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    MANA 18(2): 349-377, 2012

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    O EXRCITO DOS MORTOS:

    SENTIDO DO SACRIFCIO E DATRANSCENDENTALIDADE NA MILITNCIA

    REVOLUCIONRIA, CASO DO EXRCITO DELIBERTAO NACIONAL (ELN) DA COLMBIA

    Andrea Lissett Prez

    Introduo

    Neste artigo discuto a presena de elementos religiosos no interior de um

    grupo revolucionrio da Colmbia, o Exrcito de Libertao Nacional (ELN),

    surgido na efervescncia da Revoluo Cubana nos anos 1960 e que aindasegue vigente como projeto de luta armada. O interesse por esta temtica

    emergiu no percurso da pesquisa etnogrfica que buscava elucidar as razespelas quais este grupo tem perdurado por mais de 40 anos como sujeito ativo

    de complexas dinmicas sociais e polticas em distintas regies do territrio

    colombiano. Tendo presente que a maioria dos grupos nascidos nesse per-odo se extinguiu pouco tempo aps sua fundao, tem ainda maior relevo

    a compreenso da longa durao do ELN. Por que continua vigente? Queelementos permitiram ou facilitaram essa permanncia histrica?

    Os dados etnogrficos compilados durante os anos 2006 e 20071me per-

    mitiram detectar aspectos instigantes, como a existncia de uma importantetradio de luta e resistncia social pela via armada nos setores subalternos

    colombianos, assim como um significativo processo de construo identitriano interior do grupo. Esta foi uma descoberta de fato relevante porque, de

    um lado, mostrava-se o peso da histria, da tradio que seguia nutrindode sentido o agir social e, neste caso, o surgimento de novas propostas de

    luta e, de outro, o papel que desempenhava o simblico, frequentemente

    ignorado e/ou subestimado no campo de estudo sobre a problemtica do

    conflito e dos atores armados.2O certo que me deparei com uma identidade diferenciada, denomi-

    nada por seus prprios militantes como o ser eleno, ou ser parte das trs

    letras: E-L-N, ou ser vermelho e preto como as cores de sua bandeira;uma identidade que carregam com orgulho e que fala de algo ntimo, de

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    sua histria, de suas vivncias, de seus ideais e de tudo o que envolve seuprojeto de vida. Era um sentimento forte, expresso em distintos mbitos, em

    sujeitos de diferentes procedncias e subjetividades, e que os integrava, osirmanava, apesar das diferenas e das distncias; era o que os fazia senti-rem-se parte do que de fato mantinha o grupo como tal.

    Vrios elementos se mostraram preeminentes na formao da identi-dade dos elenos, tais como os laos de familiaridade que se criam entre os

    militantes ou o sentido de pertena que se forja atravs da vida gregria e

    dos fios da memria coletiva, assim como a presena, nada desprezvel, doreligioso. Ainda que a organizao se defina como ateia e seguidora dos

    princpios cientficos do marxismo-leninismo, em seus discursos e em suaprtica podiam ler-se significativos traos religiosos. O que esse religioso?

    Como se manifesta?Aqui importante trazer tona alguns dados histricos que permitam

    contextualizar esse processo. Transcorriam os anos 1960, fervia a utopia

    revolucionria pelo continente e a tomada do poder e a construo de umasociedade socialista passaram a ser uma possibilidade imediata e priorit-

    ria. Esse ser o novo paradigma poltico da esquerda, entendido, conformeMcAdam (1994), como o marco dominante de protesto, que legitimar a

    ao coletiva em prol dos ideais revolucionrios. importante salientar oprofundo impacto desse novo marco ideolgico no s em relao aos poderes

    estabelecidos, mas tambm nos velhos partidos de esquerda e, principal-

    mente, nos partidos comunistas, que foram fortemente questionados quantos suas estratgias e tticas de luta.

    Esse movimento de crtica e renovao levou formao de novas orga-nizaes polticas que foram identificadas como a nova esquerda, que se

    caracterizou pela radicalizao em sua concepo poltica e pela defesa das

    formas superiores de luta, isto , a luta armada (Arenas 1971). A essas novaspropostas de luta e utopias libertrias se vincularam distintos setores sociais,

    como camponeses, intelectuais, operrios, estudantes e tambm cristos que,desde as periferias da instituio eclesistica, assumem, alm da centralidade

    dos pobres e oprimidos, a urgncia de sua libertao (Boff 1996:10).Nesse ambiente, surge o ELNsob a iniciativa de sete estudantes que

    viajam a Havana e formam um grupo denominado Brigada Pr-Libertao

    Antonio Galn com o objetivo de retornar ao pas e impulsionar a luta revo-

    lucionria, organizando, conjuntamente com a atividade poltica, os gruposque na cidade e no campo desenvolveram a luta armada (Arenas 1971:16).Esses foram os primeiros passos da organizao, que nasce publicamente

    em 1965 com a tomada do povoado de Simacota. Constitui-se como uma

    guerrilha revolucionria de carter poltico-militar, enquadrada nos pos-

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    tulados da nova esquerda, e cujo discurso poltico apelava para termossimples e acessveis populao comum, evocando tradies polticas de

    importante ascendncia popular, assim como um profundo sentido nacio-nalista de luta pela libertao nacional, que trazia um significativo valorde unidade e identidade, bandeira de luta de fundamentais mobilizaes

    sociais na Colmbia. O ELNse mostrava, assim, como uma opo ampla naqual todos cabiam.

    E, com efeito, o discurso demonstrou ser eficaz, pois para essa proposta

    revolucionria confluram distintos setores sociais que se sentiram includose identificados. Entre eles, o carismtico sacerdote Camilo Torres3que, por

    suas ideias e ativismo em prol das diferentes problemticas sociais, tinhasido afastado pelo setor conservador da instituio religiosa. Camilo tinha

    uma grande acolhida popular, a ponto de fundar um exitoso, ainda que breveno tempo (1963-1964), movimento poltico nacional Frente Unido para

    liderar as mudanas requeridas na estrutura do poder poltico e que as

    maiorias possam produzir as decises (Torres apudArenas 1971:67). Nessecontexto sociopoltico, a organizao se aproximou deste lder e convidou-

    o a participar do projeto do ELN. Uma srie de acontecimentos favoreceua incorporao do sacerdote guerrilha, tais como seu desencanto com as

    possibilidades de mudana social pelas vias institucionais ao no encontrarreceptividade nos mbitos burocrticos, a influncia do marco dominante de

    protesto que privilegiava a luta armada, e as contnuas ameaas sua vida.

    Camilo ingressou no corpo armado da guerrilha em fins de 1965 emorreu em fevereiro de 1966, no primeiro combate de que participou, ao

    tentar tomar a arma de um soldado inimigo. Este fato teve um grande im-pacto imediato, pois tudo o que Camilo representava como figura pblica e

    lder poltico incidiu sobre a opo revolucionria pela via armada e, parti-

    cularmente, pelo ELN. Muitos de seus seguidores, simpatizantes e amigosingressaram nas fileiras deste grupo (Arenas 1971). Mas o principal efeito, no

    que se refere ao processo organizativo do ELN, seria a abertura de um espaode participao e de compromisso poltico do setor dos cristos (clrigos e

    laicos), identificados com o pensamento e o exemplo de vida de Camilo.Isto no significa, importante aclarar, que a organizao se tornou

    crist ou adotou o cristianismo como fonte ideolgica da luta revolucionria,

    pois, como j dito, se define como ateia e seguidora do marxismo-leninismo.

    Este , justamente, o miolo da presente reflexo: a forma como o religiosopermeia a organizao para alm dos aspectos formais ou das declaraesideolgicas. Trata-se, ento, de uma religiosidade profunda que necessrio

    desentranhar e que se relaciona com as atitudes, os valores e certa moralidade

    que orientam a maneira de ser e de agir desses militantes.

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    Presena do religioso

    O setor dos cristos deixou rastros indelveis no ELN. Nesse processo em queentraram, passaram e, muitos deles, ficaram no ELN, no s se mesclaram

    indivduos, mas sobretudo subjetividades. No entanto, chama a ateno odesconhecimento desse universo simblico na formao de seu pensamento.

    Em seus discursos formais, o ELNse concebe fora dessa tradio. Define-secom base no paradigma revolucionrio e racionalista, como uma organizao

    ateia que se orienta pela concepo cientfica do marxismo-leninismo. Este

    um princpio que no se discute e que tem permanecido intacto ao longo

    da histria do grupo.Inclusive, num dos momentos mais tensos, quando foi debatida a com-patibilidade entre o marxismo e o cristianismo com o fim de esclarecer a ver-

    dadeira orientao ideolgica do ELN, o sacerdote e ento chefe mximo da

    organizao Manuel Prez afirmou: indiscutvel que a cincia paraa revoluo o marxismo-leninismo, e isso assumido por todos os cristos

    participantes na organizao (Manuel apud Harnecker 1988:13). Est claroque a cincia, entendida no marco do marxismo-leninismo, assumida como

    a fonte do saber, numa lgica que parece ser constante entre as organizaesdeste tipo, assim como assinala Marcelo Camura em seu estudo sobre os

    movimentos e as organizaes comunistas: o campo marxista se torna um

    lugar por excelncia onde se explicam todas as coisas (1988:30).Dessa maneira, o conhecimento cientfico, e nesse caso o paradigma

    dominante das organizaes de esquerda, termina convertendo-se numaverdade inquestionvel, uma espcie de ato de f, atrs do qual, para-

    doxalmente, escudam-se e coexistem distintos registros, como o religiosoque, embora seja negado, continua influenciando a construo social da

    realidade. Este ponto requer algumas precises conceituais porque toca

    numa das fibras mais sensveis da sociedade moderna: o questionamentode seu iderio de mundo secularizado, racional, construdo sobre a separa-

    o radical entre o religioso e o laico. Apesar da fixidez dessa mentalidadeno mundo ocidental, a irrupo de novas realidades sociais, de diferentes

    expresses sociais, culturais e intelectuais no classificveis dentre essas

    categorias colocou em relevo a existncia de diversas formas de hibridismose reinvenes simblicas fora da linearidade do processo de secularizao,

    da fronteira entre o religioso e o laico.Essa nova perspectiva parecia indicar, assim, que na prtica no existe

    um divrcio to abismal entre os discursos religiosos e racionais, tal comose pensava sob o ideal da modernidade e como a maioria dessas organiza-

    es de esquerda termina por acreditar e defender. Talvez essas linguagens

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    estejam mais misturadas do que aparentam ou se tenta aparentar, e por isso

    seja necessrio, como convida Luis Eduardo Soares (1990), sair dos limites

    da oposio desses domnios, apreender distintas variveis e pensar numainterao dialgica de fluxos, intercmbios, apropriao de elementos, en-

    fim, em um movimento criador com base nas diferenas no excludentes.Ou, indo ainda mais longe nesse debate, questionar os princpios que esto

    na base da viso moderna da religio e da secularizao, e pensar, comoprope Otvio Velho (1995), que provavelmente a separao desses universos

    no seja to certa, que a questo no estaria no fato de a religio deixar ou

    no de ser o fundamento das sociedades humanas, conforme aborda Marcel

    Gauchet (2004), mas se estas possuem realmente um fundamento.Este , ento, o cerne do problema que se apresenta em relao fa-chada racionalista que os elenos construram como parte de um discurso de

    legitimao ante si mesmos e ante os demais, mas que na prtica no parece

    coincidir com suas formas concretas de atuar. Ali esto presentes os rastrosda religiosidade. O legado do setor dos cristos e principalmente dos clrigos

    que exerceram papis determinantes na vida da organizao penetrou distin-tos planos de sua realidade. Por mais que se declarem marxistas-leninistas,

    sua lgica de comportamento mostra o profundo sentido do religioso queos acompanha. O curioso deste fato que no foi uma aposta intencional

    ou consciente, pelo contrrio, como podemos perceber na voz do sacerdote

    Manuel Prez, pois eles praticamente renunciaram condio religiosapara assumir o exerccio da militncia. Foi atravs do estilo particular com

    que esse setor encarou a luta revolucionria que a subjetividade religiosase inseriu e ganhou dinmica prpria no interior do ELN.

    Aqui preciso trazer tona um fato, j mencionado, que marca profun-damente a organizao: a morte em combate do sacerdote Camilo Torres,

    que o transforma em mrtir da revoluo e em mito reverencial para o ELN.O fundo religioso deste episdio evidente e neste ponto reside sua fora.Camilo interpretou e atualizou um dos mais caros preceitos do cristianismo:

    o sentido do sacrifcio e da entrega total pelos outros. Ele encarna esse prin-cpio, esse ato germinal da tradio crist o sacrifcio de Jesus pela huma-

    nidade cuja mensagem traduzida para a linguagem da luta social:

    Quando Jesus ia para Jerusalm disse aos apstolos: Olhem, a mim ningum

    tira a vida, eu a entrego voluntariamente. E a entregou voluntariamente, por-

    que com essa entrega, com esse grito enorme perdido no Calvrio, Jesus de

    Nazar ia gritando a toda a humanidade: vale a pena morrer quando se trata

    de construir a fraternidade universal (Sacerdote Bernardo Arroyabe, militante

    do ELN, 1996).

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    Esta foi a exegese feita por Camilo, levada at as ltimas consequn-cias: o sentido de que no h maior prova de amor pelo prximo que o

    prprio sacrifcio. Este , sem dvida, um dos maiores impactos desse lder,que sensibiliza e convoca muitos cristos, entre os quais cabe mencionar

    os sacerdotes espanhis Manuel Prez, Domingo Ladin e Jos Antonio Ji-

    menez, que se uniram s fileiras do ELNem 1970. Eis um dado importante,pois ainda que tenham sido vrios os clrigos que ingressaram na guerrilha,

    eles no apenas foram os primeiros a dar esse passo, mas tambm a ocuparaltos cargos, como o caso de Manuel Prez, que foi comandante mximo

    da organizao de 1983 at a sua morte, em 1998. Eles foram os herdeiros

    do fenmeno representado por Camilo, de seus princpios de luta e de suavocao de entrega revoluo. A morte de Ladin em combate e a profunda

    convico de Manuel durante toda a sua militncia ampliaram e reforarama viso sacrificialista inaugurada por Camilo. Uma boa ilustrao da forma

    como esses sacerdotes interpretaram o compromisso revolucionrio podeser observada na mensagem de Domingo Ladin anunciando publicamente

    sua incorporao ao ELN:

    Ao tornar pblica esta deciso, renovo o compromisso irrevogvel aceito ao ser

    ordenado sacerdote de consagrao. Acredito que agora comea minha autntica

    consagrao sacerdotal, que exige o sacrifcio total para que todos os homens

    vivam em plenitude. No mera coincidncia que este anncio seja feito no

    dia em que o povo colombiano celebra o quarto aniversrio da morte fsica do

    grande lder de nosso povo: Camilo Torres Restrepo. Sua palavra e exemplo

    seguem sendo bandeiras de redeno, grito de esperana para os explorados

    [...] Camilo no morreu. Vive no corao dos pobres e oprimidos, no interior

    de todo homem que luta pela justia e fraternidade humanas (Ladin em 15 de

    fevereiro de 1970).

    Ladin sintetiza trs elementos pertinentes para a presente anlise: o

    sentido do sacrifcio como premissa da luta revolucionria, a consagrao do

    mito de Camilo como redentor do povo que, de alguma maneira, estende-sea eles como continuadores da luta, e o carter de transcendentalidade que

    se conquista aps o sacrifcio. O trabalho de campo permitiu-me constatarque essas noes no s foram apropriadas pelo setor dos cristos, mas se

    converteram em importantes pilares na construo do sentido de militnciado grupo:

    Tenho medo de ficar sozinha, pois com o passar do tempo a maioria dos meus

    familiares caiu nessa luta. Tenho conscincia que eu tambm ficarei aqui, porque

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    meu amor entregar minha vida por isto. Gostaria que meus filhos seguissem

    a mesma conscincia, a origem, a moral de minha famlia (Talia, camponesa,

    22 anos de militncia).

    Como podemos perceber, essa guerrilheira concebe a morte como

    algo desejado, como um fim cheio de significado, como uma expresso deamor que tem uma conotao forte, ntima, familiar, porque envolve no s

    seus parentes, mas seus prprios filhos, nos quais deposita a esperana de

    continuidade da luta. Esse foi um trao reiterativo nas distintas perspecti-vas subjetivas e condies de militncia. Assim, por exemplo, refere uma

    guerrilheira de origem urbana de longa trajetria: encher-se de todosesses atos que do valor a um princpio e que voc chama de amor ao povo,

    sua razo de ser. Porque voc diz: eu luto e dou minha vida para que a lutamude as condies de vida desse povo.

    Ainda que haja neste ltimo caso um discurso mais racional sobre os

    objetivos da luta, no fundo esto em jogo os mesmos valores: o sujeito quese sacrifica, a atitude de entrega como um ato de amor e os receptores dessa

    entrega, o povo. Eis o valor do sacrifcio, sublimado e profundamente inseridona subjetividade dos militantes elenos. Com base em tal constatao, impor-

    tante aprofundar a lgica deste tipo de sacrifcio. A hiptese, j esboada, a de que se trata de uma recriao simblica do mito de salvao da tradio

    crist, numa verso moderna do Cristo redentor, que reveste os militantes com

    uma aurola de sacralidade dimensionada em dois papis transcendentais:o de salvadores, em vida, e o de mrtires, aps a morte. Vejamos.

    O sentido de ser salvador

    O ser salvador envolve vrias condies. Em primeiro lugar, a disposio

    de deslocar-se de si mesmo, de colocar-se no lugar dos outros, de assumirsuas penas e dores. Postura que exige a anulao do sentido do indivduo

    entendido na perspectiva da modernidade, de ser o eixo da histria, con-forme indica Dumont: ser moral, independente, autnomo, e por conse-

    quncia essencialmente no social, que veicula os nossos valores supremos

    e ocupa o primeiro lugar na nossa ideologia moderna do homem e da

    sociedade (1992:35).Esse um elemento-chave na compreenso do processo de construo

    identitria dos elenos: a confrontao com o individualismo to fortemente

    arraigado na sociedade capitalista, e a reconstruo, em seu lugar, de umnovo sentido de ser cujo epicentro seja o outro, isto , um mundo visto e

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    valorado a partir dos demais, como se pode constatar na fala da guerrilhei-

    ra: o amor ao povo a razo de ser da gente. Da que se possa pensar na

    existncia de uma identidade fundamentada na outridade, na qual o sentidodo ser conquistado para os outros e atravs deles.A segunda condio de ser salvador est relacionada com a forma

    como se concebem os outros, os sujeitos nos quais recai a ao salvadora,

    neste caso, o povo. Uma categoria que, se conceitualmente j bastanteambgua, no contexto poltico e ideolgico em que usada pela organizao

    torna-se ainda mais difusa e polivalente. Em sua linguagem corriqueira, emsuas campanhas ideolgicas, em seus textos de divulgao e, inclusive, em

    muitos de seus documentos programticos e de formao, no est claro osentido de povo. Aparece como um ente abstrato, incorpreo, uma met-

    fora carregada de significado fundamentalmente emotivo e moral. A ttulo

    de exemplo, observemos este fragmento de um pronunciamento do mximocomandante, Nicols Rodriguez:

    Ns estamos na corrente libertadora dos povos e claro que muitos desafios e

    dificuldades esto por vencer [...] a razo pela qual nos levantamos em armas,

    na busca de propsitos mais justos, mais nobres e mais dignos para nossopovo

    [...] H um tema muito importante em relao legitimidade: nossa relao

    com opovo, com as massas. Uma frase muito sbia e bastante difundida pelos

    revolucionrios vietnamitas diz que quem ganhar a mente e o corao dopovo,

    ganhar a guerra (Nicols Rodrguez em 2002, grifo meu).

    Neste texto fica claro que o sujeito central o povo e, ainda que seja

    nomeado de maneira recorrente, no explcito o que ele significa, abarcaou refere. Entende-se que objeto da luta, o fim e inclusive o meio, mas

    sempre num sentido abstrato, evocativo e enaltecedor. No h forma delimit-lo ou de defini-lo, simplesmente o outro a quem se dirige a ao

    revolucionria e que, de alguma maneira, ocupa toda a razo do ser e do

    fazer. Nessa direo, poder-se-ia dizer que esse discurso est formuladosobre uma linguagem apologtica, messinica, fundamentada em unidades

    semnticas abrangentes e totalizantes que carregam de um carter essen-cialista o sentido de ser e, por antonomsia, o sujeito da salvao.

    O povo tem se mantido, desse modo, inclume como categoria central

    de seu pensamento poltico, desde seus primeiros pronunciamentos pblicos:[...] nossopovo,que tem sentido sobre suas costas o chicote da explorao, da

    misria, da violncia reacionria, levanta-se e est em p de luta (Manifiestode Simacota 1964), at seus ltimos documentos oficiais: o compromisso

    no profundo amor pelo povo; na deciso inaltervel de lutar at alcanar as

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    transformaes de que opovo e a nao necessitam para viver em paz, com

    bem-estar, democracia e dignidade (Estatutos Internos 2006).

    Outra caracterstica bastante notria da forma como se referem aopovo o tom carregado de emotividade: o profundo amor pelo povo,ganhar o corao do povo, que denota um relacionamento de tipo afetivo

    e que convoca a manifestaes tambm emotivas, geradas pela fora desses

    sentimentos atvicos que esto na base da moral crist e que remetem a umvalor essencial: o amor, valor que constituiu um dos pilares da interpretao

    feita por Camilo do cristianismo e que fez carreira no interior da organizaopor meio de uma expresso bastante significativa: o amor eficaz, explicado

    assim por Camilo: O principal no catolicismo o amor ao prximo [...] Paraque esse amor seja verdadeiro preciso buscar a eficcia (1965). Isto implica,

    ento, que para o amor ser verdadeiro deve ter resultados na prtica,

    deve mobilizar-se a favor do outro; este o sentido da ao revolucionriaem nome do povo.

    Nesse mesmo terreno do emotivo possvel perceber a presena deuma srie de valores que aludem noo de povo: os despossudos, os

    explorados, os pobres, os miserveis, os oprimidos, os sofridos que apontam

    para uma situao de desamparo, de desvalia, de serem sujeitos-vtimas e,por consequncia, alvos fundamentais da salvao. Eis a justificativa da

    ao salvadora do projeto revolucionrio. Aqui, novamente, atua a fora doemocional, mas tambm uma tica imanente que evocaper sea bondade

    do povo, derivada de sua condio de injustia e que o leva a ser, de algu-ma maneira, ressarcido, enaltecido e, em ltima instncia, idolatrado. Fato

    que pode ser explicado em razo de que aqui o social est substituindo o

    divino, adquirindo as qualidades dessa fora absoluta, potencializada, quese torna a razo de ser e, como tal, aquilo pelo qual se est disposto a dar

    tudo, inclusive a vida.Finalmente, importante levar em considerao a forma como se con-

    cebe e assume a condio de ser salvador, ou seja, a formao dessa subjeti-

    vidade sustentada na figura do messias. Nesse caminho, um elemento-chavepara esta reflexo o processo de ingresso na organizao, que at meados

    dos anos 1980 foi bastante meticuloso e exigente:

    Demoravam-se anos para recrutar algum, no mnimo dois ou trs. Era preciso

    conhecer as pessoas muito bem, voc se tornava parte da famlia. Discutiamacerca de tua vida e de teu pensamento, tuas virtudes, teus defeitos, teus erros

    e, depois, te reconheciam, mas durante todo esse tempo no te diziam nada e

    esperavas com ansiedade. Logo te levavam a uma reunio e apareciam enca-

    puzados, tu tambm, era um ritual (Pacho, intelectual, ex-militante).

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    Apesar de ainda se conservar parte do ritual de ingresso nesta organiza-o, at os anos 90 era um processo muito rgido. Fazer parte do ELNera um

    desafio que requeria inmeras qualidades dos candidatos. Eram escolhidospor um membro do grupo que observava os comportamentos dos elegveis e

    dava os sinais correspondentes no momento oportuno. Durante essa fase

    de espera, aguardavam com muita ansiedade o resultado. Por isso, quandoingressavam efetivamente na organizao, experimentavam um sentimento de

    altivez, de serem especiais em relao ao resto dos indivduos. Ali comeavaa se formar a noo de que eram os elegidos, os destinados a, sentimento que

    ia aumentando medida que tomavam conscincia da misso para a qual

    haviam sido designados: serem salvadores do povo explorado e oprimido.Essa forma de entender a militncia enche de sentido suas vidas e lhes

    proporciona grande parte da fora para permanecerem, apesar das situa-es de dificuldade e de risco constantes. Eles possuem razes de muito

    peso para se manterem na luta, razes estas relacionadas nada menos como futuro da humanidade. Ainda que aparentemente possam ser vistos

    (pelos outros) como pobres sacrificados (ou noutras verses marginais,

    violentos), na verdade, eles se sentem superiores em virtude dessa missotranscendental com a qual esto comprometidos e que os envolve em sua

    condio existencial.Eis o carter messinico subjacente a essa posio de salvadores, evi-

    denciada nas distintas posturas polticas do grupo ao longo do tempo bas-tante enftica no incio (1964-1978), quando se consideravam a vanguarda,

    ou seja, o grupo seleto mais consciente para levar adiante a revoluo:

    A guerrilha a vanguarda combativa do povo [...] disposta a desenvolveruma srie de aes blicas tendentes a alcanar o nico fim estratgico da

    guerra: a tomada do poder (Revista Insurreccin1985:19).Posteriormente, no perodo da reestruturao organizativa (anos 1980),

    revisam sua tendncia ao vanguardismo: A organizao se sentia na van-guarda do processo revolucionrio na Colmbia, sem ter em conta o nvel

    de organizao das massas (Grupo O. Romero 1986:17). E mudam noto-

    riamente sua postura, colocando-se em estreita relao com o povo: Com apresente dcada se abrem em nosso pas mltiplos caminhos de retificao

    estratgica que buscam lograr uma eficaz relao vanguardas-massa. Nelase coloca a organizao de vanguarda ao servio das massas (Concluses

    II Congresso 1990:82).Todavia, no III Congresso, ano de 1996, realizam uma nova interpreta-

    o, assinalando que eles no eram o nico grupo de vanguarda revolucio-

    nria, que faziam parte de uma coletividade, tentando superar, assim, o pro-fundo sectarismo caracterstico das organizaes de esquerda na Colmbia:

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    O EXRCITO DOS MORTOS 359

    Nas condies prprias de nossa Revoluo, em que fazem presena vriasorganizaes com projetos diversos, com acumulados histricos, militares e

    de massas, pensamos numa Vanguarda Coletiva (Estatutos, III Congresso1996:4). Esta , em essncia, a perspectiva de vanguarda que mantm at

    hoje, tal como registrada nas memrias de seu ltimo Congresso, em que

    salientam: a direo revolucionria deve entender-se como a construode uma vanguarda coletiva capaz de incluir, unir e confluir para a luta por

    um novo governo (Cadernos do Militante, IV Congresso 2006:3).Embora a organizao moderasse a perspectiva de se considerar a

    vanguarda do processo revolucionrio, visualizando um papel mais ativo do

    povo e assumindo-se como parte de uma vanguarda coletiva, necessriofazer algumas ressalvas. A primeira que, contudo, segue considerando-se

    vanguarda, de modo que, por mais que atenue seus alcances, continua a sever como guia do processo revolucionrio, s que agora em um contexto mais

    complexo. A outra ressalva diz respeito distncia entre o que dito ou oque pretende ser (nos discursos polticos) e o que acontece na prtica, pois

    no parece estar muito clara a nova noo de vanguarda entre os prprios

    militantes: O que dirigir? Nisso no h suficiente clareza. O que significaconstruir embries de poder popular? Quando perguntei isto aos compa-

    nheiros, no souberam me responder o que isso significa (Dirio de campo2007). Portanto, poder-se-ia afirmar que, apesar dos esforos realizados para

    mudar a viso vanguardista, muito complicado transformar essa perspectivasem afetar uma das principais matrizes que a alimentam: o messianismo de

    origem crist, fortemente arraigado em sua mentalidade.

    A morte como forma de transcendncia

    O problema da salvao no se esgota no plano da vida, transcende com amorte e adquire um poderoso sentido simblico: o martrio, que a forma

    ideal de se perpetuar na memria dos homens. Este foi o sentido ativado

    com a morte do sacerdote Camilo Torres, que forneceu a metfora perfeitapara dar vida figura do martrio dentro da organizao.

    Uma das melhores snteses deste pensamento est na parte de seu hinoque diz: Avancemos ao combate companheiros/ que esto vivas a conscincia

    e a razo/ de Camilo o Comandante guerrilheiro/ com seu exemplo na in-sgnia/ nem um passo atrs/ libertao ou morte (NUPALOM). Nesta estrofeh interessantes elementos para a presente reflexo. Em primeiro lugar, o

    fato de se chamar Camilo de Comandante, como uma maneira de ressaltara condio de guerrilheiro de um personagem socialmente significativo.

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    O EXRCITO DOS MORTOS360

    Em segundo lugar, a sublimao de seu exemplo, que se torna um imperativomoral do dever ser, do caminho a seguir. E, em terceiro, a insgnia NUPALOM

    como uma ordem diante da qual no se discute nem se vacila e cuja men-sagem contundente: a entrega total, absoluta, em prol do ideal mximo (a

    libertao), na qual a morte aparece como um pressuposto lgico, justifi-

    cado, e inclusive desejado, enquanto contribui para esse ideal.Nesses elementos simblicos hino e insgnia concentra-se de

    maneira exemplar o sentido do martrio. Eles cumprem a funo de reforar,no plano emotivo, o valor do sacrifcio. O hino, entoado todos os dias como

    parte de suas prticas rituais, afirma o sentido de filiao organizao e

    compromisso com ela. E a insgnia NUPALOM presente em seus escudo,documentos, rituais e as distintas formas atravs das quais o grupo se

    representa converteram-se num carimbo de identidade. Provavelmente,esses so os mecanismos mais potentes de recriao e socializao dessa

    concepo. Mas esses no so os nicos cenrios. Outro mbito em que semanifesta este tipo de pensamento o dos documentos ideolgicos:

    O esprito do sacrifcio e de entrega sem limite pela causa dos explorados foi visto

    em incontveis companheiros e momentos da histria do ELN [...] Essa firmeza

    de princpios, conhecida por nosso Povo, de muitos militantes da Organizao

    consequentes com nossa insgnia NUPALOM, inegvel que forjou, para o ELN,

    um lugar definitivo na histria e no corao de nosso Povo, e isso lhe outorgou a

    autoridade moral necessria para dirigir-se politicamente ao Povo e esquerda

    revolucionria em particular (Compendio Simacota 1986:8).

    Efetivamente, o mandato NUPALOMocupa um lugar destacado no dis-

    curso poltico do grupo, como expresso mxima do nvel de compromisso efirmeza de princpios com a causa revolucionria. Essa noo tornou-se um

    importante eixo de identidade, a partir do qual no s se tm construdo comosujeitos sociais, como tambm forjaram um lugar de prestgio e autoridade

    moral diante do outro, o povo, com quem buscam legitimar suas aes.

    Tambm possvel encontrar importantes traos dessa viso em suamemria, na reconstruo de sua histria. Nos diferentes estilos e meios

    atravs dos quais narram suas vivncias, pode-se detectar a nfase novalor do sacrifcio, o qual se torna, em muitas ocasies, fio condutor dos

    acontecimentos. Assim, por exemplo, cabe ressaltar a verso oficial desua histria, feita pelo militante (falecido) Milton Hernndez, na qual seencontram vrios fragmentos dedicados aos mrtires da organizao,

    especialmente no captulo 65, intitulado Os filhos de Camilo somos delibertao ou morte:

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    Nessa utopia to vivida, to real e possvel, se comprometeram e por ela deram

    at seu ltimo flego. Essa cota de sangue generosa comeamos a pag-la desde

    Simacota [...] Vocs, camaradas, no esto mortos porque esto presentes comseu exemplo em cada um de ns [] Honra e glria para todos os nossos heris

    e mrtires, e que seu exemplo guie para sempre nosso caminho! (Hernndez

    2006:459-463).

    Provavelmente, uma das mais significativas expresses, emotivas e

    permanentemente recriadas no interior do grupo, seja a produo musicalprpria, na qual rendem efusiva homenagem aos seus mortos, como podemos

    apreciar nos seguintes trechos musicais:

    Embora passem os dias e os anos

    Segue lutando aquele que assim caiu

    Enquanto lanava o ltimo suspiro

    Gritava vivas revoluo

    (Avelino Bautista NRB, corrido)

    Morreu mas segue vivo

    Vivo na revoluo

    (Al To Jaime, NRB, corrido-vals)

    Mas, avanando na compreenso dessa perspectiva sacrificial no ELNe, especialmente, no valor da morte como fato desencadeante, cabe ressaltar

    as reiteradas afirmaes em suas falas sobre este tpico, tais como morreu,mas segue vivo na revoluo, ou quem deu a vida pela causa sobrevive,

    nas quais se evidencia um claro sentido de transcendentalidade. Pois, em sua

    concepo, quem morre lutando em nome da causa realmente no morre,continua vivendo nos demais que permanecem na luta. Segue presente numa

    nova dimenso, na de mrtir, de ser exemplar fiel aos princpios (justos, al-trustas) e chega at o final: a entrega total. Nessa condio especial, conquista

    a eternidade no mundo dos vivos, um lugar privilegiado da memria que, porsuas caractersticas singulares, poder-se-ia afirmar, toca os fios do sacro, do

    superior, do modelo a seguir e de alguma maneira a idolatrar. Esse , ento,

    o lugar reverencial que tm os mortos na organizao:

    Quando se fala dos mortos, as pessoas fazem silncio, um clculo da dimenso

    da dor, da tragdia, mas isso fortalece, isso no diminui, tudo isso leva a que

    se fortalea a convico e o compromisso. A morte constitui praticamente uma

    das honras mais profundas, o respeito a que a entrega total, que sua morte,

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    um ato crucificado e isso ressuscita em termos de compromisso porque um

    valor. to profundo e sagrado que, se voc o trai, trai atos sagrados, como seus

    mortos (Rosa, camponesa, 15 anos de militncia).

    H suficientes elementos que indicam a relevncia do sacrifcio entre oselenos, inclusive, como foi visto acima, no sentido do sagrado. Assim, pareceoportuno realizar uma aproximao conceitual com tal fenmeno e, nessa

    direo, a abordagem de Marcel Mauss e de Henri Hubert (2001) parece seruma opo interessante para pensar a lgica do sacrifcio. A tese central dos

    autores a de que, apesar da diversidade de rituais sacrificiais, neles prevalece

    uma unidade de ao que consiste em estabelecer uma comunicao entreo mundo sagrado e o mundo profano por intermdio de uma vtima, isto , de

    uma coisa destruda no decorrer de uma cerimnia (2001:223).Em tal perspectiva, o sacrifcio cumpre o papel de mediao entre o

    mundo sagrado e o mundo profano (Teixeira 1993:167), estabelecendo con-

    tato entre essas duas ordens de realidade e, por conseguinte, mobilizandocertas foras que so necessrias em determinados contextos sociais. Esse

    seria o princpio reitor que determina a lgica do sacrifcio. Um princpio quese atualiza e cujo contedo muda no decurso da histria. Assim, por exemplo,

    durante um longo perodo prevaleceu uma noo prosaica e materialistaque buscava obter dos deuses benefcios muito precisos, passando a uma

    verso mais espiritual com fins transcendentais: a salvao das almas, a

    imortalidade, o paraso, tal como concebido pelas grandes religieshistricas (Mauss 2003; Caill 2002).

    O caso aqui estudado, os militantes cados em combate, faria partedeste ltimo tipo de sacrifcio orientado pelos fins transcendentais. E, da

    mesma forma que todo ato sacrificial, realizaria uma mediao entre o

    mundo profano e o sagrado. S que, neste caso, seria levado a cabo atra-vs deles mesmos, de sua morte violenta, como mecanismo de ativao da

    ponte de comunicao e interao entre esses mundos. Neste sentido, elesseriam vtimas e sacrificantes ao mesmo tempo, numa unidade dialtica e

    complexa que muda de natureza, passando do estado profano ao domniodo sagrado (Mauss 2003), e ingressando, assim, numa nova categoria social:

    a demrtires. Esse prottipo se converte, desta maneira, num modelo ideal

    com o qual o coletivo estabelece formas de identificao com base numa

    viso de mundo compartilhada. Tambm cabe ressaltar que nessa condioespecial adquirem poder o poder dado pelo sagrado e o transcendente que transmitem e irradiam ao mundo profano.

    Levando em considerao os anteriores elementos, possvel inferir,quanto ao rito sacrificial, que esse fenmeno comporta uma dinmica de

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    entregae retribuio, de mobilizao de foras e tributos, cuja dimensode troca permite certa inflexo nesta anlise. De fato, o estudo de Marcel

    Mauss e Hurbert sobre o rito de sacrifcio aponta a existncia de uma lgicaimplcita de reciprocidade:

    Se o sacrificante d alguma coisa de si, ele no se d; ele se reserva prudente-

    mente. que, se ele d, em parte para receber. O sacrifcio se apresenta sob

    um duplo aspecto. um ato til e uma obrigao. O desinteresse se mistura a

    com o interesse. Da porque com tanta frequncia foi to amide concebido sob

    a forma de contrato. No fundo, talvez no haja sacrifcio que no tenha alguma

    coisa de contratual (Mauss & Hubert 2001:225).

    Ainda que no Ensaio sobre a ddiva Mauss no aprofunde esta questo,reitera a ideia do contrato preexistente no rito sacrificial: a destruio do

    sacrifcio tem precisamente como finalidade ser uma doao que h de sernecessariamente retornada (Mauss 2001:172). Por outro lado, no mbito

    dos estudos contemporneos, vrios autores tm proposto o debate em tor-no do tema da reciprocidade e do sacrifcio, dando continuidade reflexo

    inaugurada por Mauss. Nessa via, alguns matizes devem ser levados em

    considerao, como, por exemplo, o enfoque de Maurice Godelier (2001),que entende o sacrifcio como uma dvida eterna dos humanos com Deus

    e, sob essa condio, no existiria retribuio possvel; logo, a lgica dareciprocidade, em termos maussianos, seria impossvel de aplicar. Outro

    enfoque interessante aquele proposto por Allain Caill (2002) que, dife-

    rentemente de Godelier, leva a discusso do sacrifcio para o campo tericoda reciprocidade/ddiva. Ao indicar o limite presente na teoria do sacrifcio

    de Hubert e Mauss, Caill observa que esta deveria ser reinterpretada luzda obra maussiana Ensaio sobre a ddiva. Sugere, desse modo, reformular

    tais noes traduzindo-as para a linguagem do dom (Caill 2002:166).Depreende-se da abordagem destes autores certa polarizao em tor-

    no da complexa questo do sacrifcio. De um lado, a nfase no sentido da

    dvida eterna, sem possvel retribuio; de outro, a nfase no sentido dareciprocidade, entendida como o movimento do dom e contradom. Mas, indo

    para alm dessa dicotomia, na presente anlise busca-se situar o debate nonvel do dilogo entre o campo terico do sacrifcio e o da reciprocidade,

    compreendendo-os segundo uma singularidade ontolgica que os diferen-cia e, simultaneamente, os coloca diretamente imbricados. Nessa direo,

    o material etnogrfico foi bastante sugestivo. Tudo indicava a existncia de

    uma forma de reciprocidade implcita no sacrifcio dos cados em combate.De maneira inequvoca, aparece em primeiro plano a premissa da entrega

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    absoluta causa revolucionria. No entanto, por mais altrusta que tal ato

    se mostre, no est isento de interesse: h, no fundo, uma busca de com-

    pensao. Aspirao que, como os prprios elenosapontam, no pertence ordem do material nem do imediato:

    O que acontece quando se morre? J no vou para o cu, calma companheiro,

    aqui iremos louv-lo: companheiro Rodrigo, presente! At quando? At sempre.

    Quando vou morrer? Quando j ningum se lembre de mim. Transformemos a

    imortalidade da alma para imortalizar-nos em nossas aes. Mas, no fundo, est

    o tema da transcendncia, todos ns queremos transcender (Mario, campons,

    18 anos de militncia).

    Esse ato de entrega aparentemente desinteressado est, na verdade,

    assentado sobre uma lgica de compensao, mas difere daquela verificadano interior das relaes sociais mais amplas. H uma mudana significativa

    na natureza da relao que se estabelece quanto s partes envolvidas, aos

    objetos trocados, ao seu direcionamento e ao tempo em que a troca se efe-tiva. Logo, o tipo de troca que se forma adquire outra dimenso. Torna-se

    mais acentuada e contundente. Por um lado, h a exacerbao da dimensoda entrega; por outro, a amplificao ao mximo do interesse calculado

    (Caill 2002:168). Assim, na esteira dessas ideias e tendo em conta as cita-

    es anteriores, compreende-se a ao dos cados em combate como umato mximo de entrega, cuja oferenda dar-se a si mesmo, e sem reservas,

    causa revolucionria. E, pela oferta da prpria vida, esperam receber be-nefcios tambm supremos, absolutos, sem possibilidade de comparao:

    por um lado, a eternidade atravs de sua lembrana na memria e nasaes dos companheiros de luta, e por outro, contribuir para a salvao do

    social. Nesta perspectiva, cados em combate pode ser entendida como amais alta expresso simblica e ritual dessa disposio de entrega em proldos ideais de salvao e justia social.

    Claro que no contexto de um universo social concebido como laico mu-dam os sujeitos da relao do sacrifcio e da reciprocidade, pois ela j no se

    estabelece assim como acontece no interior das comunidades religiosas entre os seres humanos, pertencentes ordem do imanente, e Deus, per-

    tencente ordem do transcendente, mas entre os cados em combate e os

    companheiros de luta que continuam vivos. Ainda que os dois pertenamontologicamente ao mundo profano, com o ato do sacrifcio os primeiros

    mudam de estado, ingressando na esfera do transcendente. Eis a correlaode esferas que se reconfiguram de acordo com esse contexto, mantendo-se

    a relao de troca e de reciprocidade que se estabelece entre os sujeitos em

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    meno, e em que o fato gerador o sacrifcio atravs do qual se forma um

    pacto tcito muito forte entre eles. Os que morrem pela causa entregam seu

    tributo sua vida e criam, assim, uma dvida entre os que permanecemvivos, que se sentem comprometidos e obrigados perante esses mortos; uma

    obrigao que se torna necessidade imperiosa de retribu-la:

    Eu posso morrer, mas se sigo vivendo nos demais porque isso segue com os

    demais, ali onde sentimos que algum no pode trair tudo isso [...] Ah, que

    algum diga que uma rendio, que uma desmobilizao isso, mas, como

    algum pode trair seus mortos? Quando eles morreram confiando em que eu

    era aquele que os seguia, que amos at culminar no triunfo (Raul, campons,

    20 anos de militncia).

    Assim se forma a dinmica da reciprocidade: na obrigao criada noscompanheiros de luta de devolver esse dom recebido, como um compromisso

    forte, iniludvel, cuja falta de cumprimento vista como uma traio aos

    mortos. Aqui importante assinalar que na tica da militncia a traio considerada como uma das piores e mais condenveis condutas. Com

    efeito, por essa lgica da retribuio, os contradons esperados por partedos companheiros de luta so: o compromisso com a revoluo, continuar

    firmes a luta iniciada pelos antecessores, ir at o fim, ou seja, libertar o

    povo, ainda que isso implique dar suas prprias vidas (como o fazem ossacrificados) e manter viva a memria dos cados em combate, o que se

    materializa atravs de diversas estratgias, como: a) pr seus nomes nasfrentes ou nos destacamentos de combate, uma prtica bastante importante

    e difundida dentro da organizao, tanto que, segundo os dados apontadospor Mario Aguilera (2007), das 53 estruturas de combate que havia em 1997,

    32 tinham nomes alusivos a guerrilheiros mortos em combate; b) denomi-nar determinados eventos ou datas comemorativas com os nomes dessescombatentes; c) dedicar-lhes canes; d) rememor-los nos documentos e

    nos diversos materiais de comunicao e divulgao; e) lembr-los emoti-vamente nas insgnias companheiro [...] cado em combate, Presente! At

    quando? At sempre!.Da sua parte, eles recebem o exemplo dos que se sacrificaram, mas

    tambm, como j dito, certo poder que deriva da condio de sacralidade que

    adquirem os mrtires e que, de alguma maneira, contagia o mundo profano, osque seguem o caminho da luta. A reside sua fora e sua eficcia simblica.

    Nos elementos acima descritos podemos apreciar o carter duplo dareciprocidade, que se manifesta como um ato voluntrio, aparentemente

    livre e gratuito e, ao mesmo tempo, obrigado e interessado (Mauss &

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    Hubert 2001:157). Pois, embora o ato de sacrifcio seja de natureza aparen-temente desinteressada, altrusta e voluntria, por trs disso h um interesse

    para si (o sacrificante) e um sentido de obrigao para com o/s outro/s(os militantes) que entram na troca.

    Assim, ainda que parea uma troca eventual e desconexa, ela est, na

    verdade, inserida na lgica da reciprocidade, conservando uma linha de conti-nuidade, embora se situe numa escala diferenciada de tempo e, por sua longa

    durao (mais de 40 anos de luta), abarque sujeitos de distintas procedncias,idades e geraes. Cumpre notar que essa troca no se restringe ao nvel do

    individual. A pessoa que se sacrifica nesse ato no o faz motivada por uma

    causa pessoal nem est em busca de uma recompensa individual. Ela entregasua vida por uma causa social e espera, em troca, uma recompensa maior: a

    libertao social. Dessa maneira, incorpora-se o coletivo na dinmica dareciprocidade, no carter extensivo da ddiva e em seu obrigatrio retorno.

    Uma dinmica que ativa o ciclo do dom e do contradom em diferentes tempose corporeidades, como um poderoso mecanismo de integrao social atravs

    da formao de alianas fundamentadas no compromisso com uma dvidahistrica em face dos sacrificados pela causa, que condiciona a conduta e

    refora o sentido de filiao e pertena ao grupo.

    O exrcito dos mortos

    O exrcito dos mortos parece uma denominao perfeita para designar a

    forma como os elenosentendem e ressignificam simbolicamente os guer-rilheiros cados em combate, pois eles, na verdade, parecem estar mais

    presentes que muitos dos presentes. Eles inauguram os eventos, encerramo momento ritual, solene, da formao no ptio de bandeiras, encabeam

    as estruturas poltico-militares que levam seus nomes, so cantados e acla-mados nos distintos encontros e, como os elenos expressam, no esto

    mortos, continuam vivos na memria, uma memria que se atualiza e se

    vivencia dia aps dia.Eles seguem to vivos que so at mesmo incorporados na lgica

    de classificao hierrquica da organizao. Os mortos, reivindicados,por seus atos hericos, como corresponde a seu sistema de valorao, so

    reclassificados nessa nova condio existencial conforme seu sistema degraus pstumos, que consiste numa graduao de cinco nveis hierrquicos,

    a saber: 1. Comandante em Chefe, outorgado aos comandos considerados

    como os mximos guias da organizao; 2. Comandante, reconhecimentodado aos comandos que tambm encarnam o ideal do ser eleno, mas que no

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    O EXRCITO DOS MORTOS 367

    chegaram ao nvel dos profetas; 3. Capito, distino correspondente aonvel dos militantes rasos que tambm demonstraram herosmo; 4. Capito

    Comunheiro, outorgado aos militantes que atuaram no mbito amplo dopoltico e do social; e 5. Combatente Comunheiro, definido nos mesmos

    termos que o anterior com a diferena de que sua contribuio se deu no

    nvel regional (Pargrafos 1-4, Estatutos 2006).Observe-se que nessa reclassificao que fazem dos mortos preser-

    vado o status que tinham em vida, conservando-se e estendendo-se ato mundo do alm. Ingressam nesse outro mundo com as distines que

    tinham no anterior, s que agora adquirem mais potncia, medida que

    realizam o ideal consagrado no princpio fundador do NUPALOM. Dessamaneira, a organizao recria a condio da militncia aps a morte, com

    graus e distines que no apenas reproduzem a hierarquia existente, masse aprofundam nela. Porque eles, o exrcito dos mortos, se revestem de

    maior prestgio e poder simblico; eles se situam no topo da classificaohierrquica da organizao.

    O exrcito dos mortos no representa um dado alegrico, ele tem umaforte presena no campo de interao e na configurao hierrquica do ELN.

    Seus integrantes entram na posio mais alta do esquema de classificao e,

    uma vez ali, so investidos de poder, tornam-se os modelos ideais, os guiasdo caminho, os exemplos para imitar e dar continuao. Eles so invocados

    nos momentos difceis como os referentes para alentar e sair das crises, soinsgnias pedaggicas que afianam a socializao dos militantes, sublimam

    o sentido da entrega total, e so, finalmente, os que ajudam a reforar o

    compromisso dos militantes de no renunciarem diante das penrias e dasdificuldades, em virtude da dvida eterna contrada com os mortos, que os

    obriga a no tra-los.

    O ascetismo como estilo de militncia

    O ascetismo uma expresso do martrio, assumir o sofrimento como umaforma de purificao para alcanar a salvao, cujo significado deriva de

    um importante princpio da tradio crist no qual se concebe que tambmCristo padeceu por vs, deixando-vos o exemplo para que sigais os seus

    passos (So Pedro, 1 Epstola, cap. 2:21). Essa forma de ver o mundo temsido ativada em distintas pocas histricas e a partir de diferentes elementos

    significativos. Por exemplo, na Idade Mdia, quando se converteu numa

    doutrina hegemnica, foi um dos principais alicerces do poder religioso emoral e um mecanismo altamente eficaz de controle social. Assim, a salvao

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    das almas se fazia atravs da vigilncia do corpo, de seu estrito disciplina-mento. J no perodo da Reforma, e com os primeiros passos do capitalismo,

    produz-se um novo tipo de ascetismo, caracterizado por Max Weber (2000)comointramundano, quando essa prtica deixa de ser um modo de buscara salvao no alm para passar a assegurar a salvao neste mundo, con-

    sequentemente, o controle sobre o corpo convertendo-se em uma forma dedoutrinao para submeter os indivduos lei do capital. Este , em grande

    parte, o fundamento da tica do protestantismo: o domnio do sujeito e de

    sua corporalidade em prol do incremento da produtividade.Essa mesma lgica intrnseca ao ascetismo de origem crist de controle

    do sujeito atravs do disciplinamento do corpo tambm est presente nosmovimentos cristos de tendncia socialista e em boa parte dos movimentos

    revolucionrios radicais. No primeiro caso, Enzo Pace (1983) faz uma sugestivainterpretao dos grupos catlicos da regio de Vneto, Itlia, das dcadas

    de 1960 e 1970, assinalando que a prtica poltica desses agrupamentos

    estava centrada no ascetismo, denominada pelo autor de ascetismo selva-gem, cujos princpios axiolgicos giravam em torno do tema da pobreza e

    de uma crtica radical ao mundo capitalista. Nessa mesma direo, pode-semencionar o movimento dos sacerdotes operrios, uma vez que, alm de ser

    um dos pioneiros nesse gnero,4radicalizou a perspectiva do ascetismo comsua viso de encarnar-se nos pobres, de compartilhar seus sofrimentos, sua

    condio de vida, e, inclusive, como afirma Dansette, para a maior parte dos

    sacerdotes operrios, no se verdadeiramente um deles, enquanto a pessoano se decida a s-lo at a morte (Dansette apud Pelliteiro 1997:319).

    Tambm nos movimentos revolucionrios radicais, e particularmentenas guerrilhas revolucionrias dos anos 1960-1970, percebem-se uma con-

    cepo e um estilo de militncia fortemente influenciados pelo ascetismo,

    como forma de assegurar o autocontrole dos combatentes e ganhar legiti-midade social:

    [o guerrilheiro] deve ter uma conduta moral que o afirme como um verdadeiro

    sacerdote da reforma que pretende. austeridade imposta pelas difceis condi-

    es de guerra deve somar-se a austeridade nascida de um rgido autocontrole

    que impea um nico exceso, um nico deslize [] O soldado guerrilheiro deve

    ser um asceta (Guevara 1972:47).

    O ELNconfigurou-se em torno destes dois modelos de comportamento.O da chamada mstica revolucionria, cujo principal referente a Re-

    voluo Cubana e, especialmente, a imagem, eu diria, idolatrada de Che

    Guevara, que estampada em diferentes objetos de uso pessoal e reforada

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    em muitos cenrios grupais. E, por outro lado, a influncia exercida pelosetor cristo, para o qual o ascetismo tem sido justamente um dos principais

    fundamentos de suas concepo e ao.Durante os primeiros anos (1963-1974), essa pauta de conduta foi

    incorporada com um esprito bastante dogmtico. O chefe mximo do ELN

    poca, Fabio Vsquez, reproduziu o Cdigo do Guerrilheiro, manual ela-borado durante o auge da Revoluo Cubana e aplicado de maneira estrita

    nos distintos contextos de luta. Nele se normatizava o agir dos militantes

    e se penalizava com muito rigor o desvio dessas regras, de modo que seconverteu na lei da vida guerrilheira. Uma lei cujo fundamento era seu

    ascetismo, ideal de conduta revolucionria, em funo do qual se media onvel de compromisso com a luta. Por isso, muitas faltas e/ou infraes que

    se cometiam infringindo esse regimento eram consideradas como traio revoluo e, nessa medida, duramente penalizadas. Observemos o se-

    guinte episdio sobre os primeiros anos da guerrilha, que oferece valiosos

    elementos etnogrficos para pensar essa problemtica:

    Os treinamentos continuavam e dia a dia se tornavam mais repetitivos [...]

    A rotina nos destrua a todos. Um dia, Silvrio se enfureceu porque j eram duas

    horas da tarde e estvamos sem comer [...] largou o fuzil e gritou para que todos

    ouvssemos: Que filhos da me, eu no fao mais PUM PUM, e se por essa

    merda vo brigar comigo, que briguem, mas eu vou ao acampamento buscar pelo

    menos uma banana para comer. Todos ficamos preocupados porque, segundo

    nosso cdigo guerrilheiro, o que ele acabava de fazer era uma insubordinao [...]

    falaram a ss com Silvrio, que fez uma autocrtica pblica por sua atitude, logo

    Carlos notificou a todos que Silvrio ficaria quatro dias de guarda como sano

    por seu erro. noite, Carlos e Andrs proferiram uma extensa palestra sobre a

    importncia de acostumar o organismo a no comer muito, salvo consumir os

    alimentos necessrios para a nutrio (Nicols Rodriguez, romance, s.d.:27).

    No relato clara a punio diante da falta de controle de uma neces-

    sidade fsica: comer, falta esta vista sob a lente do Cdigo do Guerrilheiro

    como uma insubordinao e desvio moral. Esta uma clara expresso do

    ascetismo que reprime as necessidades corporais como fundamento do

    modelo ideal do guerrilheiro. Um modelo no qual a abstinncia no s

    justificada, como convertida em virtude. Ainda que a organizao levassea cabo um processo de autocrtica da rigidez dos primeiros anos, tal comosublinha Nicols, esse estilo [de militncia] foi se tornando um princpio

    que permanece at hoje como modelo de referncia. Como se interioriza

    essa perspectiva?

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    Ali pode ser evidenciada a influncia do chamado exemplo impecvel,

    elevado sua mxima expresso com o setor dos cristos e especialmente

    com o sacerdote Manuel Prez que, por meio de seu prprio testemunhode vida e luta, promove um estilo de militncia marcadamente asctico emoral. Em Manuel se potencializa esse modelo ideal pelas condies

    especiais que possua: de um lado, chefe mximo da organizao por

    um longo perodo, que o convertia, segundo seu sistema interno de re-lacionamento, num velho, isto , uma espcie de pai afetivo com altos

    nveis de respeito e autoridade; de outro, por sua investidura de sacerdote,que lhe proporcionava certa aurola de sacralidade. Assim, o que antes

    chegava a ser questionado, na nova verso enaltecido como o modelode conduta.

    Certamente, esta perspectiva foi levada prxis, convertendo-se num

    estilo de trabalho poltico bastante radical, como, por exemplo, quando osmilitantes urbanos, movidos pela necessidade de se inserirem na classe

    popular, iam trabalhar nas fbricas, no servio domstico ou em qualqueroutro tipo desses ofcios para sentirem neles prprios o rigor do capitalis-

    mo, para fazer parte do povo, numa exigncia tal que s vezes excedia

    nossa capacidade porque, alm das duras jornadas laborais s quais nossubmetamos e a que a maioria de ns no estava acostumada, pois em

    nossas fileiras havia muitos profissionais e pessoas de classe mdia, tambmtnhamos que estudar noite e, nos finais de semana, fazer proselitismo

    (Rosa, militante urbana). Contudo, no se queixavam, porque estavamconvencidos de que essa era a forma de demonstrar o [seu] compromisso.

    Outro cenrio onde se expressa essa postura de austeridade no manejo

    dos recursos econmicos, como ocorreu nos anos 1980, quando, apesarda fartura em razo do ingresso do petrleo nas zonas que controlavam,

    fizeram uma rgida vigilncia moral: Vivamos com muita penria [...]Apenas tnhamos para comer e para mobilizar-nos nos trabalhos. E todas

    as moedas que sobravam transformavam-se em contas. Nunca havia di-

    nheiro para ns, para nossas necessidades, fora das essenciais. Nunca umadiverso (Laura, camponesa).

    Ainda que, com o passar do tempo parea atenuar-se esse tipo de com-portamento, pois a militncia j no vive sob esse tipo de radicalismos, na

    verdade, continua sendo um valor de muito peso apreendido no convvio

    cotidiano do grupo e especificamente na corporificao da experincia.O corpo se mostra, por mltiplas perspectivas sociais, como lugar privilegiado

    na construo dos sujeitos e das subjetividades. Nas sociedades ocidentaiscontemporneas, fundamentadas na noo hegemnica do indivduo, o

    corpo entendido como o recinto objetivo da soberania do sujeito e fator

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    essencial da individualizao (Le Breton 1995). No entanto, no ELN, vive-

    se outro sentido de corporalidade, contraposto a esse modelo hegemnico.

    O corpo se edifica sobre os valores do coletivo, em funo do social, comoum instrumento de que se dispe em prol dos ideais da organizao.O corpo social aparece, assim, como o ideal no qual se inscreve o processo

    de reconstruo corporal e subjetiva que ali tem lugar.

    Essa noo da corporalidade adquire ainda mais relevncia se tiver-mos presente a centralidade que ganha o corpo no processo de aprendi-

    zagem de certas tcnicas especializadas, como a militar, pois no contextoda guerra os corpos no so secundrios, eles se convertem numa arma

    fundamental, num meio atravs do qual os guerreiros atingem sua meta;so, de alguma forma, a corporificao subjetiva que se ativa no campo

    de batalha na busca de certos ideais. Da o imperativo de controlar as

    exigncias fsico-corporais como condio essencial da luta guerrilheira.Esta afirmao parece bvia, pois sabemos que para poder manter um

    projeto de luta como esse, na clandestinidade, sob riscos e com inmerasdificuldades, preciso um recondicionamento corporal que assegure a

    sobrevivncia de seus membros.

    No entanto, o diferencial importante a ser destacado a forma comoessas condutas corporais so vistas e assumidas: como virtudes, depositrias

    de um alto valor revolucionrio que demonstram a capacidade de entregado militante. No um simples problema racional de sobrevivncia. Essas

    atitudes esto revestidas de uma carga moral, de nobreza, de dignidade.Em contrapartida, afastar-se desse modelo ideal implica cair em posies

    fortemente condenadas pelo grupo, no s punidas, mas tambm julgadas

    moralmente como uma falta de compromisso com a revoluo. A se ra-ciocina a partir da lgica da dicotomia moralizante do indevido (impuro) e

    da proteo sublimada do ideal revolucionrio (puro).Assim sendo, tais valores, acrescidos dessa viso moral, atuam como

    potentes dispositivos simblicos que reforam o processo de aprendizagem

    dessas atitudes corporais. O corpo visto como o meio de construo dosocial e projeo da utopia de luta. E, nessa direo, o corpo do sujeito ad-

    quire importncia medida que est disposio dos interesses coletivos.Mas no apenas disposio, pois tambm deve possuir as formas e as

    condies apropriadas para essa causa social. O corpo tem que ser treinado,

    preparado, adequado a essas novas requisies. Seus principais atributosso: ser forte, resistente, abstmio, austero, estoico, sacrificado. uma

    corporalidade trabalhada no fsico, para adquirir as condies necessriasao combate, e no psicolgico/emocional, para ter a capacidade de resistir

    luta e nela persistir.

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    Anotaes finais

    Logo, dos argumentos esgrimidos, a questo que fica no ar a razo pelaqual essa viso do transcendente consegue se incorporar dessa forma noELN. O que facilita sua apropriao? A esse respeito importante esclarecer

    que tal fenmeno no pode se reduzir influncia do setor cristo e/ou ao

    poder simblico da investidura eclesistica no interior desta organizao.Ali intervieram outros elementos de muito peso, como a preexistncia de

    uma profunda religiosidade entre os militantes, aspecto que j tem sidoidentificado em processos revolucionrios similares, e outras situaes

    histricas nas quais se torna um componente fundamental na configuraodas militncias (Chaves 2002; Pace 1983; Ertel 2003). Para o caso colom-biano, possvel afirmar que a religiosidade faz parte de seu ethos, de um

    universo significativo em cujo mbito o cristianismo, os valores e a matrizde significados que ele envolve ainda fazem sentido.

    Na verdade, tem a ver com uma forma de identificao, com uma lgicacompartilhada, assentada na tradio catlica da populao colombiana, de

    modo que o estilo de militncia do ELNativa referentes altamente potentes

    dessa concepo religiosa, como a classificao simblica do corporal impuro(sujo), que subjaz ao conjunto de normas e formas de disciplinamento fsicas

    e morais, princpios do sofrimento e do martrio, como meios para alcanaros altos ideais que perseguem: a libertao do povo (sua salvao) e uma

    sociedade justa (o paraso na terra), e uma noo que no se pode deixarpassar, a eternidade, que sintetiza muito bem o sentido de tempo que a

    organizao possui.

    Essa noo est diretamente relacionada com a premissa fundamentalde luta: ir at o fim do fim, mesmo que isso custe a vida. Nessa ordem de

    ideias, a eternidade estaria contida no sem tempo de chegar ao fim dostempos, ou seja, a libertao. Esta a meta, o sonho, que avigora a utopia

    de luta. um tempo que se inicia com a conquista espanhola, tal como

    expresso na primeira estrofe de seu hino: Amrica o cimento milenar/DeColmbia e nossa histria nacional/Onde indgenas e escravos iniciaram/As

    batalhas contra o jugo colonial. Um tempo que vem desse jugo colonial eque vai at a supresso dele, at a realizao de seu grande ideal: a socieda-

    de justa, igualitria, socialista. Esse tempo, construdo e vivenciado por eles,

    aparece bem claro em seus diferentes discursos:

    Nosso sonho realizar a utopia conjunta dos operrios, camponeses e do povo

    de fazer da Colmbia um lugar feliz. Um lugar feliz.Trs simples palavras que

    encerram um desafio enorme, quase impossvel, mas alcanvel. No so as

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    obras impossveis, seno os homens incapazes. Essa inquebrantvel deciso de

    lutar at vencer foi uma constante em toda a nossa peregrinao pela vida e pela

    causa. Com cada derrota, cresce o mpeto [...] cada vitria um novo impulsopara avanar [...] Quando decidimos fazer guerra contra a injustia, estvamos

    trilhando um destino que j no podia ser detido e que vai mais alm, inclusive,

    da prpria vontade dos homens (Hernandez 2006:297).

    Neste texto podemos perceber a intensidade com que so colocados os

    termos de seu projeto de luta, como um desafio imenso, quase impossvel,um caminho cheio de dificuldades que, antes de levar ao desnimo, aviva

    o mpeto de continuar porque esse o destino que j est marcadopara alm da prpria vontade dos homens. Esta concepo desvela, as-

    sim, um transcendente que os governa, que pauta o caminho que devemseguir e do qual no podem fugir. Ainda que eles decidam fazer guerra

    injustia como um ato derivado da vontade humana, esse ato parece ativar

    uma fora que os potencializa, mas que tambm os controla. Nessa ordemde ideias, pode-se entender que a viso da histria est tecida por esse

    sentido de temporalidade sem tempo, com um fundo salvacionista, emque as derrotas e as dificuldades so percebidas como um tipo de provas

    de seu herosmo, um herosmo inspirado e alimentado pela fortaleza dautopia. Assim, vista desses elementos, poder-se-ia afirmar que o signifi-

    cado do tempo no ELN vivenciado num sentido escatolgico, conforme

    assinala Pattaro:

    A histria crist no est no tempo apesar do tempo, mas concebe-o como uma

    libertao, a tal ponto que o passado se apresenta sempre como uma possibi-

    lidade de futuro e o que acontece aguarda sempre o seu depois como possi-

    bilidade real [...] o tempo em que se vem de a fim de ir para; o tempo

    de uma f que garante e faz nascer uma esperana que transforma o tempo e

    todos os acontecimentos nele ocorridos para transform-lo numa expectativa

    cheia de sentido (Pattaro 1975:199-228).

    Esta concepo estaria tambm apontando para o que Jean Delumeau

    afirma em relao histria das utopias e dos milenarismos no Ocidente, no

    sentido de que, em que pesem as diferentes verses e os distintos contextos

    espao-temporais, em todas as escatologias prevalece uma base comum: omito religioso do paraso que evoca elementos simblicos bastante interna-lizados, isto , o mundo final e eterno de felicidade, a abundncia, o reino

    da justia e, em geral, o bem-estar coletivo. Estaria evidenciando, ento,a nostalgia do paraso perdido recriado ao longo da histria. E se temos

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    presente, conforme Delumeau, que modernidade e milenarismo no sonecessariamente excludentes (1997:13), podemos entender que a nostalgia

    do paraso no mundo laico se converte em renovada expresso de esperanae busca de novos parasos terrenos, edificados pelos homens, que conser-

    vam, porm, os ideais nutridos pelo mito originrio. Eis a utopia social que

    subjaz ao comunismo, paradigma fundacional do ELN, que se assenta nasentena radical da histria: A ao do proletariado suprimir a explorao

    do homem pelo homem e o enigma da histria ser resolvido (Marx 1959apudDelumeau 1997:322). Assim, com a superao da explorao por meio

    da luta revolucionria, se passaria ao comunismo, ou seja, ao novo paraso,

    um lugar feliz na perspectiva dos elenos, como ponto culminante da his-tria e da realizao escatolgica.

    Recebido em 15 de fevereiro de 2011

    Aprovado em 16 de agosto de 2012

    Andrea Lissett Prez doutora em antropologia social. E-mail:

    Notas

    * O presente artigo se baseia na minha tese de doutorado O sentido de serguerrilheiro: Uma anlise antropolgica do Exrcito de Libertao Nacional daColmbia, apresentada em 2008 no Programa de Ps-Graduao em AntropologiaSocial da UFSC.

    1Durante o trabalho de campo, anos 2006 e 2007, a Colmbia era governadapelo presidente lvaro Uribe, que iniciava seu segundo mandato presidencial.A poltica que caracterizou esse perodo foi a da seguridade democrtica, com fortesconfrontaes militares contra as guerrilhas, alm da presena ainda ativa de orga-nizaes armadas ilegais, os paramilitares, que intensificaram o nvel do conflitoarmado interno neste pas. O ELN foi expulso de vrios territrios que historicamentedominava e seu corpo armado apenas chegava apenas a 3 mil militantes. Apesardisso, em seu ltimo Congresso Nacional, em 2006, o grupo declarou-se em fasede reafirmao, confirmando sua deciso de manter-se firme em seus propsitoscentrais de luta (Revista Simacota, IV Congreso 2006:29).

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    2Os estudos dominantes no campo do conflito armado na Colmbia abordam,fundamentalmente, os aspectos polticos e/ou militares, deixando de lado as dimensessociais e culturais que ficam relegadas a simples referncias ou a dados do contexto,no sendo tomadas como argumentos explicativos.

    3Camilo Torres Restrepo nasceu em 1929 no seio de uma famlia burguesa,ordenou-se como sacerdote em 1954 e doutorou-se em Sociologia na UniversidadeCatlica de Lovaina (1958). Vinculou-se como capelo da Universidade Nacional deColmbia em 1959, onde fundou, em 1960, junto com Fals Borda, o Departamento deSociologia. Por seu ativismo poltico em prol dos setores populares, entrou em conflitocom as hierarquias eclesisticas, situao que gerou seu abandono do sacerdcio em1965, ano em que se vinculou guerrilha do ELN. Morreu no dia 15 de fevereiro

    de 1966 no primeiro combate de que participou. considerado um dos pioneiros domovimento da teologia da libertao na Amrica Latina.

    4Esse movimento eclesial, de tendncia marxista, nasceu na Frana em 1944e se estendeu pela Espanha nos anos 60. Com base na premissa de fazer presente alibertao do evangelho, esses sacerdotes decidiram inserir-se e trabalhar no mundodos operrios, compartilhando-o com eles, com o fim de melhorar suas condiesde vida.

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    Resumo

    Neste artigo discuto a fora do religiosona constituio identitria da guerrilharevolucionria da Colmbia, o Exrcitode Libertao Nacional (ELN), surgidaem 1964 e ainda vigente como projetode luta armada. Embora o ELN se definacomo uma organizao ateia, seguidorados princpios do marxismo-leninismo,a morte em combate do sacerdote Ca-milo Torres ativou um dos princpiosgerminais da tradio crist no interiordo grupo: o sacrifcio de Jesus pela hu-manidade, mensagem traduzida para alinguagem da luta social e convertidaem premissa de luta. Essa viso sacri-ficial perpassar os distintos contextos,prticas, formas expressivas e discursosdo mundo dos elenos. Constitui-se num

    elemento estruturante e significante daidentidade do grupo.Palavras-chaveReligiosidade, Guerrilha,ELN, Sacrifcio, Transcendncia.

    Abstract

    In this article I discuss the strength of thereligious in the identifiable constitutionof the Colombian revolutionary guerrilla(ELN) national liberation army, arisen in1964 and yet in force as an army struggleproject. Although the ELN defines itselfas an atheist organization that follow theMarxism-Leninism principles, the deadin combat of the priest Camilo Torresactivated one of the germinal principlesof the Christian traditions to the inner ofthe group: Jesus sacrifice by humanity,it is a message translated to the socialfight and converted in straggle prem-ise. This sacrifying vision will pass bythe distinct contexts, practices, ways ofexpression and lectures from the elenosworld that bind itself into a significant

    and structural element of the identity ofthe group.Key wordsReligiosity, Guerrilla, ELN,Sacrifice, Transcendence.