O Fim Da Polarização [Marcos Nobre]
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O fim da polarizao
Nada de PT ou PSDB: a verdadeira fora hegemnica da poltica brasileira o pemedebismo.
A partir das eleies de 2006, a disputa pelo ttulo de melhor governo da histria deste pas foi
politicamente decidida a favor de Lula, contra a era FHC. J o debate acadmico, em sentido
contrrio, parecia se encaminhar para entronizar (para o bem ou para o mal, dependendo da
avaliao) o Plano Real como marco de um novo perodo da histria brasileira. Foi quando o
cientista social Andr Singer, num artigo publicado em 2009 na revista Novos Estudos do Cebrap,
resolveu comprar a briga e estabelecer o lulismo como momento inaugural de uma nova era.
Segundo suas anlises, o governo Lula construiu um programa poltico ao longo de dois mandatos,
cuja base social estaria na massa popular desorganizada que conquistou, nesse perodo, substanciais
melhorias em seu padro de vida. Lula teria realizado uma operao poltica de troca de sua base
eleitoral e de apoio entre as eleies de 2002 e de 2006. Conforme a tese, ele abandonou a base
tradicional na classe mdia em favor de um subproletariado, caracterizado por um profundo e
disseminado conservadorismo. Foi nesses termos que Singer deu corpo e densidade expresso at
ento vaga do lulismo, levando a discusso a outro patamar.
Em textos mais recentes, Singer deu a esse suposto conservadorismo de massa profundidade
histrica, em registro local e internacional, por assim dizer. O lado nacional conecta a nova base
social de Lula a uma corrente social subterrnea que o levaria a Getlio Vargas e herana
populista dos anos 1940/1950 e que estaria ligada, no presente, a um povo lulista que deseja
distribuio de renda sem radicalizao poltica, como afirmou em artigo publicado na Folha de
S.Paulo.
J suficientemente inquietante a aproximao com um paternalismo avesso democracia. Tanto
mais que Singer nem mesmo distingue entre o Getlio Vargas da ditadura do Estado Novo e o
presidente eleito da dcada de 50. Mas a complicao fica ainda maior quando aproxima o lulismo
do New Deal dos Estados Unidos da dcada de 30, como fez em ensaio publicado na edio de
outubro de piau. Essa comparao com um momento passado da histria norte-americana pretende,
na verdade, apontar para o futuro para o Brasil que teria sido inaugurado pela era Lula e que teria
como imagem a formao da nova classe mdia dos Estados Unidos depois do perodo do
presidente Franklin D. Roosevelt.
A comparao com o New Deal parece deslocada por vrias razes. A comear pelo fato de que,
nos Estados Unidos, ele se seguiu a nada menos do que a crise de 1929. Ao contrrio de Obama
agora, Roosevelt chegou trs anos depois da maior catstrofe econmica da histria do capitalismo
em tempos de paz e encontrou o terreno propcio no obstante a derrota histrica nas eleies
legislativas de 1938 para alcanar um novo grande acordo social. Sem falar no fato elementar de
que o patamar de desenvolvimento social, econmico e democrtico dos Estados Unidos pr-1929
no tem base de comparao com o Brasil de 2002. E, tudo somado, um vaivm entre o New Deal,
Lula e o Estado Novo nem de longe pode ser considerado como uma operao inofensiva.
Seja como for, est ausente a referncia democracia e a uma cultura poltica democrtica tanto
no caso dos Estados Unidos como no caso do Brasil. Como se a presena ou ausncia da tradio e
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da prtica democrticas no fosse elemento estrutural para pensar qualquer aproximao ou
comparao entre situaes sociais e histricas distintas. De maneira crua, o que se tem na
argumentao de Singer o suposto de que aumentar a renda da populao pobre tem resultados
conservadores. Um pressuposto, alis, que no demonstrado. Surge como um economicismo de
novo tipo. No apenas por ignorar o papel das instituies e de uma cultura poltica democrtica
fenmenos superestruturais, como se costumava dizer no velho jargo marxista , mas por reduzir
a poltica ao reflexo de uma populao que compra e consome.
Com essa reduo, desaparece do horizonte tambm a crtica. Desaparece todo o universo de
obstculos efetiva democratizao da sociedade que caracteriza a poltica do pas. Desaparece a
imagem de uma sociedade amputada por uma representao poltica excludente, como o caso da
brasileira. Supor conservadorismo sem examinar as condies polticas concretas do
desenvolvimento da democracia naturaliza esse mesmo conservadorismo.
A situao outra quando se olha tanto o perodo FHC como o perodo Lula do ponto de vista mais
amplo do processo de redemocratizao iniciado nos anos 80. Dessa perspectiva, tanto o marco
representado pelo Plano Real quanto aquele representado pelo governo Lula se apresentam como
momentos de inflexo em uma linha de desenvolvimento que os precede e, em boa medida, os
determina. Ao mesmo tempo, apenas essa ampliao do horizonte que permite enxergar a cultura
poltica mais duradoura que caracteriza a sociedade brasileira, juntamente com sua forma mais
relevante e estrutural de obstruo democrtica. A essa cultura poltica herdada dos anos 80 dou o
nome de pemedebismo.
possvel ver o desenvolvimento da poltica do pas desde ento como uma sequncia de tentativas
de lidar com esse fenmeno fundamental, seja para combat-lo, seja para neutraliz-lo, seja para
dirigi-lo. De maneiras diferentes, tanto o Plano Real como o lulismo foram tentativas de controlar
o pemedebismo de fundo da poltica brasileira. Por isso, por mais importantes que paream e de fato
sejam, so momentos de inflexo em uma linha de fora muito mais duradoura e consistente.
A pemedebizao no tem a ver apenas com o crescimento ou a eventual hegemonia de um partido
dentro de um governo. Tem a ver com uma lgica. A ttulo de exemplo, basta pensar que uma figura
como Acio Neves pode perfeitamente ser pensado nesse registro. Se tiver a oportunidade e as
condies polticas para isso, certamente ele ser um smbolo do pemedebismo, mesmo que nunca
se transfira partidariamente para o PMDB e continue no PSDB.
O pemedebismo significa uma lgica, portanto. Lgica que, sim, se formou e se consolidou a partir
da configurao concreta do PMDB na dcada de 80, nas condies especficas em que se deu a
redemocratizao. Mas que se autonomizou em relao ao partido, mesmo que este continue ainda
hoje a ser o seu fiel depositrio na poltica brasileira.
Para entender esse movimento, preciso voltar trs dcadas e puxar o fio da meada desde l. O que
um exerccio bem distante de ser bvio no momento atual, em que a euforia da irresistvel
ascenso do pas condio de potncia mundial deixa ver com dificuldade o fato elementar de que
perodos de crise no foram a exceo, mas a regra, no quarto de sculo que vai de 1978 a 2003.
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Com a reforma partidria de 1980, o MDB, j ento PMDB, ganhou o importante problema de saber
como no se esvaziar, de como manter dentro da mesma legenda correntes, tendncias e mesmo
partidos inteiros que tinham poucas afinidades alm da unidade da luta contra a ditadura. Com o
pluripartidarismo, parecia que o sentido do MDB tambm havia se esgotado.
Ocorre que no s o MDB guardava um capital poltico de altssimo valor. Dispersar foras naquele
momento poderia significar tambm colocar inteiramente nas mos dos militares a transio
democrtica. Pois a antiga Arena tinha se tornado o PDS e conseguira manter a maior parte de seus
quadros. Se a oposio se dispersasse naquele momento, o Colgio Eleitoral de 1985 poderia eleger
um nome civil do PDS como presidente da Repblica, em lugar de Tancredo Neves.
Para conseguir manter dentro de um mesmo partido correntes e tendncias to heterogneas, a nova
sigla aperfeioou um sistema interno de regras de disputa que j funcionara durante a dcada de 70 e
que, a partir de 1983, precisava tambm incluir figuras de uma nova ordem de grandeza:
governadores de estado. Esse sistema pode ser descrito de maneira simples como um sistema de
vetos. (Coisa muito diferente e ainda mais complicada seria a de circunscrever a base social
desse pemedebismo, de to impressionante longevidade e vitalidade na poltica nacional, uma tarefa
que no cabe aqui).
um modo de fazer poltica que franqueia entrada no partido a quem assim o deseje. Pretende, no
limite, engolir e administrar todos os interesses e ideias presentes na sociedade. Em segundo lugar,
garante a quem entrar que, caso consiga se organizar como grupo de presso, ganhar o direito de
vetar qualquer deliberao ou deciso que diga respeito a seus interesses. Foi assim que o PMDB se
organizou a partir da dcada de 80. Como se o partido fosse, em si mesmo, um governo de unio
nacional.
Foi uma resposta tipicamente conservadora ao brutal descompasso entre uma democracia sem
instituies e a altssima participao popular nos anos 80, especialmente visvel no perodo da
Constituinte. Em lugar de democratizar aceleradamente as suas instituies, a poltica brasileira,
liderada pelo PMDB, construiu um sistema de filtros, obstculos e vetos que procurava represar e
atender seletivamente verdadeira enxurrada participativa que se viu naqueles tempos, indita na
histria do pas.
O essencial da cultura poltica inaugurada pelo PMDB na dcada de 80 o fato de que, desde o
declnio da ditadura militar, sua identidade deixa de se construir por oposio a um inimigo, real ou
imaginrio, e passa a ser construda com base em um discurso inteiramente andino e abstrato, sem
inimigos, cujo sentido mais importante garantir o sistema de ingresso universal e de vetos
seletivos.
Reafirma-se, ento, a viso realista de que a democracia no passa do exerccio da capacidade de
bloquear o oponente, no de enfrent-lo abertamente no espao pblico. Pressupe que maiorias no
se formam positivamente em favor de polticas determinadas, mas sim porque se mostram capazes
de desviar, contornar ou neutralizar vetos. No mais, uma cultura poltica que aceita mecanismos
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de participao e deliberao democrticos. Desde que no ameacem seriamente o sistema de vetos.
Mas essa lgica, digamos, inclusiva do pemedebismo tem seus limites. A poltica simplesmente
deixa de funcionar quando a polarizao desaparece. Quando todos esto, por assim dizer, includos,
quando esto aPTos e organizados para vetar, em algum momento vem a paralisia, uma tendncia
inscrita no prprio pemedebismo.
Na dcada de 80, a paralisia poltica coincidiu com a desorganizao econmica. Produziu uma
Constituio que contm muitas e diferentes constituies dentro de si o que, por razes que no
vm ao caso aqui, acabou por ser positivo para a sua consolidao. E culminou com uma inflao
inteiramente fora de controle e com a humilhante derrota de Ulysses Guimares na eleio
presidencial de 1989.
A desorganizao econmica tinha nome e sobrenome conhecidos. Chamava-se inflao, inflao
inercial. Teve papel central na manuteno do pacto de desigualdade brasileiro dos anos de
nacional-desenvolvimentismo, entre as dcadas de 30 e 80. Nos limites rgidos de uma economia
fechada e, na maior parte do sculo XX, de regimes autoritrios e/ou coronelistas, a inflao
auxiliou na promoo de desenvolvimento econmico rpido e intenso sem alterar
fundamentalmente os padres desiguais de distribuio de renda. Um pacto que pretendia se
sustentar na melhoria geral dos padres de vida. No foi por acaso que um dos primeiros atos da
ditadura militar de 1964 tenha sido o de institucionalizar a inflao sob a forma da correo
monetria.
Em um determinado momento, entretanto, a inflao deixou de ser o mecanismo mais eficiente para
a manuteno do pacto de desigualdade que caracteriza a histria brasileira, revelando divises e
disputas potencialmente desagregadoras no interior dos prprios estratos sociais privilegiados. Esse
foi no apenas o momento em que a inflao se tornou hiperinflao. A hora histrica coincidiu
tambm com o declnio da ditadura militar, com a redemocratizao e com o esgotamento do
modelo chamado nacional-desenvolvimentista. Foi esse n social que coube ao pemedebismo no
desatar.
A coincidncia histrica de hiperinflao e redemocratizao moldou um sistema poltico
programado para o quanto possvel impedir a formao de blocos hegemnicos capazes de impor
perdas definitivas a terceiras partes. E no difcil ver que a tarefa de superar simultaneamente a
hiperinflao e o modelo nacional-desenvolvimentista sem regresso autoritria no factvel em
uma configurao poltica como essa.
Para mostrar isso, basta lembrar que, at 1994, governos estaduais tinham no Brasil relevantes
instrumentos para fazer poltica econmica, independentemente do chamado governo central. E que
os tmidos ensaios de abertura econmica da dcada de 80 como a abertura para o investimento,
por exemplo foram feitos na margem e por polticas especficas de ministrios e rgos da rea
econmica.
Dito de outro modo, a resposta pemedebista cannica a do adiamento permanente de solues
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definitivas. Normalmente considerada como o perodo do ajuste estrutural nova etapa do
capitalismo mundial, a dcada de 80 foi, na verdade, a do adiamento do ajuste mediante a
manuteno da hiperinflao e do fechamento da economia. No de estranhar, portanto, que esse
adiamento estrutural leve, mais cedo ou mais tarde, paralisia.
O que explica tambm, do lado oposto, que a dcada tenha se encerrado com a opo
antipemedebista por excelncia, com a eleio de Fernando Collor. A paralisia pemedebista trouxe
seu oposto para o centro da arena poltica: Collor, com uma nica bala, queria matar a inflao e o
nacional-desenvolvimentismo. No fundo, a oscilao entre os extremos da paralisia pemedebista e
do cesarismo alucinado de Collor colocou as bases para o surgimento da nova verso do pacto de
desigualdade brasileiro representado pelo Plano Real.
A reorganizao que veio com o Plano de 1994 no alterou substancialmente a lgica pemedebista
o que, alis, no surpreende, se lembrarmos que o prprio FHC se formou na poltica partidria
dentro do MDB/PMDB. Mas o novo modelo de gerenciamento poltico do perodo FHC deu ao
pemedebismo direo e sentido, submetendo essa cultura poltica a um sistema bipolar que o
conteve em limites administrveis.
Em lugar dos dois extremos pemedebismo ou Collor FHC colocou a ponta seca do compasso em
um novo centro poltico, estabelecendo a partir da dois polos no sistema, um liderado pelo PSDB, o
outro pelo PT. Alm dos aliados histricos de cada um dos lados, a regra seria construir uma
coalizo de A a Z sob a liderana do polo no poder.
Como j deve estar claro a esta altura, controlar a inflao significava ao mesmo tempo controlar a
tendncia pemedebista da poltica brasileira. nesse sentido que a aliana PSDB/PFL foi,
literalmente, a outra face da moeda, do Real. Controlar a inflao no dependia apenas de um
aprendizado tcnico-econmico com os sucessivos fracassos dos planos anti-inflacionrios de 1986
a 1991: Cruzado (I e II), Bresser, Vero, Collor (1 e 2). Dependia ao mesmo tempo da construo de
um bloco poltico capaz de superar a crise estrutural de hegemonia da redemocratizao que
chamada aqui de pemedebismo. Ou seja, h um vnculo interno entre a inflao inercial e a
poltica inercial que se cristalizou sob a forma de sistema poltico a partir da dcada de 80.
Ao se aliar ao PFL e, posteriormente, a quem mais estivesse disponvel, o governo FHC estabeleceu
um campo de foras em que ao PT s restariam duas possibilidades: permanecer indefinidamente na
oposio ou fazer um movimento em direo ao centro poltico, com uma nova e mais flexvel
estratgia de alianas.
No caso de um movimento do PT em direo ao centro, a condio propriamente partidria imposta
pelo modelo era uma s: o partido conseguiria vir a governar o pas se, alm dos parceiros
histricos, viesse a se aliar ao PMDB. O que efetivamente aconteceu no governo Lula, ainda que
somente depois do cataclismo do mensalo. Mensalo, alis, que marca o ponto de chegada e o
apogeu da engenharia poltica do Plano Real. Foi quando, pela primeira vez em 25 anos, uma crise
poltica no afetou a economia.
Mas a histria ainda no chegou a 2005. Para chegar ao primeiro mandato de Lula preciso ainda
lembrar de pelo menos mais uma das mudanas estruturais decisivas introduzidas pelo Plano Real e
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que marcou o ocaso do poder dos governadores de estado, tradicionais candidatos a gerentes do
condomnio poltico pemedebista brasileiro. O primeiro movimento de neutralizao veio com a
prpria estabilidade da moeda, que teve um efeito devastador sobre a dvida pblica. Sem o
permanente adiamento representado pela inflao, os governadores se viram em dificuldades
oramentrias intransponveis e, do outro lado, encontraram no governo federal um duro negociador
na reestruturao das dvidas estaduais.
O segundo movimento foi concomitante. Retirando do mbito dos estados praticamente toda e
qualquer possibilidade de praticar poltica fiscal e monetria o que era comum no perodo
inflacionrio o governo federal garantiu o monoplio da irresponsabilidade fiscal, julgada ento
necessria para alcanar a estabilizao econmica pretendida. A mesma irresponsabilidade que
negou aos estados. No por acaso, foi o tempo mais quente da chamada guerra fiscal, em que os
governadores lanaram mo dos parcos e nicos recursos que lhes restaram para obter investimentos
em troca de isenes e benefcios tributrios e fiscais.
A concentrao dos principais instrumentos de poltica fiscal e monetria nas mos do governo
federal foi essencial para neutralizar essa que foi uma das principais fontes de alimentao do
pemedebismo na dcada de 80. E seu episdio inaugural e mais marcante ocorreu antes mesmo da
posse de FHC como presidente: a interveno no Banco do Estado de So Paulo, o Banespa,
realizada s vsperas da posse do governador do estado, at ento principal lder do PSDB, Mario
Covas.
Depois de perder sua segunda eleio presidencial em 1994, Lula tomou a deciso de fazer
mudanas significativas no PT, reorientando radicalmente sua estratgia. Tinha chegado concluso
de que o Plano Real havia alterado profundamente a lgica da poltica brasileira, a comear pelo
fato de ter resolvido o principal problema nacional, a inflao. Foi nesse momento que comeou a
ser construda tanto uma maioria partidria disciplinada como uma nova poltica de alianas
partidrias e eleitorais.
O movimento inaugural nessa direo foi a eleio de Jos Dirceu para a presidncia do PT. A partir
de 1995 e no sem conflitos com o prprio Lula, diga-se Dirceu implementou risca o plano,
isolando ou mesmo expulsando militantes e grupos polticos inteiros que se opunham nova
orientao, construindo um slido bloco de apoio majoritrio, e buscando estabelecer pontes com
partidos e figuras polticas at ento consideradas como inimigos. O pice dessa estratgia se deu na
eleio de 2002 e seu smbolo a candidatura a vice-presidente na chapa de Lula do empresrio
Jos Alencar, ento senador do hoje extinto PL.
Lula ganhou a eleio sem o apoio formal do PMDB. Mas no conseguiu estabilidade para governar
at o momento em que cumpriu o destino que lhe tinha sido reservado pelo arranjo imposto pelo
Plano Real. No que Lula no tenha tentado fugir a essa camisa de fora herdada. Ao contrrio,
escolheu inicialmente construir novas alianas apenas com a mirade de pequenos e mdios partidos
disposio e fazer acordos individuais com parlamentares do PMDB, no com o partido como um
todo, ou pelo menos com a poro dele que pudesse ser atrada para a base do governo.
Nesse momento de seu primeiro mandato, Lula operava ainda como rbitro do PT e no como
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presidente da Repblica. O governo estava dividido essencialmente entre faces do partido que
continuavam a se digladiar por espao como antes. E Lula continuava a ocupar a posio de ltimo
recurso que sempre ocupou nas disputas internas do partido, interferindo diretamente apenas
quando o seu prprio prestgio estava em causa.
Essa situao fez com que as figuras de Jos Dirceu e de Antonio Palocci se sobressassem e
passassem como que a canalizar todas as disputas internas ao governo em duas faces
concorrentes. Dirceu apoiado no PT, Palocci como porta-voz de outras foras partidrias dentro do
governo e do mercado financeiro. Por essa poca, as negociaes polticas eram extremamente
delicadas, j que Lula no autorizava (nem desautorizava, ao mesmo tempo) ningum a negociar em
seu nome.
Foi essa instabilidade estrutural que o levou a recusar, em 2004, o acordo com o PMDB construdo
durante meses por Jos Dirceu. Entre outras coisas, porque isso significaria tambm, nesse contexto,
dar poder demais a Dirceu na disputa interna. O resultado foi o abismo do mensalo. E a
consequente aliana formal com o PMDB, em 2005, momento em que Lula finalmente assumiu a
Presidncia da Repblica e o papel de articulador poltico de seu prprio governo.
E, quando parecia que o scriPT traado em 1994 estava sendo seguido risca, Lula deu o troco. Em
lugar de apenas se limitar a trazer o PMDB e o estritamente necessrio para a sustentao poltica
do governo, passou a ampliar sistematicamente o centro poltico estabelecido a partir do Plano Real
e a tornar quase impossvel a vida de um oposicionista. Com taxas de aprovao popular jamais
vistas, Lula investiu contra a lgica da polarizao que organizava todo o sistema. Manteve-a
apenas nos limites do necessrio para alcanar os efeitos eleitorais pretendidos. Mas, de fato, roubou
o cho do polo liderado pelo PSDB.
Lula esteve em condies de ampliar de tal maneira o centro poltico que a polarizao praticamente
desapareceu. Deu oposio a alternativa de aderir ou de se encantoar na extrema-direita. Ou seja,
no lhe deu alternativa. Ou lhe deu uma alternativa ainda mais estreita do que aquela que lhe tinha
sido imposta por FHC.
Esse movimento solapou de tal maneira as bases do sistema poltico do Plano Real que difcil
imaginar como elas poderiam ser hoje recompostas. O acordo selado em torno do centro poltico se
tornou de tal maneira amplo que toda e qualquer polarizao parece artificial. Artificialismo,
entretanto, que tem sua utilidade eleitoral, sem dvida. E que explica tambm por que a eleio de
2010 ficou entre o chocho e o abstruso, sem nada de realmente relevante entre as duas coisas.
Em uma sociedade que por muito boas razes, diga-se no acredita em consensos, o primordial
tentar garantir no ser atropelado por um dos propalados consensos do momento. Como por toda
a Amrica Latina, as eleies da ltima dcada significaram a ascenso de pobres e remediados
condio de representados polticos.
O que talvez seja especfico do caso brasileiro a maneira como ocorre a incluso. Tambm no
caso da representao do que Andr Singer chamou de subproletariado, tento mostrar aqui que o
mesmo mecanismo caracterstico da cultura poltica brasileira que se encontra em ao: o de igualar
estar includo com ter poder de veto.
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Lula representa quem nunca teve verdadeiramente representao, no porque simbolize um
conservadorismo que seria prprio aos excludos polticos, mas porque o fiador de que no haver
retrocesso nesse avano democrtico brasileira. Ao contrrio da ladainha conservadora, ser
representado no apenas ser objeto de polticas pblicas; igualmente acreditar que no ser
atropelado por mais um dos muitos consensos que o pas produz de quando em quando.
por tudo isso que penso que Andr Singer tem razo em dizer, no ensaio de piau, que durante
um tempo longo o norte da sociedade ser dado pelo anseio histrico de reduzir a pobreza e a
desigualdade no Brasil. Como me parece ter razo ao acrescentar em seguida: Em que grau e
velocidade, a luta de classes dir. Ocorre que a determinao do grau e velocidade depende
tambm de anlises polticas concretas, que sejam capazes de mostrar as tendncias do sistema.
Depende de uma anlise poltica capaz de vincular esse movimento prpria lgica da democracia
brasileira, com os potenciais e os obstculos ao seu aprofundamento. Do contrrio, a posio do
lulismo como pretenso momento inaugural de uma era perde o gume analtico e seu eventual poder
explicativo.
O que tento mostrar aqui que h uma tendncia paralisia no sistema poltico brasileiro cuja
lgica chamo de pemedebista, cujas razes devem ser buscadas na dcada de 80, no incio da
redemocratizao brasileira. Tento mostrar tambm que essa tendncia intrnseca impe
dificuldades estruturais produo de polarizaes consistentes e duradouras. E que o momento
atual de enfraquecimento da polarizao, um momento em que a paralisia pode suplantar uma vez
mais o sistema bipolar institudo pela lgica poltica do Plano Real.
No caso da reviravolta poltica de Lula examinada aqui, por exemplo, o alargamento do centro
poltico e o enfraquecimento da polarizao tiveram por consequncia trazer para o primeiro plano
justamente o pemedebismo, at ento subordinado e subterrneo. E essa novidade um elemento
determinante do grau e velocidade em que podero se dar ou no as transformaes no pas.
O marco do novo surto pemedebista pode ser representado pela resistncia de Jos Sarney na
presidncia do Senado apesar de uma saraivada de denncias, em 2009. O apoio decisivo de Lula
permanncia de Sarney na presidncia do Senado selou a aliana com o PMDB para a eleio
presidencial de 2010 e, ao mesmo tempo, marcou a volta do pemedebismo disputa pela hegemonia
da gramtica poltica brasileira. Ao contrrio de casos anteriores, que resultaram em renncia ou
cassao de mandatos, a permanncia de Sarney mostrou que o centro poltico ganhou tal amplitude
e poderio que pode em grande medida ignorar protestos sistemticos e generalizados da sociedade.
Uma contraprova do carter determinante dessa cultura poltica de fundo pemedebista est em que,
desde o primeiro mandato, Lula caminhou justamente por onde no encontrou vetos: nos aumentos
reais do salrio mnimo, na ampliao dos programas sociais, nas reformas microeconmicas do
crdito. Mas isso estava ainda longe da poltica desenvolvimentista do segundo mandato, que
induziu a criao de oligoplios nacionais com pretenses de internacionalizao.
Na nova poltica, os grupos escolhidos pelo governo como vencedores tinham todas as razes para
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comemorar, assim como os demais tinham motivo de sobra para se recolherem, evitando possveis
represlias. Alm disso, o crescimento econmico expressivo e praticamente contnuo tornou os
reais perdedores apenas residuais. Seja por que razo for, o fato que a nova orientao
desenvolvimentista no encontrou resistncia social e poltica relevantes. E, coincidncia ou no,
esse desenvolvimentismo movido a subsdios, desoneraes e subvenes s deslanchou com a
entrada definitiva do PMDB no governo, depois do mensalo.
To ou mais importante que isso, a chegada do PMDB ao governo Lula trouxe ainda um elemento
novo ao modelo de liderana bipolar herdado da engenharia poltica imposta por FHC. Lula criou
onde e como pde polticas sociais compensatrias. S que repartiu de maneira desigual os seus
dividendos polticos.
O PT ficou com a formulao, com o controle dos projetos e com o crdito de paternidade (ou
maternidade, como se queira). E o PMDB recebeu a maior parte da execuo das polticas
justamente a parte que contempla o poder local e abastece a poltica mida. O programa Luz para
Todos, no por acaso criado por Dilma Rousseff quando ministra das Minas e Energia, pode ser
visto como caso exemplar dessa lgica lulista de repartio de dividendos polticos.
justamente essa lgica de repartio de dividendos polticos que est ameaada de agora em
diante. E no apenas porque a prpria repartio ter de ser negociada. O sucesso do Plano Real e a
popularidade de Lula conseguiram ainda contrabalanar, conter e direcionar em alguma medida o
pemedebismo. Mas so eventos passados e irrepetveis.
Quanto mais se radicalizou a polarizao entre PT e PSDB, tanto mais o pemedebismo se imps.
No se trata de dizer sem mais que a polarizao falsa e que no h diferenas entre os dois polos.
Mas, quanto mais o pemedebismo avana, mais a polarizao amplificada artificialmente,
servindo manuteno de uma lgica poltica profunda que no nem petista nem tucana.
Durante dezesseis anos, o sucesso do Plano Real e os altssimos ndices de aprovao do governo
Lula permitiram manter sob certo controle a tendncia do sistema pemedebizao. Parece que no
mais. A possvel oposio se encontra hoje entrincheirada justamente em governos estaduais, o
lugar poltico menos propcio para enfrentar as coalizes de A a Z que caracterizam os governos
desde FHC. Alm disso, um Congresso ainda mais fragmentado serve de caldo de cultura poltica
ideal para a expanso do pemedebismo.
A ironia e a tragdia da histria esto em que o pemedebismo encontrou na blindagem da
economia contra interferncias polticas o elemento que lhe faltava para voltar a disputar a
hegemonia poltica, para sair de sua posio de relativa subordinao de mais de quinze anos para
um novo protagonismo. Note-se, alis, que o fiel depositrio do pemedebismo, o partido que lhe deu
origem, procurou mesmo se mostrar fiador dessa blindagem, filiando quadros to importantes e
incongruentes entre si como Henrique Meirelles e Delfim Netto. O resultado regressivo desse
processo visvel a olho nu: uma poltica que tende a se descolar da sociedade, uma poltica que
tende a se fechar sobre si mesma. E que, no limite, pode levar paralisia.
Tornado aliado em sentido enftico nas eleies de 2010, o PMDB vai levar a disputa entre situao
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e oposio para dentro do governo. por isso tambm que o tamanho nominal da bancada
parlamentar que apoia o governo tem menos importncia do que as matrias especficas em pauta,
do que o estado da disputa interna ao governo. Ou seja, a mais importante disputa poltica ser entre
o PMDB e o pemedebismo, de um lado, e o PT e seus possveis aliados, de outro.
No ser uma briga bonita de ver. As fbricas de dossis vo se multiplicar como nunca. J durante
a eleio de 2010, a ministra-chefe da Casa Civil, Erenice Guerra, foi a primeira baixa, o prenncio
do que vir. Sua queda d uma plida ideia de como sero os embates futuros.
A primeira das duas batalhas decisivas ser uma vez mais a eleio municipal a mesma, alis, que
esteve na origem do mensalo, importante lembrar. Depois de 2012, a segunda batalha
acontecer na data limite para parlamentares trocarem de partido sem penalidades, na segunda
metade de 2013. Enquanto isso, o PMDB far de tudo para colocar sob sua rbita de influncia o
maior nmero possvel de parlamentares de outros partidos.
A primeira escaramua que de maneira alguma ser decisiva acontecer na eleio para a
presidncia da Cmara e do Senado, no incio de 2011. Sendo que a figura de Jos Sarney aqui
emblemtica: o atual presidente do Senado e candidato reconduo ao cargo foi justamente o
presidente no auge do pemedebismo da dcada de 80. Sabe muito bem o que significa estar nas
mos de um Congresso que funciona segundo essa lgica.
No nem um pouco fcil imaginar o lugar que poder ter a oposio durante o governo Dilma. H
quem confie em supostas leis da poltica e ache que assim mesmo, que a oposio vai se
reorganizar e acabar aparecendo. Mas no so muitos esses otimistas cientficos.
No momento, resta oposio formal hibernar. Alis, tudo indica que tambm a disputa pela
liderana do PSDB ser durssima. Acio Neves decidiu ir para o tudo ou nada contra a pretenso de
Serra de presidir o partido. Se perder para o grupo paulista, Acio no permanecer no PSDB seno
o tempo suficiente para encontrar um solo alternativo para suas pretenses presidenciais.
Mas, mesmo quando conseguir se reorganizar, a oposio pode, no mximo, servir de massa de
manobra na disputa entre PT e PMDB. E manter a esperana de que o pemedebismo afinal vena e
venha a produzir a paralisia que lhe prpria. Isso seria capaz de dar novo flego oposio, talvez
em aliana com o prprio PMDB. Mas tambm esse no um cenrio alentador para a democracia
brasileira. Porque, no fundo, o jogo poltico no vai se dar entre situao e oposio, mas entre a
crise de um sistema organizado em polos e a pemedebizao.
Uma eventual hegemonia do pemedebismo tenderia a levar a uma situao semelhante ao estado de
paralisia poltica dos anos 80. Em termos concretos, poderia comprometer seriamente a Copa do
Mundo ou as Olimpadas, por exemplo, j que as obras de infraestrutura so as primeiras a serem
afetadas por uma crise poltica profunda. Marcaria o retorno da concomitncia entre crises polticas
e abalos na economia.
Seja como for, se no possvel prever os resultados de uma regresso poltica dessa magnitude,
pelo menos possvel dizer que, no mdio e longo prazo, sua efetiva ocorrncia exigir uma
-
reorganizao de grandes propores. Porque o sistema poltico no sobrevive sem polarizao. E a
polarizao dos ltimos quinze anos no tem mais densidade suficiente para organizar e estruturar o
sistema.
Um sistema em estado de no polarizao o elemento do pemedebismo. E, se um cenrio
regressivo no se deixa ver hoje em toda a sua possvel amplitude e gravidade, pelo menos suas
marcas mais gerais so bem visveis: um tempo de bonana, desigualdade e pequena poltica. Ou at
que uma nova polarizao se produza para superar uma vez mais a paralisia pemedebista.
Agradecimento
Maria Cristina Fernandes no tem nenhuma responsabilidade pelo que escrevi acima, mas sem
suas sugestes e crticas o texto simplesmente no seria o que .
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-51/ensaio/o-fim-da-polarizacao
Autor: Marcos Nobre
Revista Piau
Edio 51
Dezembro de 2010