o Filho Do Homem - Artigo Saramago

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O filho do homem... E da mulher: O plurilingüismo do Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago Rafael Camorlinga Alcaraz Doutorando em Teoria Literária — UFSC É bem sabido que nem todo ajuntamento de cores resulta em quadro artístico, nem toda produção de sons faz uma sinfonia. Um encontro de vozes reciprocamente ininteligíveis, em vez de gerar um diálogo pode produzir uma Babel. Se essa heterogeneidade, em casos especiais, acaba produzindo algo que nos atrai, nos eleva, nos questiona ou até nos revolta, é porque o pintor, o compositor (regente) ou o escritor soube realizar a combinação, a dosagem, o ritmo (timing) certos. É isso que se verifica nos romances de José Saramago. Agora refiro-me concretamente ao Evangelho segundo Jesus Cristo (Evangelho doravante). As múltiplas vozes que ecoam ao longo das 445 páginas são habilmente orquestradas com vistas a produzir uma obra passível de múltiplas leituras.

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Transcript of o Filho Do Homem - Artigo Saramago

  • O filho do homem... E da mulher:O plurilingismo do

    Evangelho Segundo Jesus Cristo,de Jos Saramago

    Rafael Camorlinga AlcarazDoutorando em Teoria Literria UFSC

    bem sabido que nem todo ajuntamento de cores resultaem quadro artstico, nem toda produo de sons faz umasinfonia. Um encontro de vozes reciprocamente ininteligveis,em vez de gerar um dilogo pode produzir uma Babel. Se essaheterogeneidade, em casos especiais, acaba produzindo algoque nos atrai, nos eleva, nos questiona ou at nos revolta, porque o pintor, o compositor (regente) ou o escritor souberealizar a combinao, a dosagem, o ritmo (timing) certos.

    isso que se verifica nos romances de Jos Saramago.Agora refiro-me concretamente ao Evangelho segundo JesusCristo (Evangelho doravante). As mltiplas vozes que ecoamao longo das 445 pginas so habilmente orquestradas comvistas a produzir uma obra passvel de mltiplas leituras.

  • O filho do homem...

    Quem, atrado pelo ttulo, aborde o livro com fins de edificaoficar desapontado, seno revoltado. Algo semelhante podeacontecer para o telogo munido do arsenal apologtico daIgreja Catlica. A minha leitura pretende ser apenas literria.No digo totalmente isenta porque cairia ou na ingenuidadeou na insinceridade.

    No presente trabalho comeo me questionando por quescritores do nvel de Saramago tm de ocupar-se com temasreligiosos, havendo tanto do que falar ou escrever. Respondidaa primeira questo, vem a abordagem do tema por parte daobra visada: como o autor consegue nos entregar algo antigode maneira nova ou inovadora. A terceira parte continuaoda anterior e visa detectar concretamente o dialogismo noencontro das diferentes vozes divina e humana, anglica ediablica, masculina e feminina que interagem no texto.

    O Tema religiosoO princpio filosfico reza: ex nihilo nihil fit (do nada,

    nada feito), a no ser, claro est, que se trate da atividadecriativa que pressupe poderes sobre-humanos. O quepodemos dizer, ento, da criao literria? o qu da atividadepotica cuja etimologia implica criao? Talvez a expressomais apropriada para se referir mesma seja: criao latosensu. Com efeito, a obra literria, alm de sua estruturaopeculiar, deve tratar de algo, referir-se a algo que exera algumapelo, sob pena de terminar num solipsismo ou remontar-se acumes inacessveis'.

    pacfico afirmar a relativa unidade existente no quese conhece como "Cultura Ocidental". Se atualmente a palavrade ordem "globalizao", at faz pouco tempo era"civilizao ocidental", qual se acostumava acrescentar (comevidente conotao ideolgica de direita) "crist". O

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  • Rafael Alcarazprocesso que teve como resultado a referida unidade comeoucom a civilizao grega, que posteriormente se "romanizou",dando origem civilizao greco-latina. "El carcter distintivooccidental comienza con los griegos, que inventaron lacostumbre de razonar deductivamente y la geometria" 2. Osachados dos helnicos foram adotados, em parte tambmadaptados, pelos romanos e posteriormente difundidos por todoo Ocidente. Ora, nessa sobrevivncia e difuso do legadogreco-romano desempenhou um papel determinante oCristianismo.

    Aps o esfacelamento do Imprio Romano a IgrejaCatlica (j "romanizada") assumiu, acrescentando aosanteriores, o ingrediente judaico:

    Del fervor moral de los judios vinieron lospreceptos ticos del cristianismo; del amorgriego al razonamiento deductivo, lateologia; del ejemplo romano deimperialismo y jurisprudencia, el gobiernocentralizado de la Iglesia y el cuerpo de leyescannicos'''.

    A fora aglutinadora do Cristianismo inquestionvel,como se demonstrou no s durante a Idade Mdia, mastambm na chamada poca moderna e at na "ps-moderna".No bojo da "Civilizao Ocidental" veio o imaginrio em suasvrias expresses, dentre as quais a religiosa.

    Durante vrios sculos o cristianismo foi umdenominador comum entre os diversos povos do Ocidente.Ainda depois de ter perdido a sua hegemonia ele continuaimpregnando o tecido social das naes modernas. Obviamentea literatura no poderia ficar imune s investidas do religioso,sendo a recproca tambm verdadeira.

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    Religio e literatura, principalmente religio e poesia,com freqncia caminham juntas. A linguagem literria parecemuito mais apropriada do que a referencial para referir-se aDeus ou aos deuses e ao que lhes diz respeito. "Lembremo-nos imediatamente do forte talento hebraico para metaforizaro inominvel Iahveh em Rocha, Leo, Sol, etc" 4. Ao longo detoda a Bblia, contnuo o recurso s figuras literrias de todotipo, ora para expressar o amor de Deus a Israel, ora paramanifestar a ira divina nos casos das freqentes infidelidadesdo povo escolhido.

    A Bblia inteira pode ser abordada sob o aspecto literrio(Gabel - Wheeler 1993). Obviamente, h livros nos quais oliterrio ou potico se destacam especialmente. Podemos citarcomo exemplos o livro de J, os Salmos, o profeta Isaas e oCntico dos Cnticos. Os msticos cristos tm continuadonas pegadas dos autores sagrados, utilizando-se da linguagempotica tanto para falar de Deus como para falar com Deus.

    Se o universo religioso recorre criatividade dalinguagem para expressar o indizvel, de igual modo aexpresso literria encontra no universo religioso uma minainexaurvel. Na mitologia greco-latina religio e literaturaformam uma simbiose de tal maneira que impossvelconceber a existncia de uma delas sem a outra. J nas religiesmonotestas que se consideram histricas e no mitolgicas asituao um pouco diferente.

    O telogo catlico Hans Kng 5, aps listar os vrios"Cristos" pergunta a qual deles devemos aderir. Ao histrico,claro!6. Mas onde encontr-lo? A pergunta no puramenteretrica. Com efeito, impossvel desvencilhar o Cristo quechegou at ns dos pendores mitolgicos impingidos a elenestes dois milnios de cristianismo.

    Em vista das estreitas relaes entre literatura e religio,e entre ambas e mito, deduz-se o mito no ser um conceito198

  • Rafael Akar=unvoco, mas sim anlogo, cujo significado se deslocafacilmente do literrio para o religioso, e vice-versa. "De fato,a palavra (mito) hoje empregada tanto no sentido de 'fico'ou 'iluso', como no sentido familiar sobretudo aosetnlogos, socilogos e historiadores de religies de`tradio sagrada, revelao primordial, modelo exemplar'''.

    Admitidas, pois, as incurses recprocas entre literaturae religio, exercidas atravs do mito, elemento compartilhadopor ambas, a predominncia do mtico-literrio nainterpretao do religioso e do mtico-religioso nacompreenso do literrio objeto de debate'.

    Em outras palavras, o "celeiro de provises" 9 disposio do ficcionista ilimitado. Contudo, o Ocidenteapresenta uma certa unidade cultural, em cuja formaoexerceu uma influncia determinante a religio crist. Oimaginrio religioso invadiu e foi invadido pelos mitos quepovoam o universo literrio. Separar o joio do trigo tarefaimpossvel, uma vez que mito e religio formam um tudoindissocivel, sobretudo em certas obras de fico. aqui, ameu ver, que se enquadra o Evangelho.

    A Novidade

    Sendo Jesus Cristo a figura central do cristianismo, no de estranhar que os estudos dedicados a ele ocupem um lugardestacado na teologia. A disciplina incumbida disso acristologia. As obras sobre o tema ocupariam bibliotecasinteiras. As lutas travadas entre cristos e no cristos e atentre faces dentro do cristianismo ao longo de dois milniosso incontveis. Muitas vezes as controvrsias foram apenasdoutrinais, mas no raro a caneta foi substituda pela espada eem vez de tinta, o que se derramou foi sangue.

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    "Crer que Jesus Cristo filho de Deus necessrio paraser cristo"'. A teologia pretende basear seus dogmas naEscritura. Para tanto teve que estabelecer o cnone bblico,declarando autnticos determinados livros e inautnticos ouapcrifos outros. A deciso foi precedida por srios estudos,mesmo assim a canonicidade dos textos bblicos antes oresultado da imposio dogmtica do que de pesquisas bblico-arqueolgicas. O dogma cristolgico se baseia principalmentenos evangelhos, escritos vrias dcadas aps a ascenso. Aexistncia histrica de Cristo atestada em fontes extra-cannicas, mas no os numerosos detalhes narrados nosevangelhos. O massacre dos inocentes, por exemplo, e a visitados reis magos, no encontram confirmao fora do textobblico '1.

    O problema "no concerne historicidade de Jesus, masao valor dos testemunhos literrios que fundamentam essahistoricidade"'2 . R. Bultmann, telogo protestante, afirma que"nada se pode conhecer sobre a vida e a pessoa de Jesus,embora no duvide de sua existncia histrica". 13 Segundo oprprio Bultmann nos evangelhos e em outros testemunhosprimitivos penetraram muitos elementos mitolgicos. tambm admitido que muitos smbolos e figuras do judasmoe do paganismo mediterrneo foram assimilados pelocristianismo. Da a necessidade da desmitologizao, admitidaatualmente at por setores conservadores do catolicismo.

    E o Cristo da literatura, que lugar ocupa? A literatura,afastando-se de todo tipo de panfletismo, pretende seguir umroteiro prprio: a esttica. Mas como no pode operar no vazio,transita livremente entre as mencionadas tendncias, ainda quesem comprometer-se com nenhuma delas. graas arte emgeral e literatura em particular que a figura de Cristo nopermaneceu um simples monumento do passado, mas continuacativando as novas geraes'''. O Jesus da literatura 200

  • Rafael Alcarazcertamente mais empolgante do que o da teologia. Segundo oreferido telogo, isso devido sensibilidade dos literatos. Eacrescenta: "Literature reveals areas of language and imageswhich translate afresh, transpose, render intelligible the Jesusevent" 15 . Em outras palavras, o telogo e o hagigrafodesconhecem a liberdade de que usufrui o ficcionista cujocompromisso apenas com a arte. O fato de a sua criaoinclinar a balana em uma ou em outra direo apenasdetalhe.

    Foi dito se no demonstrado que literatura e religiotm muito em comum, sendo o mito o elemento que as vincula.No Ocidente o binmio literatura e cristianismo. Sabemosque a religio utilizou-se da literatura nas suas diversas formascom intentos proselitistas. E vice-versa: a literatura tambmlana mo freqentemente do imaginrio religioso para as suasconstrues ficcionais. Neste caso a finalidade deve ser artstica. Cabe aqui perguntarmos qual o mrito de umescritor que lana mo de um tema to desgastado; qual odireito que o assiste para adentrar e revirar um mundo, real,simblico ou mitolgico, construdo ao longo dos ltimos vintesculos.

    Quanto ao ltimo questionamento pode-se responderaduzindo a "faculdade de tudo ousar" (grifo meu) reivindicadapor Horcio para pintores e escritores' 6 . J no que diz respeito originalidade da obra, Hegel 17 alerta para no confundir oexcentricismo com a verdadeira originalidade. Esta nodepende de elementos externos, reunidos de maneira"convencional" ou aleatria; , antes, "o resultado de umconjunto de elementos cuja fuso se realizou nas profundidadesdo eu criador"' s . A existncia dessa originalidade far comque o resultado seja uma obra de arte; sua ausncia noproduzir seno um artefato.

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    Paul Valery relaciona escrever com construir. "O poema um objeto construido, que no nasce da inspirao ou dequalquer misteriosa epifania, mas que resulta de uminterminvel labor sobre os materiais a linguagem verbal que o autor utiliza". A sua idia de originalidade peculiar,pois a concebe como "assimilao dos outros". "Rien de plussoi que de se nourrir des autres. Mais il faut les digrer. Lelion est fait de mouton assimill"20.

    O escritor visto, portanto, como um mgico da arscombinatoria, em virtude do qual "conhece, utiliza, manipulae transforma os cdigos, elabora entidades sgnicas discretase 'galxias' de sinais, articula unidades de expresso e unidadesde contedo, (...) visando exercer presso sobre o seureceptor"21.

    Como Saramago realiza tudo isso nos seus romances, eem particular no Evangelho segundo Jesus Cristo? De maneiramagistral. Verific-lo detalhadamente ao longo das 445 pginasultrapassa as minhas possibilidades imediatas. Limitar-me-eia um trabalho de amostragem.

    O Plurilinghismo do "Evangelho"Na primeira parte deste trabalho indagamo-nos sobre o

    porqu do tema religioso na obra de um escritorassumidamente arreligioso. A resposta foi dada por ele mesmonuma entrevista: "Jesus Cristo uma figura chave na culturaocidental". Obviamente, romancista que se preze no abordaro tema com fins panfletrios, nem para repetir o quanto j foidito. A novidade, no do tema, mas da maneira de trat-lo, foidiscutida na segunda parte. Cabe agora aprofundar esseaspecto. F-lo-emos lanando mo dos achados de Bakhtinno que diz respeito ao estudo da literatura, particularmente aoromance.

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  • Rafael AlcarazA leitura do Evangelho se assemelha a uma conversa

    com algum sumamente agradvel, que nos surpreende, sejapela relevncia do tema abordado, seja pela maneira, entresria e bem humorada, de trat-lo. O narrador um guiaonisciente que nos conduz pelos labirintos das leisveterotestamentrias e da casustica judaica. Explica, comenta,questiona e, no raro, nos convoca para lermos no entrelinhas.Ao longo da leitura somos obrigados a realizar contnuosdeslocamentos espaciais, temporais e temticos.

    Se perguntssemos ao prprio autor do Evangelho deque recursos se utilizou para obter tais efeitos, possivelmentea resposta seria semelhante que deu quando perguntado arespeito dos "tericos da literatura": "... nenhum escritorescreve segundo uma teoria. Em literatura, parece-me, a prticasempre precede a teoria"22.

    Os tericos, tentando explicar a vitalidade quase oralque observamos em alguns textos, dizem tratar-se daintertextualidade. O interesse da crtica literria pelo tema relativamente recente e remete diretamente s obras de M.Bakhtin (1895-1975). Os intrpretes do autor russo assinalama abrangncia da intertextualidade, uma vez que consideradacomo "um mosaico de citaes", sendo cada texto a absoroe a transformao em outro. "No lugar da intersubjetividadeinstala-se a intertextualidade"".

    Sendo a intertextualidade uma interao semitica deum texto com outro, o resultado ser um intertexto que refleteos traos dos componentes, sob forma dialgica ou atdialtica, uma vez que a "convivncia" dos diferenteselementos (textos) que integram o intertexto nem sempre pacfica. "A intertextualidade constitui um fenmeno dasemiose cultural, atuante na histria e no confronto das forasideolgicas"24.

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    Definir o romance certamente mais difcil do que l-lo (tratando-se de um bom exemplar da espcie, claro). O que, ento, o romance?

    "a epopia burguesa moderna" (Hegel);"pica subjetiva em que o autor pede licena para

    tratar o universo sua maneira" (Goethe);c) o romancista, atravs da obra hbrida que o romance,

    conta, mostra, mais do que isso, recria um mundo (grifadomeu) (O. Paz).

    O romance um gnero enciclopdico que aglutina opico e o dramtico, sendo progressivamente invadido pelolrico, "que acaba minando a objetividade pica"25 . No , pois,de estranhar que Bakhtin escolha o romance para nele analisaro aspecto dialgico da linguagem.

    What marks the novel off as distintive withinthe range of all posible genres (both literaryand non-literary, as well as primary orsecondary) is the novel' s peculiar ability toopen a window in discourse from which theextraordinary variety of social languages canbe perceived"26.

    Embora nem a intertextualidade nem o dialogismo sejamexclusivos da linguagem literria27 , nela, principalmente noromance, que encontram um ambiente propcio. no romanceque se realiza o encontro de "dialetos, jarges, tipos de discursosocial, profissional e de outra natureza" englobados porBakhtin sob o termo de heteroglossia28 . O conceito apontapara a bipolaridade da linguagem que se manifesta: (a) nasforas centrpetas que puxam para a padronizao e omonologuismo; (b) nas centrfugas que, ao contrrio das

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  • Rafael Alcarazanteriores, atentam para a diversificao e o plurilingismo."The idea of heteroglossia comes as Glose as possible toconceptualizing a locus where the great centripetal andcentrifugal forces that shape discourse can meaninfully cometogether"29.

    A intertextualidade, o dialogismo, a heteroglossia soconspcuos no Evangelho segundo Jesus Cristo. NeleSaramago recria o bero mtico-religoso do cristianismo,religio de uma quinta parte da humanidade. Faz isso usandohabilmente parte desse mesmo material fantstico que pairasobre a cultura ocidental. Monta assim uma obra "hbrida","enciclopdica", que combina o pico e o dramtico, comfreqentes digresses para o lrico. Alm disso, amultiplicidade de elementos que interagem nodesenvolvimento da narrativa fazem dela uma obraempolgante, mas nem por isso fcil ou "light". O leitor que sedebrua sobre um livro deste tipo dever contar com umabagagem incomum de conhecimentos bblicos e com slidacultura humanstica, sob pena de no aperceber-se dascontnuas insinuaes irnicas recorrentes ao longo do texto.Quando Jesus foi convidado para o casamento do cunhado dairm Lsia, sentou-se nos ltimos lugares, aluso clara a Lucas,14:8: "Quando algum te convidar para uma festa decasamento, no te coloques no primeiro lugar". J a maldioda figueira" e a ressurreio de Lzaro, frustrada (p. 428),tm desfecho diferente ao dos evangelhos cannicos (Mateus,21:18-22; Joo, 11:43-45). Neste ltimo episdio ambos osevangelhos (o de Joo e o de Saramago) coincidem no "chorode Jesus". Uma vez "eleito" filho de Deus, Jesus tem a seudispor certos poderes taumatrgicos que usa para realizaralguns milagres. Mas que de nada adiantaro na "hora H".Referindo-se a isso, Maria de Magdala lhe diz: "perders aguerra, mas ganhars todas as batalhas". Exatamente o oposto

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    do ditado que reza: perder a/uma batalha, mas ganhar a guerra.A seguir apresento trs instncias em que se manifesta

    de maneira evidente a adoo e adaptao de elementos porparte do narrador com vistas construo do seu evangelho,alias, o de Jesus Cristo.

    a) A anunciaoEvangelhos cannicosEvangelho segundo Jesus Cristo

    viso sobrenatural apario semi-naturalconcepo virginal concepo naturalanncio proftico informao: ests grvidapergunta de Maria:como pode ser? como sabes?secreto: Jos nada sabe secreto: no digasaceitao: eis a escrava do Senhor submisso ao maridoo "dia depois": cavilaes suspeita sobre o mendigo-anjoe angstia de Jos sobree a terra luminosaa gravidez de MariaAnalepse: evocao do primeiro homem feito de barro

    e ao pecado de origem e suas conseqncias:"voltaras ao barro".

    Prolepse: antecipao do que Jesus adulto vivera epregara: o mendigo no tem "onde descansar acabea" (Evangelho, p. 33; Mateus, 8:20).

    Mediante um cenrio habilmente montado o narradorfunde na simultaneidade do presente as vozes do passado comas do futuro. dicotomia divino-humano, natural-sobrenaturaldos textos cannicos, contrape o simplesmente natural daconcepo de Jesus e a amlgama divino-diablica, grandeza-misria do "anjo anunciante".

    O "dia depois" tem algo em comum entre ambos osEvangelhos: em Mateus, 1:18-21 Maria arrisca o repdio eat a lapidao. No Evangelho, p. 41, em vista das suspeitas

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  • Rafael Alcarazque pairam sobre Maria por causa do "mendigo" com quemfalou mais da conta, ela replica: "beberei a gua da prova doSenhor, e ele manifestar se sou culpada"".

    A Anunciao dos Evangelhos cannicos revela-nos oincio, "na carne" daquele "gerado, no criado... ante omniasaecula". Os impasses e as tenses decorrentes do cruzamentoentre o divino e o humano resolvem-se como que por um passede mgica, alis, um milagre, pois "para Deus nada impossvel" (Lucas, 1: 37). A interveno oportuna e atoportunista do divino faz com que se preveja com meridianaclareza o que advir no futuro. A anunciao do evangelho deSaramago, por sua vez, nos informa a respeito da concepode Jesus, idntica de todos os humanos. Contudo, acompanhada de certos sinais de suspeita ambigidade; porcausa disso, a seqncia e o desfecho dos eventos narradosso totalmente imprevisveis.

    b) Castigo sem crimeVejamos a passagem referente ao massacre dos inocentes

    e liberao do menino Jesus. um fato que no se sustentaextra-biblicamente" e que dentro da literatura cannica temum valor puramente simblico: "para que cumprisse aprofecia". No obstante a carncia de suporte histrico, oepisdio retomado pelo "evangelista" Saramago e revestidode uma dramaticidade incomum.

    Segundo os evangelhos cannicos o menino Jesus foivisitado pelos Pastores e posteriormente pelos reis magos.Foram estes que, ingenuamente, informaram a Herodes sobreo nascimento do "rei dos Judeus". Burlado depois pelos Magosque no voltaram, Herodes, para garantir a eliminao do"rival" mandou degolar todas as crianas de Belm, na faixaetria de Jesus. Jos, advertido oportuna e milagrosamente,salva seu filho.

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    No Evangelho Jos fica informado dos sinistrosdesgnios de Herodes por uma circunstncia totalmentefortuita; e um fato, tambm casual, salva Jesus da morteprematura. Nada de reis magos, nada de sinais milagrosos nemde revelaes divinas. Jos consegue salvar seu filho. E osoutros vinte e cinco que morreram por sua culpa? Eis a angstiaque assalta o carpinteiro e que o perseguir dia e noite(principalmente noite, durante o sono) pelo resto da vida. Agerao de mais filhos que ele e Maria poro no mundo malatingir uma tera parte dos que foram chacinados. A sua culpano ser expiada nem mesmo com a morte, pois "Deus noperdoa os pecados que manda cometer" (p. 161). A mesmaculpa, como herana biolgica, passa do pai Jos para o filhoJesus. Em vo ele busca no templo de Jerusalm a respostaque o acalme. O pecado inerente ao ser humano e,conseqentemente, o tambm o castigo: "O homem s livre para poder ser condenado" (p. 211). Ou, pior ainda: "aculpa um lobo que come o filho depois de ter devorado opai" (p. 213).

    evidente o contraste entre o monologismo do textooficial e o dialogismo do discurso (lecionai. Este ltimo mostracenrios apocalpticos Sforis com seus 40 crucificados,exgua poro dos milhares de executados pelos "filhos daloba". Jos tenta confortar o vizinho Ananias, acuado entre amorte pelos ferimentos e o suplcio na cruz que o aguarda.Intil: "Deus salva as almas, no os corpos" (p. 163). Ironiamais refinada, impossvel!

    A oniscincia do narrador abrange as diversas reas:psicologia, com a sub-rea da psicanlise, e teologia com a daescatologia que inclui o pecado. Guiados por ele penetramosnas diversas "camadas" do templo. A grandiosidade daconstruo e a insignificncia do ser humano torna-se uma

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  • Rafael Alcarazmetfora da onipotncia divina e da impotncia humana. Osrios de sangue derramado, a nuvem de fumaa dos sacrifciose o deus que se delicia com o espetculo macabro deixam oespectador-leitor atordoado. Estamos certamente diante deuma narrativa que combina pardia com carnavalizao e boadose do grotesco. Contudo, se olharmos para a importnciaoutorgada ao pecado na teologia crist, a "teologia atia" deSaramago no to caricaturesca assim.

    Na teologia crist-catlica, a prpria redeno, consoantecom o significado etimolgico, implica resgate ou pagamentopor uma infidelidade supostamente cometida pelos ancestraisdo gnero humano. A dvida s poder ser paga com sangue:de animais no Antigo Testamento, do prprio Jesus Cristo ede inmeros sequazes dele no Novo Testamento. Quais equantos? A longa prolepse que vai da pgina 380 390 doEvangelho d-nos uma viso qual aplicaremos os termos de"apocalptica" e "dantesca", ainda no cunhados. Ante amontona ladainha de horrores que ocorrero, "no por suaculpa, mas por sua causa", Jesus exclama (com antecednciaem relao aos Evangelhos cannicos): "afasta de mim esteclice" (Mateus, 26:39). Mas no atendido. Da a observaoirnica do Diabo: " preciso ser-se Deus para gostar tanto desangue" (p. 391).

    A "cpula" no lago dos trs personagens-chave doEvangelho constitui o ponto culminante da narrativa. Datambm a multiplicidade de elementos que concorrem e apluralidade de vozes que ecoam. Temos as "quarentenasbblicas" Israel no deserto rumo terra prometida, o jejumde Jesus antes de iniciar sua vida pblica. Mas o cenrio no o deserto e sim o lago. O nevoeiro forma um denso cortinadoque s se abrir quando o "show" houver terminado.

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    O filho-de-Deus, super-homem do discurso teolgico, aqui um filho de homem do homem Jos e da mulher Maria que, por acaso e a contragosto recebeu um convite que nopoder recusar, desse Deus "cujas preferncias no so menosassustadoras que os seus desprezos" (p. 309). A onipotnciade Deus uma prepotncia contra a qual nada podem fazernem as splicas do Diabo nem a revolta do Filho. "Alea jactaest", ou melhor, aqui no h nada de aleatrio, tudo estprevisto, alis, escrito. "Sensata religio esta que proibiu oazar (acaso)", desabafou o narrador faz tempo. O script terde ser executado risca. Dele constam alguns milagres, truquesprogramados para amenizar o roteiro; a traio de Judas,necessria "para que se cumprisse a Escritura", j est emcurso. Caminha-se rapidamente para o desfecho: a crucifixo.

    Na cruz, nos derradeiros momentos, em vez do Cristo"oficial" que se dirige a Deus suplicando o perdo para osalgozes, os humanos, temos o Jesus que se volta para ahumanidade, implorando o perdo para Deus, algoz doshumanos. O filho de Jos e de Maria parece no sentir tantoas prprias dores em face dos indizveis tormentos que adviro"no por sua culpa, mas por sua causa". A "Nova Aliana"apregoada pelo cristianismo doravante ser apenas umareedio, piorada, da Antiga, pois: em vez de rolas, ovelhas eterneiros, seres humanos de todo tipo sero sacrificados. "preciso ser-se Deus...".

    c) A voz da mulherNeste campo tambm o Evangelho subverte a ordem

    tradicional, mantendo ao mesmo tempo a coerncia exigidapelo discurso narrativo. A mulher saramaguiana se movimentano cenrio judaico da poca; mas a maneira como age einterage peculiar, seja pelo papel que lhe atribudo, sejapela maneira como o papel apresentado: a ironia e a pardia.210

  • Rafael AlcarazA doutrina catlica gaba-se de ter dedicado mulher,

    desde os tempos bblicos, maior ateno do que lhedispensaram os povos orientais da poca'''. A criao dohomem fica como que incompleta enquanto no criada amulher (Gnesis, 1:27 e 2:28). A natureza comum a ambosest expressa na aliterao hebraica is/issah (homem/mulher)que as tradues s lnguas ocidentais no preservam''. Amulher Eva a me dos viventes. "Al paso quenumerosas religiones asimilan fcilmente la mujer a la tierra,la Biblia la identifica ms bien con la vida"36. A Bbliaapresenta alguns exemplos de heronas que desempenharamum papel preponderante na histria de Israel. O Cntico dosCnticos um poema cujo tema o amor e cuja "musa" amulher37.

    Em contrapartida, abundam na Bblia os textosdesabonadores em relao mulher, a comear pela clebrecena do paraso em que a mulher a enganada, ela a primeirapecadora e tentadora do homem. Em conseqncia, ela devergerar os filhos em dor e ficar submetida ao marido (Gnesis,3:16). Tanto a legislao vetero-testamentria quanto acasustica judaica so sumamente misginas. bem conhecidoo tabu existente em torno ao sangue menstrual. Em Levtico,20:18 lemos: "Se um homem dormir com uma mulher duranteo perodo menstrual e tiver relaes com ela, ambos seroeliminados do meio do povo por terem posto a descoberto afonte do sangue". Um dos mandamentos (xodo, 20:17) probeexpressamente cobiar a mulher, o boi ou o jumento doprximo. O devoto israelita como o carpinteiro Jos louva eagradece a Deus "por no haberlo hecho ni gentil, ni mujer, niignorante"".

    O Novo Testamento continua na mesma linha bblica: amulher mantm uma discreta presena atravs de Maria, mede Jesus, de algumas mulheres que cruzam com ele (a

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    Samaritana e Maria Madalena) e de outras que o acompanham(Lucas, 8:1 ss). Mas no demorou o cristianismo a serinfluenciado pelo gnosticismo, e posteriormente pelomaniquesmo, doutrinas inimigas da matria, do sexo, doprazer e (portanto) da mulher. No da noite para o dia que ocristianismo vai se liberar do fardo vetero-testamentrio noque diz respeito aos preconceitos machistas. A menstruaoser vista durante vrios sculos atravs da tica bblica. Nosculo 7 Isidoro de Sevilla afirmava: "depois de tocar-se em(sangue menstrual) os frutos no brotam, as flores murcham,a relva seca (...) o ferro enferruja, o bronze enegrece, os cesque o cheiram contraem raiva"39.

    A narrativa de Saramago no que tange mulher segue oprocesso de desconstruo observado nos outros campos. submisso incondicional de Maria demonstrada na anunciao(Lucas, 1:38), corresponde a submisso ao marido nocumprimento dos "deveres" conjugais (p. 27). Na continuao derrubado o mito da concepo virginal de Jesus Cristo e,conseqentemente, a prpria virgindade de Maria. Depois derealizado o ato de que resultar o nascimento de Jesus e antesde iniciar os afazeres do dia-a-dia, Jos recita a beno, "sobretodas terrvel beno aos homens reservada""Louvado sejastu, nosso Deus, rei do universo, por no me teres feito mulher"(p. 27).

    Uma oportunidade mpar que temos para nosaproximarmos do universo feminino o nascimento de Jesuse os dias que o precedem. O casal est chegando a Belm,termo da viagem. O nascimento do primognito tambm seaproxima, acelerado pelos vaivns do caminho no jumento.Jos se preocupa; vai perguntar a Maria sobre as dores, masno se atreve. A esta altura, o narrador, numa das suascostumeiras intruses, alerta-nos: "lembremo-nos de que tudoisto sujo e impuro, desde a fecundao ao nascimento" E212

  • Rafael Alcarazdirigindo-se logo a Deus, exclama: "Meu Deus, por quequiseste que os teus filhos diletos, os homens, nascessem daimundcie, quando bem melhor fora, para ti e para ns, que ostivesses feito de luz e transparncia" (p. 78).

    Ouamos agora o que ensina a teologia, ou melhor, amariologia, a respeito da concepo e do nascimento de JesusCristo; observemos a coincidncia entre a ironia do textoficcional antes citado e o texto doutrinal a seguir:

    O ensinamento tradicional da virgindade noparto afirma que: 1) o hmen de Mariapermaneceu intacto, que 2) o parto foiindolor, e 3) que no houve secundinas oupreas (lat. "sordes", i. e., sujeira). Supe-se que Maria tenha tido Jesus como se elefosse um raio de luz (...) da forma como osespritos passam atravs dos corpos semresistncia".4

    O narrador do Evangelho, depois do seu arroubo mstico,volta realidade para informar-nos que o parto de Maria noapresentou nada de extraordinrio: "Zelomi j perdera a contas crianas que vira nascer, e o padecimento desta pobre mulher(Maria) igual ao de todas as outras mulheres" (p. 82). Aseguir ele nos relembra a maldio original donde tudo issoprocedeu e da insaciabilidade de Deus, apesar de tantos sculos"com tanta dor acumulada" (p. 83). Quanto ao filho, tampoucoh nada de especial: "O filho de Jos e de Maria nasceu comotodos os filhos do homens, sujo de sangue da sua me, viscosodas suas viscosidades e sofrendo em silncio" (Id, ibid.).

    Em suma, o Evangelho segundo Jesus Cristo derruba aMaria-me do pedestal em que os Evangelhos cannicos esobretudo a doutrina catlica a colocaram; e no seu lugarcoloca a Maria-amante. Maria de Magdala, prostituta (que

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    a partir do encontro com Jesus deixou de s-lo), que inicia opupilo Jesus na "ars amatoria", em que ela mestra e elecalouro. Ela o cura da ferida do p e alivia as chagas que oencontro com Deus no deserto provocara. A partir da semanade aprendizado que Jesus passa em Magdala, depois de terpassado quatro anos sob a tutoria de Pastor, essa Maria quaseemudece. Contudo, percebemos a sua discreta presena at oderradeiro momento. Ela para Jesus tudo o que a mulherpode ser para o homem.

    At agora vimos propriamente o que Deus, ou quempretende falar em nome dele, diz a respeito da mulher. Se agorainvertemos a ordem da pergunta, qual ser a resposta? Decertonada alvissareira. E aqui as duas Marias coincidem. QuandoJesus se mostra surpreso ante a idia esquisita que Maria deMagdala tem a respeito de Deus, ela responde: terias de sermulher para saberes que significa viver com o desprezo deDeus (p. 309). Esse o Deus da viglia. O dos sonhos no nada melhor: um "Deus medonho". Para Maria de Nazarele o Deus do no: "O Senhor no saberia viver de outramaneira. A palavra que mais vezes lhe sai da boca no osim, mas o no" (p. 312). Em contrapartida, exige do serhumano um incondicional sim: "eis a escrava do Senhor".

    H mais uma voz que, no sendo feminina, sobre asmulheres e provm de algum que, por ser da "ltima idade"(expresso de Saramago), assume valor de depoimento. avoz do velho Simeo, vspera da sua morte:

    Se a lei no tivesse feito calar as mulherespara todo e sempre, talvez elas, porqueinventaram aquele primeiro pecado de quetodos os mais nasceram, soubessem dizer-nos o que nos falta saber, (...) como geramos seres humanos que somos, se no seria

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  • Rafael Alcarazpor vontade delas, se que o sabem, quecada um de ns este pouco e este muito,esta bondade e esta maldade, esta paz e estaguerra, revolta e mansido" (pp. 64-65).

    Mais uma vez o "evangelista" Saramago colidefrontalmente com a hortodoxia crist-catlica. A mulher quase-divina do mundo cristo-catlico no passa de umarapariguinha, "dez reis de gente", "escrava do Senhor" (e domarido). J a outra Maria, alm de mulher prostituta,profisso que aderiu como reao (protesto?) ao "Deusmedonho". com ela que Jesus divide "o po da verdade" reminiscncia/pardia do po eucarstico? essa Maria queprovoca a fora taumatrgica na multiplicao dos pes e quea suspende quando Jesus est prestes a ressuscitar Lzaro.Enfim, ela a esposa do "Cntico dos Cnticos".

    Comparando o tratamento outorgado a essas duasmulheres pelos evangelhos cannicos, com o que lhes dispensado pelo evangelho saramaguiano, impossvel no vermaterializado nelas o paradoxo repetidas vezes evocado porJesus Cristo ao longo dos Evangelhos (Lucas, 14:11 e 18:14;Mateus, 23:12): todo aquele que se exalta ser humilhado, equem se humilha ser exaltado.

    ConclusoQueiramos ou no, o religioso, na sua vertente judaico-

    crist, permeia nossa cultura ocidental. Isso faz com queapaream ciclicamente obras de contedo cristo, umas comfinalidade apologtica ou proselitista, outras de natureza crticae at iconoclasta. Tampouco poderiam faltar as de teor literrio,isto , aquelas cuja finalidade principal, seno nica, aassinalada por Horcio: instruir e deleitar, ou, invertendo aseqncia, como prefere Northrop Frye.

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    Jos Saramago, agraciado com o Prmio Nobel deLiteratura de 1998, aproxima-se do mundo cristo atravs doliterrio; e o faz abordando justamente o p direito do enormeedifcio. O intuito certamente desconstrutivista, mas nonecessariamente destruidor ou arrasador. Ele comete a"heresia" de reduzir Jesus Cristo dimenso puramentehumana, enquanto as Igrejas crists eliminaram, na prtica, ahumanidade do seu fundador o que no menos hertico.

    No entanto, o Jesus do Evangelho realiza de tal maneiraa sua vocao humana que isso, no mnimo, o aproxima muitodo divino. Ele um tpico representante da espcie que sedebate com os problemas familiares, sociais e principalmentereligiosos. O bem e o mal, tradicionalmente associados comDeus e o Diabo, olhando para dentro de si mesmo, perdem osseus contornos maniquestas e nos fazem questionaresteretipos considerados inabalveis.

    Com a irreverncia prpria do ficcionista e em posse deum slido conhecimento do terreno em que se Movimenta,Saramago subverte, evangelicamente, o esquema dosEvangelhos cannicos. A proeminncia outorgada a Jos deNazar e a Maria de Magdala, com menoscabo do prprioJesus Cristo e de Maria de Nazar, no seno a aplicao doparadoxo evanglico: quem se exalta ser humilhado; ou talvezo cumprimento da antiga profecia: Deps os poderosos dosseus tronos, e os humildes exaltou (Lucas, 1:52; J, 12:19).

    sintomtico o recurso de Saramago ao termo cannicoeuangelion, boa nova, para dar ttulo a seu livro. Para aacademia o advento de um livro como o Evangelho certamente motivo de regozijo. Para os fundamentalistascristos de todo o contrrio. Se eles tivessem ainda o poderde outrora, condenariam fogueira o livro juntamente comseu autor. Ironicamente, aconteceu exatamente o contrrio com

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  • Rafael Alcarazo anncio do Prmio Nobel, um verdadeiro euangelion paraJos Saramago e tambm para seus leitores.

    NOTASAlfonso Reyes. Deslinde. Mxico: Fondo de Cultura Econmico, 1983.p. 188. Reyes compara a obra de fico com a pandorga que, mesmoremontando o vo elevado, permanece presa ao fio. Eis algo ainda maisexplcito a respeito: "le romancier ne doit pas s'loigner de la vie, maisla recopier fidlement". W. Kayser. Qui raconte le roman? Potique,n4, 1970. p. 65.B. Russell. Ensayos sobre Historia de la Cultura. Obras Escogidas.Premio Nobel. Madri: Aguilar, 1956. p. 312.Idem, p. 394.R. Wellek e A. Warren Teoria da Literatura. Traduo de J. Pablo eCarmo. Lyon de Castro, R. (ed.). Publicaes Europa-Amrica, 1976.p. 243.Assessor conciliar no Conclio Vaticano II, o Papa atual o desautorizoupara lecionar como "telogo catlico" por casa do seu posicionamentocrtico a respeito da infalibilidade papal. O livro que lhe acarretou oostracismo religioso titula-se Infalvel? uma investigao. "Convidado"para ir a Roma e explicar as suas teorias, Kng se recusou, considerandoa convocao um julgamento medieval.H. Kng On Being a Christian. Nova Iorque: Doubleday, 1976. p. 145.M. Eliade Mito e realidade. Traduo de P. Civelli. So Paulo: Perspectiva,1972. p. 8.

    R. Wellek e A. Warren, op. cit.., p. 238, nota 22.E. R. Curtius. Literatura Europia e Idade Mdia Latina. Traduo deT. Cabral e P. Ronai. So Paulo: USP/Hucitec. 1996. p. 121.Catecismo da Igreja Catlica, n 454. So Paulo: Vozes/Paulina/Loyola/

    Ave Maria, 1993.R. Lane Fox R. Bblia: verdade e fico. So Paulo: Cia das Letras,

    1993. pp. 34-5.M. Eliade, op. cit., p. 142.Citado por M. Eliade, op. cit., p. 142.H. Kng, op. cit., p. 132.

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  • O filho do homem...

    Idem, p. 143Arte Potica, 9-10.G. W. F. Hegel. O Belo na Arte. Traduo de O. Vitorino. So Paulo:

    Martins Fontes, 1996. p. 327.Idem, p. 332.Citado por V. M. Aguiar e Silva. Teoria da Literatura. Coimbra: Livraria

    Almeida, 1996. p. 216.Idem, ibidem, nota 83.U. Eco, citado por V. M. Aguiar e Silva, op. cit., pp. 219-20.Entrevista por escrito a M. T. Valadares em 18 de junho de 1997.J. Kristeva, citada por Aguiar e Silva, op. cit., p. 625. Outros autores

    distinguem intertextualidade de inter-textualidade. E com relao a estaltima observam: "we intend the concept of inter-textuality to refer tothe social organization of the relations between texts within specificconditions ofreading". M. Holquist. "Dialogism. Bakhtin and bis World".In: Terence Hawkes (ed.). New Accents. London and New York, 1994.p. 88.J. Kristeva, citada por Aguiar e Silva, op. cit., p. 626.C. L. Moraes Leite. O foco narrativo. So Paulo: tica, 1985. p. 11.M. Holquist, op. cit., p. 72.E. Orlandi. Interpretao. Autoria, leitura e efeitos do trabalho

    simblico. Petrpolis: Vozes, 1996. pp. 22-3.J. S. Neubauer. "Bakhtin versus Lukcs. Inscription of Homelesness in

    Theories of the.Nover. Poetics Today: Creativity and Exile. EuropeanAmerican Perspectives, v. 17, n. 4. Durham: Duke University Press,1996, p. 539.M. Holquist, op. cit., p. 70.J. Saramago. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. So Paulo: Cia das

    Letras, 1997. p. 362. As prximas citaes deste livro sero referenciadasno prprio texto, assim como os trechos bblicos, para uma melhoraproximao comparativa.

    31. Analepse, com o correlato prolepse, cunhadas por Genette, evocam aanfora e a katfora usadas em lingstica. O prprio Genette defineestes tipos de "anacronia narrativa", amplamente usados na narraoliterria, como "discordai' leias entre a ordem da histria e a da narrativa".Genette, G. Discurso da Narrativa. Lisboa: Vega, s/d. p. 34.

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  • Rafael Alcarazbvia referncia a Nmeros, 5: 12-28. o "ordlio", prova utilizada

    ainda na Idade Media para "saber" se a mulher suspeita de infedelidadeera ou no culpada. Se se intoxicava com a poo que era forada aengolir, no precisava de outra prova nem de punio...Lane Fox, op. cit..Vocabulrio de teologia bblica. Barcelona: Herder, 1966. p. 500.Uma traduo ao espanhol de is/issah : hombre/hembra, que mantm

    a aliterao introduzindo uma alterao semntica, pois o correlato dede "hembra" seria "varn".

    Vocabulrio de teologia bblica. Op. cit., p. 501.J. Gabei e C. Wheeler. A Bblia como literatura. Traduo de A. U.

    Sobral e M. E. Gonalves. So Paulo: Loyola, 1990Vocabulrio de teologia bblica. Op. cit., p. 502.U. R. Heinemann. Eunucos pelo Reino de Deus: Mulheres, sexualidade

    e a Igreja Catlica. Traduo de P. Fres. Rio de Janeiro . Rosa dosTempos, 1996, p. 33-4.

    40. Idem, p. 361. A autora do livro citado, Eunucos pelo reino de Deus,perdeu a ctedra de teologia na Universidade de Heilderberg, justamentepor defender uma tese contrria catlica, que ela considera ultrapassadae inverdica.

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