O EXERCÍCIO DE CIDADANIA NO PENSAMENTO DE MARTINHO...

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1 UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE RICARDO DA MOTA LEITE O EXERCÍCIO DE CIDADANIA NO PENSAMENTO DE MARTINHO LUTERO SÃO PAULO 2006

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

RICARDO DA MOTA LEITE

O EXERCÍCIO DE CIDADANIA NO PENSAMENTO DE MARTINHO LUTERO

SÃO PAULO 2006

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

RICARDO DA MOTA LEITE

O EXERCÍCIO DE CIDADANIA NO PENSAMENTO DE MARTINHO LUTERO

SÃO PAULO 2006

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto-Sensu em Ciências da Religião, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião. Orientadora: Drª Márcia Mello Costa De Liberal

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

RICARDO DA MOTA LEITE

O EXERCÍCIO DE CIDADANIA NO PENSAMENTO DE MARTINHO LUTERO

BANCA EXAMINADORA

Profª Drª Márcia Mello Costa De Liberal Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dr. Ronaldo de Paula Cavalcante Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dr. José Rubens Damas Garlipp Universidade Federal de Uberlândia

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto-Sensu em Ciências da Religião, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião.

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Dedico este trabalho à comunidade evangélica do Brasil que, por questão

histórica e sob a instrumentalidade de Deus, poderia dar uma contribuição mais

efetiva na conquista de mudanças sociais que beneficiariam muitos seres

humanos, dando-lhes muito mais que uma identidade religiosa institucionalizada,

mas, sobretudo, uma cidadania responsável possibilitando dias mais amenos com

menos desigualdade e injustiça evidenciando os valores do Reino de Deus,

ensinados exaustivamente por Jesus, o Cristo.

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AGRADECIMENTOS A Deus por ter me dado a oportunidade e disposição em chegar ao final de

mais este projeto na vida. Entendo que tal proeza soma às muitas outras bênçãos

que tenho recebido decorrentes do relacionamento com Ele. Sendo assim, a Ele,

toda a glória;

À professora Márcia De Liberal, que desde o primeiro dia de aula, revelou

ser uma verdadeira amiga e colaboradora. Mesmo com tantas responsabilidades,

aceitou o desafio e me orientou na elaboração deste trabalho;

Ao amigo professor Valdemar Ribeiro Filho que sempre se mostrou

paciente em ouvir-me e ler meus escritos;

Agradeço à minha amiga e fiel esposa Gislane, ao meu primogênito Tércio

e à minha filha Talita pela motivação em ocasiões tão propícias.

À Igreja Presbiteriana Central de Uberlândia, instituição que tenho a honra

de servir, pelo apoio e compreensão demonstrados no meu período acadêmico.

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“Quando uma sociedade não pode ensinar, é que esta sociedade não

pode ensinar-se, é que ela tem vergonha, tem medo de ensinar a si

mesma; para toda a humanidade, ensinar, no fundo, é ensinar-se; uma

sociedade que não ensina é uma sociedade que não se ama, que não se

estima; e este é precisamente o caso da sociedade moderna”.

Charles Péguy

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RESUMO

O presente trabalho é resultado de pesquisa que propõe estudar a Reforma

Protestante em busca de um significado além do que, comumente se entende, um

movimento religioso. Martinho Lutero embora cresse em um mundo espiritual, um

reino espiritual, também cria na possibilidade de se viver no mundo terreno de

forma mais digna. Qualquer pessoa que sonha com isso e se movimenta em

direção a este ideal, pensando no bem comum, revela ser um cidadão que ama a

ética e sua prática, a cidadania.

Palavras-chave: Martinho Lutero, Cidadania e bem comum.

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ABSTRACT

The present work is the result of research with the aim of studying the Protestant

Reform seeking meaning beyond what is commonly understood by religious

movements. Although Martin Luther believed in a spiritual world, a spiritual

kingdom, he also believed in the possibility of living in a more worthy secular world.

Any person who dreams as of this ideal and moves himself in this direction, is

pursuing a common goal for everyone, and reveals himself to be a citizen who

loves ethics and its practice, citizenship.

Key Words: Martin Luther, citizenship and common goal.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DE CIDADANIA 21 REFORMA, CIDADANIA E HUMANISMO 44 REFORMA, CIDADANIA E ECONOMIA 59 REFORMA, CIDADANIA E MUDANÇA SOCIAL 69 REFORMA, CIDADANIA E EDUCAÇÃO 85 CONCLUSÃO 97 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 106

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INTRODUÇÃO

Este projeto de pesquisa pretende mostrar no pensamento de Lutero, o

exercício de cidadania, revelado em algumas atitudes do reformador,

especialmente no que se refere à liberdade de consciência. A busca de tal ideal

poderia ter sido o grande motivador para que o saber fosse buscado por todos e a

atividade profissional vista também como uma vocação mesmo não sendo

religiosa. A universalidade do “saber”, como direito do povo em aprender para

escolher seus líderes, sua religião e atividade profissional sem sentimento de

culpa.

A tentativa de desassociar o saber da tutela teológica só poderia ter

causado desenvolvimento e fortalecimento de um e outro.

Se assim é, o movimento da Reforma não pode ser visto apenas como um

movimento religioso institucionalizado sem implicações sociais. Entende-se que a

Reforma Protestante é um princípio que deve ser preservado como conquista

sócio-religiosa cujos princípios devem nortear o pensamento de todos aqueles que

visam o bem comum.

É verdade que, entre os historiadores, o mais comum é dar conotações

religiosas ao movimento protestante do séc. XVI na Alemanha. Mas, a questão é:

a Reforma Protestante não foi também um movimento nacionalista alemão? Não

teria sido basicamente uma questão política? A Reforma não teria sido por

questões econômicas, considerando uma alta inflação e taxas abusivas exigidas

pela igreja, a somatória de todos esses fatos? Uma economia manipulada não

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daria à Reforma uma razão muito mais social do que religiosa? A Reforma

Protestante foi, sem dúvida, um fator importante para provocar mudanças sociais

na Alemanha e em toda a Europa. A ruptura com o catolicismo, estabelecendo

uma nova ética, afetaria todo o mundo que já estava entrando em uma nova era, a

era moderna.

Pode-se afirmar que a Reforma Protestante do século XVI girou,

predominantemente, sobre o eixo religioso daquela época. Todavia, é óbvio que

movimentos tão amplos assim, nunca estão desassociados de muitos outros

fatores. Em uma época singular socialmente falando, o movimento reformista

encontrou forças. Como veremos, o cenário estava montado, com notória

contribuição do movimento humanista coroado com a possibilidade de

comunicação ampla pela descoberta da imprensa. Enquanto alguns simpatizantes

do movimento estavam enfatizando a presença das imagens e pinturas nos

templos, as vestimentas dos padres, o celibato do clero, e outros exercícios

religiosos, Lutero enfatizava questões mais profundas como a “justificação

somente pela fé” e o “sacerdócio universal dos crentes”. Esses eram assuntos que

não poderiam ser ignorados. Para Lutero se a Bíblia não proibia determinada

atividade e se não depunha contra o bom senso, não havia nenhuma razão para

interrompê-la. Mas, as implicações sociais produzidas pela Reforma iriam se

revelar à medida que os assuntos começassem a ser questionados. Lutero teria

que, com muita rapidez, formular um tipo de código de ética e cidadania usando a

imprensa como a grande aliada. Se os monastérios começaram a ter

ensinamentos rejeitados, pois conferiam salvação automática conforme as obras

realizadas, uma nova educação deveria surgir para que os jovens não fossem

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mais enganados e nem os pais ludibriados. Um novo modelo de educação deveria

então ser formulado, onde os jovens poderiam estudar outras matérias além da

teologia e sua vocação não seria tão somente religiosa. Ver um filho jurista,

médico, professor ou exercendo qualquer outra função, deveria ser algo desejado

pelos pais dos jovens alemães. Lutero ensinava que todo trabalho tinha o mesmo

valor aos olhos de Deus. Este conceito de “vocação” teria implicações sócio-

econômicas que ninguém poderia prever naquela época. O mundo moderno

testemunharia as reais implicações deste conceito reformado de vocação.

Alguns historiadores podem ver muitas outras implicações políticas e

sociais da Reforma, como Nelson e Cláudio Piletti enumeram:

A expansão marítima e comercial fortaleceu a burguesia européia,

interessada na reforma religiosa que lhe desse mais liberdade de

ação; para os protestantes, os homens não se justificavam pelas

obras – controladas externamente pelo clero -, mas pela fé, que é

íntima e individual. A partir do protestantismo os lucros deixaram de

ser condenados e passaram a ser vistos como expressão da vontade

de Deus e prova de sucesso na vocação escolhida pelo indivíduo, o

que favoreceu o desenvolvimento do capitalismo. Com a queda do

feudalismo e o surgimento dos Estados centralizados, o poder real

entrou em conflito com a Igreja. Em sua luta contra os obstáculos por

ela criados com relação ao fortalecimento do poder dos reis, estes se

viram apoiados pelos reformadores protestantes. O renascimento

cultural desenvolveu uma cultura centralizada no homem, e não mais

em Deus, e favoreceu o surgimento do espírito crítico e do

individualismo, aspectos ligados às idéias protestantes. Alguns

aspectos internos da Igreja contribuíram para a divisão e o

surgimento do protestantismo. Os protestantes insurgiram-se contra

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a venda de indulgências e de cargos feitos pela igreja de Roma, fatos

que lhe davam características mercantilistas: salvava-se quem tinha

dinheiro para comprar indulgências.1

Faz-se necessário delimitar o tema por alguns motivos óbvios. Primeiro, os

conceitos de Direitos Humanos e Cidadania não existiam. A estratégia será buscar

resquícios ou sinais dos conceitos na história, sinalizando a evolução dos

conceitos e, ainda mais, a junção deles. Ao realizar tal tarefa, o tema vai se

afunilando chegando até o Humanismo. Segundo, dentre muitos fatos e

personagens, o trabalho enfatizará a Alemanha daquela época, com especial

cuidado com assuntos periféricos como ordem social e economia, mas, tendo na

educação a atenção maior. Assim Lutero constitui-se o grande colaborador ou

motivador para rever valores e buscar conceitos obscurecidos por conta de

interesses manipuladores de uma minoria detentora do poder e do saber. Por isso

a insistência na pergunta: será que o pensamento reformado cuja origem oficial se

dá na Reforma Protestante do século XVI foi meramente um movimento religioso?

Qual a contribuição de Lutero para uma reflexão sobre cidadania ainda que tal

conceito não tivesse sido ainda formulado oficialmente?

Nesse sentido, o reformador merece destaque, tido por alguns como o

maior dos reformadores, como acredita Dreher:

Lutero merece, daqui em diante, ser reconhecido como o maior dos

reformadores, não só religiosos, como educacionais.2

1 PILETTI, Nelson e Claudino. História da Educação, São Paulo: Àtica, 2002, pág. 74. 2 DREHER, Martins N. (org.) Reflexões em Torno de Lutero vol. II, pág.94

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Se considerarmos o exercício da cidadania, tendo como maior expressão a

“liberdade de consciência” que leva ao direito do saber, pode-se enfocar o

pensamento de Lutero como teólogo e educador, espiritual e social, como

contribuidor, em um período escuro da história, para tal façanha. O cidadão não

teria apenas deveres, mas, também direitos. Em sua “Carta aos prefeitos e

conselheiros das cidades alemãs”, Lutero encaminhou um apelo às autoridades

municipais para que organizassem e mantivessem escolas cristãs. Comentando

sobre este assunto Gerhard Ebeling afirma:

A figura de Martinho Lutero dá motivo especial de refletir sobre a

Universidade com lugar primordial de sua existência. Entre as muitas

imagens que se faz da sua pessoa: do monge que fora, do pregador,

do escritor, do reformador da igreja, do líder intelectual de um

movimento popular de dimensão continental, facilmente se esquece

que ele era, também, um professor universitário. Todas as suas

funções e atividades estavam intimamente ligadas ao seu mandato

na Universidade, mandato esse que expressava seu caráter

compromissivo no título de doutor , raro na época, e que nem todos

os professores acadêmicos obtinham.3

Pode-se dizer que o princípio da Reforma Protestante foi uma questão de

Cidadania. Martinho Lutero transcendeu em muito as interpretações e os conflitos

teológicos. Ele aspirou à realização da liberdade. O legado do protestantismo

possibilita uma nova consciência ética e cidadã bem como a busca da

espiritualidade sem manipulação de autoridades humanas travestidas de

3 EBELING, Gerhard. O Pensamento de Lutero. São Leopoldo:Sinodal,1986 p.11.

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religiosidade. O exercício da cidadania no pensamento de Lutero aponta para a

educação, trabalho, economia e política. “Ele não realizou somente a tradução da

Bíblia para o alemão. Devido ao seu conhecimento de línguas, que foi

demonstrado através desse feito e ao qual todas as fontes fazem referência, ele

também fundou a base da moderna língua alemã e, assim, algumas

características fundamentais do espírito alemão.” 4. Ao pregar as noventa e cinco

teses contra as indulgências na porta do templo na pequena cidade de Wittenberg,

na Saxônia, contrastava frontalmente contra as decisões anti-cidadãs do papa

Leão X, que enviara à Alemanha, João Teztel, frade dominicano, com o fim de

colher dinheiro para o serviço da igreja. Caso o dinheiro fosse para ajudar a pagar

as despesas da guerra com os turcos, como se dizia ou para angariar fundos para

serem despendidos pelo papa em quadros e outras obras de arte para a suntuosa

igreja de São Pedro, em Roma, causariam indignação e forte desejo de

mudanças. O dinheiro era obtido por troca de uma espécie de recibos, em que se

declarava que o comprador havia recebido perdão da perpetração dos pecados

que mencionara e pago a respectiva importância. Lutero, nas suas teses e no seu

sermão, declarou que os fatos íntimos, espirituais, experimentados pelo homem

eram de um infinito valor, comparado com a expressão desses fatos mediante

fórmulas estereotipadas que a Igreja reconhecia; e tornou, bem claro, que no

tocante a um tão solene assunto como é o perdão dos pecados, o homem podia ir

ter diretamente com Deus, sem qualquer mediação humana. Dizendo isto, fez

4 Dr. Ulrich Günther. O Federalismo Alemão e Martinho Lutero. Lutero e a Reforma: 480 anos depois das 95 teses, uma avaliação dos seus aspectos teológicos, filosóficos, políticos, sociais e econômicos. Editora Mackenzie, 2000.

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muito mais do que atacar as indulgências; protestou contra as mais enraizadas

noções da Igreja Medieval.

Pesquisar sobre o pensamento de Lutero é falar de direitos humanos, da

ética e da expressão de uma cidadania responsável. A Reforma Protestante, não

só aponta para mudanças religiosas, mas também desperta para o bem comum,

independentemente da religião. O direito do cidadão é, dentre outros, o poder

pensar livremente e tomar suas próprias decisões. Esta não era a realidade no

período pré Reforma.

O pesquisador, de formação reformada, tem interesse de ver fortalecido os

princípios que nortearam a vida de Lutero, entendendo que a “luta” por uma

sociedade melhor, não era apenas privilégio daquele monge, mas uma vocação

para todos aqueles que posteriormente receberiam a visão. A Reforma

Protestante não pode ser vista como algo estático historicamente falando. A maior

expressão do direito humano, é sua consciência. Para felicidade ou infelicidade

eterna, o ser humano deve agir com liberdade de consciência e responder por

isso.

Cidadania é um fenômeno bem complexo, essencialmente político, porém

condicionado por circunstâncias diversas. A busca de relações sociais mais iguais

traduz a motivação do verdadeiro cidadão. Assim sendo, cidadania pode ser

definida como um conjunto de qualidades e implicações necessárias ao indivíduo

que pertence à sociedade. É um status conferido àqueles que são membros e a

pleno direito de uma comunidade. É Compromisso social pautado em direitos e

deveres que buscam o bem comum, a unidade social reforçando a identidade

nacional.

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Para uma participação adequada, o cidadão precisa de educação. Na

Reforma, o espírito humano ganhou forças sob as “letras”, que foram, certamente,

as maiores auxiliadoras para as mudanças sociais provocadas pelo movimento

reformista. A união das letras com a fé formou uma das características da reforma

e a distinguiu de outros movimentos na história.

A Reforma começou simplesmente como uma tentativa de dar o culto a

Deus de uma maneira mais simples, segundo os ditames da consciência e os

impulsos da vida interior, da vida espiritual; mas, não podia ficar por ai; significou

por fim uma revolução nas condições da sociedade e uma grande mudança na

situação política da Europa.

Segundo as noções medievais, a sociedade estava dividida em Igreja e

Estado. O poder eclesiástico estava todo centralizado na pessoa do papa, que era

o sacerdote universal; e o poder civil estava todo centralizado na pessoa do

imperador, que era o soberano universal. Um era o sacerdote dos sacerdotes, e o

outro era o rei dos reis. Um homem pertenceria à Igreja se estivesse sob a

jurisdição do papa; seria membro da sociedade civil se estivesse sob o domínio do

imperador. Uma espécie de dois Estados. Tanto um como o outro com poderes

ilimitados sobre os cidadãos. Havia deveres, mas não direitos. O império

apresentava um estranho dualismo. Tinha um chefe civil e outro espiritual, César e

o papa. Quando um homem recusava obedecer ao papa no que dizia respeito às

matérias espirituais, rebelava-se contra a sociedade, pois esta se baseava na

idéia de que o papa e o imperador eram os senhores supremos. O protestantismo

quebrou esta união dos dois elementos.

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A Reforma Protestante não foi um movimento individualista, mas

proporcionou aos homens a possibilidade de associação e de manterem entre si,

uma espécie de unidade espiritual.

Com o afã de reproduzir, cada dia mais, o “espírito da Reforma”, tal

pesquisa visa mostrar tantos aos “protestantes” como a qualquer cidadão, a

verdade que se deve buscar, para o bem comum, o exercício de direitos e deveres

revelados nos valores éticos, sociais, educacionais, os quais poderão ser

chamados de “cidadania”.

Espera-se mostrar pela pesquisa que a Reforma provou a todos que

poderia haver vida social e comunhão religiosa sem aquela pressão exterior, sem

que as idéias de ordem e associação andassem ligadas à idéia de um império e

uma igreja institucionalizada universalmente. A noção reformista era a de uma

fraternidade de povos.

A pesquisa deverá ser bibliográfica. Tendo como fundamento teórico os

escritos históricos de diversos autores, especialmente os trabalhos desenvolvidos

pelo próprio reformador Lutero. Todavia, é necessário buscar junto a autores da

área de direito e sociologia. Quanto aos primeiros, considerando que “Direitos

Humanos” e “Cidadania” são expressões relativamente novas, a evolução de tais

conceitos será buscado na história apesar de não terem sido esboçados e tão

definidos como temos hoje. No que se refere à sociologia, o referencial teórico

obrigatoriamente encontra em Max Weber a maior expressão, considerando que o

autor ressalta a nova definição de vocação dada por Lutero como um ponto

importante na construção de uma nova mentalidade econômica européia e,

posteriormente mundial. A definição do termo “cidadania”, ainda que moderna,

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revela-se em exercícios práticos em prol dos direitos humanos desde às

comunidades bem antigas.

Por meio das cartas de Lutero, e do farto material que trata de seus ideais

reformistas, pretende-se através da pesquisa bibliográfica, destacar seu

pensamento voltado não apenas para uma mudança na religião dominante, mas,

social que possa devolver ao indivíduo o direito de liberdade. Liberdade de

consciência, liberdade de escolha.

Também há disponível o grande acervo produzido em língua portuguesa,

pela Editora Sinodal, com sede na cidade de São Leopoldo, bem como a grande

quantidade de material existente na biblioteca da Universidade Presbiteriana

Mackenzie à disposição dos alunos.

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CAPÍTULO I

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DE CIDADANIA Faz-se necessário estabelecer inicialmente o ponto de partida histórico,

uma espécie de corte no tempo, para se falar sobre Cidadania6. Se bem que, na

verdade, podemos apenas buscar inspiração ou resquícios do que hoje

chamamos de cidadania. A cidadania como realidade social tal como a vemos

hoje, é um fenômeno único que se concretizou na história de forma dinâmica.

Diríamos que o conceito de cidadania foi um tipo de fenômeno progressivo.

A intenção deste primeiro capítulo é buscar, a partir da “pré-história” as

bases da cidadania ou o exercício dela, ainda que não definida historicamente,

acompanhando seu desenvolvimento até o pensamento humanista.

Inicialmente voltemos os olhos ao passado até os hebreus7 que cultuavam

um único Deus o qual ensinou e exigiu que o seu povo pensasse uns nos outros o

que, para o contexto da época, parecia ser inadequado. Já na época do rei Davi,

fica clara a idéia de submissão do governo aos princípios de autoridade superior.

A própria lei mosaica já previa uma série de direitos aos cidadãos, até mesmo o

6 No sentido moderno, cidadania é um conceito derivado da Revolução Francesa (1789) para designar o conjunto de membros da sociedade que têm direitos e decidem o destino do Estado (Pedro Paulo Funari. A Cidadania entre os Romanos, in: História da Cidadania, São Paulo: Contexto, 2003, pág. 49). Todavia, a presente dissertação procurará buscar na história resquícios que contribuíram para tal conceito, trazendo luz para a hipótese de que o movimento da Reforma do século XVI além de religioso, mostrou ser um exercício de cidadania. 7 Hebreus – Do epônimo Éber (Gênesis 10.21 e segs.; 11.14 e segs.) veio o gentílico ‘ibhrï, “hebreu”, usado na Bíblia como patronímico para Abraão e seus descendentes. No Antigo Testamento, ‘ibhrï se confina à narrativa sobre os filhos de Israel no Egito (Gênesis 39; Êxodo 10), a legislação concernente à alforria de servos hebreus. ‘ibhrï aparece pela primeira vez como nome étnico a respeito de Abraão (Gênesis 14.13). A sugestão que ‘ibhrï é termo alternativo para israelita, nas situações em que o indivíduo assim chamado não é um cidadão livre em solo livre. (O Novo Dicionário da Bíblia de J. D. Douglas (coord.), Vol. I, São Paulo: Vida Nova, 1984.

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acolhimento do estrangeiro, mas estes direitos apenas previam a regulação social

entre os indivíduos. Princípios como a vida, a liberdade de expressão, a

valorização do ser humano ainda eram coisas a serem aprimoradas, entretanto

não deixam de ser um começo ou como denominamos aqui, uma evolução.

Jaime Pinsky, falando sobre o período posterior ao reinado de Davi, no

tempo em que os profetas exerciam uma função exortativa junto aos reis,

relaciona-os ao fenômeno cidadania. Em “Os Profetas Sociais e o Deus da

Cidadania”, Pinsky expressou da seguinte maneira sobre o assunto:

Uma concepção tão revolucionária de deus não acontece por acaso,

do nada: ela se desenvolve dentro de condições históricas

específicas, de uma realidade social única. Se, durante muito tempo,

os hebreus cultuavam um deus que não se distanciava tanto do de

seus vizinhos, o que os levou a conceber esse deus tão desprendido

a ponto de exigir que as pessoas pensassem umas nas outras antes

de pensar nele, o próprio deus? Um deus que, se não fosse

anacronismo, diríamos preocupados com a cidadania.8

A “pré-história da cidadania”9 nos remete aos escritos vetero testamentários

quando os profetas se mostravam preocupados com as questões sociais e

comportamentais do seu povo. Os profetas eram pessoas que exerciam o ofício

de falar da parte de Deus aos homens. Para muitos, uma espécie de gente não

muito confiável que previa o futuro. Dois profetas, Isaías e Amós se destacam

8 Jaime Pinsky. História da Cidadania, Editora Contexto, São Paulo S.P., 2003. pg. 16. 9 Entende-se como pré-história da cidadania, o estabelecimento do monoteísmo ético, que é, por sua vez, a base das grandes religiões ocidentais (cristianismo e islamismo, além do judaísmo) e que se constitui na primeira expressão documentada e politicamente relevante por suas conseqüências históricas (Pinsky, p.17).

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como sendo “profetas sociais”. O primeiro, exerceu sua atividade profética na

Judéia a partir do ano 738 a.C., provavelmente até o início do séc. VII a.C. Isaías

dedicou grande parte da sua mensagem aos políticos e militares de Judá,

especialmente àqueles que confiavam em salvar o país mediante pactos e

acordos com outras nações. Isaías um dos “profetas maiores”10, tinha origem

social elevada, era de família nobre; porém, em nome do seu Deus, fez pesadas

críticas à práticas sociais e rituais vigentes. “A conclusão do discurso de Isaías é

de uma atualidade surpreendente. No limite ele parece querer que as pessoas se

reencontrem, voltem a construir uma comunidade que, em algum momento, foi

desfeita” (Pinsky, p.22). O outro profeta tido como social foi Amós, tido também

como grande profeta do século VIII a.C., embora ele mesmo preferisse ver a si

mesmo como um homem simples, do campo, dedicado aos seus afazeres rurais.

Amós era de uma pequena cidade chamada Tecoa, distante uns 10 Km ao sul de

Belém, próximo do mar Morto, como que suspensa entre as montanhas de Judá.

A mensagem central de Amós representa uma crítica contra a sociedade israelita

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A origem humilde de Amós, uma forte negação de qualquer tipo de

ritualismo, linguagem agressiva e desabusada e, mais do que tudo,

um sentimento agudo e intransigente de justiça, essas são as

características mais evidentes dos nove capítulos do chamado

“profeta pastor”. Deixa claro, desde logo, que não fala em seu nome,

mas no de Deus e que este anda zangado com o povo que elegeu.11

Amós contrapõe templo e justiça, ritual e vida social, aparência e conteúdo,

hipocrisia e solidariedade. Ele, em nome do seu Deus, escreveu:

Eu aborreço e desprezo as vossas festas; e vossas assembléias

solenes não me dão prazer. Se vós me oferecerdes holocaustos e

presentes, não os aceitarei; e não porei os olhos nas vítimas que

ofertares, em cumprimento de vossos atos. Aparta de mim o ruído

dos teus cânticos; eu não ouvirei as melodias de tua lira. Antes corra

o juízo como as águas e a justiça como ribeirão perene.12

Nesse sentido é possível resgatar o conceito pré-histórico de cidadania

relacionando-o com os direitos civis, políticos e sociais. Direitos que se relacionam

entre si em busca da vida, da liberdade, da propriedade, das crenças e outros

significados múltiplos que se completam. Ao falar sobre evolução histórica de

cidadania, pretende-se mostrar que o conceito é dinâmico e que foi se

desenvolvendo no tempo e no espaço. É sabido que, originalmente, a Cidadania e

os Direitos Humanos têm conceituações distintas, mas, com o passar dos tempos,

11 Jaime Pinsky. História da Cidadania, São Paulo: Contexto, 2003, p.23. 12 Bíblia, São Paulo: Loyola, 1994.

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houve cada vez mais uma aproximação. Houve uma evolução do conceito de

cidadania e ampliação do conceito de Direitos Humanos.

É prudente ainda ressaltar que não se pode entender o mundo antigo como

sendo o mesmo mundo contemporâneo, todavia, ao se tratar de cidadania

podemos, cautelosamente, aproximar os mundos diferentes tendo o indivíduo

como agente ativo no processo. Não se pode falar sobre cidadania sem

inicialmente abordar sobre Direitos Humanos como dito acima. Isto porque, ainda

que a concepção teórica dos Direitos Humanos e de Cidadania começou a ser

elaborada no século XVIII13 é possível identificar uma pré-história e mesmo a

evolução de tais conceitos que, no decorrer dos anos, vão assumindo

similaridades marcantes na sociedade. Ainda que possa parecer lógico para

muitas pessoas, os direitos do homem enquanto ser social, não surgiram desde o

início de sua existência. A história mostra que muitos séculos se passaram para

que o ser humano reconhecesse a mesma importância que seu próximo possui,

pelo simples fato de também ser uma pessoa.

É realmente intrigante tal questão, afinal, para a maioria das pessoas num

contexto do século XXI, é impossível o reconhecimento legal de desigualdades

expressas entre dois seres humanos, ou imaginar uma situação em que o

indivíduo não possua qualquer poder sobre si mesmo sem que isto contrarie os

direitos fundamentais de uma Constituição qualquer. Certamente isso é assim,

porque o cidadão do século XXI já cresceu dentro de um ambiente de valorização

13 De acordo com Aryeh Neier, os Direitos Humanos começaram a ser definidos sistematicamente no século XVIII, eram relacionados com a cidadania de um determinado Estado, sendo este obrigado a respeitar tais direitos. Ver em Guia da Cidadania de Osvaldo Agripino de Castro Jr, Editora Lúmen Júris, Rio de Janeiro, 1998, pg.11.

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da pessoa humana e já está acostumado com o princípio de que acima do Estado

existe a liberdade individual.

Os Direitos Humanos14, se existiram desde sempre, nunca foram

reconhecidos plenamente, no que diz respeito à Antiguidade Clássica até o

advento da Revolução Francesa, tendo apenas alguns momentos de grande

expressão como na origem do Cristianismo em Roma e na Reforma Protestante.

O homem, em sua essência, é o mesmo desde a criação, porém, a igualdade

entre eles só foi reconhecida e positivada em forma de lei, muitos anos mais tarde.

O emérito professor Sampaio Dória fornece uma definição contemporânea para os

direitos humanos:

...é o direito inerente à personalidade humana, é a ausência de

constrangimento para qual não se conserve nem se aperfeiçoe o

homem. Os direitos fundamentais os homens os têm, só por serem

homens.15

Pensar em direitos humanos hodiernos é pensar em limitação do poder do

Estado16, o que não corresponde à Antiguidade. Isto é fundamental para que

14 Deve-se esclarecer já no início desta dissertação, que Direitos Humanos será usado no sentido amplo, ou seja, equivale tão somente ao princípio de igualdade dos indivíduos. Entende-se que existem outros direitos tão importantes quanto ao de igualdade, porém, há uma razão para esta equivalência: ao nosso ver, a plenitude dos Direitos Humanos só é obtida a partir do momento em que se reconhece os mesmo direitos para todo aquele que constitui uma pessoa, uma vez que se observa, ao longo da história, muitos instantes em que certos direitos fundamentais são reconhecidos, mas nem por isso aplicados a todo povo. Entendemos que só podemos falar em direitos humanos em sentido estrito quando pensarmos na universalização deles. Também para um esclarecimento técnico, entende-se por Direitos Fundamentais os direitos humanos positivados numa Constituição ou em tratados reconhecidos pelas autoridades, uma vez que embora pareçam sinônimos, há na idéia de direitos fundamentais o valor jurídico. 15 A. de Sampaio Dória, “Os direitos do homem”, Companhia Editora Nacional, 1942, pág. 574. 16 Sobre o poder do Estado, visão contemporânea, o constitucionalista Alexandre de Moraes escreve: “Essas idéias encontravam um ponto fundamental em comum, a necessidade de limitação dos princípios e controle dos abusos de poder do próprio Estado e se suas autoridades constituídas e a consagração dos princípios

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possamos ir construindo o raciocínio no que se refere à evolução histórica de

cidadania que, passando por diversos momentos, construirá um ambiente

humanista possibilitando ou favorecendo a Reforma do século XVI, ponto central

da presente dissertação no qual, notadamente, verificou-se um exercício de

cidadania no pensamento do reformador Martinho Lutero. Período aquele em que

o Estado17 se confundia com a religião institucionalizada e tinha poder ilimitado

sobre a sociedade onde o indivíduo era ignorado. Mas, sobre isto trataremos

posteriormente.

Desde já, então, esclarecemos que, por direitos humanos, podemos

entender todas as garantias dadas ao ser humano para que este possa ter

direitos, ou seja, uma proteção ao indivíduo perante um poder abusivo tanto de um

Estado quanto de um outro indivíduo. Dentro dessa moldura, temos liberdade para

vagarmos na história em busca de momentos em que encaixem aqui, mesmo que

de forma incompleta. Embora na Antiguidade não se conhecia o conceito de

humanidade18 já se enxergava uma tentativa de defesa dos direitos do homem,

uma tentativa que, embora feita muito mais por necessidade política do que por

um sentimento de compaixão ao próximo, com certeza serviria para a formatação

básicos da igualdade e da legalidade como regentes do Estado moderno e contemporâneo” in: Direitos Humanos Fundamentais, Editora Atlas, 5ª ed. Pág.19. 17 O Estado da Antiguidade, não possuía uma finalidade para o bem comum como requisito indispensável a sua existência, conforme o conceito de Estado Moderno. Segundo o professor de Teoria Geral do Estado, da Faculdade de Direito da USP, Dalmo de Abreu Dallari, em sua explicação para a existência de uma entidade chamada genericamente de Estado, justifica-a na medida em que o Estado Moderno “como sociedade política,

tem um fim geral, constituindo-se em meio para que os indivíduos e as demais sociedades possam atingir seus

respectivos fins particulares ... ou seja, o conjunto de todas as condições da vida social que consintam e

favoreçam o desenvolvimento da personalidade humana”. (Elementos de Teoria Geral do Estado, 24ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, pág. 28). É justamente esta concepção de bem comum que o Estado da Antiguidade não possuía. 18 O professor e filósofo Miguel Reale afirma: “O conceito de humanidade, escreve o pensador peninsular (Beneditto Croce), só foi atingido pelos filósofos antigos em lucubrações abstratas, jamais aptas a apossar-se de toda alma, como se dá com os pensamentos profundamente pensados e com o Cristianismo” (Horizontes do Direito e da História, Saraiva, 2ª ed., pág.40).

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do conceito moderno. O Estado, superior em poder e importância, e não as

pessoas individualmente consideradas, é que deveria ser protegido. Não havia a

preocupação da defesa do cidadão perante um ente mais forte do que ele, nem

tão pouco a idéia de que o Direito deve ser ampliado indistintamente a todos, sem

exceção.

Parece estar claro que não houve direitos humanos, num sentido estrito, na

Antiguidade (período este considerado desde a não existência da escrita até o

advento do Cristianismo durante o Império Romano), mas houve importantes

resquícios deles para nós na medida que sua evolução acarretará na formulação

concreta da teoria dos Direitos da Pessoa Humana. Considerando isto, passemos

então para as fases seguintes, que irão consistir basicamente na importância do

conceito de cidadania para a formulação dos direitos humanos e como se deu a

evolução desses dois conceitos durante a história.

Busquemos encontrar o fundamento para o Estado antigo, já que não era o

bem comum. Conforme o professor Dalmo de Abreu disse:

A família, a religião, o Estado, a organização econômica formavam

um conjunto confuso, sem diferenciação aparente. Em conseqüência

não se distingue o pensamento político da religião, da moral, da

filosofia ou das doutrinas econômicas19.

Todavia, para um estudo um pouco mais profundo, nos remetemos à

famosa dissertação de Fostel de Coulanges sobre a sociedade antiga, na obra “A

19 Dalmo de Abreu Dellari in: Elementos de Teoria Geral do Estado” ed. Saraiva, pág. 62.

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Cidade Antiga”20. Embora o intuito da obra de Coulanges se restrinja na análise

das sociedades grega e romana, estas características não eram muito diferentes

nos demais povos. O Estado é visto em dois momentos. No primeiro, o Estado

pode ser resumido à fusão do regime patriarcal com a supremacia da religião. A

religião era a única razão para a existência do ente político, e tinha por

característica a adoração a deuses grandes e pequenos espalhados por toda

parte, facilmente irritáveis e malévolos; tinham-se na casa o templo e no túmulo o

altar; e viam-se nos ancestrais seres divinos dignos de culto e sacrifícios. Um

paralelo com o misticismo da Idade Média é inevitável.

Percebe-se que nesta religião não há espaço para o ser humano, e em

decorrência disto, jamais o Estado poderia ser o instrumento garantidor dos

direitos humanos, pelo contrário, era tão somente o garantidor dos cumprimentos

de preceitos religiosos. Isto trazia uma conseqüência muito grave para os

chamados estrangeiros, uma vez que já era restrito aos cidadãos a proteção de

alguma individualidade, para eles nenhum direito era reservado e por isso

considerado como qualquer coisa diferente de um ser humano. Vale lembrar que é

aqui que podemos fazer um relacionamento entre o conceito de cidadania e

direitos humanos, porque se sabemos que ambos não se confundem, na

Antiguidade, era imprescindível falar em “ser cidadão” para o reconhecimento de

alguma igualdade de aplicação do Direito, e o principal resquício dos direitos

humanos, que será visto mais a frente, quando tratarmos da expansão da

cidadania romana para os estrangeiros, será justamente o avanço do

reconhecimento de que os bárbaros também deveriam ter reconhecidos seus

20 Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga, São Paulo: Ed. RT, 2003.

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direitos. Qual era a importância de se valorizar o ser humano pelo simples fato de

ser uma pessoa? Nenhuma, porque o Estado visava a proteção da religião local.

Apenas a partir da ênfase dada à distinção entre aquele que é cidadão e aquele

que não é pelo simples fato de não ter nascido no mesmo ambiente, no mesmo

Estado (na realidade, num mesmo contexto menor, que era a cidade-estado)21 já

se observa a confusão da vida política com a essência do ser humano, visto que

esta não é relevada, somente a relação da pessoa com o Estado.

No segundo momento histórico, no qual a ênfase à religião muda, dando

lugar a valorização da lei escrita em detrimento aos costumes e tradições orais, se

não há mais tamanha rejeição à pessoa do estrangeiro por motivos religiosos, e se

não há mais uma opressão ao povo no cumprimento de ordens eclesiásticas, a

onipotência do Estado cresce. Na antiguidade não se conhecia o poder limitado do

Estado. As leis não atribuíam direitos aos indivíduos frente ao poder do Estado. O

próprio corpo do cidadão estava submetido ao Estado, já que a utilidade do

elemento material era para a defesa do Estado. Todavia, podemos constatar

resquício remoto dos direitos humanos, qual é, o da relevância em se positivar

direitos em lei para que o Estado aja em seu cumprimento.

Consideramos, para o objetivo do trabalho, que esta situação ocorreu

durante todo o período da Antigüidade Clássica, embora saibamos que cada

21“O mundo greco-romano não se estruturava como os Estados-nacionais contemporâneos, mas de modo bem distinto, como cidades-estado. Aqui, defrontamos-nos com um problema: é tão difícil oferecer uma definição cabal de cidade-estado como o é, sabem-nos os historiadores contemporâneos, definir Estado-nacional. As cidades-estado, que conhecemos pela tradição escrita, pela epigrafia ou pelas fontes arqueológicas, eram muito diferentes entre si: nas dimensões territoriais, riquezas, em suas histórias particulares e nas diferentes soluções obtidas, ao longo dos séculos, para os conflitos de interesses entre seus componentes. A maioria delas nunca ultrapassou a dimensão de pequena unidade territorial, abrigando alguns milhares de habitantes – não mais que cinco mil, quase todos envolvidos com o meio rural.” (Norberto Luiz Guarinello.Cidades-Estado na Antigïdade Clássica in: História da Cidadania, São Paulo: Contexto, 2003 pág. 30.

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sociedade teve em seus Estados características particulares. Todavia, de modo

geral essa foi a tônica da época, tanto que apenas existiram fragmentos de

direitos humanos nelas, o que será objetivo de estudo no tópico seguinte. Diante

dessa generalização, concordamos com a afirmação de Fustel de Coulanges ao

dizer:

Os antigos não conheciam, pois, nem a liberdade de vida, nem a

liberdade de educação, nem a liberdade religiosa. A pessoa humana

representava pouquíssimo ante essa autoridade santa quase divina,

que se chama pátria ou Estado.22

Em sentido amplificado, já identificamos um resquício dos direitos

humanos: a necessidade de se ter em leis escritas o reconhecimento dos direitos

da pessoa humana. Mas, vale ressaltar novamente que o propósito é buscar nas

sociedades antigas o reconhecimento de direitos que possam se confundir com

direitos humanos. Uma vez preenchida nossa moldura lato senso, no decorrer da

história, os fragmentos se unificam, formando um todo orgânico culminando como

direitos humanos em sentido estrito no século XVIII, período que não pretendemos

tratar nesse trabalho. Nosso limite de estudo é o século XVI, com a Reforma

Protestante.

Analisaremos agora a cidadania como forma de aquisição de direitos. A

concepção de cidadão era extremamente relevante quando se pensa em ser

alguém na sociedade, e isso se confirma com uma frase de Aristóteles, o qual diz

que “... um homem sem cidade, sem cidadania, não é propriamente um homem,

22 Fuestel de Coulanges, A Cidade Antiga, Ed, RT, 2003, São Paulo, pág. 208.

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mas um deus ou um animal, ou uma coisa animada, tal como é o escravo”23.

Elucida de forma inegável o valor da cidadania. Como pensar em direitos do

homem, se um homem não era considerado como tal caso não fosse cidadão?

Impensável porque, de acordo com Michelangelo Bovero, filósofo italiano, a

respeito da cidadania da Antigüidade:

Os direitos humanos (novamente aqui considerados em seu aspecto

amplo) são reais apenas dentro dos limites do Estado-nação... a

cidadania e a lei são inseparáveis e a única lei que conhecemos é a

nacional.24

Aqui não há mais dúvidas da íntima relação entre ser cidadão e ser sujeito

de direito. O método usado para se saber quem poderia ser cidadão, em primeiro

lugar, era a nacionalidade, mas filósofos como Aristóteles (384-322 A.C) iam além,

tentando definir o que seria um cidadão. Bovero nos explica a idéia do pai da

lógica:

Para Aristóteles, como se sabe, aprende a comandar aquele que

obedece: portanto, todo homem livre, dotado da plenitude do logos,

que seja submetido à arché, ao poder político, por isso mesmo

aprende a exercê-lo, tornando-se assim capaz de participar do poder

político, e por isso deveria ser cidadão.25

23 Michelangelo Bovero, “Contra o governo dos piores – Uma gramática da democracia”, ed. Campus, 2002, Rio de Janeiro, pág. 124. 24 Ibdem., pág. 128. 25 Idbem, pág. 121

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O significado do conceito de cidadania estava diretamente ligado ao homem

da polis, da cidade26. Percebe-se isso pela própria etimologia da palavra cidadão,

que se referia apenas aos habitantes da cidade. O conceito ampliado de cidadania

como sinônimo de direitos e deveres na vida cotidiana de todos os indivíduos se

efetivaria bem mais tarde com mudanças sociais profundas. No sentido amplo,

repetidamente reforçado anteriormente, vai se moldando a cidadania amolgando-

se aos direitos humanos podendo chegar ao ponto de se afirmar que a “a

cidadania é a mais avançada conquista dos direitos humanos e que se realiza na

vida cotidiana”27.

Tratemos da Democracia Grega.28 A primeira idéia de democracia deve ser

aquela que coloque o Estado sob domínio do povo, na qual todos os cidadãos têm

direitos de votos e participação política. Na realidade, os gregos atendiam todos

estes requisitos. Todavia, nem sempre foi assim. Fustel de Coulanges explica que

a Grécia nunca possuiu um Estado Unificado, a não ser é claro durante o domínio

macedônio com Alexandre Magno. Cada cidade era um micro-sistema auto

suficiente, que reproduzia todas as características de um Estado-Nação. Sendo

assim, quando falamos em democracia grega, devemos nos remeter a cidade de

Atenas, pois foi a mais importante cidade da época, e de lá saíram as maiores

26 Do latim civitas, a cidade é uma comunidade política organizada, que possui um mínimo de autonomia. Aristóteles mostra por um lado que, sendo o homem por natureza um animal político, a cidade é um fato de natureza e por outro que, tendo alcançado seu desenvolvimento máximo, realiza sua independência econômica e permite desse modo “viver bem”. O cidadão é aquele que usufrui os direitos e cumpre os deveres definidos pelas leis e costumes da cidade: a cidadania é, antes de mais nada, o resultado de uma integração social, de modo que “civilizar” significa em primeiro lugar “tornar cidadão” (Gerard Durozoi, Dicionário de Filosofia, 2ª edição, Papirus, Campinas, S.P., 1996 pg. 79. 27 LERNER,Júlio (coord.). Cidadania Verso e Reverso, São Paulo: Imprensa Oficial, 1997/1998. 28 A palavra democracia foi usada pela primeira vez na peça “As suplicantes” de Ésquilo (468 a.C) em que “demos” (povo) e “Kratos” (poder) são conjugadas para demonstrar a decisão de uma assembléia ateniense. (Bierrenbach, Flávio. Quem tem medo da Constituição, São Paulo, Paz e Terra, 1986, p.34) citação feita por Clovis Pinto de Castro in: Por uma Fé Cidadã, São Paulo, Loyola, 2000, pág.22).

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contribuições culturais e humanísticas através da filosofia. A preocupação não era

com a essência humana, mas com a vida política e o gerenciamento da máquina

estatal. Mas, mesmo assim, pode-se verificar resquícios de direitos humanos em

sentido amplo caracterizando, a evolução de pensamentos mais humanitários.

Num contexto onde Alexandre Magno começa suas conquistas até a Índia,

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cidadania como mola propulsora na Antigüidade para a formação de um conceito

de humanidade. Entre os romanos os patrícios (detentores da “nobreza de

sangue”) agrupavam-se em grandes famílias, e mantinham o monopólio dos

cargos públicos e mesmo dos religiosos. Eram, assim, os únicos cidadãos de

pleno direito. O restante da população romana era formada por subalternos

excluídos da cidadania. Pouco a pouco, foram adquirindo um nome próprio, “povo”

(populus). A história seria marcada por tentativas de conquistas dos direitos

sociais e pela cidadania. Possuíam direitos de cidadania apenas os proprietários

rurais. No processo histórico de luta contra os privilégios dos patrícios surge a

noção de “plebe”, palavra ligada a idéia de massa, multidão. Seria apenas uma

questão de tempo e os plebeus se uniriam contra o patriciado na luta pela

cidadania. Sobre o espaço conquistado pelos plebeus, salienta Pedro Paulo

Punari:

Os plebeus puderam criar suas próprias reuniões, os ‘concílios da

plebe’, assim como adotar resoluções, os plebiscitos. Outro grande

avanço da cidadania deu-se quando os plebeus conseguiram que

todos os romanos fossem divididos em tribos geográficas, e não mais

hereditárias. No início eram quatro tribos urbanas e 16 rurais... Nos

séculos seguintes, as conquistas da cidadania romana ligaram-se à

expansão militar, causa de modificações profundas e duradouras

para a sociedade.33

33 FUNARI, Pedro Paulo. A Cidadania Entre os Romanos, in: História da Cidadania, São Paulo:Contexto, 2003, pág. 53.

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Todas essas medidas significaram grande avanço para os direitos

humanos, revelando uma evolução ainda mais evidente da cidadania. Outro sinal

evidente da evolução histórica da cidadania pode ser identificada na abolição da

servidão por dívida. Acrescenta Pedro Funari:

Outra medida de igual – ou talvez até maior – importância social foi a

abolição da servidão por dívida, determinada pela Lei Poetélia

Papíria, de 326 a.C. Até então, os cidadãos pobres não tinham direito

de manter a própria liberdade.34

As eleições, em Roma, constituem outro grande tesouro da cidadania. O

voto secreto foi introduzido ao final da República e, para isso, adotou-se o voto por

escrito (per tabellam, “em uma cédula”).35

Se os antigos não conheciam, pois, a liberdade de vida, nem a liberdade de

educação, nem a liberdade religiosa36, os romanos mostrariam o conceito de

“humanidade” (humanitas), que tinha conotações que ultrapassavam a

“urbanidade” (urbanitas). Mais por necessidade política do que por um sentimento

humanitário, a cidadania deveria abranger mais pessoas além dos naturais de

Roma. Desta forma, desde os fins da república, a tendência de Roma é no sentido

de estender, paulatinamente, a cidadania romana a todos os súditos do Império.

34 Ibdem., pág. 54. A última grande conquista plebéia foi a aprovação da Lex Hortência. “Por obra da Lex Hortência, de 286 a.C., os plebiscitos (leis votadas pela plebe) foram equiparados às leis e obrigações tanto a patrícios quanto a plebeus. Alexandre Correa e Gaetano Sciascia, “Manual de Direito Romano”, São Paulo: Saraiva, 1953, pág. 24. A Lex Hortência, foi o resultado de uma série de agitações e secessões. A lei permitia que os plebiscitos tivessem força de lei mesmo sem a aprovação final do Senado. “A princípio, pois, os plebiscitos aplicavam-se tão somente a plebe, mas a partir da Lei Hortência (286 a.C.), adquirem valor de lei, passando a serem designados pelo nome de lex”. José Cretella Júnior, “Curso de Direito Romano”, Rio de Janeiro, 2000, pág. 30. 35 Ibdem., pág. 63 36 Fuestel de Coulanges. A Cidade Antiga, Ed., RT, 200, pág. 208.

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De início, os habitantes da região ao redor de Roma são os primeiros

privilegiados, com a Lex Julia37; posteriormente aos aliados de Roma também

estendida a cidadania romana, com a Lex Plautia38; também o são os habitantes

da Gália, em 49 a.C com a Lex Roscia39. Por fim, isto já no Império, há finalmente

a última evolução de cidadania, pois esta é estendida a todos os que estavam sob

domínio de Roma, com o Edito de Caracala.40

Como afirmamos, a princípio, esta expansão da cidadania tinha como

motivo muito mais as circunstâncias políticas da época do que razões de natureza

humanitária, tanto é assim que José Cretella Júnior, grande romanista brasileiro,

generaliza:

O fundamento da determinação de Caracala em conceder cidadania

a todos os habitantes do império, exceto aos dedíticios, é de

natureza marcadamente econômica porque contribuiu para aumentar

a receita do tesouro romano, exaurido por sucessivas guerras e

alimentado quase que apenas pelo tributo lançado sobre o povo.41

Em sentido amplo, podemos dizer que são evidentes os resquícios que

culminariam e davam sinal de evolução da cidadania. Impulsionada pela

necessidade econômica a cidadania é repassada a outros povos, uma vez que já

37 Lex Julia (90 a.C.): estendeu a cidadania para os habitantes do Lácio (latium), ou seja, para a região da

península itálica, na qual seus habitantes eram denominados latinos. 38 Lex Plautia Papiria (89 a.C.): estendeu a cidadania romana para os aliados de Roma. 39 Lex Roscia (49.a.C.): estendeu a cidadania romana para os habitantes da Gália Transpadana. 40 Edito de Caracala: feito em 212 a.C., pelo imperador Marco Aurélio Antonino Bassanus, pelo qual se concede o “direito de cidade” (ius civitatis) a todos os habitantes do império exceto aos peregrinos deditícios (habitantes das cidades que resistiam aos romanos, lutando até o fim e que acabaram firmando tratados de aliança com os vencedores). “Descobriu-se mais tarde no Egito um papiro restabelecendo os justos limites da Constituição Antoniniana, ou seja, que os peregrinos deditícios ficaram excluídos do benefício imperial”. José Cretella Jr. “Curso de Direito Romano” 24ª ed., Editora Forense, Rio de Janeiro, 2000, pág. 76 41 JÚNIOR, José Cretella. Curso de Direito Romano, 29ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2004, pág. 76.

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existia toda uma base teórico-filosófica, dada desde os estóicos gregos e

principalmente pelo ius gentium, para que houvesse a expansão de direitos a

quem, no início, nem sujeito de direito (nem pessoa) era considerado. Este é o

sentido que nos permite concluir que, a partir da fusão dos conceitos de “direito

civil romano” e “direitos das gentes”, a distinção entre seres humanos legalizada

se enfraqueceu, estabelecendo-se assim, na nossa opinião, o maior resquício de

direitos humanos no tocante a igualdade de direitos. Não se defendia ainda o

cidadão dos abusos do Estado contra sua pessoa, todavia, com o advento do

cristianismo, dentro de um campo onde há indícios de igualdade, e com a soma

dos outros fragmentos já recolhidos, tivemos consolidada a base concreta pra que

séculos mais tarde se formassem os direitos humanos no sentido que temos

atualmente.

Finalmente nossa análise dos direitos humanos nas épocas pré-

reformistas e pré-revolucionárias, com ênfase na Antigüidade Clássica,

entendemos que a melhor maneira era dedicar um espaço resumido, mas

exclusivo, para o valor que o cristianismo teve, em sua origem, para os direitos

humanos. A rápida expansão do movimento cristão no seio da mega sociedade

romana, foi surpreendente. Eduardo Hoornaert, escrevendo sobre as

comunidades cristãs dos primeiros séculos ressaltou:

A minúscula sinagoga dissidente, iniciada na Galiléia com Jesus de

Nazaré e abrigada no casulo do judaísmo rabínico por 150 anos,

multiplicou-se em tempo recorde. O movimento alcançou, já no

século I, a Síria litorânea, partindo de Antioquia; penetrou na Ásia

Menor, com centro em Éfeso; espalhou-se no delta do rio Nilo, com

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centro em Alexandria; e finalmente no Mediterrâneo ocidental, na

Grécia e na Itália. No decorrer do século II atravessou a Síria oriental

e formou base em Edessa, na margem direita do rio Eufrates; a partir

de suas base na Ásia Menor chegou às regiões da Capadócia e

Armênia; atravessou igualmente a África do Norte, com base em

Cartago; subiu ao interior do Egito para além da sexta catarata do rio

Nilo; e subindo – do outro lado do mundo – o rio Ródano, alcançou a

Gália e a Espanha. Tudo isso é impressionante e suscita a pergunta:

de onde provém tão extraordinário desenvolvimento em tão pouco

tempo? Qual o segredo?42

Até agora obtivemos importantes resquícios para demonstrarmos que, de

algum jeito, os antigos tiveram certo contato ou certa preocupação com direitos

humanos em sentido amplo. Entretanto só com o Cristianismo foi que o amálgama

da nossa moldura se liga aos outros fragmentos, porque para juntar resquícios

como importância da lei escrita, submissão ao governo estatal, revolução filosófica

dos estóicos, humanidade na pessoa do escravo, e abrangência da cidadania

romana, precisávamos de uma substância um tanto quanto densa e potente capaz

de amontoar tudo isso e criar uma doutrina, a doutrina da valorização do homem.

Deve-se lembrar que quando o Cristianismo surgiu o mundo era dominado

pelos romanos. A expansão do Cristianismo nos três primeiros séculos da era

cristã, estava vinculada diretamente ao domínio do Império Romano. Segundo

Robert Nichols, ao escrever sobre a história do Cristianismo, os romanos foram

instrumentos de Deus. Afirma:

42 HOORNAERT , Eduardo. As Comunidades Cristãs dos Primeiros Séculos in: História da Cidadania, São Paulo: Contexto, 2003 pág. 81.

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Com o império, os romanos se tornaram os mais úteis instrumentos

de Deus no preparo do mundo para o advento do Cristianismo. Esse

império, que incluía grande parte do gênero humano, foi uma lição

objetiva que provava ser a humanidade uma só... Além disso, o

poder de Roma trouxe uma paz universal, a Pax Romana. As guerras

entre as nações tornaram-se quase impossíveis sob a égide desse

poderoso império. Esta paz entre os povos favoreceu

extraordinariamente a disseminação, entre as nações, da religião que

pretendia um domínio espiritual universal43

Ainda de forma mais evidente, se perceberá resquícios dos direitos

humanos e cidadania no Cristianismo, não simplesmente por ter se tornado

religião oficial de Roma, mas, esta religião, por não se comportar como mera

religião, foi o maior de todos os expoentes de direitos humanos em sentido amplo.

Qual o motivo de tanta euforia por nossa parte? Se não houve direitos humanos

em sentido estrito nem com o Cristianismo, por que valorizá-lo tanto? Certamente

pelo fato de que o Cristianismo surgiu num contexto do Império Romano. O poder

do Estado foi diminuído com a doutrina de Jesus Cristo. Como explica John

Gilissen:

De outro lado, se o Estado foi mais soberano em certas coisas, sua

ação tornou-se também mais limitada. Metade do homem lhe

escapou. O cristianismo ensinava que o homem não pertencia mais à

43 NICHOLS, Robert Hastings. História da Igreja Cristã, 7ª ed., São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1988, pág. 6. Nichols fala também da influência grega na expansão do Cristianismo, principalmente por causa de uma vida intelectual mais vigorosa, levando outros povos a pensar e, ainda, por empalharem universalmente a língua grega.

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sociedade senão por uma parte de si, que estava ligado a ela por

interesse material.44

Logicamente, se de fato estes ensinamentos, para uma maior eficácia em

seu cumprimento, fossem legislados pelo Estado, e forçados a serem cumpridos,

o que se pregava se concretizaria, o que não ocorreu sempre. Tanto que a Idade

Média possuiu a Igreja Cristã como base, e nem por isso pode falar na

continuidade desses pensamentos do cristianismo primitivo.

O conceito de humanidade foi quase atingido por completo, a começar com

os ensinamentos de apóstolo Paulo, em sua Carta aos Gálatas 3.28, quando fala

que não há mais judeus ou gregos, iniciando a noção de igualdade da essência

humana. 45 Temos consciência que os Estados e a própria população cristã nem

sempre se propuseram a aplicar na realidade este mandamento, porém, ao

contrário dos tempos anteriores, a noção de humanidade estava fixada e aceita, e

se não cumprida, existia e incomodava mais ardentemente, coisa que não ocorreu

na Antigüidade. Havia uma base filosófica concreta, idéias discriminatórias já não

eram mais tão indiferentes como antes, pois “o Cristianismo distinguiu as virtudes

das virtudes públicas. Rebaixando estas, exaltou aquelas, colocando Deus,

família, pessoa humana acima da pátria e o próximo acima do concidadão”46

44 GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito, 3ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbemkian, pág. 355. 45 A Epístola aos Gálatas é uma preciosa fonte de informação sobre os primeiros passos do evangelho na Galácia. Naquele tempo a Galácia era povoada pelos descendentes de antigas tribos celtas (ou galas, de onde procede o nome do país) que três séculos antes haviam emigrado do centro da Europa. Algumas delas chegaram até a Ásia Menor, estabeleceram-se e, aos poucos, logo se espalharam pelos amplos territórios compreendidos nos limites da atual Turquia (Bíblia de Estudo Almeida, Barueri S.P.: Sociedade Bíblia do Brasil, pág. 271. 46 John Gilissen, pág. 358.

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Um exemplo da força com que essa valorização do ser humano trouxe, nos

é contado por José Cretella Júnior, a respeito da evolução no tratamento dos

escravos romanos:

Nessa época, por influência do Cristianismo, o direito romano

humaniza-se: é proibido abandonar escravos velhos, doentes e

recém nascidos sob pena de perderem a domina potestas: é proibido

também atirar os escravos às feras, a não ser com autorização do

magistrado; é proibido ainda maltratar o escravo, bem como matá-lo

sem motivo; não mais se atiram escravos aos tangues para serem

devorados por moréias.47

Por fim, com o monoteísmo de volta ao topo principal das religiões, finda-se

a legitimidade das discriminações de qualquer espécie. Isso não se concretizou na

prática na mesma intensidade como o Evangelho ordena, e por isso surgiu a

necessidade de se formular, séculos mais tarde, uma renovação cristã para a

revalorização de elementos que, neste período, e com todas as precauções

tomadas, se tornariam os direitos humanos como direito inerente à personalidade

humana e a ausência de constrangimento para qual não se conserve nem se

aperfeiçoe o homem. De acordo com o professor João Batista Herkenhoff,

o traço de união indissociável entre Cristianismo e Direitos Humanos

resulta de que o valor do homem diante de Deus, não está nem na

cor de sua pele, nem no seu sexo, nem no seu estatuto social, nem

47 JÚNIOR, José Cretella. Curso de Direito Romano, 29ª edição, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, pág.68.

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muito menos na sua riqueza, mas no fato de que em Cristo ele é

aceito como filho de um mesmo Deus.48

Compreende-se que o Cristianismo prestou relevantes serviços no campo

social e humanitário. Posteriormente tal apoio se traduziria em avanços jurídicos e

políticos. Não pode soar de forma estranha atribuir a vitória do cristianismo por

sua atuação persistente e corajosa na base do edifício social e político da

sociedade. O que não significa descrer da ação soberana de Deus e nem mesmo

da forma destemida dos apóstolos na pregação do evangelho e testemunho dos

mártires. Todavia, como a intenção é mostrar a evolução dos direitos humanos e

conseqüentemente da cidadania na história, devemos ressaltar tais proposições.

A seguir, ainda peregrinando pela história no rastro da evolução de

cidadania, chega-se ao movimento humanista. Merece destaque de um capítulo

específico nesse trabalho por servir de prelúdio imediato ao movimento reformista

do século XVI. O Humanismo contribuiu efetivamente na construção do conceito

de cidadania, motivando o renascimento de valores esquecidos ou camuflados na

história. Com especial ênfase, a religião desfrutaria dos efeitos do movimento e,

por determinado período, andariam lado a lado. Se até aqui pode-se falar de

resquícios de cidadania, eles ficarão mais nítidos a partir de agora.

48 HERKENHOFF, João Batista. Curso de Direitos Humanos, vol. I, São Paulo: Editora Acadêmica, 1994, pág. 50.

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CAPÍTULO II

REFORMA, CIDADANIA E HUMANISMO Se a ética49 é a teorização dos valores morais tendo a cidadania como sua

prática, o conceito abstrato se historifica ao ser experimentado e, no caso de

cidadania, vivenciado no cotidiano. Como foi dito no capítulo anterior, a cidadania

como conceito pode ser entendida à medida que a história humana e social se

evolui. Os Direitos Humanos, no sentido amplo, e cidadania foram se unificando

historicamente. A valorização do homem e sua liberdade foram se traduzindo em

movimentos reformistas em busca de mudanças sociais. Assim, acompanhando o

que temos chamado até aqui de evolução histórica da cidadania, chegamos ao

século XIV e XV. Guardando as devidas proporções, pode-se dizer que o

movimento Humanista50 que floresceu na Idade Média, foi uma reação em busca

da cidadania que, se existente anteriormente, estava ofuscada pelo misticismo

“teocêntrico”.

Com a valorização do homem em sua totalidade e a tentativa de

compreendê-lo em seu mundo, o poder dominador da religião se viu ameaçado. O

Humanismo além de enfatizar o homem em sua totalidade alma e corpo, também 49 O termo ética proveniente do vocábulo grego ethos significa costume, maneira habitual de agir, índole. Sentido semelhante é atribuído à expressão latina mos, moris, da qual deriva a palavra moral. Sem entrar na discussão semântica que levaria a diferenças inexpressiva, em ambos os casos a ética pode ser entendida como a ciência voltada para o estudo filosófico da ação e conduta humana. Aqui ética e moral serão tratadas com um mesmo sentido substancialmente idêntico como ciência prática que tende a preocupar pura e simplesmente com o bem do homem. Ética é a parte da filosofia que estuda a moralidade dos atos humanos, quanto livres e ordenados a seu fim último. Ética é a parte da filosofia que estuda a moralidade do agir humano quer dizer considera os atos humanos enquanto são bons ou maus (RODRIGUES Luno, Angel Ética, Pamplona: Ediciones Uni versidad de Navarra S.A 1982 p.;17). 50 Entende-se como movimento humanista, o “movimento literário e filosófico que nasceu na Itália na segunda metade do séc.XIV, difundindo-se para os demais países da Europa e constituindo a origem da cultura moderna” (Dicionário de Filosofia, p.518, 3ª ed. Martins Fontes, 1998).

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reconhecia sua historicidade. O redescobrimento dos textos antigos e a busca de

autênticos significados da verdade filosófica e religiosa não eram, até então,

interesses da Idade Média. Tal busca ou redescobrimento ressaltaria o valor

humano. A desmistificação do homem e o seu reconhecimento natural não seriam

mais vistos como pecado, mas, até certo ponto, uma motivação para a reforma

religiosa alguns anos depois.

Reconhecimento da naturalidade do homem, do fato de o homem ser

um ser natural, para o qual o conhecimento da natureza não é uma

distração imperdoável ou um pecado, mas um elemento

indispensável de vida e de sucesso. O reflorescimento do

aristotelismo, da magia e das especulações naturalistas constituem o

prelúdio da ciência moderna.51

Dentre outros aspectos do Humanismo, destaca-se o interesse pela

literatura. O humanismo renascentista52 tinha seus olhos voltados para a

educação, o interesse pelos escritos originais. Exatamente aqui que, conforme

entendemos, vai se construindo o cenário para o exercício da cidadania revelado

no pensamento de Martinho Lutero. Ele buscaria nas línguas originais da Bíblia,

hebraico e grego, a confirmação ou não dos ensinos da igreja. A ênfase na

51 Ibidem., p. 519. 52 Renascimento é o termo dado para o movimento literário, artístico e filosófico que começa no fim do séc.XVI e vai até o fim do séc. XVI, difundindo-se da Itália para os outros países da Europa. O termo tem origem religiosa, apontando para um segundo nascimento ou novo nascimento espiritual de que falam o Evangelho de São João e as Epóstolas de São Paulo. Durante toda a Idade Média, tanto o conceito quanto a palavra designavam o retorno do homem a Deus, sua restituição à vida perdida com a queda de Adão. A partir do séc. XV, porém, essa palavra passa a ser empregada para designar a renovação moral, intelectual e política decorrente do retorno aos valores da civilização em que, supostamente, o homem teria obtido suas melhores realizações: a greco-romana.” (Ibdem., p.852).

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educação pautaria o ritmo de toda formulação reformista. Conforme enfatizado por

Paul kristeller:

O humanismo renascentista não foi tanto uma tendência ou um

sistema filosófico quanto, pelo contrário, um programa cultural e

pedagógico que valorizava e desenvolvia um importante, mas

limitado, setor dos estudos. Este setor teve como centro um grupo de

matérias que não concerniam essencialmente aos estudos clássicos

ou à filosofia, mas ao que grosso modo se pode designar de

literatura.53

O interesse pela literatura, busca pelo conhecimento original, teria

importância fundamental para o movimento protestante que, em determinado

tempo, emplacaria definitivamente no contexto alemão e posteriormente em toda a

Europa do séc. XVI. A proposta protestante de liberdade de consciência,

defendida por Martinho Lutero, reporta aos caracteres humanistas da livre

pesquisa científica. A impressão de livros foi de fundamental importância para o

Humanismo-Renascentista e posteriormente para a Reforma Protestante. Como

havia uma grande sede de conhecimento, avidez pela leitura, a impressão de

livros saciaria tal sede e avidez pelo saber.

Os humanistas encontrariam na imprensa a autonomia necessária para

avançarem em busca do conhecimento, da liberdade. Sim, liberdade da

dominação e monopólio intelectual imposto pelo clero. O conhecimento

anteriormente apreendido apenas pela transmissão oral, característica da Idade

Média, daria lugar ao livre exame. A democracia cultural, a universalidade do

53 Paul Kristeller, Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, Ed. 70, Lisboa, p. 17, 1995.

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saber e a liberdade de consciência seriam sinônimos de uma nova era,

denominada posteriormente como sendo “A Era Moderna”. Evidentemente todo

movimento reformista tem uma dívida com a imprensa. Não é novidade afirmar

que os movimentos pré reformistas não vingaram como poderia ter acontecido,

devido a não descoberta da imprensa. Sendo assim, o Humanismo e

posteriormente a Reforma Protestante, historicamente falando, se justificam por

meio da imprensa. Há certa unanimidade quanto a tal afirmação. Ruy Afonso da

Costa Nunes ressalta o valor da imprensa na difusão do movimento humanismo e

reformado de forma enfática ao dizer:

Pode afirmar-se que o fator decisivo na difusão do humanismo e na

propagação dos livros, que renovaram o ensino com o novo saber,

foi a imprensa. A importância da arte de imprimir livros merece ser

devidamente salientada, pois essa arte promoveu a maior revolução

educacional da história humana, ao possibilitar a multiplicação e o

barateamento dos livros, assim como a transformação e a melhoria

dos métodos didáticos. A imprensa foi o fator fundamental para a

promoção da democracia na área cultural.54

Sem o livro imprenso não teria acontecido a revolução humanista, sem a

possibilidade de colocar os escritos de Lutero na mão da população, não teria

havido a Reforma Protestante. Seria esta uma conclusão lógica? Acredita-se que

sim. Houve revolta no sentido de que os humanistas queriam as provas de todas

aquelas crenças de que a vida neste mundo era vista como penalidade a ser

cumprida pelos pecadores antes da entrada no céu. Abordagem assim,

54 Ruy Afonso da Costa Nunes, in: História da Educação no Renascimento, Editora da Universidade de São Paulo. P. 21.

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obviamente, não eram bem recebidas pela Igreja, que reivindicava obediência sem

nenhum tipo de contestação. Nesse sentido, faziam coro tanto os humanistas

como a reformadores. O “Renascimento” buscava na literatura clássica um novo

referencial. A Reforma, por sua vez, buscava nos originais bíblicos, a verdade

sobre os diversos assuntos teológicos e éticos. Ambos movimentos podem ser

vistos como uma renovação no saber. A intenção explícita de se fazer uma

relação entre Reforma, Humanismo e Cidadania, se dá pelo fato de que o

Humanismo renascentista apontava para a liberdade do saber, buscando no

conhecimento não apenas religioso, uma nova pedagogia com a concepção do

homem e da vida, tendo nova visão de mundo. Os conceitos de cidadania e

direitos humanos tão ofuscados na Antigüidade como vimos no capítulo anterior,

começavam a ser mais evidentes e a se jungirem. A escola com disciplinas

formativas e métodos educacionais dariam ou provocariam um renascimento. Este

ideal humanista influenciaria o movimento da Reforma protestante na Alemanha,

considerando que a ênfase seria também a universalidade do saber com forte

oposição ao sistema tradicional da educação, abrindo um novo ideal de formação.

Provavelmente seja muito mais fácil entender o momento histórico em que

aconteceu a Reforma do que responder “por que aconteceu a Reforma?”. Isto

porque, anteriormente a Lutero já se questionava a autoridade da Igreja. Pode-se

mencionar os chamados precursores de Lutero ou pré-reformadores como John

Wycliffe (1320?-1384) e John Huss (1368-1415)55. Já se sentia a necessidade de

55 Wycliffe na Inglaterra e Huss na Boêmia levantaram a voz em oposição aos abusos na estrutura e organização da Igreja e contra seus ensinamentos, que pareciam ir contra as intenções de Deus reveladas na Bíblia. Eles atraíram muitos partidários, preparados até para morrer em defesa de sua nova fé. Wycliffe traduziu a Bíblia para a língua inglesa.

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“liberdade” para o conhecimento da verdade de Deus, agora questionada devido

ao declínio religioso já notório. Provavelmente a Reforma não aconteceu

anteriormente por dois fatos básicos: primeiro, como mencionamos acima, a

imprensa não havia sido “descoberta”, segundo porque o movimento humanista

não estava formatado como aconteceria em breve. Ao ser feito, contribuiria muito

ao pensamento reformado, pelo menos, no seu nascedouro. Durante toda a Idade

Média, a educação foi controlada pelo catolicismo, com finalidade explícita de

formar o indivíduo para servi-la. Para Martinho Lutero, a educação deveria se

libertar das amarras que a prendiam à Igreja. Estudar, segundo o pensamento

luterano, era direito do cidadão e o dever do Estado seria patrocinar tal

empreendimento. Também neste particular, é necessário lembrar que até então, o

cidadão só teria sentido se estivesse a serviço do Estado. No século XVI, na

Alemanha, o cidadão começaria a se entender como um ser livre inclusive

economicamente falando, assunto que prenderá nossa atenção no próximo

capítulo quando também abordaremos as conseqüências sociais desse pensar

cidadão. Todavia, deve-se adiantar que, assim como o Humanismo, o pensamento

de Lutero se prendia no fato de que o indivíduo tivesse acesso ao aprendizado de

matérias que não fossem apenas teológicas como a lógica, matemática, ciências,

história, música e ginástica. O estudo das línguas, preponderantemente grego e

latim, deveria ser valorizado pelas escolas.

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Falar sobre Humanismo renascentista reporta-nos à Desiderius Erasmus56.

Ele procurou conjugar os dois movimentos, Humanismo e Reforma Protestante.

Por meio da divulgação literária da antiguidade cristã e clássica, Erasmo cria em

um “renascimento”. O seu maior instrumento era a educação, ponto de vista

também defendido pelo reformador Martinho Lutero. A reputação de Desiderius

Erasmus como pensador e pesquisador era inigualável. Estudioso do Novo

Testamento e revelando o espírito humanista crítico, não tinha na versão Vulgata

(tradução dos textos originais para o latim) como objeto fora de questionamentos.

Com respeito a isso, Erasmo apontava ensinamentos equivocados da Igreja,

baseados nas traduções feitas por São Jerônimo, o autor da Vulgata. Sendo

assim, em 1516, ele publicou uma versão do Novo Testamento direta do grego, a

qual outros letrados iriam usar para traduções futuras em seus próprios idiomas.

Portanto, não é estranho afirmar que a Reforma ocorrida na Alemanha, tendo

Lutero como o grande protagonista, teve influências marcantes do Humanismo

devidamente representado em Erasmo e sua versão neo-testamentária. No futuro

não distante, Lutero faria a versão na língua alemã, que até hoje é vista como um

instrumento fundamental para a formatação da linguagem daquela nação. Um fato

leva ao outro. Voltando a destacar a imprensa no processo reformista, mais uma

vez ela apareceria como instrumento valioso, uma vez que, divulgaria a versão

bíblica alemã, apensar do alto índice de analfabetismo da época. Mas a motivação

56 Erasmos (1466?-1536), holandês, filho de Gerhard, nono filho de uma família que o escolheu como aquele que devia seguir a carreira eclesiástica. Ele vivia com Margaret, filha de um médico, tendo em vista casar com ela. A família tanto o importunou que abandonou Margaret que estava grávida e foi para Roma, aí ganhando a sua subsistência copiando manuscritos, visto ser um homem culto. A família mandou-lhe recado de que Margaret tinha morrido. Desgostoso, fez se eclesiástico. Ao regressar à Pátria, descobriu o engano, mas manteve-se fiel aos seus votos e não voltou para Margaret embora a ajudasse no sustento da criança. Esta é uma história em que Charles Reade baseou o seu romance O Claustro e a Lareira in: Erasmo da Cristandade de Roland H. Bainton, pg.6.

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em querer saber, atacaria de frente tal deficiência intelectual. Não é exagero

reafirmar mais uma vez que a grande ferramenta para a transformação social via

educação foi, definitivamente, a imprensa. O desafio estava lançado,

considerando como dito acima, o alto índice de analfabetismo. Mas, ainda sobre

Erasmo e sua predisposição para reformas, comenta Roland Bainton:

Nenhum homem sintetizou tão bem esta reforma nos seus múltiplos

aspectos como Erasmo de Roterdã. A sua campanha para a

purificação da Igreja instigou ataques ao pensamento e práticas do

tempo. Ele tinha três grandes aversões. A primeira era ao

obscurantismo. Atacou muitos dos escolásticos do seu tempo,

porque não eram receptivos ao estudo dos clássicos pagãos nem ao

espírito da investigação crítica. A segunda aversão era ao

paganismo. Alguns eruditos contemporâneos estavam tão viciados

nos clássicos que ignoravam a herança essencial do Cristianismo. À

terceira chamou judaísmo, ou então Farisaísmo, ou ainda legalismo,

quer dizer, o esforço de assegurar a salvação através do

cumprimento meticuloso de regras exteriores quanto a comida,

vestuário, vigílias e coisas semelhantes. Nesse ponto, os monges

eram o alvo especial, embora não exclusivo (ou indiscriminado), do

seu ataque.57

Se o grande gesto de cidadania relacionado com a Reforma Protestante do

séc. XVI se deu pela educação, como veremos de forma mais detalhada

posteriormente, deve-se entender que os proponentes de tal reforma pela

educação naqueles tempos, tinham em Erasmo um referencial.

57 BAINTON, H. Roland. Eramos da Cristandade. Fundação Calouste Gulbernkian,p. 4.

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O cenário para a Reforma estava sendo construído. “Erasmo pôs o ovo e

Lutero o chocou”. Todavia, se a Reforma recebeu algum tipo de auxílio, o que

parece ser evidente, não significa que os movimentos caminharam de mãos

dadas. Erasmo não se uniu a Lutero, preferindo ficar com a Igreja e lutar por sua

mudança interior. Ele teria botado um ovo de galinha e Lutero chocado um ovo de

um pássaro bem diferente. Segundo Randell Keith, Éramos teria dito:

A corrupção da Corte Romana talvez necessite reforma ampla e

imediata, mas eu e meus pares não fomos convidados a nos

encarregarmos de um trabalho desse tipo. Eu preferiria que as coisas

fossem deixadas como estão, em vez de ver uma revolução que

ninguém sabe aonde levará. Outros podem ser mártires, se

gostarem. Não aspiro a tal honra. Algumas pessoas me detestam por

ser luterano, outras por não ser luterano. Podeis assegurar-vos de

que Erasmus foi e sempre será um fiel súdito da Sé Romana.58

Por sua vez, Lutero informaria posteriormente sua opinião sobre Erasmo.

Em linguagem bem mais agressiva Lutero mostraria que de admiração passou a

ter “ódio” de Erasmo. Se a Reforma contou com o auxilio do pensamento

humanista no início, no nascedouro como dito anteriormente, assim não

permaneceu. É prudente e suficiente apenas afirmar que o Humanismo contribuiu

na confecção de um cenário social e intelectual favorecendo os movimentos

reformistas na Alemanha e posteriormente em toda a Europa. O despertar

intelectual causado pelo Humanismo ajudou a criar um clima favorável para que o

pensamento luterano achasse, com mais facilidade, a aceitação mínima

58 Randell Keith in: Lutero e a Reforma Alemã. O autor transcreve as palavras d Erasmos escritas em 1520 ao Legado Papal. (ed. Ática, 1995, p.22).

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necessária para o progresso do movimento. O ponto comum e forte entre o

Humanismo e a Reforma repousava no fato de que, ambos estavam preocupados

com a educação. Para o Humanismo a literatura, a arte e a eloqüência eram

fatores mais importantes do que a Filosofia, a Moral ou a Religião. Outra vez

destacamos, nesta relação entre Humanismo e Reforma, o elo estabelecido na

educação pelo uso da imprensa. Sua importância histórica faz com que

retomemos mais uma vez o assunto. Talvez o Humanismo não tenha sido tão

dependente da imprensa como aconteceu com a Reforma, todavia, a imprensa

exerceu seu papel substancial para que se proporcionasse um ambiente propício

diante de uma nova perspectiva histórica da humanidade. Autores como Pierre

Chaunu são mais contundentes quanto a este assunto, afirmando

categoricamente que não existiria movimento humanista sem a instrumentalidade

da imprensa. Assim ele definiu a época:

E, no entanto, sem o livro impresso não existe revolução humanista.

O Humanismo do século XV perderia a força, tal como o dos séculos

VIII e IX, ou ainda o do século XII, porque, sem ele, o trabalho

humanista é um trabalho de Penélope. A impressão é o multiplicador

e, muito mais fundamentalmente, o fixador, uma técnica que impede

que os textos se desfaçam de cópia para cópia, que desloca, em

tempo igual, o investimento do trabalho humano da simples

reprodução para o confronto entre o modelo e a cópia, através do

jogo da correção das provas.59

59 Pierre Chaunu in: O Tempo das Reformas (1250-1550), Edições 70, S.Paulo, p. 29.

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É necessário compreender o impacto causado pela imprensa,

disponibilizando o livro impresso em uma cultura onde a comunicação oral era

predominante. A impressão não só multiplicou o campo do pensamento humanista

como aumentou seu público. Se o conceito de cidadania pode ser entendido como

uma conquista do cidadão também no que se refere ao conhecimento, o

humanismo iria mostrar isso na prática, colocando nas mãos dos cidadãos, o

instrumento do saber, o livro impresso.

Assim, entre 1450 e 1500, estima-se que foram feitas 35 a 40 mil

edições na Europa, representando 15 a 20 milhões de exemplares.

Neste período, há registro de 1125 estabelecimentos impressores,

em 259 cidades européias. Destas obras impressas, 77% eram em

latim, 10% em italiano, 6% em alemão, 5% em francês, 2% em inglês

e 1% em holandês e espanhol. Os livros religiosos alcançaram o total

de 40-45%; as obras clássicas 30%, as de Direito 10%, e as de

Ciências 10%. Outros dados apontam para o fato de que entre 1445

e 1520, 75% da obras impressas eram religiosas.60

Nada seria como antes. A luta luterana para que o cidadão tivesse a Bíblia

em sua própria língua, traria indubitavelmente a liberdade tão sonhada, a

“liberdade de consciência”, um direito de todos. Humanismo e imprensa se

mostrariam fortes aliados na construção do cenário reformista também na área

religiosa como destacou Pierre Chaunu:

60 COSTA, Herminsten. Raízes da Teologia Contemporânea, Ed. Cultura Cristã, São Paulo, 2004, p.55.

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Humanismo e imprensa representam, antes de mais nada, uma

multiplicação por dez, pelo menos durante alguns anos, da difusão

da Bíblia, com uma leitura muito mais simples porque mais vasta e

também muito mais individual, sem qualquer termo comparativo com

a leitura douta e coletiva da Igreja. Ora, a leitura dos humanistas, a

interpretação gramatical histórica a nível de textos, está próxima da

leitura primitiva, elementar, não guiada.61

Portanto, a imprensa seria um fator fundamental para a promoção e

transição de um ensino oral do saber, para uma universalização ou democracia

cultural. A imprensa estabeleceu uma linha divisória entre a tecnologia medieval e

a moderna.

A imprensa e o movimento humanista, obviamente, não constituíram, por si

só, na revolução religiosa do século XVI, mas, foram fatores importantes.

Especificamente quanto ao Humanismo, sua importância se deu à medida que

introduzia na igreja um despertamento para a leitura mais intensa da Bíblia e dos

comentários das Escrituras Sagradas feitos pelos chamados “pais da igreja”. A

partir de tal consulta os dogmas e pressupostos religiosos estariam expostos aos

questionamentos. Com o livro impresso, os já convencidos de que havia

necessidade de reformas, se viam com provas suficientes em mãos. Quanto a

este detalhe Lucien Febvre, abordando sobre o aparecimento do livro,

destacando:

Um livro só talvez nunca tenha convencido alguém. Mas se ele não

convence, o livro é em todo caso a prova tangível da convicção, que

ele materializa por sua posse; ele também fornece argumentos

61 Pierre Chaunu in: O Tempo das Reformas (1250-1550), Edições 70, S.Paulo, p. 58.

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àqueles que já estão convencidos, permite-lhes aprofundar e precisar

sua fé dá-lhes os elementos que ajudarão a triunfar nas discussões,

a reunir os hesitantes. É sem dúvida por todas essas razões que

desempenha um papel essencial no século XVI, no desenvolvimento

do protestantismo.62

Não há dúvida de que o Humanismo trouxe a valorização do homem,

dando-lhe oportunidade de repassar seus valores. Mas, o que teria distanciado o

Humanismo e a Reforma Protestante se postularam de forma tão parecida no

início? Provavelmente a uma questão de princípio bíblico-doutrinário. A

supervalorização ou o antropocentrismo pregado pelo Humanismo o distanciaria

da Reforma Protestante. Mas, no início da ruptura com o sistema medieval, ambos

somariam forças em busca de libertação. O trio Humanismo-Imprensa-Reforma se

auto-ajudaria. Se nos anos anteriores se percebia apenas resquícios de

Cidadania, seus sinais vão ficando mais evidentes à medida que os direitos

humanos do cidadão se destacam. O exercício da cidadania, poderia ser

identificado basicamente na busca pelo saber, com todas as implicações que isso

levaria. A consciência seria o árbitro. Na origem de cada episódio promovido pela

Reforma, haveria um panfleto impresso. Tanto é fato que o ato que marcou a

Reforma foi um edital fixado na porta da Capela de Wittenberg, no dia 31 de

outubro de 1517. As chamadas “teses” escritas em língua alemã contra a venda

de indulgências se espalhariam por toda Alemanha. Em quinze dias, elas

veiculavam por toda parte, conforme lembra Lucien Febvre:

62 FEBVRE, Lucien. O Aparecimento do Livro, Ed. Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 1992.p, 409.

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Entre essas obras, os livros de Lutero são particularmente

numerosos; pôde-se estimar que eles representam no total mais de

um terço dos escritos alemães vendidos entre 1518 e 1525. Alguns

deles conhecem um enorme sucesso. O Sermão Von Ablasz und

Gnade é reimpresso mais de vinte vezes entre 1518 e 1520. Do

Sermão Von der Betrachtung Heiligen Leidens Christi (1519)

conhecem-se umas vinte edições. O famoso panfleto À nobreza

cristã da nação alemã, publicado em 18 de agosto de 1520, precisou

ser reimpresso já no dia 25. Em três semanas, 4.000 exemplares

deles haviam sido distribuídos: em dois anos teve treze edições. Do

trabalho Da liberdade pode-se enumerar 18 edições anteriores a

1526. Os números relativos às três obras célebres de Lutero

publicadas só no ano de 1522 mostram ainda com que prontidão se

procurava o que saía da sua pena.63

Os humanistas foram elementos importantes para que se multiplicasse a

impressão das traduções antigas, não deixando de fora os textos sagrados, para

felicidade dos reformadores. Enquanto as obras dos humanistas e dos poetas

italianos exerciam influência em toda a Europa, crescia também a tradução de

obras para as línguas nacionais. Lutero traduziu o Novo Testamento para a língua

alemã em 1521 e o Antigo Testamento em 1534, consolidando não só a Reforma

Protestante, mas, também, a própria língua nacional. Embora se acredita que já

havia traduções da Bíblia para a língua alemã64, a qualidade da tradução feita por

Lutero suplantava todas as anteriores. Pelo contexto histórico e circunstancial, a

63 Ibdem., pg. 413. 64 Conforme informações no site www.melodia.com.br, texto do professor Jaime Nunes Mendes, em 1534 foi o ano em que Martinho Lutero traduziu a Bíblia para a língua alemã e que circulava no mundo cerca de 15 traduções. Em 1800 esse número aumentou pra 75. Em 1900 subiu para 567 traduções. Atualmente, a Bíblia completa ou em partes, está traduzida para mais de 2000 línguas e dialetos.

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tradução da Bíblia para a língua alemã feita por Lutero, foi um ato de

desobediência e um pilar da sistematização do que viria a ser a língua alemã, até

então vista como uma língua inferior, dos ignorantes, plebeus. Lutero não tinha

aversão ao latim, pois, ele mesmo, publicou uma edição revisada da tradução

latina da Bíblia (Vulgata). Lutero tanto escrevia em latim como em alemão.

A medida que o Humanismo se centraliza no homem, numa espécie de

antropocentrismo, o movimento religioso firmava-se, como deveria se esperar, no

teocentrismo, porém, não ignorando a liberdade humana e seu direito de

conhecimento. A caminhada do Humanismo e Reforma Protestante, até certo

ponto, marcou importantes conquistas na história dos cidadãos. Como vimos até

agora, o impulso para a concretização da Reforma Protestante, não se limitou

apenas ao campo religioso. Isto porque, ao buscar a “liberdade de consciência”, o

movimento daria oportunidade ou se somaria às inquietações de ordem social e

econômica que havia no século XVI. Abordaremos sobre este assunto no próximo

capítulo, entendendo que o tema “Economia” não terá o sentido aprofundado

como uma ciência, conforme é hoje conhecido. Economia no sentido mais amplo,

enfocando questões de compra e venda com princípios éticos que fazia a atenção

do reformador se voltar para o assunto à medida que o povo se via necessitado de

um posicionamento bíblico sobre questões fora do âmbito monástico, mas, reais e

urgentes.

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CAPÍTULO III

REFORMA, CIDADANIA E ECONOMIA

Como afirmado no capítulo anterior, a Reforma Protestante, juntamente

com outros fatores, pode ter contribuído na mudança social ocorrida naquele

momento histórico onde os valores humanos passavam por avaliações ou, como

dito, por um renascimento no mais amplo sentido da palavra. Especulações

sociais e mutações econômicas empolgavam a pregação de uma nova ordem

social. Havia um “espírito” favorável às mudanças. Sobre isso David S. Schaff

escreveu:

Foram favoráveis ao alastramento da Reforma, também o espírito

moderno de comércio e exploração. Não foi por simples coincidência

que a investigação religiosa e as descobertas geográficas tivessem

seu ponto de partida na mesma época. Novos mundos se

desenhavam no horizonte.65

Os “novos mundos” que se desenhavam tinham a Reforma Protestante

como uma das protagonistas. Colocar a Reforma Protestante envolta no cenário

onde aconteciam diversos fatos históricos que marcavam o início de uma nova

era, a valoriza sobremaneira e leva-nos a pensar em Reforma Protestante para

além dos limites religiosos.

65 SCHAFF, David S. Nossa Crença e a de Nossos Pais – Traduzido por Nicodemus Nunes, 2ª edição, São Paulo: Imprensa Metodista, 1964.

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À medida que o pensamento reformado se posiciona política e

economicamente, ela se fundamenta como um movimento que transcende tais

limites e ideais meramente religiosos como se poderia pensar ou esperar.

Protagonista política à medida que na Alemanha, no tempo da Reforma, não tinha

uma unidade política. Estava nominalmente unida sob o Império, e era governada

pela Dieta; mas o poder, tanto do imperador como da Dieta era, praticamente,

fraquíssimo. Entre o imperador e o povo estava a Dieta, que era o grande

conselho do Império. A Alemanha estava tão dividida que cada um dos príncipes

independentes podia fazer o que quisesse. Protagonista no cenário econômico por

trazer um “espírito” que contribuísse em uma nova ética. A pobreza deixaria de ser

uma virtude espiritual e, passaria a ser vista como uma das formas de

manipulação do poder religioso ou político. O protestantismo receberia apoio à

medida que se contextualizava. Vale se reportar ao que escreveu o economista

Max Weber ao relacionar o protestantismo com aquele novo momento, ele disse:

Uma das realizações específicas do protestantismo consiste em

haver colocado a ciência a serviço da técnica e da economia. 66

Sim, o próprio contexto histórico vivido por Martinho Lutero contribuiria de

forma exigente, para que se formulasse um pensamento não apenas teológico,

mas, também, social, político e econômico. A necessidade urgente de se

responder às diferentes questões de ética e cidadania palpitantes da época

contribuiu para que Lutero usasse seu conhecimento intelectual e espiritual para

66 Max Weber, A História Geral da Economia, Editora Mestre Jou, São Paulo: 1968, pág. 321

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oficializar conceitos que dariam abertura para um desenvolvimento de inúmeras

teses. O desenvolvimento do pensamento religioso de Lutero sobre questões

sociais e econômicas naquele período representou uma transição histórica

singular. As teorias medievais iriam contrastar com conceitos que pautariam e

definiriam mudanças, até certo ponto, radicais.

Pode-se dizer que as mudanças da sociedade moderna tiveram suas raízes

nas chamadas convulsões sociais que se fizeram acontecer na expansão

econômica da era renascentista, na qual, a Reforma Protestante do século XVI

estava inserida.

Segundo o pensamento luterano tendo como foco principal a Alemanha,

berço da Reforma Protestante, havia necessidade de uma ética clara, no jogo das

relações humanas. Princípios que pudessem arbitrar entre o poder do Estado e o

da Igreja; entre os direitos e os deveres dos cidadãos e, finalmente, entre a fé e a

liberdade sob a ótica cristã no temor de Deus. Com tais postulações novas bases

ou nova ética emergiram. A relação econômica e social absorveria características

de tal pensamento e movimento reformista determinando os rumos de uma nova

época. Laços seriam estreitados quase que simultaneamente entre a

agropecuária, a mineração, a manufatura e o comércio.

Toda a movimentação econômica daquela época não era assunto estranho

aos envolvidos no processo de reforma dentro da mais forte instituição, a religiosa.

No ano de 1520, mostrando interesse e compreensão daquele fenômeno

sócio-econômico, Lutero escreveu diversos sermões onde tratava os assuntos

econômicos com interpretações éticas encontradas nos princípios bíblicos como

veremos ainda neste capítulo.

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Pensando assim, vincular o exercício de cidadania ao pensamento de

Lutero é uma atividade não tão trabalhosa, à medida que se considera as

questões éticas e econômicas, vinculadas à mudança da ordem social.

Lembrando que tais mudanças deveriam ter como cerne a educação, tese

principal no discurso do reformador. A “liberdade de consciência” era o tema

principal que mostrava ser a grande responsável pelas invisíveis redes do

cotidiano tanto na vida pessoal quanto nas relações sociais. Sobre isto, Walter

Altmann ressalta:

A “liberdade de consciência” defendida por Lutero, paradoxalmente,

remeteria o indivíduo a uma submissão ética e cidadã. Ele disse:

“Um cristão é senhor livre sobre todas as coisas e não está sujeito a

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apresentado nas Escrituras. Para ele, qualquer atividade que fosse contrária ao

ensinamento bíblico deveria ser interrompida.

Com base no Evangelho, que para o reformador era a “luz que expõe todo

tipo de obras das trevas”, poderia se estabelecer a forma correta de relação

existente entre as negociações. Lutero via uma mudança plural para sua época. A

mudança seria do feudalismo para o capitalismo mercantil. O sistema social do

feudalismo, ordenado de cima para baixo, estava legitimado pelo direito divino, o

qual era representado pela igreja, o que não duraria muito tempo. Sobre isto

destaca ainda Walter Altmann:

Já as cruzadas haviam aberto caminho para uma nova ordem.

Começara a desenvolver-se um incipiente comércio, para o qual o

regime de trocas de mercadorias já não satisfazia nem era

adequado. As vias de transporte precisavam ser protegidas e sua

abertura não poderia mais ficar à mercê da boa vontade dos

senhores feudais através de cujos feudos o transporte se realizasse.

Cresciam as cidades, em que surgiram novas profissões, em

especial as de artesãos, para a produção de novos artigos, a serem

inseridos no fluxo comercial. A vida em cidade criou novas

necessidades a serem atendidas. Fizeram-se necessários novos

aparelhos políticos, mais centralizados.68

Uma série de alterações econômicas, financeiras e sociais aconteciam

simultaneamente e Lutero, como foco teológico, precisaria dar sua contribuição.

Na tentativa de contextualizar o ensinamento bíblico ofuscado por muito tempo

68 Walter Altmann, Lutero e Libertação, Ed. Sinodal, p.37.

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pela igreja institucionalizada, Lutero, diferente do que alguns poderiam pensar,

não via na política, na economia ou na ordem social, assuntos desvinculados à

responsabilidade cristã. Percebe-se ao estudar sobre o reformador Lutero que não

era seu perfil o omitir-se diante de questão confrontadoras. Exemplo disso foi com

respeito ao comércio, onde havia diversos malefícios e truques financeiros

perigosos que, conforme o pensamento reformado, comprometiam a fé cristã. A

grande questão era: será possível ser, ao mesmo tempo, um cristão e

comerciante? A ganância deveria ser combatida, pois esta “obra da carne”69

produzia as ações espúrias no mundo econômico. Lutero afirmava que:

Provavelmente, é assim que ainda há entre os comerciantes bem

como entre outras pessoas alguns que pertencem a Cristo. Estes

prefeririam ser pobres com Deus a ricos com o diabo, como diz o

[Salmo 37.16: Mais vale o pouco do justo do que o muito dos ímpios].

Por amor a estes precisamos falar.70

Considerando a possibilidade de que alguns comerciantes eram tementes a

Deus, fazia-se necessário tratar do assunto de tal forma a estabelecer uma ética

econômica para um mundo em transição. O despertar de um novo mundo social,

econômico e religioso que estava emergindo precisava ter a interpretação

consciente e coerente tendo como pano de fundo a liberdade. Atividades

fundamentais economicamente falando como comprar e vender poderiam e

69 Expressão usada pelo Apóstolo Paulo na Carta que escreveu aos Gálatas 5.19-22. 70 Martinho Lutero em Economia e Ética, justificando a necessidade de tratar do assunto à luz das Escrituras.

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deveriam ser praticadas de forma cristã, especialmente em relação às coisas

necessárias e honrosas.

Conforme Lutero, o pecado no comércio se evidenciava pelo abuso nos

preços das mercadorias. Na fixação dos preços, os comerciantes se viam tentados

pela ganância. O taxar os preços o quanto queriam, revelava a falta de temor a

Deus e a falta de amor ao próximo. A opinião religiosa era fundamental na

revolução econômica que acompanhava aquele momento histórico renascentista.

Nas palavras de Tawney:

Pensadores mercantilistas reafirmaram uma velha arma econômica

para o arsenal dos príncipes. A análise econômica objetiva, ainda em

sua infância, recebeu novo ímpeto das controvérsias dos homens

práticos sobre a elevação de preços, a moeda e o câmbio externo. A

questão da atitude que a opinião religiosa assumiria em face das

novas forças era momentosa. Poderia aclamar o surto do

empreendimento econômico como instrumento de riqueza e luxo...71

A necessidade do próximo não deveria motivar, pelo menos os

comerciantes cristãos, o querer tirar vantagem da situação. Agir assim seria,

conforme Lutero, um preceder não cristão e desumano. Já que o comércio é uma

atividade praticada em favor do próximo, ela precisaria obedecer a leis conforme a

consciência. Bom, qual seria então o preço? As mercadorias não são todas iguais,

vêem de diferentes lugares, enfrentam o custo do transporte, condições do tempo,

e outros fatores. Sendo assim, o justo e correto é que um comerciante lucrasse o

71 R.H.Tawney. A Religião e o Surgimento do Capitalismo, p. 91. São debates que tratam da evolução do pensamento religioso com respeito aos problemas sociais e econômicos no período que presenciou a transição das teorias medievais de organização social para as modernas.

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bastante com sua mercadoria para cobrir seus custos e seu esforço. Trabalho e

risco devem ser recompensados. Todavia, Lutero responsabilizava as autoridades

do governo para que nomeassem pessoas sensatas e honestas para funcionarem

como avaliadores das mercadorias. A partir daí, deveriam fixar o preço máximo

que as mercadorias deveriam custar, para que os comerciantes pudessem ter o

justo sustento. Lutero afirma:

Portanto, como não se pode ter esperanças de que essa

regulamentação seja implantada, a melhor recomendação é deixar

que o mercado comum fixe os preços de compra e venda, ou de

acordo com a prática comum de vender e comprar na região. 72

A luta era a ganância, não abusando do próximo e tendo o sustento

merecido. Lutero se preocupou em falar aos comerciantes que, conforme dizia,

eram pessoas de bom coração e tementes a Deus que não fariam injustiça

voluntariamente. A operação simples deveria ser a soma do tempo, do trabalho e

do risco para que se chegasse ao preço justo.

A questão econômica é ampla. Todavia, Lutero não se olvidou dos assuntos

mais polêmicos dando a cada um deles um enfoque bíblico. A fiança, conforme o

reformador, que para muitos pode parecer uma virtude de amor é, na verdade, a

causa de ruína para muitas pessoas. Tendo como fundamentação vários textos da

Bíblia, Lutero ensinou que tal prática é proibida. Ninguém deve ser fiador de outras

pessoas, a não ser que tenha condições e concorde em assumir a dívida e pagar.

Assumir fiança seria um ato que ultrapassa as limitações do ser humano. Quem se

72 Martinho Lutero, Economia e Ética. Série Lutero Hoje, Sinodal, p.13.

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torna fiador confia numa pessoa e coloca seu corpo e seus bens em perigo, sobre

alicerces falsos e incertos. 73

O texto bíblico de Mateus 5.40-42 é o principal texto usado por Lutero para

se estabelecer princípios no modo cristão de negociar. Sofrer o dano, dar a quem

pedir, emprestar sem esperar devolução, comprar e vender a vista, caracterizam

os princípios bíblicos para as relações financeiras a serem vividas pelos cristãos.

Se não houvesse a fiança no mundo e fosse comum emprestar

evangelicamente, negociando apenas em moeda corrente ou com

mercadoria disponível então os maiores e mais perigosos riscos, as

falhas e problemas do comércio estariam eliminados. 74

Conforme o pensamento luterano, vender tão caro o quanto quer, pedir

empréstimo e financiar são as três fontes de onde brota todo tipo de crimes,

injustiças, fraudes e espertezas por toda a parte. As três fontes citadas constituem

em janelas à ganância e à natureza maligna, esperta e egoísta. A especulação,

fixar preços exorbitantes por saber que o próximo necessita e fatalmente terá que

adquirir caracteriza um pecado gravíssimo contra a Palavra de Deus.

Simultaneamente Lutero via a profissão do indivíduo como uma missão75 a ser

desenvolvida. Assim foi que em Lutero o conceito de vocação profissional seria

vista como um desígnio divino.

73 Lutero menciona vários textos bíblicos como: Provérbios 6.1-5; 20,16; 22.26; 27.13;Gênesis 43.9), para ensinar que não se deve ser fiador, a menos que esteja disposto a sofrer o dano se necessário 74 Martinho Lutero, Economia e Ética. Série Lutero Hoje, Sinodal, p.27. 75 Conforme Max Weber, “A vocação é aquilo que o ser humano tem de aceitar como designio divino, ao qual tem de “se dobrar” – essa nuance eclipsa a outra idéia também presente de que o trabalho profissional seria uma missão, ou melhor, a missão dada por Deus. E o desenvolvimento do luteranismo ortodoxo sublinhou esse traço ainda mais” (Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, São Paulo: Contexto, 2004, pg. 77).

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Max Weber ao abordar sobre economia daquela época expressou da

seguinte forma ao referir-se ao pensamento protestante:

... o homem é apenas administrador dos bens que Deus lhe haja

conferido; censurava o prazer, mas não se admitia a fugir do mundo,

pois considerava como missão religiosa de cada um a colaboração

no domínio racional do Universo. Deste critério deriva a nossa atual

palavra “profissão” (no sentido de “vocação”), que só conhecem os

idiomas influídos pela tradução protestante da Bíblia.76

Tal conceito seria um dos integrantes históricos importantes para mudança

da ordem social. A Reforma Protestante daria uma nova interpretação à função

do homem relacionado com o trabalho e a riqueza. O ser humano é visto como

administrador dos bens dados por Deus. Assim entendendo, evidentemente, um

pensar econômico visando tal ética daria força a um novo sistema e forma de lidar

com o capital. Sobre a nova interpretação do trabalho abordaremos no próximo

capítulo entendendo que se amplia ainda mais a idéia de que a Reforma

Protestante não teria tido implicações apenas no campo religioso. O exercício da

cidadania no pensamento de Martinho Lutero se perceberia de forma mais

concreta ao voltar-se para o homem como um ser “vocacionado” por Deus para

exercer funções no mundo secular. E mais, um ser com direito de saber para fazer

suas escolhas. São assuntos que prenderão nossa atenção a seguir.

76 Max Weber, História Geral da Economia, tradução Calógeras A. Pajuaba, 1ª ed. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1968, pág. 319.

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CAPÍTULO IV

REFORMA, CIDADANIA E MUDANÇA SOCIAL

Ao se tratar do pensamento de Lutero referente à ordem social, é

fundamentalmente necessário ressaltar a distinção feita pelo reformador entre

mundo secular e reino de Cristo, embora, como deixava claro, Deus domina sobre

ambos. As funções referentes ao “ministério espiritual” são superiores àquelas

relacionadas com o “mundo secular”. Neste último, as funções são temporais e

passageiras. Todavia, as funções relacionadas à ordem social são importantes

para que haja preservação e honra do corpo, da família, dos bens e das demais

coisas necessárias para esta vida. Explicava o reformador:

Pois o governo secular é uma imagem, sombra e figura do governo

de Cristo. Pois o ministério da pregação (onde ele existe como Deus

o ordenou) acarreta e proporciona justiça eterna, paz eterna e vida

eterna, como S.Paulo o enaltece em 2 Co 4.1ss. O regime secular,

todavia, mantém paz, justiça e vida temporal e passageira.77

Sendo assim, Lutero via o erudito honesto e o jurista piedoso como

verdadeiros profetas, sacerdotes, ou anjos do Senhor. Assim também, no reino de

Cristo, um herege ou falso pregador era visto como o próprio diabo, ladrão,

assassino e blasfemador. O inverso também seria verdade, um erudito ou jurista

77 Uma prédica para que se mandem os filhos à escola, escrita por Lutero em 1530. Obras Selecionadas, Sinodal, Vol. 5, pg. 346.

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desonesto era um diabo de todo o reino. A visão de dois mundos o ajudaria

resolver questões éticas para muitos, contraditórias. Por exemplo, ao mesmo

tempo em que Lutero defendia os direitos dos cidadãos, ele os ensinava a

necessidade de submissão às autoridades mesmo que fossem tiranas.

Contradição provavelmente não fundamentada à medida que se entende que,

para o reformador, a busca da cidadania poderia apresentar-se como

contraposição do Estado e ao poder religioso, mas, pela força da palavra tão

somente.

Na visão do reformador, o povo teria inúmeros benefícios se especialistas

em direito, imperadores, príncipes, senhores, e outros eruditos vissem em suas

funções, a “obra e ordem de Deus”. Através de leis e códigos manteriam e

promoveriam, por ordem divina, todo o regime no mundo secular com suas

cidades e campos. Com tal tese, Lutero incentivava os pais a levarem de volta

seus filhos à escola. Isto porque, com o enfraquecimento do poder religioso, houve

um desencantamento total na área de educação por parte dos pais. Mais adiante

ao abordarmos sobre o tema Reforma e Cidadania na Educação, trataremos com

mais propriedade sobre o assunto. Lutero defendia que para ser um sacerdote,

não era necessário ser um padre ou monge. Assim sendo, o sacerdócio é

universal. Para ele, o “sacerdócio de todos os crentes”, destaca a

responsabilidade e privilégio dos cristãos. A unidade e igualdade em Cristo

deveriam ser demonstradas pelo amor mútuo e pelo cuidado de uns para com os

outros.

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Quando desejar fazer alguma coisa pelos santos, volte sua atenção

para os vivos, não para os mortos. O santo vivo é seu próximo, o nu,

o faminto, o sedento, o pobre que tem esposa e filhos e sofre

humilhações. Dirija sua ajuda a eles, comece seu trabalho aqui.78

Mas, seria o conceito de trabalho como vocação que mudaria a ordem

social da Alemanha e posteriormente de quase toda a Europa. Certamente

repousa aqui, a gênesis de uma nova ética, de um novo espírito cuja força de faria

sentir em todo o mundo. Lutero estava convicto de que a responsabilidade do

homem era cumprir sua vocação79 através do trabalho. Mais uma vez o

movimento reformista induz-nos à reflexão que desde o início permeia a presente

pesquisa. O exercício da cidadania no pensamento de Martinho Lutero por meio

da “liberdade de consciência”, fundamentalmente, não se restringiria ao campo

religioso. O movimento religioso-sócio-político provocaria mudanças sociais a

perpetuar como matéria no estudo da sociedade como hoje se vê. Do templo ou

mosteiro para as ruas, para os campos ou cidades. Da oferta ou indulgência para

o uso e administração do ganho. Da vida regrada e domesticada pelo ensino

religioso para a possibilidade de ganho sem sentimento de culpa. Não é de se

admirar que ao consolidar o movimento reformista um dos primeiros incentivos e

apoio brotou dos comerciantes conhecidos como burgueses.

Uma mudança social, começando na Europa e posteriormente em muitos

outros lugares do mundo teria na Reforma, como dito no capítulo anterior, uma

78 Lutero em Teologia dos Reformadores por Timothy George, Vida Nova, pg. 97. 79 Lutero empregou a palavra alemã “beruf” para trabalho cujo significado estava relacionado mais com vocação ou chamado de Deus do que com as atividades propriamente ditas que alguém poderia exercer. Neste caso a palavra usada era “arbeit”.

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protagonista. Com implicações profundas na vida do cidadão a Reforma

Protestante seria vista como promotora de uma “idéia nova” conforme enfatizou

Max Weber.

E assim como o significado da palavra, assim também – como é

amplamente sabido – a idéia nova, e é um produto da Reforma. Não

que certos traços dessa valorização do trabalho cotidiano no mundo,

inerente a esse conceito de Beruf, não estivessem presentes já na

Idade Média ou mesmo na Antigüidade.80

A vocação deixando de ser interpretada apenas como um exercício

religioso abriria, definitivamente, um novo “espírito” social. O cumprimento dos

deveres no exercício das profissões tidas como mundanas, sem culpa, traria a

auto-realização moral para muitos inseridos na sociedade em crise. Com o novo

conceito de “Beruf”, cairia o dogma católico de que a única maneira de agradar a

Deus seria suplantar a moralidade intramundana através da vida monástica. O

pensamento reformista sinalizaria para a possibilidade de se agradar a Deus

cumprindo os deveres intramundanos por meio também da vocação, mas, uma

“vocação profissional”. Tal conceito é um dos feitos inquestionáveis da Reforma

conforme acentuou Max Weber:

Que essa qualificação moral da vida profissional mundana fosse um

dos feitos da Reforma, e, portanto de Lutero, mais pesados de

conseqüências é fato fora de dúvida, uma espécie de lugar comum.81

80 WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p.72. 81 Ibdem., pg. 73.

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Evidentemente não se deve atribuir ao protestantismo a criação de um

sistema econômico. Mas claramente, não de pode atribuir a criação do sistema

capitalista como temos hoje, à Reforma Protestante, nem levando em

consideração seu início e nem posteriormente quando outros personagens

aderiram e romperam com a religião dominante e sua forma de governo. Não se

pode atribuir a Lutero intimidade com o “espírito capitalista”. Todavia, não seria

também exagero pensar no protestantismo como um dos fatores que contribuíram

para o desenvolvimento de tal sistema. Max Weber esclarece o assunto ao

destacar os “influxos religiosos” como um dos fatores que contribuíram para o

“espírito capitalista”. Vejamos:

Mas, por outro lado, não se deve de forma alguma defender uma

tese tão disparatadamente doutrinária que afirmasse por exemplo:

que o espírito capitalista (sempre no sentido provisório dado ao

termo aqui) pôde surgir somente como resultado de determinados

influxos da Reforma (ou até mesmo: que o capitalismo enquanto

sistema econômico é um produto da Reforma). Só o fato de certas

formas importantes de negócio capitalista serem notoriamente mais

antigas que a Reforma impede definitivamente uma visão como essa.

Trata-se apenas de averiguar se, e até que ponto, influxos religiosos

contribuíram para a cunhagem qualitativa e a expansão quantitativa

desse “espírito” mundo afora, e quais são os aspectos concretos da

cultura assentada em bases capitalistas que remontam àqueles

influxos. Em face da enorme barafunda de influxos recíprocos entre

as bases materiais, as forma de organização social e política e o

conteúdo espiritual das épocas culturais da Reforma, procederemos

tão só de modo a examinar de perto se, e em quais pontos, podemos

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reconhecer determinadas “afinidades eletivas” entre formas da fé

religiosa e certas formas da ética profissional.82

Assim sendo, a Reforma não pretendeu ser em primeiro lugar uma

mudança do sistema econômico ou social da época, mas, ao tentar restaurar

princípios religiosos, por meio do estudo dos originais das Escrituras, e do

conhecimento do ser humano com toda sua complexidade, mostrando uma

perspectiva nova política, econômica e socialmente falando, transformaria a

condição humana com relação às concepções até então dominantes na Idade

Média. A afirmação protestante de que o evangelho responsabiliza o indivíduo, e

que o mesmo não sendo um monge é, por chamado divino, um sacerdote, daria

uma nova perspectiva ao indivíduo tanto no que se refere ao seu comportamento

espiritual quanto moral e cívica. A sociedade devia organizar-se de forma nova,

em harmonia com o evangelho. Neste sentido, a Reforma Protestante pode ser

vista como agente motivador de mudanças sociais significativas que pautariam a

vida moderna.

Dentre muitos fatos que permeavam a Alemanha e, de certa forma a

Europa daquela época, destacam-se os camponeses que, na verdade, viviam

situações lamentáveis. Houve tempo em que cultivavam as suas terras, mas, os

senhores feudais foram, pouco a pouco, restringindo seus direitos. Chegando a

ponto de lhes proibirem, por exemplo, a entrada em determinadas áreas, mesmo

que baldias, não lhes permitindo o abastecimento de lenha ou pesca nos rios. Não

tinham a quem pedir proteção e não podiam contar com as leis. A sua única

82 Ibdem., pg. 83.

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esperança estava na revolução, e sentiam um desejo ardente de imitar os suíços,

isto é, de se libertarem, de acabarem com o feudalismo, de se tornarem

proprietários.

Buscando aquilo que os princípios do evangelho ensinava, reforçado pelo

movimento da Reforma, sonhavam com mudanças importantes. Lamentavelmente

muitas mudanças sociais envolvem o confronto físico. Lutero não apoiou a revolta

quando se transformou em confronto armado. Este foi um dos fatos que, como

abordamos anteriormente, fizeram com que Lutero parecesse contraditório.

Liberdade, cidadania, sem contraposição ao Estado ou ao poder dominante da

religião. Procurando manter o foco deste capítulo que trata da Reforma, cidadania

e mudança social, necessário se faz retratar o cenário histórico ainda que

resumidamente.

Sabe-se que o imperador Maximiliano havia morrido em 12 de janeiro de

1519, depois de seis meses de tensas negociações foi eleito para sucedê-lo, seu

neto, Carlos V. O jovem imperador convocou em Worms uma Dieta83 para a qual

Lutero foi chamado. Em 17 de abril de 1521 foi exigido que Lutero retratasse o

que tinha manifestado em seus livros. Quando numa segunda audiência Lutero foi

advertido a se retratar, respondeu:

No puedo ni quiero retractarme a menos que se me pruebe, por el

testimonio de la Escritura o por medio de la razón, que estoy

equivocado; no puedo confiar ni en las descisiones de los Concilios

ni en las de los Papas, porque está bien claro que ellos no sólo se

83 DIETA – Reunião ou Assembléia religiosa e ou política onde se discute o interesse de diversos seguimentos.

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han equivocado sino que se han contradicho entre sí. Mi conciencia

está sujeta a la Palavra de Dios, y no es honrado ni seguro obrar en

contra de la propia conciencia. Que Dios me ayude! Amém. 84

Como abordados anteriormente os pressupostos reformistas não se

limitariam ao campo religioso. Ao abordar ou tratar dos assuntos religiosos

contextualizando-os às necessidades emergentes, o movimento traria implicações

para toda uma sociedade envolvendo seus assuntos cotidianos como a questão

econômica vista anteriormente. E, ainda a questão educacional que será tratada

adiante. Do indivíduo para o geral, aconteceriam mudanças.

A influência luterana era percebida paulatinamente. Enquanto isto, o poder

religioso se movimentava contra as idéias e atitudes do reformador. Ainda que não

seja o objetivo aqui, precisamos entender o que acontecia no âmbito religioso para

depois concluirmos mostrando e justificando a mudança social ocorrida como

pensamento reformista. A revolta dos camponeses lembrada aqui elucida o que o

pensamento luterano causava na sociedade. Lutero havia sido condenado pelo

poder religioso dominante pelo edito de Worms. Alguns dos príncipes alemães

eram a favor de que o edito. O imperador tinha se retirado para Espanha,

deixando em seu lugar um Conselho Regente, cujos membros conheciam bem o

estado da Alemanha e os sentimentos do povo, e não se sentiam inclinados a

desposar a causa do papa.

Foi assim que, quando a Dieta se reuniu em Nurenberg, em 1522 e 1524,

percebeu-se que os príncipes alemães não eram de modo algum favoráveis à

84 CERNI, Ricardo. Historia Del Protestantismo. Impreso en Romanyà/Valls, S.A.nValdaguer, 1 – 08786 Capellades (Barcelona), 1ª ed. 1992. p.40.

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proposta de que Lutero sofresse a pena de morte. Surpreendentemente, nomeou-

se a Junta Geral da Igreja, a fim de que certos abusos fossem abolidos e se

esclarecessem certos pontos duvidosos da doutrina. A Reforma havia se

espalhado também para além da Alemanha, e já em 1524 havia discípulos de

Lutero na França, na Dinamarca e nos Países Baixos.

Lutero foi o primeiro a bater-se por lançar luz sobre as condições da

salvação individual, a propósito da qual havia ele descoberto, após

muito sofrimento pessoal, que ela é oferecida gratuitamente a cada

indivíduo, sem que faça preciso adquiri-la pelo acúmulo de méritos.

Sem subestimar a importância dessa redescoberta primordial, seus

sucessores puseram em evidência as repercussões que tal

descoberta devia ter na vida da cidade. A sociedade devia organizar-

se de forma nova, em harmonia com a nova maneira de viver o

Evangelho.85

Este apanhado histórico com enfoque religioso nos revela que, de fato, não

era só eclesiasticamente que a Alemanha precisava ser reorganizada. Os

camponeses viviam pela maior parte, cruelmente escravizada e preparava-se em

segredo para uma revolução. Contavam com a Reforma como um poderoso

auxílio. Havia também insatisfação por parte dos nobres, que também

protestavam contra os cinco pretensos sacramentos.86

Os tempos corriam mal; tinha-se visto a inutilidade dos velhos

sistemas, e todos proclamavam abertamente a necessidade de uma

85 BIÉLER, André. A Força Oculta dos Protestantes. Editora Cultura Cristã, São Paulo, pág. 55. 86 As indulgências, a confissão auricular, o culto dos santos e das relíquias, o celibato do clero, a negação do cálice aos leigos, o sacrifício da missa, a usurpação episcopal e a supremacia do papa.

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mudança radical; não deveriam aproveita-se d”este estado geral de

descontentamento? As duas classes desgostosas assim o

entenderam, e, porque assim o entendessem, entraram no caminho

da revolta.87

A Reforma Protestante serviria como auxílio para o movimento rural em

busca de seus direitos. Ainda mais, o movimento luterano abriria caminhos para

rebeliões políticas e sociais. E, finalmente, em 1524 eclodiu a Revolta dos

Camponeses. Embora sustentando a idéia de liberdade cristã, Lutero submetia-se

as autoridades legítimas, recusando-se a apoiar os revoltosos sem considerar as

reais motivações do conflito. A origem da revolta foi a miséria profunda na qual

viviam as pessoas do campo. Conforme disse Lindsay:

O sofrimento dessa gente não podia ser maior, e havia chegado a tal

ponto que a morte não lhes metia medo algum. Todas as tentativas

anteriores foram sufocadas, sem que fossem concedidas as

almejadas reformas, de modo que as causas da rebelião

continuavam ainda inalteráveis. Os camponeses viviam do que as

terras que traziam arrendadas produziam e o preço pago não estava

em harmonia com o valor do terreno. Além disso, deveriam prestar

serviços sem receberem nenhuma remuneração. Eram proibidos sob

pena de castigo caçar ou pescar e nem podiam cortar lenha nos

bosques. Quando um rendeiro falecia, o dono da propriedade tinha o

direito de arrebatar do poder da viúva e dos órfãos qualquer coisa

que lhe agradasse, como por exemplo, uma vaca, ovelha, ou até a

própria cama. 88

87 LINDSAY, T.M. A Reforma. p.22. 88 Ibdem., pg. 23

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A igreja também tinha as suas imposições. Reivindicava os dízimos: uma

décima parte da colheita, que era chamada o grande dízimo; e uma décima parte

do produto dos animais, que era chamada o pequeno dízimo. O velho código

romano havia substituído gradualmente a legislação alemã e, segundo o império

romano, os camponeses não eram homens livres. A revolta dos camponeses em

1524 foi uma legítima sucessora das tentativas anteriores. O exemplo evocado

para ilustrar a mudança social tendo o movimento reformista mais uma vez como

protagonista, expressão já usada quando tratamos da questão política e

econômica, agora se mostra como agente de tentativas em busca de mudanças

sociais. A revolta dos camponeses contaria com o Evangelho pregado por Lutero

na esperança de que pudesse proporcionar bom êxito.

A princípio, o movimento não usou armas. A idéia era convocar grandes

comícios onde fossem expostas as suas reclamações, pois julgavam que por esse

meio viriam conseguir tudo. Os camponeses começaram por dizer que só pediam

aquilo que os princípios do Evangelho os autorizavam a pedir, e que não

desejavam entrar em luta porque o Evangelho os mandava viver em paz e amor.

Os camponeses formularam, com base nos ensinos bíblicos, alguns

pressupostos que fundamentariam suas reivindicações. São eles, conforme o

historiador Lindsay:

1.A congregação deve ter poder para eleger o seu ministro, e para o

demitir no caso do seu procedimento ser censurável; e o ministro

deve pregar o Evangelho puro, sem lhe acrescentar mais nada.

2.Prometem pagar o dízimo do trigo para a sustentação dos

ministros, contanto que o que ficar, depois de pagos os respectivos

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estipêndios, seja aplicado no socorro dos pobres; mas recusam

pagar o pequeno dízimo, isto é, o dos porcos, dos ovos, etc, porque

dizem eles, Deus criou os animais para uso do homem.

3.A servidão deve ser abolida. A Escritura declara que os homens

são livres.

4.Deve haver inteira liberdade para caçar e para pescar, pois que

Deus criou as aves e os peixes para uso de todos.

5.As florestas que não pertençam a alguém por direito de compra

devem ser restituídas à comuna, ou município; e todos os habitantes

devem ter liberdade para cortar madeira de que necessitarem para

combustível ou para trabalhos de carpintaria, devendo haver

guardas, pagos pela comuna, que impeçam qualquer ato de

vandalismo.

6.Os serviços obrigatórios devem ficar restritos ao que era permitido

pelos antigos costumes.

7.Tudo o mais que se fizer deve ser condignamente pago.

8.As rendas estão muito elevadas; as terras devem ser avaliadas de

novo, e pagar-se pelo seu aluguel uma quantia razoável.

9.A lei deve determinar as penas que correspondem aos diversos

crimes, ficando defeso a quem quer que seja a aplicação de um

castigo arbitrário.

10.Os campos de pastagem e outros baldios de que os proprietários

se têm apoderado devem ser restituídos ao logradouro público.

11.Deve ser abolido o direito de morte (A facultada que tem o

senhorio de levar qualquer objeto da casa do rendeiro falecido).

12.Todas estas proposições devem passar pelo cadinho da Escritura,

e serão retiradas as que forem susceptíveis de refutação.”89

89 “Estes artigos foram, quase todos, incluídos na legislação alemã”. LINDSAY, T.M. A Reforma.

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As reivindicações dos camponeses não foram recebidas como esperado.

Ao se sentirem traídos eles pegaram em armas. Os camponeses se revoltaram

em junho de 1524, depois de mais uma medida extrema do governo que lhes

impediu de colher o que plantaram. O movimento se espalhou rapidamente. Na

primavera do ano seguinte já tinha se espalhado por toda a

Alemanha. Recorreram a Lutero, filho de camponês, que conhecia a realidades

daquela gente. Percebe-se que Lutero envolveu-se efetivamente naquela questão

social. Ele escreveu aos proprietários e também aos camponeses. Neste

momento, podemos perceber que os princípios protestantes atuariam como um

agente de mudança social. Os direitos humanos são defendidos sem deixar de

responsabilizar os reivindicadores. Se os direitos humanos e a cidadania se

percebiam palidamente como vimos no início desta pesquisa, agora não mais.

Lutero escreveu tanto aos proprietários quanto aos camponeses; aos primeiros ele

exortou quanto à justiça social sob o temor de Deus, aos subversivos, ele

ressaltou o princípio da não-violência com ênfase ao ensinamento bíblico de

submissão às autoridades. Nas próprias palavras de Lutero:

Posso agora fazer causa comum com os camponeses, porque vós

atribuis esta insurreição ao Evangelho e ao meu ensino, quando a

verdade é que nunca cessei de intimar obediência à autoridade,

mesmo quando ela seja tão tirânica e tão intolerável como a vossa.

Não quero, porém, envenenar a ferida; e, portanto, meus senhores,

quer me sejais benévolos quer me sejais hostis, não desprezeis os

conselhos de um pobre homem como eu, e não tenhais em pouca

conta esta sedição; não quero dizer com isto que temais os

insurgentes, mas que temais a Deus, que está irritado contra vós....

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Aos camponeses que, conforme Lutero, deixaram a “palavra” como arma e

partiram para o confronto, Lutero exortou:

Agora, com respeito a vós, meus queridos amigos camponeses.

Quereis que vos seja garantida a livre pregação do Evangelho. Deus

há de defender a vossa causa, se procederdes sempre com justiça e

retidão. Se o fizerdes, haveis de triunfar por fim, Aqueles de entre

vós que sucumbirem na luta serão salvos. Se, porém, o vosso modo

de preceder for outro, não podereis salvar nem a alma nem o corpo,

ainda mesmo que sejais bem sucedidos e derroteis os príncipes e os

senhores. Não acrediteis nos falsos profetas que se têm introduzido

no meio de vós, ainda mesmo que eles invoquem o santo nome do

Evangelho. Pode ser que eles me chamem hipócrita, mas isso pouco

se me dá. O que eu quero é salvar os que entre vós forem fieis e

honrados, Temo a Deus e a ninguém mais, Temei-O vós também, e

não useis o Seu nome em vão, para que Ele vos não castigue. Não

diz a Palavra de Deus: “Aquele que lançar mão da espada à espada

morrerá” e “todos se submetam aos poderes superiores? ...não

deveis fazer justiça com as próprias mãos; seria isso obedecer a um

outro ditame da lei natural. Não vedes que vos fica mal a rebelião? O

governo tira-vos parte do que vos pertence, mas destruindo os

princípios estabelecidos tirais aos outros tudo o que lhes pertence. 90

...Será uma guerra de pagãos, a que, porventura, vier a lograr ,

porque os cristãos fazem uso de outras armas: o General sofreu a

cruz, e o triunfo deles é a humildade. Suplico-vos, queridos amigos,

que vos detenhais, e que considereis antes de dardes outro passo. O

que citastes da Bíblia não é aplicável ao vosso caso.87

90 Ibidem, p.27.

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Os camponeses sofreram uma verdadeira chacina. Calcula-se que

chegasse a cinqüenta mil o número dos massacrados. Obviamente esta

espantosa catástrofe prejudicou imensamente a Reforma Protestante. Alguns

nobres atribuíram a Lutero tudo quanto tinha acontecido e construíram contra ele

uma feroz oposição. A Reforma perdeu a influência que tinha sobre as classes

pobres, sob a idéia de que Lutero as havia abandonado. Como já dito, a figura de

Lutero sempre esteve ligada a um tom de contradição. A Reforma Protestante

sofreria, como o próprio conceito de cidadania, uma evolução. Outros

personagens surgiriam no cenário sócio-religioso. Como o reformador Ulrico

Zwinglio.91

O fato que se reafirma após o exemplo histórico supracitado é que a

Reforma Protestante, quase que obrigatoriamente, devido ao contexto histórico e

geográfico, estaria associada aos direitos humanos e a busca da liberdade para

uma cidadania que resultasse em mudanças sociais significativas.

A questão educacional foi o verdadeiro instrumento ou a bandeira da

“liberdade” proposta pelo reformador Martinho Lutero. Mais do que a questão

econômica e, certamente, mais duradoura do que as manifestações sociais em

busca de mudanças. A educação como o verdadeiro instrumento para a

“liberdade” foi a sustentadora do movimento reformista. Como enfatizado, o

movimento humanista renascentista alimentaria a Reforma Protestante por meio

da avidez pelo saber. A educação apontaria para a verdadeira cidadania que,

finalmente, já não era apenas um resquício. A cidadania também renasceria ou se

evidenciaria de forma mais clara. O próprio conceito estava a poucos anos de se

91 Reformador da Suíça, nascido em 01 de janeiro de 1484..

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transformar em algo comum, fato que aconteceu alguns anos após no período da

Revolução Francesa, que não é campo de pesquisa neste trabalho. Com os olhos

fitos na questão educacional a ser abordada no próximo capítulo poderá se

concluir sem muito esforço que trata-se da alma da presente dissertação, vamos a

ela.

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CAPÍTULO V

REFORMA, CIDADANIA E EDUCAÇÃO

Ao falarmos de educação falamos quase que automaticamente de

cidadania. Educação para a cidadania. A própria cidadania não pode ser

entendida como algo estático ou acabada. Cidadania é um processo que, de

forma dinâmica, se desenvolve individual e coletivamente como vimos até aqui.

Neste último e conclusivo capítulo parecerá óbvia tal declaração. Nesse processo

a educação é fundamental para a formação do cidadão, capacitando-o para o

exercício da cidadania através de decisões a serem tomadas na vida.

Tal pensamento não era diferente daquele que incomodava o reformador

Lutero já que era a “liberdade de consciência” a oportunidade para se tomar

decisões e fazer escolhas em todos os níveis, inclusive religiosas com todas as

implicações decorrentes delas. O saber proporcionaria a liberdade. Estamos

assim, nos referindo diretamente ao ensino, o qual era centrado na questão

religiosa, visava uma forma de manutenção da instituição religiosa e que,

conforme Lutero, era uma forma de dominação do clero. O reformador se dirigindo

aos pais enfatizou que os mesmos deveriam enviar seus filhos à escola, não

apenas para alimentarem a sistema religioso com a formação de monges e

padres, mas, as crianças deveriam aprender outras disciplinas a fim de ocuparem

cargos no mundo secular visando o bem comum. Não era apenas a igreja que

necessitava de pessoas capacitadas, mas, também, a sociedade precisa de

homens e mulheres que contribuíssem para o engrandecimento do país. Segundo

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o reformador, era necessário que os filhos buscassem uma formação adequada

para governantes. Assim ele expressava:

O mundo precisa de homens e mulheres excelentes e aptos para

manter seu estado secular exteriormente para que então os homens

governem o povo e o país, e as mulheres possam governar bem a

casa e educar bem os filhos e a criadagem.92

O grande prejuízo sócio-político de uma nação seria, conforme Lutero, o

não educar. Mereceu destaque de João Amós Coménio o posicionalmente do

reformador:

Lutero, de santa memória, exortando as cidades da Alemanha a

erigir escolas, escreveu com razão: Quando, para edificar cidades,

fortalezas, monumentos e arsenais, se gasta uma só moeda de oito,

devem gastar-se cem para educar bem um só jovem, para que este,

quando homem feito, possa guiar os outros pelos caminhos da

honestidade. Efetivamente, o homem bom e sábio é o mais preciosos

tesouro de todo o Estado, pois nele, mais que nos esplêndidos

palácios, mais do que nos montes de ouro e de prata, mais que nas

portas de bronze e nos ferrolhos de ferro, está...93

92 Lutero escrevendo aos Conselho de Todas as Cidades. Obras Selecionadas, vol. 5, pg. 318. 93 João Amós Coménio, nasceu na Moravia, em 28 de março de 1592, com 24 anos foi ordenado sacerdote. A partir de 1627, dedicou-se com ardor e entusiasmo à obra de reforma pedagógica João Amós Comênio (1592-1670) pastor e bispo dos morávios, foi sem dúvida o mais importante pensador educacional do século XVII. Escreveu mais de cem tratados e livros educacionais, sobre os mais diversos assuntos e sua maior influência ocorreu no campo do ensino de línguas, em que propôs um método mais cientifico. Em seu livro Porta Aberta das Línguas, Comenius adotou um plano simples e natural: partindo de palavras simples e familiares da língua latina, organizava-as em sentenças começando das mais simples e chegando progressivamente às mais complexas. E cada página Comenius colocava a sentença latina e a equivalente em vernáculo, em colunas paralelas. As principais idéias educacionais de Comenius estão contidas em sua obra DIDACTICA MAGNA, completada em 1632 em língua tcheca, traduzida para o latim e publicada em 1657. O comentário descrito acima encontra-se na referida Didáctica Magna, pág. 476.

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Se o trabalho, como vocação, não deveria se limitar mais apenas ao

exercício religioso, a educação igualmente. Educação não apenas para nutrir a

religião, mas, para produção de um país mais forte e justo. Lutero via na

educação, o mais rico progresso social. Quanto mais homens instruídos, muitos e

melhores cidadãos honestos se verificariam. Conforme o reformador, o exemplo

de Roma deveria ser seguido na Alemanha. Os romanos educavam seus meninos

de tal maneira que dentro de quinze, dezoito ou vinte anos dominavam

perfeitamente o latim, o grego e toda sorte de artes liberais.94 Daí passavam

diretamente para o serviço militar e para o serviço público; disto resultaram

homens sensatos, ajuizados e excelentes, munidos de toda sorte de

conhecimentos e experiência. A Alemanha também deveria educar não apenas

para funções religiosas, mas, também para governar.

Lutero lançou as bases para um ensino público e obrigatório. Ao escrever

aos Conselhos das cidades da Alemanha, o reformador os responsabilizou pela

questão educacional no país. Poderia se ver grande valor na escola e em outras

instituições de ensino, onde crianças poderiam estudar com prazer.

Ora, a juventude tem que dançar e pular e está sempre à procura de

algo que cause prazer. Nisto não se pode impedi-la e nem seria bom

proibir tudo. Por que então não criar para elas escolas dente tipo e

oferecer-lhe estas disciplinas? Visto que, pela graça de Deus, está

tudo preparado para que as crianças possam estudar línguas, outras

disciplinas e História com prazer e brincando. Pois as escolas de

94 Artes liberais, com essa expressão se designava, na Idade Média, o conjunto das sete disciplinas que constituíam pré-requisitos para a afirmação específica. Ao lado do estudo das línguas, que compreendia Gramática, Dialégica e Retórica, se exigiam Aritmética, Música, Geometria e Astronomia. Nota explicativa de número 11, Obras Selecionadas, Sinodal. Pg. 309

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hoje já não são mais o inferno e purgatório de nossas escolas, nas

quais éramos torturados com declinações e conjugações, e de tantos

açoites, tremor, pavor e sofrimento não aprendemos simplesmente

nada. 95

A ênfase de Lutero à Educação como princípio social satisfatório, é

decorrente de sua formação teológica, assim como aconteceu ao tratar das

questões econômicas, já abordadas em capítulos anteriores. A educação já era

vista como requisito fundamental tanto no reino de Deus como no mundo secular,

ou reino temporal, conforme distinguia Lutero. O senso de cidadania responsável

se verificaria efetivamente no processo educacional de um país. Enfatizava Lutero:

Em minha opinião, porém, também as autoridades têm o dever de

obrigar os súditos a mandarem seus filhos à escola, especialmente

aqueles aos quais me referi acima. Pois na verdade é dever dela

preservar os ofícios e estados supramencionados, para que no futuro

possamos ter pregadores, juristas, pastores, escritores, médicos,

professores e outros, pois não podemos prescindir deles. Se podem

obrigar os súditos capazes de carregar lanças e arcabuzes, escalar

os muros e outras coisas mais que devem ser feitas em caso de

guerra, quanto mais podem e devem obrigar os súditos a mandarem

os filhos à escola. Porque aqui se trata de uma guerra pios, a guerra

contra o enfadonho diabo, cujo propósito é sugar solapadamente

cidades e principados, esvaziando-os das pessoas capacitadas, até

retirar o cerne, deixando apenas uma casca vazia de pessoas

inúteis, as quais pode manipular e suar a seu bel-prazer.96

95 Ibidem., p. 319. 96 Uma prédica para que se mandem os filhos à Escola, escrita em 1530. Obras Selecionadas, Vol. 5. pg 362.

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Em uma época em que as mudanças sociais eram extremamente lentas e

causadas geralmente por guerras e crises econômicas, Lutero apresentou

proposta de mudanças sociais pelo exercício da liberdade de consciência e

crescimento integral pelo saber. Até então, a liberdade e o poder estavam

relacionados intimamente com o possuir terras. Fator que fazia com que a Religião

e o Estado detivessem, egoisticamente, o poder e a liberdade.

Com respeito à primeira, a Religião, se mostrava poderosa, pois,

paradoxalmente condenava as riquezas sendo ela a detentora da maior parte

delas.

Conforme Lutero, a Igreja como instituição religiosa não poderia, por si só,

dar uma qualidade de vida melhor à sociedade. O livre acesso às Escrituras

Sagradas associadas às disciplinas atenderiam de forma muito mais justas as

necessidades humanas e espirituais da população. O conhecimento das

Escrituras, neste caso, a educação cristã, deveria ser ministrada não para

manipulação mas para libertação. A liberdade de consciência resultaria em paz

social. Como disse:

A paz temporal, que é o maior bem na terra que encerra todos os

demais bens temporais, é, no fundo, um fruto do ministério da

pregação, pois onde esse é exercido, certamente acabam guerra,

conflitos e derramamento de sangue. Onde, porém, não é exercido

corretamente, não é de se admirar que haja guerra ou então

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intranqüilidade constante, desejo e disposição para guerrear e

derramar sangue.97

Além do mais, disse:

Não te deverias sentir lisonjeado e considerar grande honra vendo

que teu filho é um anjo no reino e um apóstolo do imperador, além

disso, uma pedra fundamental e alicerce da paz temporal na terra? E

tudo isso na certeza de que o próprio Deus o vê assim e que assim é

de fato? Se bem que ninguém se torna justo ou bem-aventurado

perante Deus por meio dessas obras, ainda assim é um alegre

consolo saber que tais obras agradam tanto a Deus. Ainda mais

quando um homem assim também é crente e pertence ao reino de

Cristo. Pois com isso se lhe agradece por seu benefício e se oferece

o mais belo sacrifício de gratidão, o supremo culto a Deus.98

Lutero escreveu aos Conselhos de todas as cidades da Alemanha,

exortando-os quanto a criarem e manterem escolas cristãs. Embora condenado ao

silêncio desde 25 de junho de 1520, Lutero se levantou usando a poderosa arma,

a Palavra de Deus. Afirma Nestor L.J. Beck:

É considerada um clássico da história da educação. Abriu caminho

para a disseminação do ginásio humanista cristão em toda a

Europa.99

97 Ibdem., pg.339. 98 Ibidem.., pág. 350. 99 Nestor L. J. Beck. Introdução da carta de Lutero escrita aos Conselhos.

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Claros motivos deixariam Lutero preocupado com a educação em seu país.

Primeiro seria o abandono das escolas. Como professor, Lutero sofreu ao ver o

ensino na Alemanha ficar abandonado. O ensino visava tão somente a carreira

religiosa. Com o desencantamento pela religião, ninguém queria mais

proporcionar ensino e estudo aos filhos. Porque haveria de estudar se não

poderiam tornar-se padres, monges ou freiras? Para Lutero, a atitude dos pais era

condenável. Ao contrário, segundo escreveu Lutero, os pais deveriam dizer:

Se for verdade que este estado é perigoso para nossos filhos

conforme ensina o Evangelho, por favor, ensinai-nos outra maneira

que seja agradável a Deus e que seja salutar para nossos filhos.

Pois, na verdade não queremos apenas preocupar-nos com o

sustento de nossos filhos, mas também com sua alma.100

Para o reformador, o prejuízo na obra de educar, era uma ação do próprio

diabo, convencendo os corações mundanos a negligenciarem os filhos e a

juventude. Para o reformador, o diabo em um primeiro momento interveio e lançou

suas redes, constituindo conventos, escolas e estados, de modo que um menino

poderia escapar-lhe somente por um especial milagre de Deus. Agora, o Estado

vendo-se desarmado, tentava fazer com que se caísse em outro extremo, a não

educação. Conforme o pensamento de Lutero, o Estado deveria financiar o

estudo para os jovens pobres e, também, sustentar professores competentes.

Dizia:

100 Carta de Lutero “Aos Conselhos de Todas as Cidades da Alemanha para que criem e mantenham escolas cristãs”, em 1524. Obras Selecionadas, Sinodal, pg. 304.

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Cada cidadão deveria pensar o seguinte: Até agora gastou-se

inutilmente tanto dinheiro e bens com indulgências, missas, vigílias,

doações, espólios testamentários, missas anuais pelo falecimento,

ordens mendicantes, fraternidades, peregrinações e toda a confusão

de outras tantas práticas deste tipo; estando agora livre dessa

ladroeira e doações para o futuro, pela graça de Deus, que doravante

doe, por agradecimento e para a glória de Deus, parte disso para a

escola para educar as pobres crianças, onde será empregado tão

bem.101

O segundo motivo de preocupação do reformador seria o recebimento da

graça de Deus em vão. Ou seja, o tempo era aquele. Não se poderia deixar

passar desapercebido o tempo “bem-aventurado”. O tempo de mudança havia

chegado. No pensamento de Lutero, muito tempo já se havia perdido com o

ensino ideológico nos conventos. Ele afirmava veementemente:

Afinal, que se aprendeu até agora nas universidades e conventos a

não ser tornar-se burro, tosco e estúpido?102

A saída não era abandonar os estudos, mas, mudar os métodos de ensino.

Lutero apelou ao povo alemão que não perdesse “tempo”, o momento ideal para

mudanças havia chegado. Conforme o reformador, Deus estava dando à nação

alemã, a mesma oportunidade que, em outros tempos, foi dada aos judeus,

gregos e romanos. Era chegada a vez da Alemanha. Era preciso saber que, a

101 Ibdem, pg. 305. 102 Carta de Lutero aos Conselhos de Todas as Cidades da Alemanha, escrito em 1524 – Obras Selecionadas, Sinodal p. 306.

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“Palavra de Deus e sua graça são como a chuva de verão, que não retorna ao

lugar por onde passou”.

O terceiro motivo de preocupação que ocupava o pensamento de Lutero

dizia respeito aos pais. Eles deveriam entender que era o seu dever educar os

filhos. A tarefa primeira dos pais não poderia ser outra a não ser, educar seus

filhos. Com forte ênfase nos textos bíblicos de Salmo 78.5; Deuteronômio 32.7 e

outros, Lutero “ameaçou os pais”103 quanto ao enviarem seus filhos para a escola.

Aliás, para que vivemos nós velhos senão para cuidar da juventude,

ensinar e educá-la?. A própria natureza ensina o valor do ensino. Os

animais irracionais cuidam de seus filhotes e não os abandonam.104

Um pecado seria cometido contra as crianças caso as mesmas não fossem

conduzidas à escola. O não educar as crianças deveria ser visto como algo terrível

e provocativo para o reino de Deus. Tão grave quanto uma agressão sexual.

Negligenciar um estudante não é crime menor do que violentar uma

virgem.105

Sem isentar os pais, o Conselho e as autoridades deveriam se dedicar com

maior cuidado à juventude. A educação como política social traria progresso e

103 “Que achas? Acaso não cairão sobre ti, de repente, não apenas gotas, mas verdadeiros aguaceiros de

pecado, que agora desprezas e andas muito seguro, como se estivesse agindo corretamente ao não

encaminhares teu filho ao estudo? Naquele dia, porém, hás de confessar que foste condenado ao abismo do inferno com justiça como uma das pessoas mais malvadas e perniciosas que viveram na terra.” (Prédica Para que se mandem os filhos à escola) Obras Selecionadas, Sinodal, pág. 341. 104 Segundo Lutero a avestruz é uma exceção, pois deixa abandonados seus ovos conforme Jó 31 105 Lutero repete o ditado que, segundo ele, era conhecido em sua mocidade nas escolas. “Non minus est

negligere scholarem quam corrumpere virginem”.

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melhoramento às cidades. Na linguagem atual, se diria que a educação produziria

cidadania. Não é segredo que a educação deve ser vista como a riqueza de um

país, de uma cidade. Muito antes, o melhor e mais rico progresso para uma cidade

é quando possui muitos homens bem instruídos, muitos cidadãos ajuizados,

honestos e bem educados. Estes então também podem acumular, preservar e

usar corretamente riqueza e todo tipo de bens.

É significativo para a presente dissertação verificar que, para Lutero, a

educação estava diretamente ligada à vida do cidadão. Todos deveriam ter o

direito do saber.

Lutero defendia uma educação integral. Uma educação não só com o

objetivo religioso, já dito repetidas vezes. O conhecimento das línguas e das

ciências da humanidade formaria pessoas capazes não só para exercerem o

ministério da palavra, mas também, para governarem com mais justiça a nação. A

falta de conhecimento traz descrédito à fé. Lutero insistia no fato de que a fé não

deveria ter medo da ciência. Ela, a fé, seria ainda mais valorizada mediante o

aprendizado. Percebe-se aqui, a forte influência que Lutero recebeu no movimento

humanista, conforme destacamos no segundo capítulo. O conhecimento de outras

línguas dando acesso aos originais bíblicos. Ele enfatizou dizendo:

Não é isso uma vergonha e zombaria para os cristãos entre os

opositores que têm conhecimentos lingüísticos? Eles se endurecem

ainda mais em seu erro e, com uma aparência de direito, consideram

nossa fé um sonho humano. Onde, porém, há conhecimento das

línguas, aí as coisas se desenvolvem com vigor, e a Escritura é

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trabalhada; aí, a fé se encontra sempre de forma nova por meio de

outras e mais outras palavras e obras.106

Nesse ponto, Lutero retoma as duas esferas atuantes sobre a vida dos

homens. Uma sendo o “mundo secular” e a outra o “mundo espiritual”. A

educação não pode ser apenas para se exercer a função clerical. O “mundo

secular” precisa de homens e mulheres excelentes e aptos. A educação deve ser

para todos, inclusive para a criadagem. Para tanto, na formação educacional do

indivíduo devem existir disciplinas de diferentes categorias sociais. Pessoas

estudadas são necessárias na medicina e em outras áreas das ciências. O grande

valor da educação é que pregadores, advogados, médicos e outros poderão

prestar um agradável serviço a Deus, à família e à sociedade em geral.107

Bibliotecas de qualidade, mestres competentes mesmo que não sendo

religiosos, apoio dos pregadores junto às famílias, cidadãos que exerçam a

pressão junto aos líderes no visando instalações de escolas e contribuição

financeira da sociedade fariam com que a educação se concretizasse como a

verdadeira expressão de cidadania e forte esperança e instrumento nas mudanças

sociais. A ênfase reformista repousaria no fato de que a falta de educação traria

prejuízos em todos os sentidos a um povo que já padecia tanto. Como era

característica de Lutero abordar assuntos diversos com enfoque teológico,

também com respeito à educação ela não foi exceção. Ele atribuiu a ação contra a

106 Lutero critica os valdenses que, apesar de vida piedosa, demonstravam desprezo pela erudição das pesquisas lingüísticas no campo da Sagrada Escritura. 107 Na época Lutero tinha um filho chamado João (nasc.1526), que tornou-se jurista. Outro filho foi Martin (nasc.1531) estudou teologia, mas não ocupou púlpito e Paulo (nasc.1533) que veio a ser um destacado médico.

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educação como sendo uma artimanha do diabo contra seu povo. Nas palavras de

Lutero, a educação seria a base para o reino secular e também para o espiritual,

mantendo assim, a visão dicotômica ao abordar assuntos teológicos e sociais.

No reino secular, os juristas e eruditos são as pessoas que

preservam o direito e, através dele, o reino secular. E do mesmo

modo como no reino de Cristo um teólogo piedoso e um pregador

honesto é chamado de anjo de Deus, salvador, profeta, servidor e

mestre, assim também se pode, no reino secular do imperador,

perfeitamente chamar um jurista piedoso e um erudito honesto de

profeta, sacerdote, anjo e salvador. Por outro lado, assim como no

reino de cristo um herege ou falso pregador é um diabo, ladrão,

assassino e blasfemador, assim, um jurista falso e desonesto na

casa do imperador é um ladrão, velhaco, traidor, malvado e um diabo

de todo o reino.108

Se o não educar era visto como uma ação estratégica do diabo, com

respeito ao mundo espiritual, o não investirem nos filhos com respeito à educação

seria, por parte dos pais, um crime contra a nação. Eles estariam se submetendo

ao diabo e, ao mesmo tempo, prejudicando o país. Seria considerados culpados

pela perda da proteção e paz nacional.

108 Uma Prédica para que se mandem os filhos à escola, 1530 - Obras Selecionadas, Vol. 5, pág. 349

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É preciso encarar o exercício da cidadania e, conseqüentemente, “mudança

social” não apenas como fenômenos sociológicos, mas, também, como um direito

humano a ser conquistado. A busca de tais direitos não implica necessariamente

em conflitos que possam derramar sangue, caracterizando a irracionalidade e a

inversão de valores absolutos da existência humana. Tais conceitos, segundo

nossa perspectiva, podem ser pontuados no período da Reforma Protestante. Os

direitos e as obrigações deveriam caracterizar e legitimar a cidadania daqueles

que se viam oprimidos e discriminados.

A história assevera que o pensamento e a ideologia protestantes fustigados

por opiniões diferenciadas e elucidações teológicas e racionais motivaram

mudanças sociais, tendo na educação sua principal bandeira. Além de motivação,

lançou-se um protótipo para se sonhar e buscar constantemente reformas.

Mudança é um direito. Não se pode confundir o direito com lei. Há o direito

que surge das lutas, reivindicações pessoais dos que se organizam para ter seus

direitos consignados.

O movimento da reformista abordado nesta pesquisa pode ser tomado

como exemplo de motivação para mudanças sociais, tendo como pano de fundo

os direitos humanos reivindicados de forma obstinada. Diretos humanos definidos

como a liberdade de consciência, o direito de também conhecer, tendo acesso aos

instrumentos necessários para tal ideal.

Se a ênfase desta pesquisa tivesse sido feita como a intenção de super

valorização de um personagem, como geralmente se faz, no caso, unicamente na

pessoa do reformador Lutero, concluiríamos igualmente que tal personagem

poderia ser bem contraditória à medida que se pregava uma liberdade sem

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contraposição ao sistema dominante. Todavia, a ênfase nas atitudes do

reformador voltada para o aspecto ético-social dá à presente dissertação uma

certa singularidade, evitando a mensagem unívoca com respeito ao personagem

principal da pesquisa. A capacidade do reformador em formular rapidamente

pensamentos que respondiam as questões de seu tempo, não pode transparecer

uma veneração, atitude que seria condenada pelo próprio Lutero.

Cercado por amigos e inimigos, amado e odiado, Lutero era um homem de

lutas em todos os sentidos. Na linguagem de Heiko Obernan, Lutero era um

homem entre Deus e o Diabo. 111

Quase sempre a Reforma Protestante é abordada levando em conta a

defesa de posições teológicas. Dependendo da interpretação, favorece uma ou

outra instituição religiosa. O próprio Lutero favoreceria a possibilidade de um saber

livre, onde libertos da tutela teológica, os indivíduos pudessem argumentar. Uma

zona de risco para o poder dominante da igreja naquela época, mas

extremamente necessário para a sobrevivência da própria teologia. O

conhecimento não poderia ser uma ameaça à fé já que a mesma se apresentava

como sendo inabalável.

Notoriamente a Idade Média, período com duração aproximadamente de mil

anos, provocou uma lacuna e obscuridade para uma grande parte da humanidade.

O domínio religioso, denominado “teocentrismo” monopolizando o saber,

fatalmente deixaria marcas profundas que o tempo não seria capaz de apagar tão

111 OBERMAN, Heiko A. Lutero, un hombre entre Dios y el diablo. Ed. Cast.: Alinza Editorial, S.A. Madrid, 1992.

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rapidamente. Nas palavras de Adolf Bertole, pode-se definir a Idade média de

seguinte maneira:

A Idade Média não pensa; não tem senão um único sentimento

predominante, o de além-mundo, que a preocupa, a absorve, a

aterroriza e a inebria. Daqui toda aquela literatura teológica ascética,

lendária, a qual não tem outro valor senão o de documento

histórico.112

Muitos poderiam pensar que as mudanças sociais só aconteceriam por

meio de guerras ou catástrofes. Provavelmente a Reforma Protestante113, seja um

dos exemplos históricos sinalizadores de mudança social, tendo como arma a

palavra. Obviamente a igreja enquanto instituição religiosa não pode reivindicar

para si tal atributo, já que ela foi a mais severa dominadora e opositora aos

movimentos reformistas e deixando na história marcas de sangue e sofrimento.

Não é prudente negar o auxílio ou, em determinado momento, a

dependência que a Reforma Protestante esboçou com respeito aos movimentos

também reformistas que aconteciam simultaneamente. O sucesso relativo ou não

do movimento reformista como legítimo exercício de cidadania contaria com

diversos fatores, conforme abordados anteriormente. Movimentos que se

misturam historicamente com o renascentista já no final do século XIV, envolvendo

112 Adolfo Bertoli, Os Precursores do Renascimento, são Paulo, Editora Parma, Ltda, 1983 pg. 18. Apud Hermisten Maia Pereira da Costa, O Humanismo e o Renascimento, obra não publicada. 113 Considerando que não foi dito anteriormente, é bom esclarecer que esta expressão “Reforma Protestante” originou-se do protesto em que se punha como coisa inadiável a liberdade de consciência assinado por João da Saxônia, Jorge de Brandenburgo e outros, na Alemanha em 1529

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e promovendo as grandes motivações para mudanças que iriam se fazer sentir em

diversos setores da vida social, política, econômica e cultural de toda Europa.

Se o exercício de cidadania pode ser mencionado como latente no

pensamento reformista, com ênfase em Martinho Lutero, deve-se atribuir ao

movimento humanista especial ideal. Isto porque, ambos tinha a preocupação

primeira voltada para a Educação. Na segunda metade do século XIV na Itália, até

o século XVI, o seu resplendor humanista se fez sentir e, indubitavelmente, traria

influencia para qualquer movimento que sonhasse com liberdade e desejo de

conhecimento. O pensamento luterano não seria diferente. A invenção da

imprensa viabilizaria com eficácia a expansão do pensamento humanista e

conseqüentemente o pensamento reformado de Lutero. Em 1460, a imprensa

difundia-se com rapidez alcançando a Alemanha, que já dispunha de uma

Universidade desde 1388. A Reforma Protestante, ainda que originalmente tenha

sido um movimento religioso, recebeu implicações pluralistas, ponto de vista claro

para o autor da presente dissertação. As mudanças causadas pelo Humanismo

Renascentista contribuíram para que a Reforma achasse guarida na história. Os

humanistas cristãos se despertaram para o retorno às fontes primárias, ou seja, o

estudo dos originais da Bíblia. Logo se percebeu a diferença entre o que

ensinavam as Escrituras daquilo defendido pela Igreja Romana. Pode-se dizer

que, em certo sentido, o Humanismo e a Reforma caminharam até o momento em

que as definições filosóficas ou as ideologias fossem finalmente definidas. Se para

o movimento humanista, o “homem era a medida de todas as coisas”, para os

reformadores, ex-humanista, Lutero, Zuinglio e Calvino a “palavra de Deus”

ocupava tal espaço.

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Conclui-se que a Reforma não foi um movimento exclusivamente religioso,

não tinha como ser. As circunstâncias sociais, políticas e, também religiosas,

exigiam uma visão mais alargada. Hoje, com o testemunho da história, se pode

afirmar que a Reforma Protestante foi também um movimento de alcance cultural,

social e político. Inicialmente na Europa e depois em todo o mundo ocidental.

Lutero foi líder de uma revolução intelectual que abalaria o mundo todo. Ao

traduzir a Bíblia para a língua alemã114, Lutero abriu a oportunidade para o “livre

exame”, tendo como princípio a “liberdade de consciência”. O grande inimigo, o

analfabetismo, precisaria ser combatido. Daí as diversas solicitações de Lutero

aos Conselhos que criassem e mantivessem escolas, investissem no bom preparo

dos professores, em bibliotecas e modernização dos métodos de educação. Ele

Insistiu escrevendo:

Em minha opinião, nenhum pecado merece maior castigo do que

justamente o pecado que cometemos contra as crianças, quando não

as educamos (...). Para ensinar e educar bem as crianças precisa-se

de gente especializada.115

A liberdade seria resultante da justificação pela fé. Isso contraporia todo o

legalismo eclesiástico. A liberdade cristã é proveniente de Deus e não resultado

de um ativismo religioso. Ao escrever o tratado “Da liberdade cristã” o reformador

enfatizou:

114 Lutero concluiu o trabalho de tradução da Bíblia para o alemão em 1534. A tradução é considerada o marco inicial da literatura alemã. Nas palavras de Lucien Febvre, o trabalho de Lutero consistiu “numa assombrosa ressurreição da Palavra”. Apud. Hermisten Maia Pereira da Costa, O conceito da “Fé Explícita”, obra não publicada, São Paulo, 2004. 115 Aos Conselhos de todas as cidades da Alemanha paa que criem e mantenham escolas cristãs. Obras Selecionadas, São Leopoldo, Sinodal, 1995, vol. 5. pág. 303.

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Não obstante, visto que a fé sozinha basta para a salvação, não

tenho necessidade de coisa alguma, a não ser que a fé exerça nela o

poder e o império de sua liberdade. Eis aqui o inestimável poder e

liberdade dos cristãos. E não somos apenas os mais livres reis, mas

também sacerdotes em eternidade, o que é bem mais excelente do

que ser rei, porque por meio do sacerdócio somos dignos de

comparecer perante Deus, orar por outros e ensinar-nos mutuamente

sobre as coisas de Deus.116

A relevância na tentativa de interpretar ou identificar o exercício de

cidadania no pensamento de Martinho Lutero poderia gerar uma revitalização no

sistema religioso tão explorado atualmente. Qual a contribuição significativa para o

bem comum se percebe na religiosidade atual. Pensar que religião não deva ser

considerada como importância social não é prudente, pois, os maiores conflitos

sociais se dão nesta área. A liberdade de consciência não pode deixar de ser o

alvo para se alcançar o equilíbrio social.

Hoje não se vê apenas resquícios de cidadania. Ela é amplamente definida

e defendida. Mas, o exercício de tal não pode se limitar apenas no que se refere à

eleição dos representantes para as funções políticas. Exige-se manifestações

expressas pelos diversos meios de que se dispõe, principalmente pela aliada e

patrocinadora histórica, a imprensa.

A imprensa tem sido o grande instrumento na busca de uma cidadania

responsável. Ela tem servido como instrumento valioso na denúncia contra o

116 Tratado de Martinho Lutero sobre a Liberdade Cristã, Obras Selecionadas, São Leopoldo, Sinodal, vol. 2. pg 445.

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abuso e a corrupção no mundo todo. Opiniões devem ser expressas, com

liberdade de consciência. O certo e o errado, o justo e o injusto, o oportuno ou o

inconveniente nos laços das relações públicas devem ser expostos.

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