O filho – Diz um número qualquer. A mãe – 79. · de passagem de tantos cálculos, ele passa a...

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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 81, jul. 2000 EDITORIAL O filho – Diz um número qualquer. A mãe – 79. O filho – Que te ocorre em relação com ele? A mãe – Penso num belo chapéu que vi ontem. O filho – Quanto custava? A mãe – 158 marcos. O filho –...seguramente pensaste: ’Se custase a metade o compraria’.” (Freud, “Psicopatologia da vida cotidiana”) 1 O s números se transformam facilmente em sintomas quando eles são invocados pelo sujeito como ajudantes no trabalho de configu- rar bordas para conter seus desejos. Repetidos uma e outra vez, oferecem a aparência de fazer sentido por si mesmos, mas, quando analisa- dos de perto, se demonstra que esse sentido aparente tem uma função de encobrimento. Se oculta sob sua simpática aritmética, uma série de signifi- cados condensados, que habitualmente são fortemente contraditórios entre si. Esse é o motivo da montagem de tal carapaça que, por sinal, não conse- gue, apesar de seus esforços, nem minorar, e muito menos deter, o desenla- ce do conflito que continua a se desdobrar sob sua tênue álgebra. Em princípio, 500 é um número tão bom quanto qualquer outro para servir de marco. Porém, pelo fato de ser “redondo”, oferece facilmente a ilusão de assinalar o cumprimento do ciclo de alguma coisa. Ele é múltiplo de outros números “redondos”, para trás e para frente (cinco séculos, meta- de de um milênio, etc.). É aí que, aparecendo como ponto de convergência e de passagem de tantos cálculos, ele passa a nos oferecer o semblante de poder calcular o incalculável. Surge, então, a sensação de termos, nesse número, alguma coisa a celebrar. 1 FREUD, Sigmund. Psicopatologia da vida cotidiana. In: _____. Obras Completas. Madrid : Biblioteca Nueva, 1948, v. 1, p.751.

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EDITORIAL

O filho – Diz um número qualquer.A mãe – 79.O filho – Que te ocorre em relação com ele?A mãe – Penso num belo chapéu que vi ontem.O filho – Quanto custava?A mãe – 158 marcos.O filho –...seguramente pensaste: ’Se custase ametade o compraria’.”(Freud, “Psicopatologia da vida cotidiana”)1

Os números se transformam facilmente em sintomas quando elessão invocados pelo sujeito como ajudantes no trabalho de configu-rar bordas para conter seus desejos. Repetidos uma e outra vez,

oferecem a aparência de fazer sentido por si mesmos, mas, quando analisa-dos de perto, se demonstra que esse sentido aparente tem uma função deencobrimento. Se oculta sob sua simpática aritmética, uma série de signifi-cados condensados, que habitualmente são fortemente contraditórios entresi. Esse é o motivo da montagem de tal carapaça que, por sinal, não conse-gue, apesar de seus esforços, nem minorar, e muito menos deter, o desenla-ce do conflito que continua a se desdobrar sob sua tênue álgebra.

Em princípio, 500 é um número tão bom quanto qualquer outro paraservir de marco. Porém, pelo fato de ser “redondo”, oferece facilmente ailusão de assinalar o cumprimento do ciclo de alguma coisa. Ele é múltiplode outros números “redondos”, para trás e para frente (cinco séculos, meta-de de um milênio, etc.). É aí que, aparecendo como ponto de convergência ede passagem de tantos cálculos, ele passa a nos oferecer o semblante depoder calcular o incalculável. Surge, então, a sensação de termos, nessenúmero, alguma coisa a celebrar.

1 FREUD, Sigmund. Psicopatologia da vida cotidiana. In: _____. Obras Completas. Madrid :Biblioteca Nueva, 1948, v. 1, p.751.

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SEMINÁRIO COM MARIA RITA KEHLA DETERMINAÇÃO LITERÁRIA DO SUJEITO MODERNO

(agosto a novembro de 2000)

Como parte das atividades de ensino promovidas pela APPOA, inicia-rá em agosto o Seminário A determinação literária do sujeito moderno. Asinscrições e maiores informações podem ser obtidas na secretaria da APPOA.Apresentamos, abaixo, os temas que serão trabalhados em cada um dosencontros, bem como suas respectivas leituras preparatórias.

19 de agosto – Modernidade e individualismo: autonomia, liberdade e de-samparoRENAUT, Alain. O indivíduo. São Paulo : Difel, 1998ELIAS, Norbert. La societé des individus. Paris : Fayard, 1991

23 de setembro – Renascimento e modernidadeHELLER, Agnes. O homem do renascimento . Lisboa : Presença, 1982. cap. XVIII.DELUMEAU, Jean. O renascimento como reforma da igreja. In: A civilização do

renascimento. Lisboa : Estampa, 1984.

21 de outubro – Escritas de si: a experiência, a solidão e o outroMONTAIGNE, Michel de. “Da amizade” (livro I, p. 91) e “Da experiência” (livro III,

p.201). In: Ensaios (Os pensadores). São Paulo : Abril Cultural, 1988.LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso da servidão voluntária. São Paulo : Brasiliense,

1982.

25 de novembro – Literatura, democracia e linguagemFOUCAULT, Michel. A prosa do mundo. In: As palavras e as coisas. São Paulo :

Martins Fontes, 1999._____. Vidas de homens infames. In: O que é um autor? Lisboa : Veja, 1992.RANCIÈRE, Jacques. Introdução. In: Políticas da escrita. São Paulo : 34, 1998.

A festa é convocada: 500 anos do Brasil! E o débil semblante sedesfaz: uma nau que não navega, um relógio de contagem regressiva é in-cendiado, o poder público se divide, os índios finalmente (demasiado tarde)se decidem a impedir o desembarque, tatuagens contra gravatas, penascoloridas versus ternos de burberrys. Estar celebrando o quê, estar repudi-ando o quê, cada vez fica mais difícil defini-lo. As consciências dançam deuma posição a outra sem encontrar um pivô que lhes permita reorganizar seupensamento. E, quando acreditam ter encontrado alguma pista, ela se mos-tra anacrônica, fragmentar, falha, estranha à nossa realidade cotidiana. Ins-tala-se um incômodo: fazer uma festa num velório, onde não dá para saberde quem é o luto, nem de quem é o aniversário – ou pior, onde o ideal seriaque o cadáver assoprasse as velinhas.

Tal é o tipo de verdade que a psicanálise revela: a do sintoma. Que,certamente, não tem a pretensão de ser fáctica como a que a História pre-tende, mas que nem por isso se demonstra menos valiosa e tampouco me-nos necessária.2

É na análise desse sintoma que APPOA vem desdobrando sua pes-quisa, escuta e deciframento, num trabalho interdisciplinar que, desde já fazmais de um ano, aponta para o nosso próximo Congresso de outubro.

Uma vez ultrapassada a cortina desse engano, nos encontramos.

2 Fazemos aqui alusão direta ao artigo publicado recentemente em Zero Hora pelo professorDécio Freitas, no qual, se deixando levar pela opinião de algum amigo historiador (por elecitado), se interroga – de uma forma pouco elegante e rigorosa, nada habitual no estimadoprofessor – acerca do estatuto da verdade em Psicanálise. Possa servir este pequenoexercício para a abertura, um pouco mais séria, do debate.

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do por um relator de outra instituição, sorteada para tanto. O trabalho daAPPOA teve como relatora uma colega do Laço Analítico, por exemplo, eAlfredo Jerusalinsky foi o relator do trabalho do Colégio de Psicanálise daBahia. Este exercício foi muito interessante, porque estabeleceu-se umabusca de diálogo com a produção e as particularidades de outra instituiçãoque não a própria. Esse, em princípio, pode constituir-se num dispositivo quepermita a valorização e leitura atenta da posição do outro, atestando umadisponibilidade ao descentramento em relação às próprias certezas.

Ana Maria Medeiros da Costa

REVISTA DA APPOA N. 18DE UM AO OUTRO SÉCULO: A PSICANÁLISE

É com satisfação que anunciamos que no dia 07/07, sexta-feira, às19h, estaremos lançando o número 18 de nossa Revista, a qual tematiza apsicanálise em extensão. Será na livraria Bamboletras, situada na rua Limae Silva, 776 – Centro Comercial Nova Olaria. Contamos com todos os cole-gas que colaboraram, direta ou indiretamente, para sua realização, com osque se sentem convocados pelo tema ou mesmo com aqueles que desejamcomemorar conosco este momento.

Lembramos aos membros e participantes da APPOA que o seu exem-plar da Revista já encontra-se disponível na secretaria. Aos que ainda não oretiraram, que o façam entre o horário das 9 às 21h.

Para os demais, oferecemos a possibilidade de aquisição através deassinatura anual ou de venda avulsa.

Comissão da Revista

O MOVIMENTO DE “CONVERGÊNCIA” NO BRASIL

Nos dias 27 e 28 de maio passado, estiveram reunidos no Rio deJaneiro representantes de sete instituições psicanalíticas brasileiras, deba-tendo temas de interesse comum. As instituições que convocaram o eventoforam: APPOA, Colégio de Psicanálise da Bahia, Intersecção Psicanalíticado Brasil, Laço Analítico Escola de Psicanálise, Maiêutica de FlorianópolisInstituição Psicanalítica, Práxis Lacaniana / Formação em Escola, TraçoFreudiano Veredas Lacanianas. Participaram, também, representantes doCorpo Freudiano Escola de Psicanálise, que está pleiteando sua entrada emConvergência. O encontro constituiu-se num preparatório ao Primeiro Con-gresso de Convergência, Movimento Lacaniano para a Psicanálise Freudiana,que acontecerá em Paris, de 2 a 4 de fevereiro de 2001, com o tema “Osavanços lacanianos do inconsciente freudiano”, que foi o mesmo a convocareste evento no Brasil.

A importância desse encontro pode ser avaliada por muitos ângulos.Raras vezes instituições lacanianas brasileiras conseguiram reunir-se paraum trabalho conjunto, como também deu-se um passo importante no fortale-cimento do movimento de Convergência no Brasil. Esse passo é fundamen-tal, se quisermos a inclusão do reconhecimento da produção local num mo-vimento internacional. Nesse sentido, nossos colegas franceses e argenti-nos nos precedem na produção de laços de trabalho entre instituições, inclu-sive com publicações conjuntas no caso dos argentinos.

No encontro do Rio de Janeiro, aconteceram dois momentos distin-tos. No sábado, durante todo o dia, tivemos apresentações de trabalho den-tro de uma forma clássica: vinte minutos de leitura, para uma discussão finalde cada mesa com três trabalhos. A APPOA participou por meio de seusrepresentantes: Ana Maria da Costa e Robson Pereira. Esse momento foiaberto aos interessados. No domingo, procedeu-se a um trabalho interno, apartir de reflexões propostas por cada instituição sobre o tema do enlaceentre analistas. Foi reservado a este momento a organização pelo dispositi-vo proposto para Convergência: o trabalho de cada instituição era apresenta-

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II DIREITOS AUTORAISA aprovação dos textos implica a permissão de publicação, sem ônus, nestaRevista. O autor continuará a deter os direitos autorais para futuras publicações.

III APRESENTAÇÃO DOS ORIGINAISOs textos devem ser apresentado0s em três vias, contendo:– Folha de rosto: título, nome e créditos do autor (em nota de rodapé), contendotítulos acadêmicos, publicações de livros, formação profissional, inserçãoinstitucional, endereço postal, e-mail, fone/fax; resumo (até 90 palavras); pala-vras-chaves (de 3 a 5 substantivos separados por ; ); abstract (versão em inglêsdo resumo); Keywords (versão em inglês das palavras-chave).– Corpo do texto: deverá conter título e ter no máximo 15 laudas (70 toques/ 25linhas); usar itálico para as palavras e/ou expressões em destaque; para ostítulos de obras referidas, aspas duplas.– Notas de rodapé: as notas referentes ao título e créditos do autor serão indicadaspor * e **, respectivamente; as demais, por algarismos arábicos ao longo dotexto.

IV REFERÊNCIAS E CITAÇÕESA referência a autores deverá ser feita no corpo do texto somente mencionando osobrenome (em caixa baixa), acrescido do ano da obra. No caso de autores cujoano do texto é relevante, colocá-lo antes do ano da edição utilizada.Ex: Freud [(1914) 1981].As citações textuais serão indicadas pelo uso de aspas duplas. As que possuí-rem menos de 5 linhas, deverão ser mantidas no corpo do texto. A partir de 5linhas, deverão aparecer em parágrafo recuado e separado, acrescidas do (au-tor, ano da edição, página).

V REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASLista das obras referidas ou citadas no texto. Deve vir no final, em ordem alfabé-tica pelo último nome do autor, conforme os modelos abaixo:

OBRA NA TOTALIDADEBLEICHMAR, Hugo. O narcisismo; estudo sobre a enunciação e a gramática

inconsciente. 2. ed. Porto Alegre : Artes Médicas, 1987.

REVISTA DA APPOA N. 19TEMA – BRASIL: DESCOBERTA INVENÇÃO

O tema do próximo número de nossa revista acompanha o do Con-gresso previsto para outubro, Brasil: Descoberta Invenção. Afinal, os 500anos que marcam a chegada dos portugueses às terras brasileiras produ-zem efeitos que não são alheios ao ofício do analista: ficção das origens,memória, esquecimento, trauma, identidade, alteridade, linguagem, guardamos vestígios do país colônia nos traços de nossa contemporaneidade. Convi-damos todos aqueles que se sintam engajados no tema a contribuir comnossa revista, dando continuidade à transmissão da psicanálise articuladacom a valorização dos determinantes de nossa língua e cultura. Confirma-seem ato, assim, aquilo que Freud enuncia em sua obra: a articulação entre odiscurso social e o sujeito psíquico, o engendramento do Eu a partir de suarelação ao Outro, sustentada no campo cultural. É nessa perspectiva que otema da colonização vem interessar à psicanálise, que empresta suas ferra-mentas conceituais para revolver o campo fértil desse debate, juntando-se àhistória, sociologia, antropologia, artes, literatura, para produzir redescobertasdo Brasil que permitam operar deslocamentos com respeito aos marcos quenos condicionam, numa reinvenção produtiva de nossa história.

Os textos com fins de publicação devem ser enviados até o dia 15 deagosto para apreciação da comissão editorial desta Revista, conforme nor-mas abaixo descritas.

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO NA REVISTA DA APPOAI APRECIAÇÃO PELO CONSELHO EDITORIALOs textos enviados para publicação serão apreciados pela comissão editorial daRevista e consultores ad hoc, quando se fizer necessário.Os autores serão notificados da aceitação ou não dos textos. Caso sejam ne-cessárias modificações, o autor será comunicado e encarregado de providenciá-las, devolvendo o texto no prazo estipulado na ocasião.Aprovado o artigo, o mesmo deverá ser enviado para a APPOA, aos cuidados daRevista, em disquete, acompanhado por uma cópia impressa e assinada peloautor, ou por e-mail.

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“DO SUPOSTO LIMITE DE TRATAR O REAL PELO SIMBÓLICO”

No dia 10 de junho, estivemos novamente reunidos para o semináriode Rodolpho Ruffino. Nesta ocasião, o eixo central do encontro foi o trabalhoem torno do Real, uma especificidade a qual os analistas são convocadosdiante da adolescência.

Em que medida a adolescência traz o Real à cena? Rodolpho Ruffinotrabalha esta questão à luz do caso do Homem dos Lobos e da observaçãoque Lacan teceu sobre o mesmo, ao afirmar que neste caso a estruturaneurótica “não faz dique” contra o retorno de uma instabilidade narcísica.Fazer o que Lacan nomeou “dique”, seria uma tarefa da operação adolescen-te. Ruffino refere que as operações fundantes do sujeito sempre deixam res-tos, sendo que, na adolescência, estes restos não inscritos retornam, edisto se trataria o Real. Para situar o Real na adolescência, retoma as estru-turas clínicas trabalhadas por Freud e aproxima a adolescência das neuro-ses traumáticas, sendo o traumático, aqui, o que não consegue inscrever-sesimbolicamente. Neste sentido, traz a noção de pulsionalidade sem repre-sentante e aponta que o trabalho adolescente seria, justamente, o de operaruma inscrição. Assim, o dique que uma neurose deveria fazer seria transfor-mar a pulsão em uma forma de inscrição.

Tomando a adolescência como um momento de emergência do Real,Ruffino levanta questões em torno da clínica com adolescentes. Nos traz anotícia do surgimento de uma “nova clínica” dentro do movimento lacanianopaulista, caracterizada por um estilo de intervenção no qual prevalece o Real.Sessões curtas, silêncio e atos. Uma clínica fundada na idéia de que os atosincidiriam onde o simbólico não pode chegar. A clínica com adolescentesinterroga este estilo de intervenção: como tratar o Real desde o Real? Comoseria possível construir, através do Real, uma inscrição simbólica disso queemerge e “faz queimar”? A proposta de Ruffino vai no sentido oposto: a dire-ção do trabalho seria tratar o Real pelo Simbólico.

LACAN, Jacques. O seminário. Livro 20. Mais ainda. Rio de Janeiro : J. Zahar, [s.d.].

PARTE DE OBRACALLIGARIS, Contardo. O grande casamenteiro. In: CALLIGARIS, C. et al. O laço

conjugal. Porto Alegre : Artes e Ofícios, 1994. p. 11-24.CHAUI, Marilena. Laços do desejo. In: NOVAES, Adauto (Org). O desejo. São

Paulo : Comp. das Letras, 1993. p. 21-9.FREUD, S. Teorías sexuales infantiles (1908) In: _____. Obras completas. 4. ed.

Madri : Biblioteca Nueva, 1981. v. 2.

ARTIGO DE PERIÓDICOCHEMAMA, Roland. Onde se inventa o Brasil? C. da APPOA, Porto Alegre, n. 71,

p. 12-20, ago. 1999.HASSOUN, J. Os três tempos da constituição do inconsciente. Revista da Asso-

ciação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, Artes e Ofícios, n. 14, p. 43-53, mar. 1998.

ARTIGO DE JORNALCARLE, Ricardo. O homem inventou a identidade feminina. Entrevista com Maria

Rita Kehl. Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 05 dez. 1998. Caderno Cultura, p. 4-5.

NESTROVSKI, Authur. Uma vida copiada: imprensa internacional reavalia me-mórias fictícias de Beinjamin Wilkomirski. Folha de São Paulo, São Paulo,11jul. 1999. Caderno Mais, p. 9.

REUNIÃO PREPARATÓRIA AO CONGRESSOBRASIL: DESCOBERTA INVENÇÃO

TRANSMISSÃO, PASSE E TRANSFERÊNCIANo dia 14 de julho, às 19 horas, na sede da APPOA, como a atividade

preparatória ao congresso deste ano, acontecerá o Colóquio “Transmissão,passe e tranferência”. Serão debatedores Alfredo Jerusalinsky e Ana MariaMedeiros da Costa.

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UM DEBATE COM JOSÉ AUGUSTO AVANCINI

Percebemos que, atualmente, muitas discussões parecem girar emtorno do fenômeno da globalização – cujas conseqüências seriam “exclusãosocial”, “perda de identidade nacional”, “disparidade de concentrações derenda”, etc. E, logo a seguir, é claro, vêm as reflexões sobre como encontrarsaídas para isso.

No dia 6 de junho, esse tema foi um dos pontos trabalhados peloprofessor José Augusto Avancini, através de algumas considerações sobrea obra de Sérgio Buarque de Holanda, “Raízes do Brasil”. Sugere esta leitu-ra, porque acredita que nos dá instrumentos teóricos para encarar aglobalização versus as entidades nacionais, ou regionalização, como umaforma equilibrada de pensar um projeto próprio para o Brasil. Para o profes-sor, “Raízes do Brasil” é um livro que pensa o Brasil olhando para o futuro,tentando desvendar o enigma do que seria este país.

Aponta que o tema sobre a questão da identidade já produziu muitosescritos, mas está sempre voltando – como o eterno retorno do recalcado –e circulando por diversas áreas. Assim, como este tema percorre o século,ele pergunta-se se é possível fazer um projeto de desenvolvimento autôno-mo, ou melhor, se somos capazes, enquanto nação, de propor um projetopróprio, dentro de um quadro de civilização que é o da sociedade Euro-norte-americana.

Segundo Avancini, essa é a grande discussão política que vai trans-correr a partir dos anos 20 até hoje, é claro, sempre sofrendo alterações.Para complementar sua afirmativa, o professor foi nos trazendo, com umavisão crítica de alguns momentos sofridos em nosso país, exemplos: “em1964, refuta-se a idéia de um desenvolvimento nacional autônomo e passa-se a falar em desenvolvimento nacional associado, o tripé Estado, capitalnacional e capital internacional, como ele refere. Como essa proposta vem afalir ao longo dos anos 80, um novo modelo é apresentado nas eleições de

O seminário seguiu discutindo as possibilidades de inscrição simbó-lica na adolescência. Falamos, mais uma vez, do trabalho (a profissão, aprodução de uma obra) como possibilidade de imprimir uma assinatura esustentar uma passagem ao público. Ruffino compreende o “público” comoum elemento que pode funcionar como objeto e, ao mesmo tempo, semblan-te de susposto saber. Neste sentido, um analista também está no lugar dopúblico, algo que se mostra claramente no cotidiano da clínica com adoles-centes.

A partir de uma questão trazida por Valéria Rilho, quanto à impossibi-lidade de inscrição no social em que algumas adolescências estão coloca-das, Ruffino abordou o tema da violência adolescente. Se vivemos numacondição de declínio da função paterna e se a pulsionalidade ressurge noreal, há muito o que se pensar sobre a pulsão agressiva na adolescência.Diz que somos movidos por esta pulsão, mas que a violência não existiacom esta mesma forma nas sociedades tradicionais, devido aos rituais desacrifício. Em torno desta questão, retomamos a discussão sobre o lugar doPai na cultura. Ruffino nos lembra que a condição de falta é que nos põe atrabalhar, sendo importante considerar o quanto o declínio da função paternana cultura tem nos interrogado e convocado a pensar o que é um Pai? Quaissuas versões? Como construí-las?

Nesta condição, interrogados e instigados pelas questões que RodolphoRuffino tem nos colocado, convidamos todos a participar do próximo encon-tro que está agendado para o dia 19 de agosto de 2000. Aproveitamos parainformar que o Seminário deve estender-se ao longo do ano, sendo que se-guiremos divulgando suas próximas datas.

Ana Laura Giongo Vaccaro

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SEÇÃO TEMÁTICA

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NOTÍCIAS

JORNADA DO PERCURSO DE ESCOLA III

Todos os percursos são marcados por etapas, por um princípio, portransformações e um fim. Organizando esta jornada, queremos marcar a fi-nalização desta trajetória da terceira turma do Percurso de Escola da APPOA.

Ao transitar por este percurso, cada um de nós desenha um caminho,deixa de si um rastro. Cada turma vai revelando, aos poucos, na diversidadede seus traços, sua pulsante fisionomia. E, a cada momento, percebe-se oquanto essa passagem pela instituição se faz instigante...

No desejo de revelar algo do que foi esta experiência, encontramosimpasses ao agrupar nossos trabalhos, a fim de organizar esta jornada. Nos-sos percursos são e foram distintos, nossos temas se mostraram rebeldesao conjunto. Exalamos, juntos, nossa descontinuidade. Surpreendemo-nos.E é desde esse efeito, num momento em que se questiona a continuidade,que falaremos nesta jornada.

Nesse intuito, convidamos todos a escutar os efeitos deste Percurso,em nome da terceira turma da APPOA. E interrogá-la...

PROGRAMASábado – 1o. de julho de 20009h – ABERTURA

* Triunfo: os traçados de uma história, as histórias de um traço.Tatiane Reis Vianna

* Saúde mental na rede pública: possibilidade de inserção psicanalítica?Márcia GoidanichCoordenador de mesa: Jaime Alberto Betts10h30min

* Envelhecimento: Indagações a partir da experiência com um grupo.Regina de Souza Silva

* Novos suportes da psicanálise: o acompanhamento terapêutico em questão.Simone Goulart KasperCoordenação de mesa: Rosane Monteiro Ramalho14h30min

* Os efeitos da palavra na constituição subjetiva.Maria Elisabeth da Silva Tubino

1989, de um lado, uma saída mais social-democrata, que tenta salvar essaherança de base nacional – encarnada na candidatura de Lula; e, de outro,um projeto sem nenhum tipo de vergonha em usufruir do grande capital finan-ceiro internacional- vigente até hoje”. E, ainda brinca conosco, dizendo quetivemos Fernando I, Fernando II, e está sendo gestado o Fernando III, com atentativa de imposição do parlamentarismo.

Além da visão crítica dos acontecimentos, trazidos brevemente nesteencontro, o professor nos faz viajar sobre o tempo, citando figuras da nossahistória como Mário Pedrosa, Lima Barreto, Fernão Lopes (fundador de nos-sa prosa), Joaquim Nabuco, Manoel Antônio de Almeida, Quintino Bocaiúva,Manoel Bonfim, Gilberto Freire, Caio Prado, Celso Furtado e muitos outrosescritores, economistas, historiadores e psicanalistas, como Otávio de Sou-za e Jurandir Freire.

Outro ponto interessante de sua exposição foi lembrar da recupera-ção do “Aleijadinho” e do barroco mineiro como um marco importante nanossa história, pois havia todo um movimento de quebrar a vergonha de serbrasileiro, na medida em que fomos o último país no Ocidente a abolir osistema da escravidão (1888). Além disso, quanto mais nos tornávamos umpovo mestiço – com as nascentes teorias racistas inspiradas em pensado-res europeus – mais aumentava a vergonha desta miscigenação. Portanto,era preciso superar esses entraves ideológicos, esse sentimento de inferio-ridade, essa perda absoluta de auto-estima social e coletiva.

Avancini trouxe vários momentos da nossa história, para ele, decisi-vos na construção de nossa identidade. Ao final, sugeriu a leitura de SérgioBuarque de Holanda para encontrarmos caminhos metodológicos e suges-tões temáticas e, por aí, pensar algum tipo de opção para nossa situaçãopresente.

Luzimar Stricher

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

* O autismo na clínica: movimentos e inscrições possíveis.Raquel Procknow Tavares

* Considerações sobre o trabalho de um adolescente.Ana Laura Giongo VaccaroCoordenador de mesa: Diana Myrian Linchtenstein Corso17h – ENCERRAMENTORosane Monteiro Ramalho17h30min – COQUETEL DE CONFRATERNIZAÇÃO

CARTEL DO INTERIOR 

No dia 21 de maio, realizou-se uma reunião do Cartel do Interior, emCanela, aproveitando o nosso Relendo Freud e conversando sobre a APPOA.Nessa oportunidade, tivemos notícias de duas jornadas preparatórias aoCongresso “Brasil: descoberta invenção”, as quais já aconteceram nointerior do RS: uma em Santa Maria e outra em Bento Gonçalves. Os cole-gas da APPOA que participaram destas jornadas destacaram o grande nú-mero de participantes e o interesse despertado pela temática do Congresso.

Igualmente, tivemos informações preliminares sobre as jornadas pre-paratórias do segundo semestre, a serem realizadas nas cidades de Ijuí eRio Grande. Em Rio Grande, ocorrerá no primeiro final de semana de setem-bro; e, em Ijuí, nos dias 06 e 07 de outubro. Nesta última, o título da jornadaserá “Subjetividade e Identidade”. Posteriormente serão divulgadas maioresinformações sobre estes eventos.

NOVAS REUNIÕESConvidamos todos os interessados para a próxima reunião do Cartel

do Interior, que será na APPOA, no dia 15 de julho, às 9h e 30min. Naocasião, a colega Silvia Carcuchinski, de São Gabriel, apresentará o traba-lho “Nós, entre laços da tradição”.

Contamos com a sua participação.Cartel do Interior

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JULHO, MÊS DO FUTEBOL

 Se o Brasil é o país do futebol, julho é um dos seus meses. Não sópelas festas juninas (outra das tradições populares), mas também porqueneste período, a cada quatro anos, acontece uma Copa do Mundo. E, sesomos “tetracampeões”, é porque nesta modalidade de esporte coletivo con-seguimos uma excelência de técnica e talento jamais alcançados em outroscampos.

Além disto, o crescimento não aconteceu sem traumas e, se aindaacreditamos na máxima de que a aprendizagem não prescinde do sofrimen-to, mais uma vez o futebol torna-se exemplar: Maracanã, 16 de julho de1950, data que marcou uma das grandes tragédias do futebol. Na única vezem que a Copa do Mundo foi jogada em território brasileiro, quando inaugurá-vamos o “maior estádio do mundo”, perdemos a final para o Uruguai. Barbo-sa, o goleiro, foi um dos personagens marcados pela derrota.

Para comentar as relações entre a história, o futebol e sua importân-cia na cultura do Brasil, programamos duas atividades, que também se in-cluem na preparação de nosso Congresso “Brasil: descoberta invenção”.

 FUTEBOL E SUA IMPORTÂNCIA NA CULTURA

 Dia 13 de julho, quinta-feira, às 20h e 30min – Cinema e FutebolExibição do Curta “Barbosa”, de Jorge Furtado.Convidado: Giba Assis Brasil, cineasta e jornalista Dia 25 de julho, terça-feira, 20h e 30minFutebol e CulturaConvidado: Rui Carlos Ostermann, jornalista e escritor

Local das atividades: sede da APPOAAberta a todos os interessados

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NOTÍCIAS

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Neste tempo (mais de um ano) do trabalho de preparação para o Con-gresso Brasil: descoberta invenção, podemos dizer que tivemosque operar também um redescobrimento: o do Brasil e de seus au-

tores. Para tanto, passamos pelo estudo de sua história, vista por diferentesângulos; assim como da profusão de expressões atuais que tanto nos im-pressionam e pressionam nossa prática. Nesta travessia/descoberta, temoscontado com ajuda e intercâmbios preciosos por parte de colegas psicana-listas, professores, historiadores, escritores, artistas, antropólogos, filóso-fos e jornalistas que, de diferentes maneiras, se fazem presentes. Seja com-parecendo pessoalmente à APPOA, seja enviando textos ou emitindo opini-ões. Cada um inventando formas diversas de enriquecer nossos debates eesclarecer (ou não) nossas tantas questões.

Esta Seção Temática é mais um passo neste percorrido. Este tempode compreender e laborar para o Congresso e para o Colóquio “Questõessobre o Outro”. Esperamos que os textos que seguem, assim como asobservações que eles suscitem, possam apresentar um recorte do momentoe auxiliar nas atividades do Cartel que se reúne em Porto Alegre, bem comonas trocas com colegas de outras cidades do Rio Grande do Sul e de diver-sos Estados do Brasil, sem esquecer dos amigos no exterior, em particularda AFI e do Cartel da América Latina, em Paris.

Há muito nos demos conta que no tema do Brasil, dos brasileiros e doOutro não há neutralidade ou isenção. Fazemos parte do campo discursivo edos sintomas que tentamos abordar. Daí nossa aposta que a psicanálise, aoreconhecer uma falta impossível de ser preenchida por qualquer objeto deconsumo ou saber isolado, venha aportar algumas contribuições, cujos efei-tos só serão significativos se conseguir articular-se com a produção de ou-tros saberes e sabores.

Ligia Gomes VíctoraRobson de Freitas Pereira

v

EXERCÍCIOS CLÍNICOS

Na continuidade do trabalho em “Exercícios Clínicos”, estaremos fa-zendo circular indagações em torno do tema da adolescência, como formade apresentação do “Programa de Pesquisa e Extensão: Adolescência eExperiências de Borda”, que UFRGS e APPOA estão desenvolvendo emparceria. Como abertura, tivemos a oportunidade de debater o filme “A ostrae o vento”, a partir de questões trazidas por Diana Corso e Maria ÂngelaBrasil. Num segundo momento, teremos:

08 de julho9h – Projeção do filme “Laranja Mecânica”11h – Debatedores: Ana Maria da Costa e Mário Corso

A escolha desses filmes diz respeito à apresentação das duas verten-tes que fazem borda na adolescência, exigindo um trabalho de transposição:a face do feminino (que aparece no primeiro filme), com sua saída extremadano delírio; a face do masculino e sua saída extremada no laço perverso (se-gundo filme).

A atividade acontecerá na sede da APPOA e a entrada é aberta aosassociados e participantes do ensino (vagas limitadas às acomodações).

Comissão de Ensino

MUDANÇA DE ENDEREÇOLucia Serrano Pereira informa seu novo e-mail: [email protected].

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com a opinião do soberano pagador; “El Dorado”, supervalorizava o desejo doouro e do lucro. E, de ilusões a esperanças decepcionadas, foi chamada,finalmente, “América” – o nome de um viajante maduro, Américo Vespúcio,ao qual sábios cartógrafos atribuíram um mérito usurpado.

Cipango, El Dorado, Novo Mundo, América – tais denominações soa-vam tanto como os cantos de sereias, quanto como os contos de epopéias,de pesadelos e de guerras, pois a Europa é, desde a mais antiga mitologia,feita de lendas de raptos, de partidas e despedidas sempre repetidas; umcontinente com o qual só se sonha, mesmo sobre uma base científica nova,com epopéias num cenário distante.

A descoberta da América em 1492, abre propriamente a era das con-quistas, a era do espaço e da geografia, a era, enfim, de nossa históriamoderna. O antigo mundo – que se concebia simplesmente como “o” mundo– amplia, contudo, diante de si, o espaço de seu poder, que será também oespaço da sua própria alteridade. Ele o nomeará “Novo Mundo”, e só consa-grará a ele sinfonias!2 Este Novo Mundo é o mesmo mundo antigo apanhadopela imagem do seu duplo, a imagem da conquista e do ouro, e a imagem doespaço simbólico que eles constituem juntos: o Paraíso. E foi aí que o pro-blema colocado para a Europa começou.

Não se pode nomear, a não ser por comparações com o já conhecido.Ora, segundo a lógica antiga, o conhecido era ou cristão ou pagão, ou civili-zado ou bárbaro, ou mesmo ou outro. “Nus, ferozes e antropófagos”3 – assimapareciam, então, de saída, esses “outros” que a consciência européia des-cobria no país de Drogeo ou nas margens do Orenoco. Eles eram maravilho-sos, monstruosos, admiráveis, espantosos, surpreendentes. Foi preciso

2 Como Dvorák: a Sinfonia do Novo Mundo (N. T.)3 Estes qualificativos encontram-se no relato de Zeno, navegador veneziano, publicado em1558 por seu descendente Nicolo. A viagem teria sido efetuada em 1380, e constituiria, apósa “descoberta” provável da América pelos Vikings nos séculos X-XI, uma outra “descober-ta” pré-colombiana. Hans Staden retomou este epíteto “nus, ferozes e antropófagos” emseu relato da viagem ao Brasil, publicado em 1557, e publicado em francês nas edições A.-M. Métailé (Paris, 1979), e em português pela ed. Dantes (Rio de Janeiro, 1998). (N. T.)

A EUROPA, NO ESPELHO DAS AMÉRICAS

Jacques Leenhardt1

Tradução de Ligia Víctora

AAmérica: uma imensidão de terra que há cinco séculos faz sonhar aEuropa. De norte a sul, quanto maior, múltipla e mais cheia de con-trastes ela é, mais ela tende a adquirir, através dos tempos, o estatu-

to misterioso de um símbolo no imaginário europeu.Quando a Europa antiga, tomando pouco a pouco consciência de si

mesma, teve necessidade de forjar seu “Outro”, ela inventou os bárbaros eos pagãos. Diferenças geográficas, culturais e religiosas serviram, cada umapor sua vez, para fixar os modelos de referência daquilo que não era nemgrego, nem civilizado, nem cristão. Em compensação, depois da Idade Mé-dia, dada a largada para a descoberta e a conquista do mundo, a Europa nãoencontrou nunca mais seu “Outro”: será consigo mesma que, em diferentesespelhos, ela terá que se defrontar. É por isso que, logo após a “descoberta”,a América cessou de pertencer ao sistema antigo de produção do imaginárioque pensa o mundo por oposições simples.

A América será uma Europa do outro lado do Oceano Atlântico, as-sim que os limites do mare nostrum tiverem sido ultrapassados.

Esta terra, que Colombo acabara de abordar, que ele “inventara” paraa Coroa espanhola – era preciso definí-la, descrevê-la, desenhá-la. E, princi-palmente, era preciso nomeá-la! Ela se revelou, então, um continente ino-minável. “Índias Ocidentais” propôs Colombo, ainda perdido no seu sonhodas especiarias; “Hispaniola”, sugeriu o espírito de reverência preocupado

LEENHARDT, J. A Europa, no espelho...

1 Jacques Leenhardt, Professor da Ecole des Hautes Etudes en SciencesSociales (EHESS), Crítico francês de artes plásticas e presidente daAssociação Internacional de Críticos de Arte. Publicou inúmeros livros,entre os quais sublinhamos “No jardim dos mal-entendidos” (Actes Sud,Paris) e “As Américas Latinas na França” (Gallimard, Paris).

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para o mundo. Não é, então, por acaso, que, a cada momento de sua expan-são, a Europa lia aí, ao mesmo tempo que a imagem de sua honra e de suaglória – imagem esta de seu vigor e de seu sucesso, uma outra e maisescura profecia, a de sua dissolução, da perda de sua identidade autóctonae, logo, a de sua morte.

Não se pode deixar de se sentir chocado, a este respeito, pelosincronismo e, resumindo, pela complementariedade simbólica que atestaessa história, entre a “reconquista” do território ibérico pelos Reis Católicose a aventura americana. 1492 é, com certeza, o ano da abertura sobre afachada atlântica, pela qual fica rompido um milênio de cultura mediterrânea,e é também o momento em que a catolicidade espanhola, arrancando Gra-nada dos mouros e expulsando os judeus, entra em um período de intolerân-cia e de coesão ideológica, da qual a Inquisição, revivificada a partir de 1477,é o mais célebre sintoma.

Quantos textos têm sublinhado que a expansão da Espanha para asAméricas foi, ao mesmo tempo, a causa de seu declínio? Quantas prega-ções da Nova-Inglaterra organizaram a resistência contra o desejo de partirpara o mar, que acometia os colonos apenas chegados à terra prometida?Se a América dos jesuítas do Paraguai e da Nova-Inglaterra, da França An-tártica e do Canadá, foi celebrada como terra onde poderia renascer de si areligião dos ancestrais, já pervertida pela evolução ideológica e social docontinente europeu – bem rápido, porém, esta imagem do hortus conclusus,jardim de todas as utopias, se apagou novamente, conforme a mesma lógicaque fizera descobrir o continente: a lógica da expansão e da abertura.

Quando, em pleno período do desenvolvimento colonialista europeu,Oswald Spengler profetiza O Declínio do Ocidente, ele não faz outra coisaque retomar a idéia de que a sobrevivência de uma cultura depende de suacapacidade de se redobrar sobre si mesma. A abertura colonial e imperialis-ta sobre o mundo, significa para Spengler, o fim da cultura cristã ocidental,sua transformação, principalmente, naquilo que chamará uma “civilização”, aimposição planetária não de uma alma (princípio cultural), mas de uma téc-nica (princípio civilizacional) de vocação universal.

séculos, para que esta estranheza, sumária e maniqueísta – com a qual oeuropeu se ressentira de início, ao olhar aqueles que ele nomeou, de norte asul, “índios” – se convertesse em uma verdadeira alteridade.

De uma “estranheza” em uma “estrangeiridade” mais difusa e comple-xa, como a que marca hoje, pela consciência européia, todos os habitantesdo continente americano. A hagiografia dos descobridores, invasores, mas-sacradores, colonos e pregadores, porém, não conseguiu jamais fazer comque fossem esquecidas as inacreditáveis violências e crueldades cometi-das, e nem tampouco a cegueira trágica, com a qual compactuou a maiorparte dos protagonistas da aventura. O que nos interessa aqui é, principal-mente, a pesada chapa de silêncio que recobriu todo o drama, e o traumatismoque esta ocultação até hoje faz sofrer a consciência européia e a latino-americana. Os novos habitantes da América do Norte teriam de alguma for-ma resolvido o problema pelas armas, a ponto de não terem jamais que sedefrontar de novo na ordem do simbólico, salvo algumas exceções que voltae meia ainda retornam ao cenário atual.

Pois, na verdade, a descoberta da América, tanto o Norte como doSul, sela o próprio destino da Europa como consciência colonial e comoconsciência de exploração, na qual a expansão territorial é, ao mesmo tem-po, uma necessidade econômica, provocada pelas ambições e pela evolu-ção demográfica, assim como por uma ética catequista e conquistadora,religiosa e imperialista. Esta dualidade trabalha a consciência européia emsua tentativa de dar uma missão àquilo que não é senão uma resposta auma necessidade, e que tenta fundar juridicamente o que é uma lógica deinteresses. E, contudo, ao mesmo tempo, a Europa desenvolve uma civiliza-ção cuja característica estará de acordo, justamente, com aquela busca dejustificativa: o universalismo. De Montaigne dos Direitos do Homem, passan-do por Las Casas e por Montesquieu, elabora-se a idéia de um valor universaldo ser humano como representação ideológica, nem sempre autojustificatória,da tendência profunda da consciência européia de se afastar de suas praiase ocupar o espaço planetário.

Falando em tendências, é preciso evocar aqui o debate violento quesuscitaram as numerosas resistências na própria Europa, a esta abertura

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beram a relação com sua Europa originária segundo um mesmo esquemaambivalente. Desde o escrivão Sarmiento e a jovem república Argentina, aEuropa era percebida nessa primeira metade do século XIX, sob duas facestão emblemáticas quanto contrárias. Há a Europa conquistadora, cujo pas-sado espanhol é doravante apagado, mas que encarna a Inglaterra da Revo-lução Industrial, e há a Europa pensante e liberal, aquela que dá o exemploàs jovens nações em crise de emancipação e onde sopra o espírito das‘Luzes’, de 1789 e de Napoleão. A França se beneficia, a este respeito, comum privilégio único, o qual Sarmiento não será o único a reconhecer, mesmoque ele se queixasse das infidelidades do governo de Louis-Philippe paracom sua causa. A França existe, independentemente de seu poder, comoum ideal de generosidade e liberalidade. Esta existência reforça a possibili-dade de dissociar a França intelectual e cultural, da França do governo, eesta dualidade constitui, precisamente, um dos planos essenciais da ambi-valência.

E isso vale, de alguma forma, para toda Europa. É, por exemplo, refe-rindo-se a este contraste, por mais ilusório que muitas vezes ele seja, queRuben Dario poderá falar de uma Europa “que tem Londres por braço seculare Paris por alma”.

A dupla linguagem da força e do ideal, da utopia e do benefício, quenutre o olhar que a Europa deita sobre sua “invenção” americana, se voltasobre ela mesma, neste jogo de espelhos, e alimenta, por sua vez, a con-cepção que fazem de si esses filhos aventureiros, pródigos e nostálgicos.De uma relação tão estreita e complexa, só poderia nascer um diálogo abun-dante e perene, que não deixaria de fazer efeitos sobre a produção da litera-tura, da filosofia e até sobre a reflexão econômica e social.

O país legendário das Hespérides, este paraíso terrestre em busca doqual partiram viajantes e missionários, tornou-se assim o fermento para umainterrogação sobre si mesmo, que não abandonaria jamais a consciênciacrítica européia. Pelo menos enquanto que ela se mantiver fiel àsambivalências que a fundaram e que até hoje a impulsionam.

Isso porque a técnica é, em si, mais universal do que a cultura – ela asucede, ao mesmo tempo, como apogeu de um movimento vital expansionistae como catástrofe, já que ao perder sua alma, a Europa está condenada aperder sua identidade e, com isso, a fonte mesmo de seu poder. Esta dialéticado espírito e da técnica, da clausura espiritual e da abertura pragmática –embora gerada na Igreja Católica entre meditação monástica e espírito con-quistador jesuítico, se alimenta durante cinco séculos na fonte americana.

Nessa introspecção dolorosamente contraditória da Europa, o estatu-to particular de que goza a América deve-se ao fato, entre outros, de que aspopulações autóctonas tendo sido dizimadas, recalcadas ou oprimidas, en-tão a Europa se encontrou face a face consigo mesma, dos dois lados doAtlântico. Contrariamente ao que a África ou o Oriente puderam lhe oferecercomo reflexão, o jogo de espelhos que a América proporciona tem este par-ticular: a confrontação, simultaneamente, com o Outro e consigo mesma, e,até, a confrontação com sua própria alteridade.

Nesse espelho deformante-deformado, o espírito europeu enfrenta oque de mais profundo o agita: a impossível conciliação entre o espírito utopistae os interesses imediatos. A negociação desta contradição, que infecta ealimenta toda nossa tradição, virá a se cristalizar preferencialmente no ‘alter-ego’ americano. Afinal, essas terras e esses povos não serão, ao nossoolhar, ao mesmo tempo as imagens do paraíso e do inferno, das bandeirasde liberdade e de opressão, de modernidade e de barbárie arcaica? Nossoimaginário se formou assim, carregado de figuras bífidas, onde cultura eselvageria se disputam confusamente, sem que seja possível de fazer a se-paração entre o “índio bom selvagem” e o canibal (termo parido por deforma-ção do termo Caribe, caraíba), ou, mais perto de nós, entre o ‘Yankee’ demo-crata e o ‘cow-boy’ primitivo do oeste. A Europa lê o grande livro das Améri-cas conforme a dualidade dos modelos de natureza e de civilização, e ali-menta esta leitura com contrastes surpreendentes que ela descobre, ape-nas velados – e por preocupação de que pudor? Na coexistência de Brasíliae das favelas, de Wall Street e do Bronx.

Não foi sem razão, portanto, que os americanos, por sua vez, conce-

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nhecido, o imaginário que lhe dá forma e matéria é produto de umaaliança entre bens espirituais e profanos em que, à noção de um mun-do sem pecado, misturam-se a ambição por riquezas – ouro fácil à florda terra, minas opulentas de pedras preciosas – e devaneios de êxta-ses sensuais inusitados”.Certamente, muitos dos relatos de viagem2 sobre a nova terra – entre

os quais podem ser ressaltados os livros franceses Singularidades da Fran-ça Antártica3, do “cosmógrafo do rei” André Thevet (1557); Viagem à terra doBrasil, de Jean de Léry (1578); e Sobre os canibais, de Michel de Montaigne(1580) – tinham a intenção de provar à corte e sobretudo ao rei (Henrique II)que os investimentos com vistas à colonização do Brasil eram compensató-rios, o que fazia com que os aspectos “singulares”4 fossem ressaltados, dan-do idéia da perspectiva a partir da qual o “novo mundo” vai ser observado.Sobre a terra, seu exotismo e as vantagens de sua exploração, os três auto-res concordam, embora tenham divergências radicais – principalmente osdois últimos com relação ao primeiro – em outros aspectos, como, por exem-plo, a forma de ver o canibalismo dos tupinambás e a aceitação do outro(índio) em sua diversidade.

O índio como “o bom selvagem” é o mito fundador de toda a literaturaromântica indianista e nacionalista, que teve em José de Alencar, com Irace-ma (1857) e O guarani (1865), um de seus maiores representantes. Colocar,forçosamente, o índio brasileiro na posição de “bom selvagem” cumpriu, na

2 As narrativas de viagens, desde o final da Idade Média, com as fantásticas viagens doveneziano Marco Pólo pelo Oriente, aliavam fantasia e realidade, tornando tênue a fronteiraentre o real e o imaginário.3 França Antártica era o nome do projeto francês a ser construído no Brasil, mais precisa-mente onde hoje se encontra a baía da Guanabara (RJ), sob a coordenação geral do vice-rei Nicolau D. de Villegagnon, projeto esse que fracassou plenamente, em 1560, com aexpulsão dos franceses por Mem de Sá. A Missão esteve no litoral fluminense no curtoperíodo de 10 de novembro de 1555 até 11 de março de 1560.4 Termo utilizado por Thevet (1557), que remete ao caráter raro e excepcional.

“O PARAÍSO NÃO É BEM AQUI”

Carmen Backes

Desde o século IX, a imaginação e a cartografia européias povoavam ooceano Atlântico – o “Mar Tenebroso” – de inúmeras ilhas. Contudo,no ano de 1325 o cartógrafo genovês Angel Dalorto (ou Angelin

Dell’Orto) desenhou, em sua carta de navegação, uma ilha que ficava a oesteda costa sul da Irlanda. Para esse cartógrafo, era ali o lugar que as tradiçõesirlandesas descreviam como o “paraíso na terra”, onde havia abundância,clima ameno e igualdade entre seus habitantes. Curiosamente, no mapa deDalorto, essa ilha chamava-se Ilha do Brasil1. Passados quase setecentosanos, sabe-se que o Brasil não é uma ilha e que, talvez, o paraíso não sejabem aqui.

O Novo Mundo como o encontro do Éden era o que prescreviam osmitos e mapas da época. E a nova terra descoberta (ou “achada”) oferece-seprontamente à exploração, possibilita o acesso a êxtases e prazeres ina-cessíveis no cotidiano dos navegadores. Se o paraíso era aqui, a rapinagem,por outro lado, autorizava a levar tudo de bom que aqui havia, ou seja, acabarcom o paraíso, porque, contraditoriamente, “isto não era terra para se viver”,embora se insistisse na versão do encontro do paraíso, versão essa que foilargamente difundida e fica bem clara nesta passagem de Souza (1994, p.92):

“Desde o século IV, começou a se formar na Europa um mito queversava sobre a existência de um Paraíso Terrestre. Miragem projeta-da numa localidade geográfica real, recôndita no mundo ainda desco-

1 No chamado Atlas Medici, de 1351, há duas ilhas com o mesmo nome. Uma delas estásituada na mesma posição, e a outra, na altura do Cabo de São Vicente. Além dessas, osirmãos Pizigani (Francesco e Marco), cartógrafos venezianos, em sua carta de navegar, de1367, desenharam uma terceira ilha na latitude da Bretanha. A partir de então, outros mapaspassaram a representar as ilhas, nos séculos XIV e XV. Inclusive depois do descobrimentoda América e do Brasil, os cartógrafos seguiram representando-as, até que Thomas Jefferyssubstituiu-as por um penhasco, o Brasil Rock, perdido na imensidão do oceano.

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isso, para fornecer uma certa imagem de que precisava da proteção que areligião oferecia. A terceira e última versão é no capítulo que pensa a etniabrasileira. Não seria muito bom, segundo os pensadores, que a raça brasilei-ra fosse formada pelos portugueses, negros e índios selvagens, nemtampouco por portugueses, negros e índios como inocentes crianças. Apa-rece aí um novo papel destinado a ser ocupado pelo índio, que é o de corajo-so, altivo, amante da liberdade.

A frase da carta de Caminha mais difundida no Brasil é: “... a terra emsi é de muito bons ares. (...) As águas são muitas e infindas. E em talmaneira é graciosa que, querendo aproveitá-la, tudo dará nela, por causa daságuas que tem”.(Castro, 1996, p.97) Ela está ligada, diretamente, à versãodo paraíso.

Também é preciso concordar que a carta de Caminha fixou as primei-ras imagens do “bom selvagem”. Entretanto, há passagens, ainda que nãotão enfáticas, no mesmo texto, que estão longe de ratificar esse mito. Logoque lançaram âncoras no litoral brasileiro, “todos os capitães das naus vie-ram à nau-capitânea, onde falaram entre si. O Capitão-mor mandou que NicolauCoelho desembarcasse em terra com um batel e fosse inspecionar aquelerio. (...) Todos os habitantes daquela nova terra ‘traziam nas mãos arcos esetas. Vinham todos rijamente em direção ao batel’”. (Castro, 1996, p.77) (ogrifo é nosso)

Nicolau Coelho foi, então, designado para ser o primeiro a aproximar-se e, sem descer do barco, jogou à praia um gorro vermelho, um sombreiropreto e a carapuça de linho que usava na própria cabeça. Mais tarde, outrosanimaram-se a descer em terra. Porém, nos dez dias que a esquadra cabralinapermaneceu no litoral brasileiro, em nenhum momento algum integrante datripulação de qualquer uma das embarcações adentrou no dito paraíso –atreviam-se a chegar somente até a praia e sempre “armados” (Castro, 1996,p.86), e sempre, igualmente, com alguns “dando guarda” (Castro, 1996, p.91).Nem mesmo Cabral, o comandante, a quem, supostamente, seria destinadoo privilégio de ser o primeiro a entrar, quis aventurar-se.

“À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel, com todos nós e com os

época, uma função que talvez viesse a compensar, na supervalorização doregional e do natural, a situação de atraso da nação brasileira. Tambématenderia aos preceitos ingênuos que localizavam, no Brasil, a Terra SemMal, descoberta justamente no alvor do ano 1500 (números redondos, bemao gosto milenarista) e que deveria, necessariamente, ser colocada como oÉden, na esperança do fim iminente de todo o mal reinante na Terra e dainstauração de um outro tempo e de um outro mundo perfeitos, anunciadosno livro bíblico do Apocalipse.

Esse mito também serviu de base para que, durante os dois séculossubseqüentes, a filosofia defendesse, com veemência, a superioridade do“homem natural” sobre o civilizado. Tudo foi feito para que assim se desse.Aquilo que o Éden poderia ter de decepcionante, parece ter sido cuidadosa-mente evitado na historiografia brasileira. Bueno (1998) mesmo informa que,para além do impacto que a existência de “uma ilha paradisíaca” em meio aum imenso oceano poderia provocar numa tripulação intensamente mareada,depois de 44 dias e 7 mil quilômetros dentro da água, o “achamento” doBrasil não iria revestir-se de maior importância – pelo menos naquele mo-mento e nas três décadas seguintes –, tanto que nem fez com que Cabraldesistisse de seu destino, que era a chegada às Índias. As índias daqui,“moças muito novas e muito gentis, com cabelos muito pretos e compridos,caídos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tãolimpas das cabeleiras...” (Castro, 1996, p.82), não sobrepujaram as cheiro-sas especiarias e as sedas de lá.

Interessante acrescentar as observações feitas por Rocha (1995) aoanalisar a função de discursos etnocêntricos, muitas vezes presentes emlivros didáticos. Ele diz que os livros carregam um valor de autoridade, algocomo o lugar da verdade. Nesse sentido, apreende três diferentes versões doíndio brasileiro, bem de acordo com as idéias vigentes em cada época. Oprimeiro papel representado pelo índio dá-se por volta do descobrimento, dosprimeiros relatos de viagem, onde é tido como selvagem, primitivo, antropófa-go. Essa visão talvez atendesse ao interesse de mostrar como os coloniza-dores eram superiores em sua civilidade. A segunda versão é relativa aoperíodo catequista: ali o índio é criança, inocente, infantil, o bom selvagem;

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era uma prática corrente na conquista da costa africana pelos lusos? A úni-ca diferença que se fazia notar, era que os nativos africanos, que tambémandavam nus, eram de pele escura. Portanto, não era a primeira vez que osportugueses deparavam-se com gente desnuda, mas era a primeira vez quetais homens não eram negros, o que os aproximava, no tom da pele, aosdescobridores.

Voltando ao teor da carta, é evidente que também houve momentos de“desconfiada” convivência, como a do último dia, em que a esquadra perma-neceu ancorada nas costas brasileiras e os lusos desceram à praia paraapanhar mais lenha e mais água, e foram ajudados por uma pequena multi-dão de cerca de 400 a 450 nativos, pela primeira vez inteiramente desarma-dos e andando “já mais mansos e seguros entre nós do que nós entre eles”(Castro, 1996, p.93) (o grifo é nosso).

Por que os índios foram exterminados, se eram tão bons, tão ingênu-os? Souza (1994) pensa essa questão a partir do racismo e da pedagogia.Razões racistas por eles serem, evidentemente, de uma raça, não só dife-rente, como também desconhecida. Quanto ao aspecto pedagógico, esseautor propõe analisá-lo a partir da tentativa de redução do diferente ao mes-mo, ou seja, uma estratégia de dominar o estranho. Estratégia que não teriadado certo, optando-se então pelo extermínio? Arendt (apud Souza, 1994,p.143) demonstra como o sentimento diante do exótico pode, facilmente,resvalar para o ódio racista.

E a história das entradas e bandeiras? Embora para Paulo Prado, noseu livro Retrato do Brasil as empreitadas colonizadoras descritas comoentradas e bandeiras – que se encaminhavam do litoral para o interior e quetinham em mira a caça ao índio e a procura de ouro e pedras preciosas, alémda expansão territorialista – façam parte do capítulo por ele intitulado de “Acobiça”, ainda assim, não podem, de forma nenhuma, ser tomadas como umpiquenique no paraíso. Muito ao contrário: com muita freqüência, os bandei-rantes eram mortos por flechadas, corriam outros riscos de vida, além desofrerem fome, sede e muito trabalho, quando não batiam em retirada semnada conseguir.

Nossos mitos fundadores podem tomar várias versões e acabam pro-

outros capitães em seus batéis, a folgar pela baía, defronte à praia.Mas ninguém desceu em terra, porque o Capitão assim o ordenou,apesar da praia se apresentar deserta. Somente desceu-se (...) numilhéu grande situado na baía, o qual com baixa-maré fica muito vazio.Apesar de tudo, é por todas as partes cercada de água, de sorte queninguém pode ir até lá a não ser de barco ou a nado”.(Castro, 1996,p.83) (o grifo é nosso)A pena – e não privilégio – de “desbravar o paraíso” foi destinada aos

dois degredados que acompanhavam a tripulação. Foi-lhes dada a incum-bência de permanecerem uma noite no interior da floresta, em companhia deseus habitantes, para “lá andar com eles e aprender os seus usos e costu-mes” (Castro, 1996, p.81), e no dia seguinte, e tão somente no dia seguinte,descrever para o capitão-mor os hábitos daquela gente diferente.

A carta do “Piloto Anônimo”, que também acompanhava a esquadra eera encarregado, juntamente com Caminha, da descrição da viagem, contaque Cabral determinou que aqui fossem deixados “dois homens degredadose condenados à morte, que vinham na dita armada para esse fim (...) osquais começaram a chorar” (Castro, 1996, p.102-103) (o grifo é nosso). Tal-vez tivessem preferido serem jogados aos tubarões, durante a viagem, portratar-se de criaturas já presentes no imaginário, ao contrário dos heregesindianos. Que paraíso é este: um mato fechado, cheio de homens pelados ebichos de toda a espécie!? Não havia colorido algum – de penas exuberantes– que fizesse com que a pena dos degredados fosse amenizada.

Em vez de os dois degredados permanecerem na terra nova, foi suge-rido ao capitão-mor que levasse consigo alguns “exemplares daquela gentediferente”, sugestão essa que Cabral rejeitou, dizendo que era necessárioque “cuidássemos de não tomar ninguém aqui à força, nem de fazer escân-dalos, mas sim, para que desta maneira fosse possível amansá-los e apaziguá-los”. (Castro, 1996, p.85) (o grifo é nosso). Nem tudo era sensualidade e pazno paraíso...

Por que Cabral teria tomado tanto cuidado em não levar à força ne-nhum exemplar dos autóctones para mostrar ao rei, na medida em que essa

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“O QUE PRODUZ UMA NAÇÃO?” NOTAS QUESTÕESPARA UM CONGRESSO

Carlos Henrique Kessler

Embora próximo ao nosso Congresso (marcado para o final de outu-bro), ainda não teria um texto acabado a propor. O que, sim, possotrazer neste momento são as reflexões, interrogações e inquieta-

ções, ainda em aberto, que tenho colhido e produzido em função de minhaparticipação no trabalho do Cartel Preparatório. Não se trata de qualquertentativa de um relato com pretensões de que seja equilibrado, neutro e com-pleto. Mas que, talvez, a partir desta perspectiva particular, possa contribuirpara encaminhar a interlocução com os que, embora se interessem pelotema, não tem conseguido acompanhar o trabalho que temos feito na sededa Instituição. Bem como, para dar conta de efeitos produzidos pelo anda-mento do Cartel.

Primeiro, uma constatação: o Congresso propõe um tema ambicioso,a rigor, trabalho para muitos anos. Esgotar o tema “Brasil” soa excessivo,inadequado até. Fazer um percurso dentro do tema, inscrever eventualmentealgum traço, parece mais modesto, viável e adequado, embora não eliminede qualquer forma a dificuldade da tarefa. Como comentamos em nossoencontro “Relendo Freud e conversando sobre a APPOA”, realizado em Ca-nela, “estamos dentro” do que esse tema implica, logo, nossa posição torna-se ainda mais delicada (daí inclusive a oportunidade do que Liliane Fröemminglançou: caso nos perguntássemos – assim como Freud propôs que Moiséspoderia não ser judeu – e se não fôssemos brasileiros?).

O que produz uma nação? Lembramos, ainda em Canela, que povospodem se fazer a partir de mitos de pais fundadores: Moisés; Rômulo e Re-mo... Qual seria o nosso? A fábula das três raças?

Poderia ser também por um projeto/ideal comum: Liberdade, Igualda-de e Fraternidade; Liberdade e Democracia; A América para os America-nos...

vduzindo narrativas que inscrevem e produzem o Brasil a partir do quadrodiscursivo de seus tempos e contextos. Isso fica demonstrado pela releituraque aqui propusemos da carta de Pero Vaz de Caminha. Assim, pudemosver que muito se fez para que, na travessia para os 1500, o “achamento” doBrasil fosse colocado como o encontro com o Éden. Qual a prescrição queestaria destinada a ele no novo milênio?

BIBLIOGRAFIAARENDT, Hanna. Origens do totalitarismo. São Paulo : Cia. das Letras, 1989.BUENO, Eduardo. A viagem do descobrimento : a verdadeira história da expedi-

ção de Cabral. Rio de Janeiro : Objetiva, 1998. v. 1.CASTRO, Sílvio. A carta de Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre : L&PM, 1997.PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. São Paulo : Cia. das Letras, 1998.ROCHA, Everardo. O que é etnocentrismo. São Paulo : Brasiliense, 1995.SOUZA, Octavio. Fantasia de Brasil. São Paulo : Escuta, 1994. 

  

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escravagista, segundo Contardo Calligaris, os norte-americanos estariam emmelhor posição, pois, por não se pautarem por uma ilusão de democracia ra-cial, a explicitação do conflito ao menos dá margem para algum espaço deelaboração.

Podemos aproveitar, então, para, lembrar de “Hello Brasil!...” (textorediscutido recentemente), que trouxe, na época de sua publicação, umagenuína interpretação, relativa ao freqüente sentimento de desvalia com onacional-brasileiro. No diálogo com o livro de Contardo, foi produzido (e igual-mente retomado no cartel) “Fantasia de Brasil”, em que Octávio Souza apon-ta para o essencial sobre a tão buscada “identidade nacional”: falar a partirdo lugar; não ficar na infrutífera busca de uma delimitação do que seria estaidentidade. Caso contrário, estaríamos em busca de uma espécie de traçounário do Brasil. Como destacou Lacan, este opera, mas é inencontrável.Por sinal, Stuart Hall, teórico dos “estudos culturais” – e que é inglês –caracteriza as identidades nacionais como sendo identidades imaginadas.Às voltas com o que poderia configurar uma delimitação da “inglesidade”,nos alerta que isso não é igualmente nada claro ou definido. Portanto, essadúvida não é monopólio brasileiro.

Michel Mafesoli, também lembrado no cartel, destacaria o que enten-de ser a capacidade de, no Brasil, cada um poder ser o que é, sem aquiloque chama de jacobinismo francês, que defenderia a homogeneização dacomunidade. Portanto, no Brasil, não haveria pressão em favor da uniformi-zação da sociedade, como na Europa. E pergunta-nos: o quanto o brasileirovê-se às voltas com essa suposta demanda européia de uniformização?

Alfredo Jerusalinsky aponta a interessante hipótese de lidarmos compais, plurais, mais de um. No recente fim de semana de trabalho em Canela,surgia a questão do Politeísmo – Monoteísmo. Então, por esta via é queentre nós caberia o Sincretismo?

Também podemos tecer algumas considerações sobre as fronteirasexternas. Seria, conseqüentemente, então por suportarmos melhor os dife-rentes pais, as diferentes referências, que nós (ao menos no sul) consegui-mos conversar razoavelmento com nossos vizinhos de língua espanhola,enquanto que para estes o Português não parece assim tão claro? E, porque

Poderíamos pensar talvez na necessidade de uma grande feridanarcísica compartilhada? Povos que tiveram traumas ou mesmo derrotas,lutas internas. Bem, passamos por isso, embora sem que repercutam muitoos registros que existem, por exemplo, “Os sertões”. Ou ainda, faltaria umaferida a curar, tipo o que as derrotas em guerras possam ter produzido emdiferentes povos?

No transcorrer de minha participação no Cartel, a primeira questãoque surgiu, como se vê, é sobre o que faria do Brasil, Brasil (como colocaSchwartz), ou ainda, como ousou abordar a colega Carmen Backes, “O queé ser brasileiro?”. Pergunta inevitável. Não nos esquivamos dela, mesmocientes – como poderemos ver adiante – de que ela seria por vários motivossem resposta conclusiva. E, assim, ela também foi formulada aos diversosinterlocutores que foram convidados às nossas discussões.

Nesse sentido, Sandra Pesavento, embora coloque que a rigor aindaestamos para nos constituir enquanto nação, refere a trilogia dos Livros que,na década de 30, diz-se, “inventaram o Brasil”: Raízes do Brasil – SérgioBuarque de Hollanda; Casa grande e senzala – Gilberto Freire; A formaçãodo Brasil contemporâneo – Caio Prado Jr.

Já Décio Freitas destaca haver uma tendência ao amalgamento (sejaaqui, seja na África) dos Portugueses, que faziam acordos e mesmo uniõesconjugais com os nativos, levando ao importante efeito da miscigenação. Aocontrário da posição de antagonismo, cisão de anglo-saxões (Ex: EUA, Áfri-ca do Sul), aí incluídos os Holandeses. Igualmente, não cansa de lembrar: 4/5 de nossa história se passou sob um sistema escravagista. Há aqui umatomada de consciência que seria necessária, uma vez que não se apagamtais efeitos de uma hora para outra. Destaca a contribuição de Gilberto Freyre,ao apontar como sendo o negro fundamental no nosso processo civilizador.E também aos problemas que essa história traz para uma ética do trabalho.O ideal seria poder viver sem trabalhar. Isso é o traço que restaria de umtempo em que o trabalho era para ser feito pelos escravos. O Senhor, man-da, é servido. Curiosamente, diríamos, em algumas regiões como as deimigração mais recente, que não foram marcadas por esta experiênciaescravagista, efetivamente não parece ser assim. Quanto a experiência

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– assim chamada por Cristopher Lash – “Rebelião das Elites” transnacionais,não haveria sentido em se pensar um congresso sobre o nacional? Estaria oBrasil (e o estado nacional enquanto tal) sob o risco de extinção? Ou, aocontrário, seria o Brasil, país da pulverização das referências, das leis que“pegam ou não”, do jeitinho, uma antecipação do futuro do mundo pós-mo-derno, a já difundida “brasilização” do mundo sendo apenas questão de tem-po?

Sobre o Colóquio, uma observação apenas me ocorre, articulando coma questão brasileira. De uma certa forma, poderíamos ser tomados como um‘efeito europeu’ (considerando que estes vieram para cá, se impuseram aosíndios e, além disso, trouxeram à força os africanos). O “nosso Outro” está,então, originalmente amarrado por esta via. Porém, uma questão que talvezinteresse tanto a nós quanto aos europeus, neste momento, adviria da con-sideração de que o mundo tem sofrido muitas inflexões neste século que orafinda, e é um mundo cada vez mais americano (novo mundo), mesmo quepreponderantemente do norte. Então, em relação a este novo eixo, que severifica na influência econômica, militar, científica, cultural (ao que, diga-sede passagem, Freud mesmo já não era indiferente)..., por aí penso que te-mos muito a debater.

será que há uma demanda na América hispânica de uma integração Latino-Americana? Seja de psicanalistas ou não. Sobre isso, parece que os brasi-leiros não estão tão implicados, ou ao menos não se colocam da mesmaforma a questão.

E quanto as fronteiras internas e as diferenças regionais: Luis AugustoFischer destaca que é só no sul do Brasil que se produziu um texto épico (“Otempo e o vento”), aliás, desconsiderado em recente polêmica por literatospaulistas, que só enxergariam representatividade literária no regional nordes-tino.

Apesar do indefinido da resposta à questão da identidade, é certo quenos sentimos e nos percebemos (qualquer um, independente de corresponderou não aos estereótipos – seja o do carioca “malandro”, o do gaúcho debombachas, etc) como brasileiros, independente dos olhos eventualmentepuxados, cabelos loiros, pele clara ou escura; jeito mais ou menos extrover-tido; quer se goste de sambar e/ou de ler; de futebol e/ou de xadrez... Háesta convicção inquestionável – constitutiva até – o que sustentaria a interro-gação de um eventual fator articulador para os tão diferentes sujeitos aquiimplicados.

Ainda algumas questões mais: sobre traços/heranças Portuguesa/Ibérica. Seria o famoso jeitinho brasileiro uma espécie de praga portuguesa?Ora, os portugueses disseram que chegaram aqui “sem querer”, mas issonão foi um “jeito” para diblar um eventual conflito com espanhóis? E quanto anossa propalada tradição cartorial, clientelista? Quem mesmo propôs asCapitanias Hereditárias?

Interessante pensar, relativo a eventuais incidências subjetivas da Lín-gua: o fato da nossa possuir esta peculiaridade da distinção entre ser/estar,o que várias línguas designam por apenas um verbo.

Fundamental destacar que o tema deste Congresso está articuladodiretamente com uma questão clínica: como é possível analisarmos, hoje,no Brasil?

Finalmente, será que, em tempos de Globalização/Mundialização, da

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de Mestrado “O que é ser brasileiro”, lança interrogações em torno da utiliza-ção do artifício das figuras (colonizador/colono), como também em torno danoção de insuficiência simbólica paterna, enlaçada a algo que no “velho mun-do” teria ficado. A autora retoma as idéias sugeridas por Alfredo Jerusalinskyno artigo “Cuidado com as orelhas” (do livro Psicanálise e colonização), quefala em “várias versões do pai” e não na falta de uma.

Estas questões remetem a uma cena, que emerge de uma experiên-cia numa viagem a Nova Petrópolis, cidade que concentra parte da históriada imigração alemã no Rio Grande do Sul.

Uma experiência talvez na borda do turístico, pois parou-se na beirada estrada, um pouco antes de chegar a cidade de Nova Petrópolis. Era umbelo cenário, com casas, pomar, animais, vegetação, flores... cenário quelembrava uma colônia (vilarejo, povoado por colonos imigrantes). Aproximou-se, andando com sua carroça, um trabalhador da roça, um agricultor, jovem,claro, bem vestido, acompanhado de sua filha.

Nesse encontro, o jovem trabalhador – um pouco surpreso pelo inte-resse mas ao mesmo tempo satisfeito – conta que era descendente de imi-grantes alemães e italianos, e, falando do seu ofício, diz que poderia mostrarum instrumento de trabalho muito importante, que gostaria de ter preserva-do. Seria um “engenho de cana”1, se o seu pai não o tivesse jogado em umburaco. Um buraco? “Sim, um buraco muito fundo, que ele tinha medo quenós, os seus filhos, caíssemos”. Neste instante, ele constata: “Não sei por-que, se ele poderia ter tapado o buraco com terra. Talvez, porque não qui-sesse que passássemos pelo mesmo sofrimento, teve uma vida muito sofri-da.” Mesmo assim, continuava inconformado achando que seu pai não preci-sava ter feito aquilo: jogar o engenho de cana no buraco.

O interessante também é que, em algum momento, este descenden-te de imigrantes expressa seu desejo de uma forma não muito clara ou co-erente: gostaria de sair do Rio Grande do Sul e ir morar no Nordeste. Estedesejo pareceria estar deslocado no nome que batizara seus dois bois, que,

1 Engenho de Cana: moedor da cana-de-açúcar.

UMA CENA BRASILEIRA

Sandra T. Adam Sasso

Tem-se pensado, a partir dos trabalhos do cartel preparatório ao Con-gresso Brasil: Descoberta Invenção, o que implica um “ser brasileiro”. Sabe-se que não é preciso necessariamente nascer brasileiro,

para tornar-se um brasileiro. Assim como o fato de estar em um territóriobrasileiro nem sempre fala de uma naturalização. Existem questões queenvolvem mais do que a terra ou o território: são questões relativas à cidada-nia. (Pereira, 1993)

Questões que percorrem desde a cidadania dos índios brasileiros atéa dos imigrantes que vieram ao Brasil, e que se referem a um certo discursode exclusão. No caso dos imigrantes alemães e italianos, por exemplo, existe,num certo momento de sua história, um discurso (transmitido) que coloca,como sendo brasileiros, os negros e os índios. Eles, os imigrantes, continu-ariam sendo alemães ou italianos.

A antropóloga Maria Eunice Maciel (que esteve participando do cartelno dia 29 de março) nos falou um pouco disso: o quanto “o ser brasileiro”, emdeterminado discurso, na análise antropológica, está ligado ao “ser negro”.Quer dizer, apesar do reconhecimento de uma miscigenação de raças noBrasil, aparece a necessidade de restringir o brasileiro a uma raça e, àsvezes, a certas imagens.

Para sugerir pensar o contrário, basta lembrar uma das composiçõesde Vinícius de Moraes, “Samba da Benção”, em que ele diz, referindo-se a simesmo: “Eu sou o poeta branco, mais preto do Brasil, e se o samba ébranco na poesia, ele é preto no coração.”

O discurso de exclusão, acima referido, nos remete a uma leitura daposição subjetiva, que Contardo Calligaris trabalhou no seu livro “Hello Bra-sil”, relacionando esta posição subjetiva a duas figuras: a figura do colono ea do colonizador. O colono como aquele que veio em busca de um Nome,restaurar o Nome do Pai ; e o colonizador como aquele que veio explorar asriquezas da terra. Carmen Backes, na leitura que propõe em sua dissertação

v

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OS MENINOS-LOBOS DO BRASIL

Ligia Gomes Víctora

Ainda sob efeito dos embates entre as comemorações oficiais dos500 anos da “descoberta” do Brasil pelos portugueses, a indignaçãode todo o resto do povo e, para confundir um pouco mais, lendo a

pesquisa do Datafolha1 sobre “a utopia do Brasil”2 – muitas coisas me fazemviajar...

Chama atenção a confiança dos nossos conterrâneos na “utopia” bra-sileira – atual e futura – ainda, e apesar de tudo. Segundo os dados doDatafolha, em todas as faixas etárias e sócio-econômicas, o otimismo impe-ra. Mas há alguns fatos curiosos postos em relevo por essa pesquisa. Porexemplo, a visão do paraíso brasileiro é diretamente proporcional a algunsfatores, tais como a idade do entrevistado e a coloração da pele. Quer dizer:quanto mais velhos, mais otimistas. Quanto mais escura a pele, mais oti-mistas. Com um porém: o otimismo é inversamente proporcional ao grau deinstrução e à “brancura” da pele. Ou seja: mais cultos, menos otimistas.Mais brancos, menos otimistas. Quanto ao nível sócio-econômico, pelo menos,os “pobres” são otimistas e os “ricos” mais ainda... Viva o Brasil!!!

Pelo que pude entender lendo os relatórios da pesquisa, todos osbrasileiros são otimistas, mas: os menos otimistas entre os otimistas sãojustamente os entrevistados brancos, na faixa dos 40/45 anos, os de maiornível de escolaridade e os que moram no sul/sudeste do país. (ói nóis aqui...)

1 “Relatório folha da utopia brasileira”, Folha de São Paulo, Caderno Mais! 23/4/2000.2 Temos aqui uma equação lógica, e um problema topológico: como se sabe, “utopia” vem dolatim – “nenhum lugar”, ou seja, lugar impossível. Se o Brasil é o país da utopia, logo...

na canga, puxavam sua carroça: o nome de um deles era “Baiano” e do outroera “Parecido”.

Mais tarde, pudemos observá-lo novamente, pois havia ido buscar, nacompanhia de sua filha, o pasto, alimento para seus animais. Retorna nasua carroça, que estava repleta de uma verde pastagem, o que passou ine-gavelmente uma imagem que fala de uma posição em que aparece o colonoe o colonizador, apropriando-se das riquezas de sua terra.

Esta cena faz pensar, também, no quanto nossas origens de brasilei-ro se assemelha à tentativa de tapar o buraco, no qual, por outro lado, sóconseguimos jogar significantes de “nossas histórias”. E que, talvez, nãoprecisariam ser necessariamente histórias sofridas, histórias de exclusão ede não apropriação de novas versões do pai, como nos fala a história dessepai, que, no discurso de seu filho, teme a repetição do mesmo sofrimento.

A propósito, será por acaso o nome dado aos bois? Pois “Baiano”remete à Bahia – significante da descoberta ou do lugar de chegada dosdescobridores de um “Novo Mundo”? Será que a esse desejo, de ir para umoutro lugar, não estaria associado ao fato de não ter conseguido estabelecer(reconhecer) o Novo, no sentido de se manter em um lugar de excluído ouestrangeiro?

Ao mesmo tempo, “Parecido” remete a essa dialética em que, apesardo novo, algo sempre continua parecido com o antigo, o velho, o Outro, queserá sempre, de alguma forma, inexoravelmente, o nosso ponto de partida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBACKES, Carmen. O que é ser brasileiro?. Porto Alegre, 2000. Dissertação de

Mestrado em Psicologia, Porto Alegre, UFRGS, 2000.CALIGARIS, Contardo. Hello Brasil. São Paulo : Escuta, 1996.JERUSALINSKI, Alfredo. Cuidado com as orelhas. In: SOUSA, Edson Luiz André

de (Org.). Psicanálise e colonização: leituras do sintoma social no Brasil.Porto Alegre : Artes & Ofícios, 1999, p.219-33.

PEREIRA, Lucia Serrano. A violência ressurge na terra dos Mucker. Revista daAssociação Psicanalítica de Porto Alegre. Psicose, Porto Alegre, Artes & Ofíci-os, 1993, p.92.

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Paramos de fumar, praticamos esportes e fazemos dieta (– e,freqüentemente, queremos que nossos filhos adolescentes façam o mes-mo...)

DE VOLTA AO FUTURO...O que pensam os meninos do Brasil de hoje? Por onde anda seu

otimismo?! Conforme a pesquisa acima citada, o otimismo em relação aosucesso pessoal futuro é maior quanto mais jovem for o entrevistado (86%dos entrevistados de 16 e 17 anos). Porém, os mais jovens são também osmais reticentes quanto ao progresso do Brasil como futura superpotênciamundial (57% na faixa de 16-17 anos, contra 64% em maiores de 60 anos).

Pesquisas de jornal, assim como os comentários sobre as mesmas,prestam-se tanto para mostrar o lado “maníaco” das questões aí apontadas,como para dar uma versão simplista e facilmente digerível, de dados parado-xais como esses.5

Penso que os adolescentes de hoje continuam com as mesmas dúvi-das, temores e desafios que tínhamos no “nosso tempo”, ainda acrescidasde outras – afinal, eles são filhos dos magrinhos; filhos dos filhos de umaépoca de desilusão, de bandeiras rasgadas e de mitos desfeitos.

Para quem trabalha, em seus consultórios, com adolescentes emanálise, os exemplos desta herança são abundantes. Cito três, que têm emcomum o fato de serem filhos de pais adolescentes.

* Tauê6, inicia análise aos 14 anos, com idéias recorrentes demorte súbita. “Vou morrer com um tiro no meio da testa” – sãosuas primeiras palavras dirigidas a mim, mostrando, com os de-dos em forma de revólver, e fitando-me com os olhos mais tristes eazuis do mundo. Conta-me histórias e mais histórias de tragédias,

5 Por exemplo, em pesquisa de 1997, o “Relatório da Felicidade brasileira”, citada no mesmoCaderno Mais!, p. 5, o Brasil seria “o país mais feliz do mundo” e ao mesmo tempo “asegunda posição como o país mais infeliz...”.6 Nomes fictícios, embora tentando manter o “estilo” dos verdadeiros nomes, porque nomearé preciso...

VIAGEM NO TEMPO...Lembro que nos anos 70, ou seja, há quase 30 anos (– tudo isso?!...)

era o tempo do “prá-frente-Brasil”, e nós fazíamos piadas com os slogans daditadura, tais como: “Brasil, ame-o ou deixe-o: o último que sair apague aluz”.

Parece que a minha geração, já naquela época, não era tão otimistasobre o futuro...

Nós éramos os magrinhos3; éramos da geração dos pós-hippies; éra-mos os meninos-da-ditadura, que já não lutávamos mais como nossos ir-mãos mais velhos – eles tinham nos deixado para enfrentar a “aventura” doauto-exílio forçado na Europa. Mas eles eram nossos ídolos, e como nós osadmirávamos!

Nós éramos o futuro do Brasil.Naquela época, tinha-se uma ideologia voltada para a natureza: aca-

báramos de descobrir a ecologia, e acreditava-se, acima de tudo, na paz eno amor. Era o tempo do faça-amor-não-faça-guerra, e, como ainda não sur-gira a SIDA, se fazia amor por amor e “só” por amor. Não havia isso de ficarcomo hoje em dia. Estava na moda fumar, e todo mundo fumava. E viajava...No rádio, a campanha “dê carona aos magrinhos” estimulava os motoristas,e nós viajávamos, de qualquer maneira, até pegando carona de caminhõesnas estradas, com a maior tranqüilidade...

Nós fazíamos isso?!4

E pensávamos que num futuro longínquo – no ano 2000 – estaríamosvelhos, muito velhos, como nossos pais (com mais de trinta anos!)

Hoje somos os pais, os psicólogos, os médicos, os professores, ospsicanalistas...

4 O que será que pensavam nossos pais? Talvez naquela época não houvesse tanto“perigo” como agora? Talvez, mas penso que arriscávamos as nossas peles adolescentes,como todo adolescente pondo à prova o seu Outro.

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3 Gíria sulista para designar os jovens.

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marração entre as instâncias real, imaginária e simbólica, a “costura” imagi-nária já não é mais eficaz, porque o sujeito não reconhece mais seu corpo,este objeto imaginário, como sendo o seu corpo. O real aí se impondo comomorte, ameaçando abrir-se e desfazer a cadeia entre as três instâncias. Ouexigindo uma nova amarração, que dê conta desta falha paterna, e em que osignificante do nome do pai possa se ressituar, ou ressignificar-se, simboli-camente.

VIAGEM TRANSCONTINENTAL...Há pouco tempo, em entrevista à imprensa, que causou muita polêmi-

ca como efeito, o ministro do interior francês referiu-se aos adolescenteserrantes da França como sauvageons. Conforme o “Petit Robert”, sauvageonsseriam crianças que crescem sem educação. Pelo que entendi da entrevis-ta, seriam crianças marginalizadas pelas famílias, ou deixadas à própriasorte, como plantas silvestres no campo. Fenômeno comum na França, es-tes meninos e meninas crescidos, que podemos ver retratados no filme Avida sonhada dos anjos (La vie revée des anges), separam-se das famíliasmal terminada a escola, não têm trabalho nem domicílio certo, e batalhamcada dia por um boulot e um dodo. Um “bico” e um teto...

Penso que no Brasil a questão seja um pouco diferente. Os nossossauvageons, vindos de famílias muitas vezes desfeitas, ou nem formadas,talvez vivam nas ruas não por opção, como nos países de primeiro mundo,mas por falta de opção melhor. Saem de casa e das escolas não em buscade aventuras, mas, quem sabe, em busca de sobrevivência tanto econômicaquanto subjetiva.

Os nossos sauvageons seriam, talvez, selvagens como os meninos-lobos? No mito do menino-selvagem, que rendeu ao longo dos tempos tan-tas lendas e romances (Dafnis e Chloé, Rômulo e Remo, Tarzan, Mowgly,entre outros), um filhote humano, amamentado por animais, crescia em ummundo sem linguagem humana, sem educação, sem cultura – sem a instân-cia simbólica, portanto. Porém, com capacidade para aprender a falar, ouseja, com potencial de vir a ser um sujeito. Selvagem, meio-homem, meio-

sempre com relatos detalhados dos ferimentos (“sangue escorren-do por tudo...”), na fronteira entre ficção e realidade. Após mesesde análise, enfim, consegue falar do pai, que fora dado por desapa-recido, quando Tauê era ainda um bebê. Real trágico, imaginarizado,à espera de uma simbolização possível?

* Ísis, chega para análise com 15 anos, relatando com muita an-gústia pesadelos repetitivos, nos quais antevê seu próprio enterro.Associada aos sonhos, a certeza de que morreria cedo e tragica-mente, encobre/revela lembranças de uma história em que a dis-puta por sua guarda entre as duas famílias dos pais adolescentes,a jogam em sucessivas mudanças de endereços, sofridas por elacomo abandonos. Na medida em que a análise avança, a estruturados sonhos vai se modificando. Simbólico ressituado pela palavra,como efeito da interpretação agindo sobre o próprio real. Com 18anos, confrontada sobre os motivos que a levaram a fazer análise,demonstra um estranhamento sobre aqueles pensamentos: – “Quehorror! Como eu pensava isso?”

* Thomas, 16 anos, sofrendo com graves sintomas físicos, comotonturas, suores, náuseas, palpitações, não consegue mais afas-tar-se de casa, tal o medo de sentir-se mal na rua. – “Eu decompo-nho as pessoas em átomos!” – chora, ao relatar os terríveis pensa-mentos que lhe acometem quando olha para as pessoas. Idéiasque se lhe impõem, desencadeadas pelo que aprendera na escolana disciplina de Química. Catástrofes como enchentes e venda-vais vêm em sonhos, associadas à culpabilidade pelo desejo/te-mor da morte da mãe; assim como lembranças encobridoras dehistórias com conteúdo de abandono, após a separação dos pais,e a subseqüente decadência financeira e enfermidade mental damãe.

Estes três recortes – que não tenho a pretensão de apresentar aqui anão ser como exemplos de como sintomas podem eclodir na adolescência –apontam para uma falha na função paterna. Neste momento em que, na a-

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O FUTURO SEM GARANTIAS1

Robson de Freitas Pereira

“Poderemos ensaiar a organização de nossa desordem segundo esquemas sábios e de virtude provada,

mas há de restar um mundo de essências mais íntimasque, esse, permanecerá sempre intato,

irredutível e desdenhoso das invenções humanas”.Sérgio Buarque de Holanda

Aepígrafe acima está impressa no último capítulo do livro “Raízes doBrasil”, intitulado “Nossa revolução”. Escrito em 1936, sua releituraimpressiona pela atualidade de suas teses, que o confirmam como

“um dos livros que inventaram o Brasil”, como Antonio Cândido escreveu. Emseu texto, Sérgio Buarque de Holanda falava das dificuldades intransponíveis,impossíveis de serem ignoradas ou substituídas completamente por qual-quer “compasso mecânico e uma falsa harmonia”. Tentar negá-las seria nãoreconhecer nosso ritmo e renunciar a nossa história, não conseguindo as-sim superar o aprisionamento às raízes.

Curiosamente, alguns anos antes (1930) Sigmund Freud escreveu algomuito próximo desta idéia em seu ensaio “O mal-estar na cultura”. Dizia eleque era legítimo esperar que pudéssemos produzir, gradativamente, em nos-sa cultura, alterações que satisfizessem nossas mais prementes necessi-dades materiais e de felicidade. Entretanto, deveríamos também “nos famili-arizar com a idéia de existirem dificuldades, ligadas à natureza da civiliza-ção, que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma”.

1 Publicado, originalmente, no Caderno Cultura, especial “Brasil: tendências”, do Jornal ZeroHora, em 22 de abril de 2000.

animal, mas com inteligência e sentimentos humanos a serem desenvolvi-dos.

Fico pensando nos nossos sauvageons do Brasil: os Pixote, os Josué,dos filmes brasileiros; ou os Máicom, as Daiane, das vilas populares; ou osnossos filhos; ou os nossos pacientes, tanto faz: são estas crianças – hojeadolescentes das pesquisas – que portam em si, ou consigo, a responsabi-lidade sobre o futuro do Brasil...

VIAGENS...NO TEMPO, RÁPIDO!Na exposição “Le temps, vite!”, no Centro George Pompidou, em Pa-

ris, vejo relógios de todos os tipos e épocas – artefatos criados na tentativade controlar ou registrar o tempo: ampulhetas, clepsydras, solares, astro-lábios, calendários, fotos, filmes, despertadores musicais, luminosos, ciné-ticos. Estes objetos me fazem pensar sobre a absoluta relatividade do tem-po.

Entre estes, o que mais me chama atenção é um grande quadro depedra preta no chão. Como um espelho negro, completamente liso. De re-pente – surpreendentemente – o que parecia ser vidro se quebra, uma racha-dura corta o “vidro”, para logo depois este traço se apagar, e o “quadro” voltarà placidez original. Um pêndulo invisível fizera ali uma marca, riscando asuperfície, e revelando ser o vidro, na verdade, um lago de água escura – olago negro do tempo.7

Irreversível, porém retroativo...

7 Trata-se da instalação de Rebecca Horn, Pendulum with Black Bath, 420cm x 220cm x30cm. Origem: Vancouver Art Gallery.

PEREIRA, R. de F. O futuro sem garantias.

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seu exemplo mais atual), no entanto, passada a novidade dos “chats” sexu-ais, onde cada um pode inventar um personagem, um sexo diferente para si,as pessoas voltam a se queixar da solidão real ou virtual. O ideal moderno deunir relação amorosa e realização sexual parece cada vez mais distante.Como do ideal estamos sempre aquém, temos que inventar.

Acrescente-se a isto o fato de que, desde os anos 60, os ideais cole-tivos entraram em queda. Poucas são as iniciativas que conseguem mobili-zar as pessoas para uma ação política. Talvez só os movimentos ecológicose a música tenham esta força, atualmente. O individualismo, principal valorde nossa cultura ocidental, no Brasil, adquire alguns contornos singulares.As análises de “Raízes do Brasil” e “Casa grande e senzala”, dizendo muitoresumidamente, apresentam nossa herança ibérica e a miscigenação (feitacom ferro e afago) como alguns dos traços fundamentais para a realizaçãode um sujeito brasileiro.

Isto nos possibilita afirmar que as três grandes fontes de mal-estarapontadas por Freud, não podem ser lidas de forma isolada. Os sintomasque se manifestam no corpo não estão desvinculados da fantasia européiade um paraíso tropical, aliada ao fato de termos sido a maior nação escravagistado ocidente. O mito do corpo sensual, a exigência do gozo sem limites,pagam tributos a esta herança. Sem falar nas relações de trabalho, que maldisfarçam o fato de que as senzalas deixaram de existir há pouco mais deum século. O trabalho e o corpo do outro ainda são vistos como extensão darelação Amo x Escravo.

Na relação com o outro (semelhante) e o Outro (campo dos discursossociais), além das dificuldades de levar uma vida a dois (homo ou heterosse-xual), no qual a intolerância narcísica é uma das grandes evidências, enfren-tamos uma inibição que impede as pessoas de viverem o patrimônio culturalde sua cidade como algo de seu, fazendo com que os brasileiros muitasvezes sejam “desterrados em sua própria terra”, na expressão de SérgioBuarque de Holanda.

Em outras palavras, somos herdeiros de um passado colonial escra-vocrata, cujos efeitos, constantemente, retornam na atualidade. Assim, sejana relação com as nações indígenas desaparecidas, seja com o olhar sobre

Com sua capacidade de clareza e concisão, Freud apontava trêsprincipais fontes de sofrimento: 1) nosso corpo, por sua fragilidade e destinode decadência e dissolução; 2) o mundo externo, ou a natureza, que luta-mos por dominar, mas que sempre nos apresenta surpresas ameaçadorase, 3) nossa dificuldade de relacionamento com os outros homens, cujossofrimentos talvez sejam mais penosos do que quaisquer outros. Definitiva-mente, Freud não acreditava no “amor ao próximo” proposto pela religião.

Atualmente, continuamos às voltas com estas três referências. A se-qüência do genoma humano está prestes a ser completamente desdobradae nomeada e, simultaneamente, discutimos o risco de que o corpo se trans-forme num território mercadológico, onde as grandes companhias e laborató-rios que financiam as pesquisas mais avançadas tenham a propriedade (pa-tente) de órgãos, ou dos elementos fundamentais de sua composição. Nocampo da subjetividade, os medicamentos antidepressivos, ou mesmo anti-psicóticos, têm uma eficácia amplamente comprovada. Isto não elimina com-pletamente a angústia, o medo da morte, ou a paranóia com a vizinhança,mas ajuda.

Não temos mais a ameaça da guerra atômica, mas o que fazer como lixo nuclear, seja das armas ou de outras utilizações, ainda é uma preocu-pação. Os desastres ecológicos oriundos da poluição urbana, químico-in-dustrial, ou do descaso das elites, são sinais evidentes de que ainda temosmuito que construir para um futuro mais civilizado.

Por fim, o que esperar de nossas relações com os outros? Talvezseja neste ponto, que constatemos com mais evidência que não há remédio.O medicamento maravilhoso de hoje, já não fará mais o efeito esperadoamanhã. Vide a carreira do Prozac, cujo laboratório Lilly já acena com outromedicamento, “sem os efeitos colaterais” – casos de suicídio – do primeiro.Interessante notar, conforme escreveu Contardo Calligaris, na Folha de SãoPaulo de 18/05/2000, é que estes efeitos colaterais só são admitidos quan-do se tem um novo medicamento prestes a ser lançado no mercado. Poroutro lado, as tecnologias para melhorar a vida doméstica e o desempenhosexual (vide Viagra e outros apetrechos), não garantem maior tolerância navida conjugal. Temos cada vez mais recursos de comunicação (Internet é

PEREIRA, R. de F. O futuro sem garantias.

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INQUIETAÇÕES PARA BADERNEIROS1

Contardo Calligaris

Domingo passado, na Folha, Fernando Henrique Cardoso disse a ElianeCantanhêde que a inquietação atual das ruas “não é social, é políti-ca”. E comentou que as recentes manifestações dos funcionários

públicos, em São Paulo, foram “sem sentido”.É legítimo concluir que, para o presidente, as manifestações sociais

fazem sentido, as políticas não. Ou seja, manifestante é sério quando pro-testa por razões concretas, como salário e benefícios. Mas, quando ele pro-testa com intenções políticas, a coisa não se justifica.

Fiquei meio pasmo. Lembro-me de um tempo quando, nas fileiras daesquerda, valia exatamente o inverso. As únicas manifestações dignas eramas políticas, que reivindicavam poder de decisão e mudanças nas relaçõessociais. As manifestações que pediam apenas melhorias quantitativas eramsuspeitas, pois pareciam sempre cúmplices da situação.

Na segunda-feira, outra entrevista na Folha. É a vez de AnthonyGiddens, o grande sociólogo inglês, que se tornou teórico oficial da terceiravia. É generoso e bem-intencionado. Ele quer estabelecer a diferença entre anova social-democracia – que ele defende – e o neoliberalismo. No meiodisso, declara que, na verdade, o que as pessoas querem é “educação bási-ca, saúde e pensões”.

É claro que não há como não concordar. Só podemos querer essastrês coisas, que são ótimas e fazem falta. Mas, começo a sentir uma raivasurgir: será que queremos só isso?

Seguindo Giddens e FHC, parece que entrei na fila errada. Achavaque estivessem distribuindo cidadania e participação, mas descubro que

1 Texto publicado, originalmente, na Folha de São Paulo, 25/05/2000, Folha Ilustrada, p. 10.

o estrangeiro, oscilamos do desdém à glorificação (“tudo o que é bom vemdo exterior”; “temos que valorizar o que é genuinamente nosso”). Conse-qüentemente, frente à exigência moderna de se re-inventar, desconsiderandoa tradição herdada, podemos não gostar e, mesmo, em certos momentos,odiar nossos pais, nossa origem familiar ou nosso país. Achar que tivemos amá sorte de nascer em tal família ou em tal lugar. Entretanto, não adiantarenegar a tradição; pois o novo não se inventa sem ela. Para dispensar atradição é preciso passar por suas marcas. No sentido de tomar as dificulda-des com a filiação, com o nome próprio, com as diferentes comunidades,como algo constitutivo. O mal-estar que estrutura nossa cultura é incontornávele não se dilui com a tentativa de constituir uma origem unívoca/original. Ali-ás, Jacques Lacan recomendava que, para constituir-se algum saber, eranecessário renunciar às questões de origem.

Desta forma, enfrentar estes impasses implica colocar um desejo emexercício. Desejar, implica desamarrar-se do reino das necessidades. É umadas vias de fazer algo interessante, inovador, com isto que hoje nos pareceimpossível de resolver de uma vez por todas, ou com qualquer fórmula mági-ca.

CALLIGARIS, C. Inquietações para baderneiros.

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mas de participação popular efetiva nas decisões que importam?Parece ser mais cômodo definir o bem-estar em termos materiais e

considerar que ele é nossa única ambição. Distribuiremos a todos cestasbásicas, remédios e pensões. Para isso, será necessário lutar, sem dúvidaMas, ao menos, nossos objetivos serão claros.

É o mesmo cansaço que alimenta nossa confiança excessiva naspílulas da felicidade ou nas drogas: balas para não esquentar a cabeça. Amodernidade é o tempo da subjetividade inquieta, angustiada e insatisfeita.Por isso, ela cansa.

Agora, o cansaço é apenas uma tendência. As inquietudes políticasnão estão mortas, longe disso. Mas deixo isso para outra coluna, talvez apróxima.

P.S.– Alguém acabará perguntando: mas o que você quer, além dasreivindicações sociais? Voltar ao sonho da propriedade coletiva dos meiosde produção? Ou tem outra utopia pós-comunista? Pois bem, em 68, euconhecia alguém que era um pequeno empresário, mas contemplava os even-tos de maio, em Paris, como se ele fosse a Coca-Cola Company em pes-soa. Sentia-se ameaçado e perguntava: mas o que vocês querem, afinal? Oespírito inventivo daquela época me sugeriu uma resposta que vale ainda,queremos, disse, o direito de querer sem ter de saber exatamente o quequeremos. Mas são idéias de baderneiros, não é?

distribuem balas e esparadrapos. Pior, querem me convencer de que é issomesmo que eu quero (ou devo querer).

Talvez, pensei a essa altura, eu precise escolher uma companhia maisradical. Pois bem, fui para João Pedro Stedile, entrevistado por FernandoCanzian na Folha de domingo retrasado. Stedile expunha assim seu “mode-lo”: “Vamos produzir bens de consumo de massa. Nosso povo está precisan-do de calçado, de roupa, de casa. Se a gente se meter a produzir os 10milhões de moradias para as pessoas que moram em barracos, imagine oque vai ser preciso de cimento, vidros, luz elétrica... Seria um boom dedesenvolvimento. E, nesse modelo, tem de ter distribuição de renda. Tem deter salário maior”.

De novo, é difícil discordar. Como Henry Ford, Stedile gostaria de ul-trapassar um capitalismo arcaico e elitista, criando o consumo de massaindispensável para o crescimento. De qualquer forma, a pobreza e a misériabrasileiras são tão violentas que pedir uma melhor distribuição da riqueza jáé uma ousadia.

Em suma, a proposta é simpática, assim como são simpáticas asesperanças de Giddens. Agora, se – num arco que vai de Stedile a Giddens– as reivindicações são todas quantitativas, então talvez Fernando Henriquetenha razão, e as inquietações políticas não façam mais sentido.

Para essa inesperada tríplice aliança (FHC, Giddens e Stedile), o ho-mem do futuro será o resultado de uma melhor distribuição das riquezas. Oque serão as riquezas, como serão produzidas, como se distribuirá o poder– essas seriam questões já resolvidas. Resta, somente, regrar detalhes quanti-tativos. O sistema propriamente político no qual vivemos se torna um dadoda natureza. Está lá como a Pedra da Gávea ou a serra da Mantiqueira –pano de fundo inalterável de nossas agitações cujo único alvo é distributivo.

Nessa ótica, ser de esquerda hoje não é um projeto político, mas umasensibilidade generosa. É uma preocupação com as desigualdades. Nadacontra. No entanto, a substituição das esperanças políticas pelas preocupa-ções sociais é uma manifestação do cansaço da modernidade. As questõespolíticas são incertas, complicadas: como dividir o poder, como inventar for-

CALLIGARIS, C. Inquietações para baderneiros.

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curta de vanguarda novaiorquino. Mas, onde poderia extrapolar nos desajustes,onde poderia facilmente evoluir para um banho de sangue e amoralidadesbanais, o filme evita o estafante discurso do sintoma e vai além.

O ápice da história, que tanto alivia quanto incomoda, é a cena emque Lester Burnham não come a gostosa amiga de sua filha. E não comeporque algo, surpreendentemente, lhe desperta o afeto. Lester Burnham pa-rece não dar a mínima para nada, não se importa em ser traído pela esposae acredita-se que comeria a amiguinha da filha, virgem ou não, com o maiorprazer. De fato, não é propriamente a confissão de virgindade que o detém.É, sim, o patético motivo dessa confissão, onde a adolescente diz temerpela avaliação do seu (dela) desempenho.

Surge ali a percepção da voracidade humana em ser objeto do reco-nhecimento, da afeição do outro, como ainda maior que a de ser sujeito dalibido. Lester Burnham não é bonzinho, não se redime de nada naquele mo-mento, apenas constrói para si um contorno moral em nome do afeto (dafilha) porque este lhe é indispensável, e é este afeto que o filme quer mostrarcomo o limite possível a deter (e conter) o desejo. É com essa percepçãoviva que o personagem é assassinado. Algo nele escrito, então – e inscritocom maestria por Kevin Spacey –, sobrevive a narrar em off a própria e longamorte, observando irônico: “but, of course, you will know”.

Beleza Americana é, obviamente, um filme sedutor para uma Américaque há tempos insinua questionar-se, sente falta de quem a narre, choramin-ga sobre si própria com um revólver escondido nas costas. Mas, tenho dúvi-das se a academia sabe o que e por que premiou. O olhar do diretor inglêsSam Mendes exala compaixão (e quem haveria de negá-la?) sem compla-cência, e faz a diferença. A América, que sempre se deu o direito de serchamada assim, sem sobrenome, apenas América, parece estar sentindofalta – veja só – de um norte.

UM NORTE PARA A AMÉRICA1

Nei Lisboa2

Boa parte da crítica brasileira rotulou o filme Beleza Americana comocaricatural e concessivo a Hollywood, na abordagem de um temaque outros recentes filmes teriam tratado com maior coragem. Pos-

so estar redondamente enganado – depois de anos emburrecendo com osTelecines a gente fica em dúvida se viu um grande filme ou se a tela é que eragrande –, mas saí maravilhado do cinema e, como ainda não encontrei fun-damentação que me fizesse mudar de idéia, vou arriscar uma defesa.

Dizer, de Beleza Americana, que é recheado de clichês e caricaturas,é dizer da primeira e óbvia intenção do filme, qual seja, trabalhar o estereóti-po familiar suburbano da sociedade norte-americana. Os personagens sãoreduções que fogem à verossimilhança e, ao mesmo tempo, dela não selivram – o ideal americano é mesmo feito de personagens mal-acabados. Écerto que não há muito de original em desnudar a solidão, a frustração eoutras mazelas humanas maquiadas pelo controle social. Mas, o filme nãofica nisso, apenas parte disso para colocar essas máscaras, já borradas,em imprevisível confronto com um vírus do desejo à solta, Lester Burnham, opersonagem de Kevin Spacey.

Não assisti Felicidade, que dizem ser a versão original e mais contun-dente da mesma história. Pode ser, então. Beleza Americana parece mes-mo estar pagando tributos ao cinema independente americano no vídeo-olhardo personagem Ricky, que nos apresenta boa parte da história, e no seuideal de beleza – a cena de um saco plástico esvoaçante, extraída de um

1 Texto publicado originalmente no Jornal Extra Classe, publicação do SINPRO/RS – Sindicatodos Professores do Rio Grande do Sul.2 Nei Lisboa é cantor e compositor.

LISBOA, N. Um norte para a América.

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medida em que ele compartilha o “segredo” terrível do paciente, fazendo-lhejus, isto é, abrindo mão do “teste de realidade” e operando no sentido deinseri-lo numa ordem de significação, ou seja, na linguagem.

É, então, que sua tarefa está concluída, e ele pode se retirar, não semmarcar um elemento crucial: “Agora você já pode falar com os outros”. Atra-vés do laço transferencial, o laço com o semelhante pode se (re)compor. Háelementos decisivos para isto: a confiança e o amor são necessários, comoo menino constantemente demanda, ao questionar: “Você acha que sou‘freak ’?” (“anormal”, na tradução do filme, ou “estranho/esquisito”, vocábuloque na língua inglesa se aplica ao que é agudamente diferente). Aqui a mãeatua numa captação precisa: ela o faz “olhar bem” para ela, para que vejaque o acolhe.

A partir da experiência transferencial o menino pode se desprender dofantasma materno – a dor da mãe em relação a sua própria mãe morta e àspalavras que não foram ditas. É fascinante o interjogo realidade/fantasia,vida/morte, através da dimensão transferencial que o filme propõe. Fui assis-ti-lo a partir da recomendação de um colega que, sem absolutamente contara “trama”, aludiu justamente a este interjogo dizendo: “O guri cura o psicólo-go”.1

O filme começa com uma comemoração doméstica entre o terapeutae sua mulher, a propósito de uma placa de reconhecimento por seu trabalho.Mas sua atitude irônica, sarcástica, intriga o espectador. A seguir, apresen-ta-se uma pista para a justificativa daquela atitude: a personificação do fra-casso no paciente que vem cobrar-lhe, e que faz uma sutil alusão ao medoque ele também sente. Então, aparece o segundo menino – “tão parecidocom o primeiro” – e, com ele, o terapeuta atravessa seu próprio terror, semrecuar, desta vez.

É também assim no cotidiano da clínica, no qual, com cada paciente,se refaz o próprio percurso subjetivo, à custa de angústia, é certo, mastambém de cumprimento de ser.

1 Agradeço ao colega Mario Fleig esta indicação sugestiva.

“O SEXTO SENTIDO” OU A TRAVESSIA SUBJETIVA VIA OUTRO

Lucy Linhares da Fontoura

Certa vez, numa reunião de analistas, ouvi de um analista experimen-tado uma fantasia que o assaltava volta e meia: ficar sem pacientes.Começando minha prática clínica, surpreendi-me com sua franque-

za e, principalmente, com o fato de que tal temor persistisse mesmo em“não-iniciantes”.

Lembrei-me deste episódio agora, a propósito de outra fantasia – pos-sivelmente também recorrente entre praticantes e que aparece no filme “Osexto sentido”, de M. Night Shyamalan, em cartaz há meses, em PortoAlegre. O paciente que, atormentado com seu sintoma, vem cobrar tragica-mente a surdez de seu terapeuta e, conseqüentemente, sua ineficácia.

Para além da versão esotérica mais óbvia, é possível apontar algunselementos interessantes que o filme veicula.

Há, pelo menos, dois elementos metafóricos a destacar. Primeiro, osmortos que retornam evocam imediatamente a questão do recalcado e seuretorno, assombrando o sujeito, produzindo-lhe uma angústia insuportável.Eles são “as águas passadas que movem moinho”, como no engenhosodesenho de Escher, que tão bem ilustra a idéia de moto-contínuo, daatemporalidade do inconsciente e seus efeitos.

Da mesma forma, a questão das mensagens cifradas, em outra língua– no filme, latim e espanhol – através do que se expressa a verdade subjeti-va, sugere a língua do inconsciente, que requer decifração. Aliás, aqui apare-ce a chave para o terapeuta e, creio, em dois sentidos. Que há uma mensa-gem no sintoma e que esta se dirige a um outro. É nesse momento que oterapeuta se distancia da abordagem “fatual” que o orienta e passa a operarnoutra pauta. É a partir daí que ele consegue escutar a verdade subjetiva epode fazer suporte para que o menino também o faça. “Escute o que elesquerem lhe dizer”, indica ele. A dimensão transferencial se marca aí, na

FONTOURA, L. L. da. “O sexto sentido”...

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UMA VERSÃO POSSÍVEL DO RELENDO FREUD ECONVERSANDO SOBRE A APPOA

Luzimar Stricher

Profícuas foram as discussões realizadas no Relendo Freud e conver-sando sobre a APPOA, em torno do texto “O homem Moisés e areligião monoteísta”. Um dos pontos abordados, indiretamente, foi a

produção da subjetividade, através da possibilidade de cada um formular asua versão particular. Nesse sentido, nossa proposta é citar alguns fragmen-tos que mereceram nossa atenção e que nos remetem conseqüentementeao tema proposto para o congresso.

Maria Folberg inicia sua exposição1 apontando-nos uma afirmativa deFreud, no qual baseia-se em Breasted, quando este indica que Moisés é umnome egípcio. Ora, ironiza nossa colega, vivendo no Egito é fácil entenderque seu nome fosse egípcio; o interessante, continua ela, é o confirmado porFreud “(...) o nome de Moisés ser egípcio não foi considerado como forne-cendo prova decisiva de sua origem”.

Assim, conclui que este argumento “cai por terra”, salientando queaté o fim, Freud tenta provar algo que, ao final, da primeira parte do texto eleconfessa: “Provas objetivas (...) não foram obtidas”. Maria Folberg pergunta-se sobre o que poderia ter induzido um egípcio aristocrata – um príncipetalvez, ou então um sacerdote ou alto funcionário – a colocar-se à testa deuma multidão de estrangeiros imigrantes, num nível atrasado de civilização,e abandonar seu país com eles? Afirmando que o bem conhecido desprezoque os egípcios sentiam pelos estrangeiros torna, particularmente, imprová-vel tal procedimento. Freud argumenta e rebate, ao mesmo tempo, suasquestões, comenta a colega, e cita uma carta de Freud de 30 de setembrode 1934 a Zweig: “(...) diante de novas perseguições perguntamo-nos, maisuma vez, como os judeus chegaram a ser o que são, e por que atrairiamesse ódio permanente. Logo descobri a fórmula: Moisés criou os judeus (...)”.

Mas, nossa colega avança em sua pesquisa, trazendo-nos outras pro-posições apoiadas em Bakan, Yerushalmi, Bernstein e Martin Buber. Dizque “Freud, mais do que historiador, mais do que romancista, Freud é psica-nalista, e frente à ‘extrema pobreza de fatos históricos confiáveis referentesa Moisés’, decide substituir a verdade improvável por especulações e, re-construir baseando-se na probabilidade psicanalítica”.

Ainda para enfatizar esta questão, lembra-nos de uma passagem deFreud: “(...) se não tivesse podido encontrar apoio numa interpretação analí-tica do mito e passar daí para a suspeita de Sellin sobre o fim de Moisés,tudo teria tido de permanecer sem ser escrito”. E complementa dizendo-nosque Yerushalmi (1992) surpreende-se com este apoio de Freud em Sellin,uma vez que sua afirmativa “era altamente especulativa e não tinha tido acei-tação geral”. E mais, Folberg salienta que as várias reações ao ‘Moisés deFreud’ vão de uma total aceitação, valorizada como obra do grande mestre,pai da psicanálise, até a rejeição inflexível de uma quase totalidade de espe-cialistas em Bíblia – pela manipulação arbitrária de dados históricos – e deantropólogos e historiadores da religião que desqualificam seus argumentos“por se apoiar em suposições etnológicas há muito obsoletas”.

Para complementar, a colega nos traz mais uma afirmativa de Freud:“um procedimento como o nosso de aceitar o que nos parece útil no materialque nos é apresentado, rejeitar o que não nos convém e, reunir os diferentesfragmentos de acordo com a probabilidade psicanalítica (...) não pode darqualquer certeza de que cheguemos à verdade”. O que a leva a repetir: “tudoindica que Freud criou um Moisés de acordo com seu gosto e talento”.

Alfredo Jerusalinky responde a Folberg, alegando que a hipótesefreudiana, como hipótese histórica, tem uma extensão de verdade e maioreschances de nos permitir interpretar a figura de Moisés na história do que aposição de determinados historiadores – que ao proporem uma interpretaçãopuramente linear respondem a uma necessidade de constituição de um per-sonagem unívoco e a uma idéia de pureza em relação à origem de um povo.Salienta que a origem de um povo não é pura e, com a mesma metodologia,baseando-se nas mesmas referências, alguns historiadores demonstram ocaráter não egípcio de Moisés, e outros o caráter egípcio de Moisés. O quequer dizer, continua ele, que se trata de uma posição mítica de Freud, ne-

1 “Afinal, quem tinha razão? Entre Freud e a Bíblia”.

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cessária para atravessar certas formações históricas. Folberg complementadizendo-nos que as referências em que todos os historiadores se basearamsão bíblicas, quer dizer, bastante confusas e míticas. O que poderíamosdizer, também, aponta Folberg, é que uma referência mítica pode ser inter-pretada tanto de uma forma como de outra, uma não invalida a outra. Assim,conclui que vale a pena um momento de reflexão, concordando ou não. Inclu-sive considerando que o próprio discurso de Freud é de pouca convicçãosobre toda esta afirmativa e diz: “não sei se Freud tivesse vivido mais tempo,se ele não teria feito com esse trabalho o mesmo que fez com muitos outros,de voltar a ele e reposicionar certas colocações”. Auxiliadora avança na dis-cussão, apontando que o essencial para Freud não era saber se Moisés eraegípcio ou não. A questão é que ele precisou utilizar um estratagema parapoder trabalhar a questão do assassinato do pai primordial. Ou melhor, oassassinato de Moisés foi para dar validade à questão do mito do assassina-to do pai primordial, e por aí entraríamos na questão do pai, da morte e aquestão simbólica.

Folberg diz-nos que, na realidade, não está se discutindo mais a vera-cidade do fato - se Martin Buber, Freud, Yerushalmi, Bernstein e outros temou não razão nas suas interpretações - e sim, o quanto esse fato pode servirde emblemático para o conceito psicanalítico, ou melhor, para entrar para apsicanálise, como aconteceu com o Édipo. O importante, salienta ela, é oquanto o pai morto passa a ser o pai.

Valéria Rilho2 trabalha em sua exposição “o mito freudiano da horda”dizendo que este apresenta-nos a necessidade do pai como fundador noprocesso de humanização. Aponta-nos que a crença em um deus único euniversal é o substituto do ato de assassinato do pai da horda primitiva - queinstaura o pai totêmico como representante do lugar paterno, ou melhor, nolugar deste pai da horda e origem da humanidade. Poderíamos dizer, então,segundo a colega, que este ato parricida inscreve-se numa série de repeti-ções, provocando a indagação do lugar de sujeito em relação ao lugar de pai.Por exemplo, diz que quando escutamos algo como “Deus é um ato de fé”,poderíamos pensar que é um ato de fé que funda Moisés, ou seja, num lugar

de pai que teria sido logicamente morto. E como todo ato de fé é um ato deamor, é, também um efeito de filiação que constrói uma versão do pai divinoque ama seus filhos.

Maria Auxiliadora, em sua palestra3, diz que Freud teve que forjar omito de “Totem e tabu” para explicar o lugar do pai que permanecia em abertona sua doutrina. Traz uma passagem de Lacan, na qual este se detém namaneira como Deus responde a Moisés quando este pergunta seu nome:“sou o que sou”4, e acrescenta: “eis aqui em que termos tu te dirigirás aosfilhos de Israel!” Aponta que Lacan identificou a recusa de Deus em respon-der, instalando na resposta um furo, um vazio, uma barra. A resposta deDeus a Moisés, diz ela, é exemplar daquela que o sujeito recebe do grandeOutro, ou do pai simbólico, ou seja, uma recusa de resposta. Assim, concluique essa recusa seria a barra sobre o grande Outro, o significante que falta,a “falta primordial”. Poderíamos aqui fazer uma analogia com o que seria ofim de análise, complementa Auxiliadora: livrar-se do pai para poder se servirdele de alguma forma.

Mário Fleig em sua palestra5, apresenta que o mecanismo que estáem jogo neste texto não é o recalque, mas a recusa, a idéia central paraFreud. Lembra que o primeiro mecanismo que utilizamos diante do traumáti-co, como uma forma de nos defendermos do impossível, do inconciliável, é arecusa. Sobre o material resultante da recusa é que se faz o recalque. Oumelhor, o recalcamento vai aparecer no retorno do recalcado, é metafórico, éo retorno do sintoma. Já a recusa se encontra em pequenos detalhes, éaquilo que está à vista e ninguém enxerga. Uma espécie de uma letra queestá presente e, aparentemente, não tem significação. Portanto, podería-mos dizer, segundo Mário Fleig, que a recusa é um mecanismo de desloca-mento metonímico. Salienta que os efeitos de recusa falsificam o passado, eesses resíduos voltam como manifestações sem sentido na vida. Assim,conclui, frente ao traumático, temos uma percepção e recusamos. Essequadro recusado é fixado e oferece, ao retorno do recalcado, o espaço ondeaparecer.

3 “Por que só Freud poderia ter escrito o homem Moisés...?”4 Este termo encontra-se no Antigo Testamento, Êxodo, cap. 3.5 “Os filhos escolhidos e a recusa do ato: os destinos do narcisismo”.2 “O homem Moisés, um romance histórico”.

STRICHER, L. Uma versão possível...

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RESENHA RESENHA

parece-me oportuno fazer alguns registros a partir da leitura de “Todos osNomes”, livro de José Saramago. A formulação tem um cunho acadêmico,valendo-se dos limites e alcances daquele que se propõe a escrever.

O livro de Saramago reúne, tanto pela sua estrutura de texto comopela sua narrativa, uma série de elementos que se caracterizam por umarigidez e um rigor absoluto em tudo aquilo que diz respeito à tradição ou queconfere uma filiação. Podemos começar pela exigência do autor de que aedição brasileira mantivesse a ortografia vigente em Portugal. A construçãoe disposição do texto quase não permite vazios, espaços, buracos, apresen-tando poucos parágrafos dentro do mesmo capitulo. Tal organização lança oleitor numa tarefa árdua, pesada e sufocante para acompanhar o desenrolarda história. Há somente um que fala e mesmo os interlocutores se fazemdizer por este único. A lógica desta escrita não comporta suspensões, inter-rupções ou faltas. É possível observar isto quando encontramos no romanceepisódios que pedem exemplos. Nada fica fora, tudo precisa ser dito e inclu-ído na série.

A narrativa novelesca se ocupa em nos apresentar o Sr. José – úniconome escrito dentre todos os nomes – , modesto escriturário da ConservatóriaGeral de Registro Civil e fiel escudeiro da ordem e das normas vigentes.Cabe salientar, que reza a tradição do estabelecimento o irrestrito cumpri-mento do dever e da burocracia, mantendo intactas as mesmas rotinas daépoca de fundação do Conservatório. Quer dizer que, no lugar onde se regis-tra a vida e a morte, há que se perpetuar a vida a partir da repetição (morte).

Enquanto espera a noite dar lugar ao dia e a sucessão destes à eter-nidade, o Sr. José distrai sua solidão ocupando-se com a vida de celebrida-des. Recorta, coleciona tudo o que diz respeito a um número determinado depessoas famosas. Um biógrafo do alheio.

O estilo de Saramago põe em causa um indivíduo que não se pronun-cia enquanto sujeito desejante. Amordaçado e dirigido por um código disci-plinar do qual nada tem a dizer, só lhe resta dar testemunho de sua aliena-ção no rígido cumprimento dos horários, na submissão à hierarquia, na dis-posição do mobiliário e nas reduzidas possibilidades de deslizamento des-tes lugares. Tudo funciona bem. Tudo está em ordem. Nada fora do lugar.

TODOS OS NOMES

SARAMAGO, José. Todos os nomes. São Paulo : Cia. dasLetras, 1997. 279 p.

Dentro da história do movimento psica-nalítico, podemos encontrar vários deseus representantes incursionando pelo

campo da semiótica e, mais freqüentemente, noâmbito da literatura. Freud, reconhecidamente,fez suas tentativas. Podemos saber seu estilo eseus métodos pelos registros encontrados emsua obra.

Aberto o caminho, criam-se possibilida-des que vislumbram múltiplas vias de articulação do discurso literário e dosaber psicanalítico. Parece-me, pois, pertinente lançar uma questão de du-pla face: serão os psicanalistas aqueles que tem algo a mais a dizer sobre aobra do que o próprio autor, ou serão os escritores aqueles que já diziamalgo sobre a determinação do sujeito antes de Freud?

A palavra – elemento comum entre o escritor e o psicanalista – produzalgum traço que seria identificatório entre ambos?

À quem é endereçado o texto do autor? À quem o analista supõe oupretende escutar? Este outro pode ser pensado a partir de uma concepçãodo ser ou por uma noção de estrutura? A interpretação, que se produz a par-tir da leitura ficcional e da clínica, reconhece valor no drama, nos meandrosda história ou privilegia os pontos de ancoragem que organizam a estruturado sujeito e do texto?

Podemos perceber, de imediato, que esta não constitui a forma maisrica de abordar as nuances entre psicanálise e literatura. O mérito, no entan-to, advém da possibilidade de tentar dar conta destas interrogações, sem apretensão de esgotá-las.

Tendo em vista estas interrogações e instigado pela disciplina de Psi-canálise e Literatura do curso de Especialização em Teoria Psicanalítica,

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RESENHA RESENHA

juntos. Como tal regidos que somos pela vida (pulsão) e pela morte (pulsão).Se o método psicanalítico pode ser definido como a escuta de uma

imagem, podemos inferir que o exercício literário promove a leitura de umaimagem embasando a construção de uma totalidade. Esta unidade, no en-tanto, amarrada pela via da linguagem, está suscetível à fragmentação e aorompimento, fazendo operar as múltiplas possibilidades de interpretação, oque define uma clínica psicanalítica.

Volnei Antonio Dassoler

Nem o mobiliário, nem os arquivos, nem os olhares, nem o Sr. José. Exem-plo claro do fascínio pela servidão voluntária.

A trama é muito bem articulada, rica em detalhes que parecem extra-ídos de uma escuta clínica. Saberia o autor dos meandros psicológicos comtal autoridade a ponto de tão bem caracterizar o Sr. José? Havendo o conhe-cimento, o que ali aparece evidencia uma vontade do escritor, uma intençãojá elaborada? A escrita tem uma pretensão de ser livremente associada? Aficção implica num trabalho despreocupado de um sentido articulado, orien-tando-se mais pela fantasia. Mas, esta, também, tem sua lógica e é estalógica que Saramago nos apresenta de forma límpida e contundente.

Exilado de si, eis que, abruptamente, um engano se produz e, comele, o autor, o Sr. José e o leitor são convocados de forma inapelável e irre-mediável a protagonizar uma virada de mesa, quando algo do desejo surge,instaurando uma nova articulação da cadeia significante. Isto se dá quando,ao buscar novas informações para sua coleção de notáveis, o Sr. José traz,por engano, um verbete a mais. Arquivo este que não pertence a um ilustremortal e sim a uma desconhecida, da qual nada sabe. Tal infortúnio promoveuma inquietante angústia que o move a uma busca incessante das particula-ridades cotidianas da mulher, afim de preencher um nome desprovido dehistória. Era este nome esvaziado que precisa ser significado, ter sentido.Forçando uma interpretação, quiçá, selvagem, podemos inferir que é a suaprópria busca que inicia ali, de forma indireta, mas é a vida do Sr. José quecomeça a mudar, já que a mulher do fichário está morta. É preciso ir até ofim, não recuar, não ceder, mesmo quando as evidências assim apontarem.Reportamos ao texto de Freud conhecido como o Homem dos Ratos.

Saramago se mostra notável ao ilustrar os conflitos a que o Sr. Joséestá assujeitado para levar a cabo sua aventura. Retrata com fina sensibili-dade os impasses determinados pelo gozo, pela culpa, pela angústia, peloexcesso. Eventos que, por vezes, deslizam para alucinação e delírio. Perce-bemos que o Sr. José muda, mas que seu empreendimento transforma ou-tros tantos como seu chefe, a velha do pé da escada e a própria estruturaanacrônica da Conservatória Geral, a ponto de, no final da história, os regis-tros de vida e morte, até então separados, são promovidos a lugar comum,

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AGENDA

EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RSTel: (51) 333 2140 - Fax: (51) 333 7922

e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.brJornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956

Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (051) 318 6355

Comissão do CorreioCoordenação: Maria Ângela Brasil e Robson de Freitas Pereira

Integrantes: Ana Laura Giongo Viccaro, Francisco Settineri, Gerson Smiech Pinho, Henriete Karam, Liz Nunes Ramos, Luzimar Stricher,

Marcia Helena Ribeiro e Maria Lúcia Müller Stein

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 1999/2000

Presidência - Alfredo Néstor Jerusalinsky1a. Vice-Presidência - Lucia Serrano Pereira2a. Vice-Presidência - Maria Ângela Brasil1o. Tesoureiro - Carlos Henrique Kessler2a. Tesoureira - Simone Moschen Rickes

1o. Secretário - Jaime Alberto Betts2a.Secretária - Marta Pedó

MESA DIRETIVAAna Maria Gageiro, Ana Maria Medeiros da Costa, Ana Marta Goelzer Meira,

Cristian Giles, Edson Luiz André de Sousa,Gladys Wechsler Carnos, Ieda Prates da Silva, Ligia Gomes Víctora, Liz Nunes Ramos,

Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Mario Fleig, Robson de Freitas Pereira, e Valéria Machado Rilho.

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

JULHO – 2000

Dia Hora Local Atividade0103, 10,17 e 2405, 12,19 e 260606 e 2007

0810

1213

14

14

1516 e 3020

2325

Jornada do Percurso IIISeminário “A técnica psicanalítica”- Respon-sável: José Luiz CaonSeminário “O método psicanalítico”- Respon-sável: José Luiz CaonReunião da Mesa DiretivaReunião da Comissão de BibliotecaLançamento da Revista da APPOA nº 18“De um ao outro século: a psicanálise”Exercícios ClínicosSeminário “O trabalho das passagens...” -Responsáveis: Ana Maria da Costa, Edsonde Sousa e Lucia Serrano PereiraReunião do Serviço de Atendimento ClínicoCartel Preparatório ao CongressoExibição do Curta:”Barbosa” de Jorge Furta-do - Convidado: Giba Assis BrasilSeminário “A topologia fundamental deJacques Lacan” - Responsável: Ligia VíctoraCartel Preparatória ao Congresso - Colóquio:“Transmissão, passe e transferência”.Cartel do InteriorReunião da Comissão do Correio da APPOAReunião da Mesa Diretiva aberta aos mem-bros da APPOAReunião da Comissão da Home PageCartel Preparatório ao CongressoConvidado: Rui Carlos Ostermann

Sede da APPOASede da APPOA

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9h20h30min

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PRÓXIMO NÚMERO

PSICANÁLISE SEM DIVÃ

N° 81 – ANO IX N° 81 – ANO IX JULHO – 2000JULHO – 2000

UM PAÍS CHAMADO BRASILUM PAÍS CHAMADO BRASIL

S U M Á R I O

EDITORIAL 1NOTÍCIAS 3SEÇÃO TEMÁTICA 18A EUROPA, NO ESPAÇO DASA EUROPA, NO ESPAÇO DASAMÉRICASAMÉRICASJacques LeenhardtJacques Leenhardt 1818”O PARAÍSO NÃO É BEM AQUI””O PARAÍSO NÃO É BEM AQUI”Carmen BackesCarmen Backes 2424”O QUE PRODUZ UMA NAÇÃO?”O QUE PRODUZ UMA NAÇÃO?NOTAS QUESTÕESNOTAS QUESTÕESPARA UM CONGRESSOPARA UM CONGRESSOCarlos Henrique KesselerCarlos Henrique Kesseler 3131UMA CENA BRASILEIRAUMA CENA BRASILEIRASandra T. Adam SassoSandra T. Adam Sasso 3636OS MENINOS-LOBOS DO BRASILOS MENINOS-LOBOS DO BRASILLigia Gomes VíctoraLigia Gomes Víctora 3939NO FUTURO SEM GARANTIASNO FUTURO SEM GARANTIASRobson de Freitas PereiraRobson de Freitas Pereira 4545INQUIETAÇÕES PARA BADERNEIROSINQUIETAÇÕES PARA BADERNEIROSContardo CalligarisContardo Calligaris 4949SEÇÃO DEBATES 52UM NORTE PARA A AMÉRICAUM NORTE PARA A AMÉRICANei LisboaNei Lisboa 5252“O SEXTO SENTIDO” OU A“O SEXTO SENTIDO” OU ATRAVESSIA SUBJETIVA VIA OUTRATRAVESSIA SUBJETIVA VIA OUTRALucy Linhares da FontouraLucy Linhares da Fontoura 5454UMA VERSÃO POSSÍVELUMA VERSÃO POSSÍVELDO RELENDO FREUDDO RELENDO FREUDE CONVERSANDO SOBRE APPOAE CONVERSANDO SOBRE APPOALuzimar StricherLuzimar Stricher 5656RESENHA 60“TODOS OS NOMES”“TODOS OS NOMES” 6060AGENDA 64

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