O Feminino Em O Gebo e a Sombra1

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    Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea II – Trabalho FinalProfessora Dra. Ana Isabel Vasconcelos

    Mestranda: Dina Carvalho AparícioAno Letivo: 2010/2011

    O Feminino em O Gebo e a Sombra, de Raul Brandão

    Segundo Pedro Calafate, Raul Brandão carateriza-se por ser um escritor de «vincado

    pendor introspetivo, herdeiro do pessimismo decadentista da geração de 1890» e a sua obra

    «abarca […] a dinâmica finissecular, na continuidade de Schopenhauer e de Hartmann, abrindo-

    se à problemática existencial, que viria a marcar […] o pensamento europeu do séc. XX,

    sobretudo na linha de Camus» (2000: 391). Neste sentido, deteta-se na sua obra a crítica à

    industrialização, que contribuiu para a destruturação dos valores tradicionais com que sempre

    se identificou, tal como a consequente busca do indivíduo pela sua verdade existencial e uma

    premente preocupação com a questão social, a “consciência dramática da miséria que

    transforma o homem num farrapo» (ibid., 392). A miséria surge como o resultado da dissolução

    de valores, confrontando o indivíduo com a amargura e a dor que lhe exigem a «coragem

    heroica» de lutar, num misto de espanto e pavor, contra «o absurdo da existência», em que

    acaba por descobrir a tragédia existencial de «um ser dividido entre máscaras e a autenticidade

    do ser» (id.). Deparamo-nos, na obra brandoniana, com personagens divididas entre um «eu

    abissal», aquilo que as faz reagir e agir contra a acomodação às regras sociais – a Existência -, e

    a Vida, feita de dor, de sonho e de desgraça, «de que emerge o absurdo que só pela morte pode

    ser abolido» (ibid., 396-397). A honra / dever e o homem profundo entram em conflito e, como

    é visível em O Gebo e a Sombra  (1923), o homem reconhece que é preciso desafiar o

    convencionalmente correto para descer ao «abismo de si próprio» e entender «a consciência

    trágica da irredutível oposição entre a existência e a vida abissal, e, por isso, mais verdadeira»

    (ibid., 397). A vida não pode ser um aglomerado de hábitos e insignificâncias e, por isso, o

    indivíduo abre-se ao espanto1 e ao sonho, as pontes para a interrogação e a descoberta.

    De forma inovadora e surpreendente, numa época em que a mulher assumia pouco ou

    nenhum relevo social e quanto mais baixo o seu estatuto, maior a sobrecarga a todos os níveis – 

    familiar, emocional, pessoal, social, físico - Raul Brandão, trouxe para a literatura a figura

    1  A propósito do «espanto» em Raul Brandão, Pedro Calafate (2000. 393), atribui-lhe uma «conotação de surpresa e de

    assombro perante o que está para lá da aparência das coisas e dos homens», interpenetrando-se «com o sentimento do abstido,nomeadamente com o maior dos absurdos que é a morte».

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    feminina, valorizando-a e solidarizando-se com ela no «drama de se nascer mulher»2, aspeto

    para o qual contribuíram os laços com as figuras preponderantes da sua vida – a mãe, que lhe

    ensinou o sonho e o invisível, e a velha criada Maria Emília, que lhe transmitiu o calor humano e

    a ternura, essenciais para o desenvolvimento de uma sensibilidade pouco usual numa épocamarcadamente impessoal e patriarcal. Contudo, Raul Brandão, reconheceu o valor devido à

    mulher e, nas suas Memórias, são diversos os momentos em que se detém na descrição da

    mulher como uma «presença amorosa que cobre os filhos, aquece a vida, sufoca poços de

    gritos», expressando a sua revolta e o remorso pela forma como a mulher é (mal)tratada numa

    sociedade que privilegia o homem como ser superior, ao mesmo tempo que denuncia o

    (auto)sacrifício feminino que a leva a perder a dignidade humana, pelo homem e para o homem.

    O que distingue a mulher do homem é a sua capacidade de amar, «porque o amor nunca mais seapaga – talvez porque a luz seja a única realidade do mundo» (BRANDÃO, R., 2010, III: 48), luz

    que lhe foi transmitida tanto pela mãe como pela velha criada, a respeito de quem se

    questiona: «Que é que nós lhe demos para assim nos amar? Sofrimento, trabalho até cair

    exausta de dedicação. E ela deu-nos à vida e a alegria. Mancou e riu até ao fim. […] E no fim

    morreu ainda servindo-nos e com estas palavras na boca: - Levo-vos no coração!» (ibid., 50).

    Perante este relevo atribuído à mulher, partilhamos a opinião de Luísa Dacosta, quando

    afirma a significância da existência de três figuras femininas em O Gebo e a Sombra: «Trêsdolorosos dramas de frustração: - pelo amor –  Sofia, pelo sonho- Doroteia, pelo ódio – 

    Candidinha. E que seja através desses dramas que a peça se ilumina de uma tragédia maior»

    (1967: 13).

    Atentemos, agora, em cada uma destas mulheres, a fim de definir o seu drama, de forma

    a, no final, as podermos incluir num ciclo de «tragédia maior» que as ultrapassa

    individualmente, mas que se estende à própria condição feminina e à humanidade de quem é

    geradora.

    Sofia, sobrinha e nora do Gebo, presença silenciosa, mas que tudo parece abarcar, é um

    exemplo de autossacrifício, pois, com todas as suas cismas e frustrações, contribui para aquecer

    e iluminar o lar, assumindo uma atitude protetora e de desvelo para com o Gebo, de quem é

    cúmplice no conhecimento da verdade sobre João, acarinhando-o e tranquilizando-o, o que se

    torna percetível pela sua preocupação em falar-lhe ternamente e preparar-lhe comodidades (o

    2 Sobre este assunto, leia-se SILVA, Susana Serra (2011)  – “Sonhos e ideais de vida”, in História da Vida Privada em Portugal. A

    Época Contemporânea [Direção de José Mattoso e Coordenação de Irene Vquinhas], Lisboa, Temas e Debates / Círculo deLeitores, pp. 382-427).

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    lume e o café) que o reconfortem depois de um dia difícil de trabalho – carinhos de filha, numa

    casa onde o filho é uma sombra. A sua cumplicidade é evidente nas estratégias que concebem

    para proteger Doroteia da verdade sobre o filho. Enquanto Doroteia se refugia no sonho, na

    ilusão, Sofia, sempre prestável e ativa nas tarefas do lar, abafa as lágrimas para proteger asogra que, no início da peça, a trata com frieza («Nem chorar podemos eu e o velho para que

    vivas iludida. Ainda ele anda, trabalha, esquece, mas eu fico aqui horas e horas a cismar.» -

    56)3. Contudo, não concorda que o Gebo alimente esta ilusão, porque viver no engano, no

    refúgio, no sonho, é um risco, embora também ela se sinta intrigada com a vida miserável de

    João – cujos pormenores desconhece, mas intui («Porque é que o mal o atrai e porque é que a

    sua miséria me atrai também? Para que vive um vida de desgraça, de dor e de fome?... Há

    muitas coisas que eu queria saber e discutir e não me atrevo.» - 61). Sente o «espanto», que afaz cismar na desgraça, revelando a sua inocência, mas, em simultâneo, uma tendência inata

    para a problematização («Talvez seja mal, mas queria compreender o que é essa vida horrível e

    porque é que ele, sabendo que faz mal… - id.). Quando Doroteia se aproxima, mais

    carinhosamente, do Gebo, para que ele lhe alimente  o sonho, Sofia retira-se com discrição,

    sempre a cismar e finge não ouvir a aversão que a sogra nutre por ela, por, egoisticamente,

    pensar que ela ocupou o lugar do filho na sua casa e no coração do Gebo. O medo apodera-se

    dela, porque pressente a «sombra», a chegada de João, que virá confrontá-la com outros

    problemas. O Gebo conforta-a e reconhece todo o seu valor - «Minha pobrezinha, tão calada e

    tão triste, e sempre num subterrâneo a tecer. Eu bem te conheço… Exaltada! Tão exaltada!...

    Mas calas, tudo, escondes tudo» (p.74) – como uma Penélope que faz e desfaz o seu trabalho,

    numa espera infinita e indefinida. É então que chega João e retoma o seu lugar de marido e

    filho… 

    Com a chegada de João, sobressai, no II Ato, a atitude mais dinâmica de Doroteia, menos

    deprimida, animada a receber Chamiço e Candidinha para o serão. A sua felicidade é evidente efaz crer que o filho enriqueceu - o café que partilha equivale a um ritual de celebração, de

    felicidade e de abundância. A conversa do serão centra-se nos temas da revolta e do crime, nas

    formas de fugir a uma existência amorfa e sem significado. Doroteia bebe as palavras do filho,

    pois identifica-se com aquilo que ele diz, enquanto Sofia se horroriza com o relato da sua

    vivência – «eu e o desespero, só eu e o negrume» (p. 87) - e Candidinha ouve-o « fascinada».

    Percebemos que aquele serão, em que chove como no «dilúvio universal», adquirirá o

    3 BRANDÃO, Raul (s/d)  – O Avejão e O Gebo e a Sombra, notas de BASTOS, Glória e VASCONCELOS, Ana Isabel, Porto, Porto

    Editora. Todas as citações da obra, terão como referência esta mesma edição.

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    significado destruidor e (re)construtor do dilúvio – o efeito das palavras de João tem o efeito da

    purificação e do renascimento pela água. Só Doroteia parece não querer entender a mensagem

    das conversas («Mas que é? Que não entendi?» - p. 89) e, quando no final do serão, fica sozinha

    com o filho, fala-lhe à sensibilidade, ao sentimento, como mãe, confessando-lhe toda a suaangústia e o medo que as suas palavras lhe provocaram. Procura nele a fisionomia do passado,

    como a Mãe, descrita por Eugénio de Andrade4, que guarda sempre na memória a imagem do

    filho que criou, mas que, ao crescer, seguiu o seu caminho e se tornou um ser independente e

    diferente. Aflige-se, porque não encontra essa outra  fisionomia que guardou e alimentou

    durante tantos anos. Tal como no poema referido, também João sente que traiu a mãe, pois a

    ele também lhe «custa a encontrar a outra fisionomia, a outra que vi sempre e com quem lidei

    sempre» (p. 94), mas sente o amor da mãe e é esse mesmo amor, o laço indestrutível eincondicional, que a faz pressentir que ele «é um desgraçado» e a existência sombria que ele

    tem vivido. Também para João, a mãe foi o refúgio nos «dias de desgraça», a lembrança do

    carinho, do calor, mas nem isso o resgatou do abismo («Eu, também, nunca te esqueci. Mesmo

    nos dias mais aziagos te via e ouvia. Às vezes falavas-me como de um fundo de um sepulcro…

    Quem estava morto era eu.» - p. 95). Para a proteger, aconselha-a a não querer vê-lo como ele

    é e não quer continuar a conversa, apesar da sua insistência. Como a mãe que acolhe de braços

    abertos, recebe um abraço «com grande ternura» - prova física do laço inquebrável - e diz-lhe

    que lhe pôs o «xale na cama» como que para aquecer o seu menino.

    Em Sofia, o regresso de João não trouxe o retomar de uma eventual intimidade perdida,

    mas a consciencialização da realidade. Recusa-se a ouvi-lo e manda-o calar. Com terror, ouve-o

    dizer: «Vocês vivem como cegos e há outra coisa – há outros vivos. Trabalhar, anh, e ser o Gebo!

    Ser o Gebo! Antes viver num espanto e depois morrer. Olha como eu tenho as mãos frias…» (p.

    98). Frias de morte, de crime, iluminadas pela claridade da vela que se estende à compreensão

    de Sofia, que está no limite da sua resistência e ameaça gritar –  sabe que ele vai roubar odinheiro e fazer com que aquela família, de quem ela é o verdadeiro pilar, perca tudo – até a

    honra! Depois do roubo, de novo cúmplice do Gebo para proteger Doroteia, acaba por aceder a

    esconder a verdade à sogra («Mas então o nosso dever é ser pobres, é ser desgraçados toda a

    vida? É sacrificarmo-nos sempre? Eu não posso? Eu sufoco! O melhor é confessar-lhe tudo.

    Batemos-lhe ali à porta e gritamos: - O teu filho…» - p. 104). O grito parece-lhe a forma de se

    libertar daquele ciclo vicioso de mentira que, em vez de os ajudar a fugir à desgraça, mais os

    afunda nela. A vontade de gritar é o grito interior que a faz sentir a mudança em si própria -

    4 “Poema à Mãe”

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    «Talvez ele tenha razão, e talvez de quem eu tenha mais medo é de mim própria» (p. 108) – e

    todas as interrogações que surgem em catapulta e não lhe dão sossego. Depois da prisão do

    Gebo, é Sofia quem assume o governo da casa. Continua a sacrificar-se, a ser o pilar da família,

    para não deixar a sogra morrer à fome. Percebemos, no IV Ato, pelo diálogo entre Sofia eCandidinha que o marido a maltrata e não a valoriza, aparecendo em casa apenas «para levar

    algum trapo para o prego», denúncia explícita da situação das mulheres pobres da época.

    Candidinha, cuja pobreza e carência já se percebera no serão do «dilúvio universal», em

    que admirara a maleta do dinheiro e imaginara quantas sedas e vestidos se podiam comprar,

    alerta Sofia para o facto de estar a consumir a sua mocidade inutilmente («Quem é pobre é para

    o que nasce. Depois vem a velhice e ainda é pior. E se a gente pede pão dão-nos escárnio. Eu

    ainda tenho experiência da vida e é o que me vale…» - p. 117). Conta-lhe, então, o que é ser

    eternamente pobre e caminhar para a velhice. Confessa-lhe o ódio visceral e a inveja que sente

    por quem lhe faz caridade, por isso se alegra quando há «uma desgraça numa casa». A voz da

    sua experiência exprime a revolta contra a desigualdade social («Eu que nunca comi à minha

    vontade e que ando vestida de trapos quando nasci para trazer sedas como as outras?» - id.).

    Por isso, usa máscaras, finge, colabora no jogo a que a humanidade se sujeitou a si própria

    («Nós que nascemos para a desgraça temos de nos sujeitar, e aos ricos deve-se obediência. São

    eles que podem tudo e que dispõem de tudo.» - id.). Subtendemos que, fora disto, só amarginalidade é a solução. Alerta Sofia para não confiar em João, para lhe mentir, e a rapariga,

    que ainda mantém a sua integridade, através da fidelidade a um marido que não a respeita, não

    a quer ouvir. Candidinha, ao ser expulsa por João, enfrenta-o, argumentando que é «uma

    pessoa de consideração», dando, com este exemplo, uma lição prática a Sofia e comprovando

    que não tem medo de um homem, que, apesar de pobre, não é submissa.

    Aproxima-se a libertação do Gebo e Doroteia, que também começou a cismar , reconhece,

    por fim o valor de Sofia e afirma que «suspeitava de tudo, […] tinha  adivinhado tudo» (p. 120).

    Reconhece-a como a verdadeira filha que ela sempre fora e que se agarrara às ilusões para não

    deixar morrer o sonho. O fingimento, a mentira e o sonho foram o que a manteve viva. A

    catarse que se operou nela, percebendo o sofrimento que causara aos seres que mais lhe

    queriam, faz com que assuma uma postura humilde e receba o Gebo de braços abertos,

    pedindo-lhe perdão («Meu homem! […] Queria pedir-te perdão.» - p. 122). Surpreendidas com a

    mudança de atitude do Gebo –  um Gebo que viveu a vida dos verdadeiros desgraçados e se

    confrontou com a Vida - «Doroteia e Sofia olham-se com terror » e «Sofia aproxima-se de

    Doroteia», gestos significativos que indiciam a união das duas mulheres numa desgraça comum – 

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    todas as estratégias utilizadas para assegurarem alguma estabilidade familiar, mesmo na

    pobreza, mas de acordo com a conveniência social, saíram goradas. O Gebo tornou-se como o

    filho, aproximou-se dele, pois, agora, partilham experiências e vivências comuns. Todo o

    sofrimento, todo o sacrifício, todas as lágrimas e dores - «Foi tudo inútil! Foi tudo inútil!» (p.123).

    Estas três mulheres, nesta peça, não se pretendem representar como mulheres isoladas,

    mas as diversas facetas da vivência da Mulher: - Sofia, a jovem, movida pelo amor aos tios e

    sogros que a criaram e a um marido que não a respeita, mas a quem ela é fiel; Doroteia, a

    mulher madura, a esposa que despreza o marido, porque prefere o filho – um filho cuja vida e

    paradeiro desconhece, mas no qual depôs todas as expetativas e sonhos de uma vida mais feliz;

    Candidinha, a velha, próxima da morte purificadora, que, depois de tanta fome, desilusão e

    desgraça, nada teme e, após uma vida de miséria, passou a viver alimentada pelo ódio às

    desigualdades, personificadas pelos que lhes dão uma côdea e lhe fazem caridade. Todas elas

    frustradas, porque todas elas são mulheres, não só pelos condicionamentos socioculturais, mas

    porque a mulher é a Mãe da Humanidade, é aquilo que ainda resta de sensível, de sofredor e

    que ainda poderá purificar o Homem, esforçando-se por resgatá-lo da «tragédia maior» que é a

    Vida, a Existência.

    A Mulher é a companheira inseparável do Homem, aquela que o aproxima do divino, que o

    purifica e apazigua («[…] quero dizer-te que te devo o melhor da vida. Foste tu que me

    desvendaste o amor, que eu desconhecia. A bondade e a ternura, que eu desconhecia. […] O

    amor cru em mim […] criaste-o, e […] nas tuas mãos, se transformou em sentimento religioso.»

    BRANDÃO, R., 2010: II, 4).

    Esta peça, profundamente dialógica com as Memórias do autor, traduz o sentimento de

    sagrado que ele atribui à Mulher, idêntico ao sentimento telúrico de Miguel Torga:

     Nas mãos das mulheres até as coisas vulgares se fazem na aldeia  –   cozer o pão, lançar a teia  –  

    assumem um caráter sagrado. Elas passam desconhecidas e dispõem dum poder extraordinário.

    Mantêm a vida ordenada com um sorriso tímido. A mulher está mais perto que nós da Natureza e de

    Deus. Cada vez me aproximo mais de ti. O que há de puro em mim a ti o devo. És limpidez e ternura

    (ibid., 8). 

    Depois desta citação, resta-nos concluir que, com esta peça, Raul Brandão pretendia,

    provavelmente, alertar-nos para a «tragédia maior» da indefinição do ser, após um mundo queperdera a inocência e sacrificara, sobretudo, as mulheres que, ainda no tempo da harmonia,

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    eram sacrificadas. Será a «tragédia maior» o ciclo vicioso e inútil do sofrimento da Mãe da

    Humanidade que põe em risco a perdição do ser humano? Acreditamos que sim, pois, tal como

    afirma o autor, «A mulher […] comunica ao lar a ternura com que os pássaros aquecem o ninho.

    Sua vida dá luz, para alumiar os outros» (id.). Se a Mulher não brilhar, quem indicará caminhosà Humanidade?

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    BIBLIOGRAFIA ATIVA

    BRANDÃO, Raul (s/d) – O Avejão e O Gebo e a Sombra, notas de BASTOS, Glória e VASCONCELOS,Ana Isabel, Porto, Porto Editora.

    BIBLIOGRAFIA PASSIVA

    BRANDÃO, RAUL (2010) – Memórias – I, Braga, Edições Vercial.

    BRANDÃO, RAUL (2010) – Memórias – II, Braga, Edições Vercial.

    BRANDÃO, RAUL (2010) – Memórias – III, Braga, Edições Vercial.

    CALAFATE, Pedro (2000) – História do Pensamento Filosófico Português, Vol. V, Tomo I, Lisboa,

    Caminho, pp. 391-401.

    DACOSTA, Luísa (1967) – “A Mulher na sua Obra”, in, Comércio do Porto, 14 de Março, Porto, p.

    13.

    SILVA, Susana Serra (2011) – “Sonhos e ideais de vida”, in História da Vida Privada em Portugal. A Época Contemporânea  [Direção de José Mattoso e Coordenação de Irene

    Vaquinhas], Lisboa, Temas e Debates / Círculo de Leitores, pp. 382-427).