

tes morais, e do imperativo categrico. Fao, ento, uma leitura a partir da recepo ou re-

percusso que a proposta filosfica de Kant teve sobre a proposta filosfica de Adorno.

Kant quis que a lei moral fosse interna ao ser humano, como autonomia, princpio e lei

dados a partir da prpria razo e do amor ao dever. A questo que surge decisiva: O que

fazer com esta gigantesca lei moral interna? Como agenci-la na prtica? Nas obras bsicas

que versam sobre tica, Kant defender uma relao ntima da lei moral com as mximas de

ao, uma vez que so as mximas que esto em ntima relao com a ao mesma. Dessa

forma, a lei moral deve estar na base das mximas utilizadas na ao e, no momento das deci-

ses, devemos ter o olhar fixo no princpio do dever ditado pelo imperativo categrico. Na

Minima moralia (116, p.158), Adorno prope que se deve aprender a lidar com a moralida-

de, a senti-la e, assim, apropriar-se dela, sendo as infraes mnimas o veculo mediador

entre este imenso cu estrelado e o mundo da vida. Metaforicamente, o que ocorre em A-

dorno o retorno do telescpio, que busca o gigantesco cu estrelado kantiano, ao prprio

cho da efetividade, a fim de, na contingncia histrica, encontrar o incentivo para a ao. A

conscincia moral, o princpio interno deve ser despertado, em Adorno, pelo elemento sens-

vel, pelo limite do corpo a contingncia histrica.

1.1 A constituio transcendental do sujeito tico em Kant.

A tenso entre Kant e Adorno encontra um ponto de referncia o qual considero co-

mo dado fundamental nas noes de metafsica e experincia esttica como formas do pen-

samento filosfico.

Na Metafsica dos costumes, Kant define metafsica como um sistema de cognio a

priori a partir exclusivamente de conceitos (2008). Em outro momento expe que outra

coisa no seno o inventrio, sistematicamente ordenado, de tudo o que possumos pela ra-

23

zo pura (CRPu, A XX). Situada em uma dimenso privilegiada do saber referente ao prag-

mtico, a metafsica servir como telos e ncleo de fora ao ideal formativo, sendo a clareza

intuitiva apenas a instncia propulsora da relao de conhecimento no momento da receptivi-

dade do nosso esprito, quando somos afetados pelo objeto. O conhecimento encontra sua

culminncia na sntese operada pelo entendimento, ao sermos capazes de pensar o objeto pro-

vindo da sensibilidade (cf. Lgica transcendental, na Crtica da razo pura). Partindo do

princpio de que a verdade est situada dentro dos limites da experincia possvel, a sensibili-

dade ampliada se torna decisiva. O limite de qualquer conhecimento est, mesmo para Kant,

na impossibilidade de alcanar a coisa em-si, o elemento essencial, em palavra aristotlica.

Assim sendo, na CRPu, o conhecimento somente consegue se mover dentro do material que a

sensibilidade lhe fornece, e a verdade ocorre como resultado do jogo entre o material provin-

do da sensibilidade e a sntese que o entendimento realiza.

Na Metafsica dos costumes, ao definir o local que a lei moral ocupa dentro dos costu-

mes, Kant a coloca em situao bem distante das aes e, ao ocupar-se com ela, refugia-se em

um territrio tranquilamente livre da contingncia. A lei, em Kant e conforme exposto anteri-

ormente, pode prescrever somente a mxima da ao, e no o modo de ao propriamente

dito, de modo que a efetividade prtica est definida pela diversidade de regras prtica, a par-

tir da promessa de deciso. Mas, em questes prticas, nenhum ser humano ocupa tal refgio,

estando em constante conflito entre suas prprias mximas, a ao e a lei. Na tentativa de re-

duzir tal distncia, o autor compe a moral tanto (a) pela lei, quanto (b) pela capacidade de

cumprir tal lei e, (c) a vontade em assim fazer (cf. MC, p.240). Lei, vontade e capacidade pr-

tica formam a trade constitutiva do sujeito tico, porm, tais fatores somente so possveis de

serem considerados como posse humana, pressupondo o sujeito livre.

No pargrafo 5 da Crtica da razo prtica, em nota explicativa sobre a lei moral, a li-

berdade posta como condio para a existncia da moralidade e, por outro lado, mediante

esta que a liberdade pode ser conhecida: afirmo que a lei moral seja a condio sob a qual primeiramente podemos tornar-nos conscientes da liberdade, quero apenas lembrar que a liberdade sem dvida a ratio essendi da lei moral, mas que a lei moral a ratio cognoscendi da liberdade. Pois, se a lei moral no fosse pensada antes claramente em nossa razo, jamais nos consideraramos autorizados a admitir algo como a liberdade [...]. Mas, se no exis-tisse liberdade alguma, a lei moral no seria de modo algum encontrvel em ns.

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Falar em lei moral exige, ento, inserir a liberdade4 como algo prprio desse ser consi-

derado por Kant como fim ltimo. Liberdade e finalidade so os atributos essenciais a partir

dos quais o humano deve ser reconhecido. E assim se impe, novamente, o ser humano no

centro das discusses:

ele no coloca o ser humano no centro do mundo, mas o declara um fim que no exis-te ao mesmo tempo como meio, portanto um simples fim, um fim em si mesmo. Alm disso, numa hierarquia de fins, o ser humano constitui seu fim terminal, e at o fim terminal absoluto de toda a natureza. E essa posio ou dignidade compete, segundo o antropocentrismo5 de Kant, unicamente ao ser humano (HFFE, 2009, p.21).

Estamos diante das condies para pensar a humanidade enquanto espcie, a liberdade

e a concepo de finalidade. Ambas definem o espao a partir do qual possvel falar em mo-

ralidade.

A imputabilidade de uma ao ao sujeito, sua responsabilidade moral, somente pos-

svel pressupondo, para Kant, a condio de agente livre. Nesse sentido surge o problema dos

modelos, os exemplos em sua impossibilidade de mover para a ao, pois eles servem apenas

para encorajar, isto , pem fora de dvida a possibilidade daquilo que a lei ordena (FMC,

BA 29). Ao mesmo tempo em que Kant reconhece os exemplos como necessrios educao

moral, por outro lado, o exemplo pode se tornar prejudicial por no permitir o fortalecimento

da subjetividade, reconhecida pela autonomia. O modelo, quando tornado ideal, desconside-

rando seu carter de contingncia, impede o desenvolvimento da ousadia no pensamento, de-

fendido enfaticamente no texto Resposta pergunta: que esclarecimento. Sapere aude en-

contra o sentido pleno na medida em que permite desenvolver e assumir um comportamento

sem o guia tutorial.

Assim que nos textos da Crtica da razo prtica, Metafsica dos costumes e Fun-

damentao da metafsica dos costumes, h esta dupla perspectiva em relao tenso entre

exemplos, modelos e liberdade. H um consenso interno na teoria kantiana, pondo os modelos

como encorajadores, provando que possvel agir em plena conformidade ao dever. Porm,

eles no representam em nada o fortalecimento da moralidade em ns, pois aps acalmar os

sentimentos que o exemplo excita, o corao retorna espontaneamente ao seu movimento

4 O objetivo no , aqui, discutir detalhadamente o conceito de liberdade, mas pontu-lo brevemente a fim de situar as caractersticas juntamente com a de finalidade ltima que marcam o ser humano em sentido moral. 5 Otfried Hffe, no mesmo texto, indica que o antropocentrismo defendido simplesmente temtico: Poder-se-ia dizer que se trata de um antropocentrismo temtico, e no dogmtico, ou de um antropocentrismo relativo, e no absoluto. Este um antropocentrismo condicionado, a saber, um antropocentrismo que pressupe que se olhe a natureza do ponto de vista da espcie homo sapiens. H, alm disso, outra diferena da compreenso usual de antropocentrismo: a natureza no instrumentalizada com vistas ao bem-estar humano (2009, p.33).

25

vital natural e moderado e, por conseguinte, recai na languidez que lhe era antes peculiar,

porque na verdade lhe era oferecido algo que o estimulava, mas nada que o fortalecesse

(CRPr, 281).

O fortalecimento do sujeito para a ao tica ocorre, em Kant, a partir da conduo do

indivduo liberdade, resultando na autonomia, como fora defendido na Resposta pergunta:

o que esclarecimento. Desse movimento inicial possvel desenvolver a conscincia da lei

moral, ou seja, a orientao da mxima de ao a partir da fora da lei. O cu estrelado acima

de ns e a lei moral em ns! Esse enunciado expressa muito mais do que uma forma de ori-

entao, devendo ser contedo de conscincia: do mesmo modo que o cu estrelado, em sua

grandeza, serve de orientao, a lei moral em sua grandeza deve ser conscincia para poder

influenciar a orientao pragmtica do ser humano: o que ele faz de si mesmo, ou pode e

deve fazer como ser que age livremente (ANTR., p.21).

Nesse ponto que os exemplos e os modelos sofrem de impossibilidade, pois sua ni-

ca funo mostrar que possvel agir por amor ao dever, mas no pode ser colocado como

modelo de ao. Uma educao que se utiliza de modelos visando fortalecer a conscincia e

gerar moralidade carente de princpios, pois os modelos, quando postos na posio de prin-

cpios, podem impedir o elemento bsico da moralidade: a liberdade e autonomia. Em relao

a isso possvel aproximar Adorno de Kant, quando, em Educao e emancipao (Educa-

o-para qu?, p.141), os modelos ideais so acusados de ideologia, o que impede o pensa-

mento emancipado e crtico.

Pode-se, ento, defender que os exemplos no servem de princpios, pois no agem na

conscincia de modo a fortalecer, ou at mesmo como motivador da ao. A nica possibili-

dade de haver a tomada de conscincia mediante a representao da lei da moralidade em

relao ao ser humano individual, ou seja, a adequao do princpio ao. E isso ocorre ape-

nas quando a base da ao, seu impulso normativo, ocorre via conceito e a representao deste

na prtica humana: Princpios tm que ser estabelecidos sobre a base de conceitos [...] Ora, esses con-ceitos, se devem tornar-se subjetivamente prticos, no tm que ficar parados diante das leis objetivas da moralidade para admir-las e para apreci-las em relao hu-manidade, mas tm que considerar a sua representao em relao ao homem e sua individualidade (CRPr, 281).

Fixando a distino entre princpios e exemplos, esses podem gerar apreo e admira-

o, servindo de incentivo ao ajuizamento em contedos morais. Mas, no podem servir de

incentivos ao mesma, o que exige a fora motriz dos princpios, os quais so originados

26

pela faculdade do entendimento, no da sensibilidade. Seguindo as linhas da Crtica da razo

pura, os conceitos se originam da matria-prima fornecida pela intuio, a qual sensvel.

somente nesse sentido que os exemplos podem ter utilidade, movendo a faculdade do enten-

dimento a operar a sntese deste diverso, em uma ligao sinttica, resultando em conscincia.

Assim, possvel a existncia do eu idntico (oposto heteronomia), este sujeito possuidor de

si mesmo e capaz de mover-se pela representao desta carga de conscincia: Tudo na natu-

reza age segundo leis. S um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representao

das leis, isto , segundo princpios, ou: s ele tem uma vontade (FMC, BA 36). O que temos

aqui que, pela sntese, ocorre o surgimento de princpios, nica via constituidora de uma

fora subjetiva para mim.

Essa constituio do sujeito moral em Kant cujo percurso encontra nos exemplos a-

penas um estmulo, havendo necessidade da formao da conscincia mediante a sntese do

material apreendido pelos sentidos, convertendo-os em conceitos, sendo que a partir de sua

representao originada a ao moral definida como transcendental. O sujeito transcen-

dental est edificado com base metafsica, pois a possibilidade de determinao supera a con-

tingncia histrica e se fixa nas bases conceituais estveis, fruto das representaes e, deste

modo, limitando a influncia das experincias efetivas com o objeto. Este o curso que o m-

todo da razo prtica assume, constituindo a subjetividade enquanto fora para mim, baseada

no poder da liberdade interior de desembaraar-se de tal modo da impetuosa impertinncia

das inclinaes, que absolutamente nenhuma, mesmo a mais benquista, tenha influncia sobre

uma resoluo para a qual devemos servir-nos agora da nossa razo (CRPr, 287). A forma-

o da conscincia a partir da crtica da razo em Kant segue, ento, esse trajeto descrito, com

sua consequente constituio do princpio supremo da moralidade. esse um dos pontos deci-

sivos de contraposio surgidos a partir do estudo da obra de Theodor Adorno, o que ser

desenvolvido no decorrer do texto.

1.2 O ideal de Reino dos fins e a determinao moral do sujeito transcendental.

O plano intelectual da Crtica da razo pura, apresentado no prefcio segunda edi-

o, aponta para a exigncia de relao com a natureza a partir do imperativo racional de no

se deixar guiar por nada que esteja aqum da posio de juiz que dita as regras e obriga a res-

postas conforme sua prpria pretenso de esclarecimento. Ao definir isso como sendo atributo

da razo que s entende aquilo que produz segundo os seus prprios planos; que ela tem que

tomar a dianteira com princpios que determinam os seus juzos segundo leis constantes e

27

deve forar a natureza a responder s suas interrogaes em vez de se deixar guiar por esta

(CRPu, B XIII), ao apresentar tal plano, Kant abre espao para a interferncia direta da razo

pura, livre de contingncias empricas, em relao aos princpios ticos.

Em termos morais, a razo precisa ser a produtora de suas leis e orientadora de suas

aes, pois sos seus princpios que devem estar na dianteira tanto dos ajuizamentos quanto

da prpria atividade humana inserida no mundo. Temos em Kant, a indicao de que o con-

tedo da lei moral em geral e o contedo concreto de determinadas mximas que se possam

derivar dela no so determinados pelas disposies morais do nimo. Nesse sentido, Kant

inequivocamente um racionalista: somente a razo (reflexo), e no um sentimento, formula a

lei moral e determina, com isso, quais aes so ordenadas (SCHNECKER, 2009, p.57).

A moralidade, entendida como a adequao do agir humano ao princpio racional de-

nominado lei e sendo, ento, de cunho emprico, consequncia desta situao de autonomia

caracterstica do sujeito que fora a natureza a guiar-se por tal lei constante. Nessa perspectiva

Kant cunha a concepo de autonomia da vontade. Contrapondo-se possibilidade de deter-

minao externa e, portanto, contingente, a autonomia revela a capacidade de fazer uso do

prprio entendimento, conforme enunciado no texto Resposta pergunta: que esclareci-

mento.

Na Fundamentao da metafsica dos costumes, a vontade caracterizada como a fa-

culdade de se determinar a si mesmo a agir em conformidade com a representao de certas

leis (BA 63). Desse modo, a determinao moral ocorre via representao, sendo essa, resul-

tado da conscincia da lei moral em ns. Isto foi analisado anteriormente, porm, vale ressal-

tar que este agir em conformidade com a representao da lei, significa guiar-se pelos princ-

pios de conscincia fixados pelo entendimento, em seu ato sinttico de congregar as represen-

taes em um conceito cuja fora determina a vontade.

Voltando autonomia, ocorre um auto-forar a natureza a seguir alguns critrios.

Em se tratando de seres racionais, os nicos em que possvel admitir a autonomia como cri-

trio, a vontade aquela sua propriedade graas qual ela para si mesma a sua lei (inde-

pendentemente da natureza dos objetos do querer). Dessa forma, o princpio da autonomia

no escolher seno de modo a que as mximas da escolha estejam includas simultaneamen-

te, no querer mesmo, como lei universal (FMC, BA 87).

Essa referncia eleva o sujeito transcendental para alm da dimenso epistemolgica.

Apesar de a Crtica da Razo Pura ter o carter estrito de reformular as bases para o conheci-

mento, ao afirmar que foge capacidade de entendimento racional toda determinao alheia

ao uso puro da razo, compreende-se que, em termos de conduta prtica, toda lei deve, para

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ser reconhecida pela razo, partir de sua necessidade. O plano de se deixar guiar por vontade

alheia no encontra legitimao na razo pelo simples fato de no ter sido ela a movedora de

tal plano e, inclusive, da minha vontade. Este o pressuposto da maioridade em Kant: que

toda ao feita por mim possa ser reconhecida pela minha razo como devedora total sua

necessidade.

Kant faz uma advertncia para no confundir a moralidade como pertencente filoso-

fia transcendental, pois falar em transcendental exige o entendimento de que nela no entra conceito algum que contenha algo de emprico, ou seja, vigiar para que o conhecimento a priori seja totalmente puro. [...] Da resulta, que os princpios supremos da moralidade e os seus conceitos fundamentais, sendo embora conceitos a priori, no pertencem filosofia transcendental (CRPu, B 28).

No entanto, apesar de as questes morais estarem ligadas contingncia, o princpio

de lei que orienta toda moralidade precisa daquele assentamento. Sendo assim, pode at no

haver pertena em questes prticas, mas a lei do agir dada estritamente pela razo. Desse

modo, o mbil sempre dado pelo sujeito transcendental, nas suas condies de possibilida-

de, a priori, em conceber no apenas uma verdade epistemolgica, mas a legitimidade e reco-

nhecimento da lei.

Estamos diante do fato da razo, e sendo assim faz-se necessrio estabelecer as bases

firmes deste fato. Ou seja, imprescindvel ter claro que, para Kant, como j fora mencionado

anteriormente, todo conhecimento, para ser digno de considerao cientfica e estar legitima-

do racionalmente, precisa partir do princpio que a prpria razo no reconhece aquilo que

produzido segundo planos a ela estranhos. Ao afirmar que no se pode buscar a fundamenta-

o para a verdade a no ser na convico racional, o deslocamento que ocorre aponta para a

superioridade da natureza interna sobre a externa. Esta precisa ser controlada por aquela e,

apesar de constantemente estarmos em busca da objetividade a fim de colocarmos em movi-

mento nossa capacidade de conhecer (cf. CRPu, B 1), isso no ocorre sem mais: a razo deve

ir ao encontro da natureza, para ser por esta ensinada, certo, mas no na qualidade de aluno

que aceita tudo o que o mestre afirma, antes na de juiz investido nas suas funes, que obriga

as testemunhas a responder aos quesitos que lhes apresenta (CRPu, B XIII).

Em relao natureza interna isto assume um carter decisivo na eticidade: onde est a

base da lei de conduta? O querer no pode ser guiado por questes alheias ao si prprio; toda

ao deve ser pautada pela vontade consequente desse querer, e isso por no haver o reconhe-

cimento, tanto de um governo divino, quanto do humano em outra pessoa a no ser a primeira

do singular, o eu mesmo, como ncleo de fora para o agir. A razo no reconhece aquilo que

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no por ela ditada, e assim est estabelecida a base para a maioridade, e para a edificao do

estado humano autnomo. A pergunta de onde provm a lei? deveria ter como resposta i-

mediata: provm da razo e pela razo. Assim sendo, o estreitamento da noo de constitui-

o configurado na necessidade do reconhecimento da lei pela razo remete, em Kant, ao es-

treitamento na noo de facticidade: somente estou autorizado a realizar aquilo que corres-

ponde lei reconhecida pela razo.

Mas, o que lei? Na Fundamentao da metafsica dos costumes encontramos uma

definio elucidativa: o princpio objetivo do querer6, ou seja, a regra assentada em moti-

vos vlidos para todo ser racional (cf. FMC, BA 63). Quando a razo tem a possibilidade de

reconhecer uma ao gerada por sua lei estamos diante da impossibilidade de ao danosa,

moralmente imputada, pois o princpio da razo se assenta na validade para todos os seres

racionais. Em outras palavras, para que seja lei necessrio que no ocorra a possibilidade de

a razo mesma ser vtima da regra. Por isso que o fim objetivo assume o carter de universali-

dade e necessidade. Em termos aristotlicos, necessrio aquilo que no pode no ser o

princpio supremo da obrigao.

Retomando argumentao acima, a considerao de todos os seres racionais (carter de

universalidade) envolvidos na necessidade objetiva, encontra a denominao de reino dos

fins. Conforme j visto, esta uma noo decisiva em Kant, pois gera uma concepo de hu-

manidade derivada da fora moral (da ao por dever) consequente da fora da lei (fundamen-

to do dever). A humanidade estabelecida atravs da fora moral apoiada no amor ao dever

encontra a obrigatoriedade das aes nesse amor, na segunda formulao do imperativo cate-

grico, que assim dita: Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como

na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente co-

mo meio (FMC, BA 66-67).

Em Sobre a discordncia entre moral e a poltica a propsito da paz perptua, est

expressa a soberania da conscincia no ordenamento do agir humano. impossvel que, uma

vez admitido o dever enquanto princpio interno e a constituio da vontade a partir de tal,

no haja a possibilidade de agenciamento prtico a partir do princpio do dever. Em suas pa-

lavras postula-se que um absurdo algum, depois de ter admitido a autoridade deste concei-

to do dever, querer dizer que no se pode realiz-lo (2009, p.79). Essa postura rgida de Kant

representa sua inteno em constituir uma subjetividade que se move unicamente pelo princ-

pio da autonomia que somente a lei interna pode proporcionar. O motivo moral est no cum-

6 Conforme nota explicativa de Kant em BA 15.

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primento da lei, sendo esse o motivo da ao. Em relao a esse motivo, Kant est analisan-

do o conceito prprio de uma lei moral: dada uma lei, se ela moral, devemos segui-la incon-

dicionalmente, precisamente por ela ser moral (MAREY, 2010, p.79 traduo nossa). Estri-

tamente no sentido moral da lei, est, ento, o critrio de deciso para a adequao da ao

moralidade. Esta a centralidade da frmula: a autorizao para atuar surge, especificamente,

do procedimento de universalizao enunciado na frmula imperativa da lei geral (MA-

REY, 2010, p.79 traduo nossa).

A ao moral livre, isto , no passvel de influncia heternoma. Ao romper com

todo determinismo externo aberta a possibilidade de realizao do dever por uma nica via:

sendo um princpio interno, no posso no querer sua realizao. A questo se possvel, no

momento da ao, a vontade humana se guiar unicamente pela conscincia do princ-

pio/frmula do dever. Ao defender positivamente essa questo, Kant fixa a liberdade, a partir

do princpio formal, como base da moralidade: Para fazer a filosofia prtica concordar consigo mesma necessrio em primeiro lu-gar resolver a questo de saber se nos problemas da razo prtica deve-se tomar co-mo ponto de partida o princpio material dela, a finalidade (como objeto da livre vontade), ou partir do princpio formal, isto , daquele (estabelecido somente com relao liberdade nas relaes externas) assim enunciado: age de tal maneira que possas querer que tua mxima se torne uma lei universal (qualquer que seja a finali-dade desejada por ti) (SDMP, p.86).

A concepo anteriormente desenvolvida dita a construo dos princpios atravs da

sntese operada pelo entendimento sobre o diverso da intuio sensvel, resultando em conte-

do de conscincia impulsionadora da representao deste princpio (lei) em relao ao ser

humano particular. A partir dessa concepo que se insere o conceito de liberdade como

suporte que garante a representao da lei ao. Isso se torna compreensvel quando relem-

bramos a recusa de Kant a toda forma de determinao, pois ela externa e, por isso, no cor-

responde ao conceito de liberdade, sendo este, resultado da ao mediante a representao da

lei, a qual contedo de conscincia. Para ser livre necessrio que a vontade seja impulsio-

nada por um princpio interno a ela: estamos diante da autonomia da vontade.

Mas seria simplista entender a liberdade de escolha, em Kant, apenas na perspectiva

de a vontade no ser determinada por impulsos sensveis ou determinaes externas (instintos,

paixes). Ampliando essa concepo, liberdade capacidade da razo pura ser, por si mes-

ma, prtica possvel somente pela qualificao da mxima da ao como lei universal (MC,

p.63). No se entende o arbtrio livre unicamente como oposio natureza que manda, mas

submetida razo que prescreve a lei na forma de imperativo: lei que comanda ou probe de

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maneira absoluta, sem possibilidade de no o ser. Desse modo, a vontade somente ser livre

quando a fora legislativa da mxima servir como lei. visto que a lei algo em si positivo, a saber, a forma de uma causalidade intelectual, isto , da liberdade, assim, na medida em que ela, em contraste com uma contra-atuao subjetiva, a saber, as inclinaes em ns, enfraquece a presuno, ao mesmo tempo um objeto de respeito e, na medida em que ela at a abate, isto , a humilha, um objeto do mximo respeito (CRPr, 130).

dada lei a fora de ser causalidade e, por ser contedo de conscincia, forma da

liberdade. A lei forma de causalidade que abate as inclinaes, ou seja, anula, em sentido

prtico, o efeito da felicidade prpria e, nesse sentido, moral, pois considera o humano como

finalidade, no ideal de reino dos fins. Assim se entende o sentido da liberdade, a possibilidade

de no ser guiado nem pela determinao natural, o que seria ligado contingncia e, tam-

pouco, pela subjetividade egosta. Nesse sentido, liberdade e autonomia so as caractersticas

prprias do ser dotado de razo.

A liberdade , ento, transcendental, condio de possibilidade, no apenas de ruptura

com os ditames da natureza, mas de se converter em lei universal e necessria para a ao. O

princpio que permite o movimento no outro que a representao da lei na ao humana.

Kant identifica a ao desprovida de liberdade a um autmato, algum que age como mqui-

na, sem raciocnio e vontade prpria. Se segussemos apenas um mecanismo da natureza, en-

to a ao no seria melhor que a liberdade de um assador giratrio, o qual, uma vez posto

em marcha, executa por si os seus movimentos (CRPr, 174), quando no h a representao

da ao como necessria e originada por um princpio racional.

Conceber a determinao moral do sujeito exige, como linha reguladora, a noo de

reino dos fins. Essa noo est de acordo com o ideal de sociedade, proposto tambm no texto

Ideia de uma histria universal de um ponto de vista cosmopolita. Defendendo a necessidade

de um mundo cosmopolita, isso ocorreria pelo equilbrio entre os antagonismos gerais e o

direcionamento das foras em direo realizao do mais alto propsito da natureza em ns:

a ligao mediante um poder irresistvel, o qual congrega a liberdade de cada um em co-

habitao com a liberdade dos outros. Isso seria a sociedade, que, em outras palavras, deve ser

entendida como devendo estar regulada pela ideia de reino dos fins. Essa relao fica ainda

mais evidente quando Kant expe o conceito de reino: a ligao sistemtica de vrios seres

racionais por meio de leis comuns (FMC, BA 74). Assim ocorre a tentativa de edificar a ple-

na igualdade entre os homens, quando, apesar dos antagonismos, todas as foras so orienta-

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das a um objetivo comum: constituir a civilizao, entendida como o uso da ideia de morali-

dade.

A obrigatoriedade de uma ao est na promoo e preservao desse reino e nenhum

fator subjetivo pode desviar o seguimento do dever. Isso significa que nenhum mbil pode

desviar o querer orientado pelo elemento objetivo do querer tal a fora que o imperativo

categrico d ao sujeito envolvido na ao: uma pureza de intenes incapaz de romper a lei.

E nesse meio que surge um limite ao ideal tico-moral kantiano, pois, no mbito da razo

pura, exige-se um indivduo com uma rigidez de carter no realizvel no plano da contingn-

cia histrica. necessrio considerar o dinamismo, a incerteza histrica como constituinte do

humano. Estaramos diante de um limite para a razo pura como fixadora do alcance do ali-

cerce tico? Para justificar e fundamentar a afirmao acima, recorro a Theodor W. Adorno.

2 THEODOR ADORNO E A CONCEPO DE PENSAMENTO PS-METAFSICO.

2.1 Discusso em torno do conceito de sujeito.

Theodor Adorno leva ao extremo a crtica formao da subjetividade e, consequen-

temente, define um novo olhar sobre quem , ou o que aquilo que chamamos sujeito. Anali-

sando a trajetria de sua produo intelectual, possvel relacionar sua crtica subjetividade

tanto como uma contraposio ao transcendental de Kant, quanto ao pensamento grego anti-

go, mas especificamente em Aristteles. Considero essa tenso fundamental e a interpretao

que proponho avana para a noo de que os seres humanos se converteram em sujeitos des-

providos de subjetividade (MM, 33, p.467). Quem , realmente, esse sujeito e em que termos

ocorre este desprover de sua prpria subjetividade?

Na Metafsica, o termo sujeito posto por Aristteles como um dos sentidos de subs-

tncia, assim definido-a como a essncia, o universal, o gnero e o sujeito: E o sujeito aqui-

lo sobre o qual so ditas as demais coisas, sem que ele, por sua vez, seja dito de outra (VII, 3,

1028b, 36). Essa concepo encontra em seu centro a indicao de um elemento fundamental,

a noo de determinao, condio para qualquer conhecimento. Nada possvel dizer sem

considerar esta origem epistemolgica, que em Aristteles a substncia, identificada em um

sentido com o sujeito. Substncia sujeito, em seu sentido enftico, a origem de todo o devir,

fora originria e que , legitimamente, em-si. Os atributos somente predicam algo em refe-

rncia a um sujeito, no caso, o sujeito congregador das predicaes/determinaes a subs-

tncia, e aquelas no existem fora dessa. Ou seja, somente so em atribuio ao sujeito.

Apesar de Aristteles no ter concebido o termo autonomia, contudo, este em-si/si-

mesmo, independente de determinaes, pode ser entendido como um prenncio desse termo.

Aristteles traz para o interior do ente a capacidade de automover-se. No o sentido kantia-

no de autonomia ou maioridade, tampouco o sentido adorniano de emancipao, mas indica a

possibilidade ainda clssica de compreender o sujeito como portador de um poder intrnseco

capaz de constru-lo, mesmo que ainda em potncia, visando um fim.

Esse elemento determinante, porm no determinado, servindo assim de origem ou

suporte para todas as modificaes que algo venha a sofrer, chamado por Aristteles de hy-

pokeimenon. Em referncia a este termo, para Hans-Georg Gadamer, a palavra significa a-

quilo que se encontra na base. assim que a palavra vem ao nosso encontro na fsica e na 7 As chamadas referentes s citaes da obra Minima Moralia (MM), de Theodor Adorno, seguem a seguinte ordem: abreviatura da obra, nmero do aforismo, seguido do nmero da pgina, conforme a traduo ao portu-gus de Luiz Eduardo Bicca.

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metafsica de Aristteles [...] e significa aquilo que se encontra inalteravelmente base da

mudana de todas as transformaes (2007, p.11).

A questo sobre a possibilidade de retirar significao desse fundamento grego em

relao Teoria Crtica de Adorno. A soluo que proponho gira em torno de uma crtica da

cultura. Partindo da concepo grega, o sujeito a fora original em tudo o que h e que per-

mite a realizao das possibilidades, servindo como determinao para todas as mudanas que

venham a ocorrer. fora original por ser prpria do indivduo e no ser passvel de nenhuma

alterao: deriva, no sendo derivada. O que Adorno percebe que em pocas de administra-

o da cultura, nada escapa ao controle, nem mesmo esta substncia prpria. Este em-si origi-

nal se converte, conforme apresentado em Dialtica do esclarecimento (p.24), em para-ele.

possvel atribuir Paideia grega a concepo desse valor interior, porm igual-

mente possvel atribuir nossa sociedade contempornea sua conduo a um valor objetivo,

como posse no mais do indivduo, mas da prpria estrutura scio-cultural que o determina.

Estamos diante de algo desprovido de subjetividade. Este que Aristteles quis como portador

de um ncleo de fora originrio foi convertido em algum vazio desta prpria fora, tendo

esta migrado para esferas a ele exteriores. Em se tratando de seres humanos, tendo sido o po-

der de determinao a ele alienado, totalmente compreensvel a padronizao de comporta-

mentos e modos de pensar. Aquele que deveria ser o sujeito est carente de sua fora, e aquilo

que deveria ser as derivaes da ao de tal sujeito (a cultura, as instituies, o econmico...)

acaba se convertendo em substrato, o elemento essencial que determina externamente o indi-

vduo. Sobre a menoridade do indivduo diante da cultura, Rodrigo Duarte afirma: o sujeito

experimenta exatamente na poca em que os seus meios tcnicos de dominao da natureza

se encontram mais desenvolvidos sua degenerao em mera coisa, sendo que o mundo fsico

a ele subordinado transfere sua selvageria para o seio da cultura, mbito em que, por defini-

o, a autoconscincia do sujeito deveria se colocar como alternativa inconscincia da natu-

reza (1997, p.52)

A derivao primeira dessa constatao ocorre em termos tico-morais. O sujeito mo-

ral , em Kant, o sujeito capaz de se determinar, aquele cuja vontade movida por um princ-

pio interno legislador universalmente. O substrato est no princpio da vontade de um ser ra-

cional capaz de legislar em favor de uma causa comum: o bem, em sentido efetivo de realiza-

o do humano em sua dignidade. Esta misso legisladora e constituidora do reino dos fins

kantianos exige nada menos que a existncia do sujeito enquanto possuidor de subjetividade

forte e autnoma. Em se tratando da ao humana, seja em Kant ou Adorno, a existncia do

sujeito condio para toda a teoria da moralidade. Como persistir na fundamentao via

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imperativo categrico quando ocorre a anulao da fora autnoma do indivduo, como que

perdendo seu poder subjetivo determinante, seu em-si (seja aristotlico ou kantiano)?

Nessa anlise cabe uma crtica ao prprio si. Adorno no concebe uma constituio

metafsica do si, mas o percebe como constitudo em conexo com outros si. O sujeito que

supostamente em si est em si mediado por aquilo do qual se separa, a conexo de todos os

sujeitos. Atravs da mediao se converte ele mesmo naquilo que, segundo sua conscincia de

liberdade, no quer ser: heternomo (DN, 20058, p. 201). Nesses termos, a subjetividade no

um dado causal totalmente intrnseco ao ser humano, como o hypokeimenon aristotlico ou

o transcendental em Kant, mas definido mediante as circunstncias histricas nas quais ele

est inserido. Para ser em-si necessrio tambm ser com-outro. O que ocorre , em Adorno,

uma volta incisiva ao sujeito, agora sob novas configuraes, marcadas pela experincia com

outros sujeitos, pois enquanto a indstria cultura e os donos do poder querem sujeitos enfra-

quecidos para melhor se adaptarem ao sistema que os devora, Adorno prope a reconstruo

da individualidade do sujeito na experincia com outros sujeitos, para que essa individualida-

de seja fonte impulsionadora de resistncia (PUCCI, 2006, p. 407).

Mas como garantir que a individualidade no desaparea ou sucumba impotncia

diante da fora da alteridade? O que h de autnomo e de heternomo nesta constituio? A

isso Adorno remete em inmeros textos, sempre enfatizando a necessidade de, ou constituir

conscincia, ou elevar o nvel de experincias formativas. Os quais no deixam de estar em

ntima inter-relao, pois os contedos de conscincia e o prprio ato de conscincia so for-

mados somente pela radical insero na experincia.

Dessa forma, ao tratar do termo conscincia, Adorno vai alm do procedimento lgico

formal que constitui o pensamento:

o pensar em relao realidade, ao contedo a relao entre as formas e estrutu-ras do pensamento do sujeito e aquilo que este no . Este sentido mais profundo de conscincia ou faculdade de pensar no apenas o desenvolvimento lgico formal, m