O FOCO NARRATIVO EM ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS
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Universidade Federal da Paraíba Centro de Ciências Humanas Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Letras
ENEIDE DA SILVA CUNHA
O FOCO NARRATIVO EM ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS
João Pessoa/PB
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Universidade Federal da Paraíba Centro de Ciências Humanas Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Letras
ENEIDE DA SILVA CUNHA
O FOCO NARRATIVO EM ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS
João Pessoa/PB
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ENEIDE DA SILVA CUNHA
O foco narrativo em Angústia, de Graciliano Ramos
Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira.
Orientador: Prof. Dr. Arturo Gouveia de Araújo
João Pessoa – Paraíba
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ENEIDE DA SILVA CUNHA
O FOCO NARRATIVO EM ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras, Curso de Mestrado Acadêmico, do Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal da Paraíba. Orientador:
______________________________________________________
Prof. Dr. Arturo Gouveia de Araújo
Examinadores:
______________________________________________________
Prof. Dr. Diógenes André Vieira Maciel
______________________________________________________
Prof. Dr. Rinaldo Nunes Fernandes
João Pessoa, 29 de maio de 2006.
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AGRADECIMENTOS Ao meu orientador Prof. Dr. Arturo Gouveia de Araújo, que me proporcionou os conhecimentos indispensáveis para a reflexão acadêmica, com sua seriedade e competência. Ao meu esposo, pelo incentivo constante. As professoras Zélia Bora e Liane Schneider por acreditarem nesse trabalho ainda no processo de seleção. Ao professor Milton Marques, pela valiosa contribuição ao trabalho na qualificação. A Aristóteles, pela presença atenciosa e pelas longas conversas que nada tinham a ver com o texto, mas se tornaram lições de vida. Aos meus pais, minha fortaleza e refúgio. Pelo apoio e amor. Aos meus irmãos amados Enos, Enivaldo, Euline e Elisângela pela nossa união infinita. Ao amigo Hermano, por tudo. A todos os meus amigos, especialmente Rizolena e Helena, que me
ajudaram a segurar a barra quando tudo parecia tão difícil
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Resumo
Este trabalho apresenta uma análise sobre a obra Angústia, de Graciliano Ramos,
privilegiando os elementos formais da estruturação, tendo como categoria central o
foco narrativo, mais precisamente, as técnicas narrativas do fluxo da consciência e o
monólogo interior, utilizadas pelo autor na construção desse romance. Partimos do
princípio de que os fatores sociais e psíquicos que influenciam as ações e
pensamentos do personagem Luís da Silva atuam decisivamente na organização
interna da obra de maneira a constituir sua estrutura. Para tanto, tomamos como
base o método crítico de Antonio Candido, que busca compreender os mecanismos
sociais existentes no texto literário e a forma como eles atuam como componentes
da estrutura da obra. O foco narrativo foi utilizado como base estratégica para a
análise, mas foram abordadas também outros elementos estruturais, tais como,
narrador e personagem, tendo em vista as outras categorias analíticas com as quais
o foco narrativo se relaciona no processo de análise do romance. O estudo da obra
Angústia, à luz dos conceitos do foco narrativo monólogo interior, foi importante à
medida que nos deu a dimensão da atualidade e inesgotabilidade interpretativa da
obra de Graciliano Ramos.
Palavras-chaves: Graciliano Ramos, Angústia, foco narrativo, fluxo de consciência,
monólogo interior.
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ABSTRACT
This working to present an analysis of the work Angústia (distress/anguish) by Graciliano Ramos. It’s focused formal elements of the structure. As having central category the narrative focus emphasized the narrative tecnique to the streamof consciousness and the interior monologue. It is usedto the writer in this romance building. Going at the sourse that social and psychical factors influenced the caracter Luís da Silva in his actions and thoughts. It's contribued on the internal structure work building organization. therefore, taking as base the critical metod by Antonio Candido that try to understand the social means exist on the literacywork and the way like their contribute as structure work compounds. The narrative focus was using as strategic basis to the analysis but were also broaching another structural elements as narrator and character. on the other hand, it’s focusing other categories like the relation between the narrative focus and the romance process analysis. the work study of Angústia (distress) under concept of narrative focus and interior monologue was very important to understand a litle bit Graciliano Ramos’s work Key words: Graciliano Ramos, Angústia, narrative, focus, stream of consciousness, interior monologue.
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SUMÁRIO Pág. Resumo...................................................................................... Introdução..................................................................................
i
01
I. Fundamentação Teórica........................................................
07
1. O foco narrativo.......................................................................................
07
1.1. Três opções teóricas............................................................................ 07 1.2. A questão do fluxo da consciência....................................................... 13 1.3. A narrativa – parafuso.......................................................................... 19 II. Análise Textual......................................................................
27
1. Apresentação do enredo.........................................................................
27
2. O externo x interno..................................................................................
40
3. Caracterização do personagem...............................................................
48
3.1. Pessimismo e negatividade.................................................................. 49 3.2. A angústia duplicada............................................................................ 57 4. Indícios de uma epopéia negativa...........................................................
63
III. Considerações finais...........................................................
73
IV. Bibliografia...........................................................................
77
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Introdução
A evolução do romance brasileiro no século XX, mais precisamente do
período de 1930 a 1945, pode ser considerada uma das etapas mais prósperas da
literatura brasileira. Pode-se afirmar que a ficção brasileira ganha autenticidade e
fisionomia inconfundíveis, graças ao trabalho dos escritores desse período.
Graciliano Ramos emerge dos escritores da chamada geração de 30 como
exemplo de excelência literária, de coragem política e de dignidade no
enfrentamento do autoritarismo da era Vargas.
A crítica evidencia, no estilo de Graciliano Ramos, a ausência de
sentimentalismo, uma extraordinária capacidade de síntese e uma linguagem
rigorosa, enxuta e concisa. Suas obras Caetés, (1933), São Bernardo, (1934), e
Angústia, (1936), são romances escritos em primeira pessoa, nos quais as narrativas
se prendem à análise do mundo interior, sem desprezar o contexto sócio-político em
que vive cada personagem. Nas narrativas escritas em terceira pessoa Vidas Secas,
(1938), Insônia, (1947), prevalece à visão da realidade social sobre a análise
psicológica dos personagens.
As narrativas autobiográficas Infância, (1945) e Memórias do Cárcere, (1953),
estão presas à subjetividade do autor, mas não são apenas um relato puro e simples
do sofrimento e humilhações do homem Graciliano Ramos. São também uma
análise do contexto histórico e social da época em que foram escritas. A obra de
Graciliano Ramos é considerada pela crítica uma das melhores ficções produzida
pela prosa modernista e um dos pontos altos da nossa literatura em todos os
tempos.
A obra abordada neste estudo, Angústia, é o terceiro romance de Graciliano
Ramos. Do ponto de vista técnico, Angústia é considerado a obra mais complexa e
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inovadora do escritor. Não apresenta divisão estrutural em capítulos, apresentando
apenas como marco divisório alguns asteriscos. Possui uma estrutura
autobiográfica, narrado em primeira pessoa por um homem atormentado por
acontecimentos de seu presente, lembranças que se confundem, a infância, o
isolamento e o complexo de inferioridade. O tempo da narrativa é psicológico, as
referências temporais são captadas no passado através de digressões que se
juntam aos dramas do presente, provocando o entrelaçamento temporal sem
indicação de passado e presente, o que, na estrutura da obra, configura-se como
desordem e fragmentação de idéias.
O foco narrativo é a perspectiva dentro da qual se estrutura o discurso do
narrador. Na corrente narrativa, tudo e todos se dispõem como projeção o próprio
narrador, submetendo-se à sua visão. O foco narrativo se articula orgânica e
especificamente com outros elementos na construção da obra literária e o principal
deles, no caso de Angústia, é o narrador, Luís da Silva, cuja personalidade tem
repercussões formais e decisivas na narrativa. Dessa forma, o ponto de vista
adotado no romance traz conseqüências significativas para a composição da obra.
A proposta deste trabalho é fazer uma análise da obra Angústia, de Graciliano
Ramos, privilegiando os elementos formais da estruturação. Tendo como categoria
central o foco narrativo, mais precisamente, as técnicas narrativas do fluxo da
consciência e o do monólogo interior, utilizadas pelo autor na construção desse
romance. Partiremos do princípio de que os fatores sociais e psíquicos que
influenciam as ações e pensamentos do personagem Luís da Silva atuam
decisivamente na organização interna da obra de maneira a constituir sua estrutura.
Tomando por base esses fatores, procuraremos analisá-los como agentes da
estrutura narrativa, alinhando-os entre os fatores estéticos, considerando-os como
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elementos responsáveis pela composição e pelo significado da obra, associando-os
para formar um todo. Nesse caso, todos os aspectos apresentam uma
funcionalidade na cadeia narrativa do romance em estudo.
A fundamentação teórica baseia-se nos seguintes livros: Foco narrativo e
Fluxo da Consciência, de Alfredo Leme Coelho de Carvalho; O Discurso da
Narrativa, de Gerard de Genette; Fluxo da Consciência, de Robert Humphrey, e o
ensaio “A Meia Marrom”, inserido no livro Mimesis, de Erich Auerbach, que
apresenta uma análise do fluxo da consciência. Esses autores apresentam o foco
narrativo como sendo um problema técnico de ficção que supõe questionar quem
narra, como e de que ângulo. Para alguns desses críticos o foco narrativo é
sinônimo de ponto de vista, para outros, perspectiva ou mesmo narrador.
Tendo em vista a estreita relação entre foco narrativo e narrador, utilizaremos
ainda o ensaio “O Narrador”, de Walter Benjamin e “A posição do narrador no
romance contemporâneo”, de Theodor Adorno. Ele amplia o problema do narrador
para além das implicações meramente técnicas.
A fundamentação crítica baseia-se nos livros Tese e Antítese e Ficção e
Confissão, ambos de Antonio Candido, nos quais o autor faz uma ampla abordagem
da prosa de Graciliano Ramos, abordagem esta que apresenta os argumentos
necessários para subsidiar a análise. Utilizaremos, também, o livro A Ponta do
Novelo, de Lúcia Helena Carvalho, que faz uma ampla interpretação da obra em
estudo, principalmente no que se refere à cadeia narrativa, possibilitando assim sua
utilização como base para ser aplicada à análise do texto de Graciliano Ramos.
Esses livros fornecem uma ampla abordagem, de forma clara e sistemática,
que nos permite situar foco narrativo e fluxo de consciência no texto ficcional em
estudo.
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Sendo a primeira obra brasileira a utilizar o fluxo da consciência como recurso
narrativo, Angústia é um romance que se destaca por apresentar inúmeras
inovações literárias, rico em recursos descritivos, monólogos e análise introspectiva,
o que secundariza a realidade objetiva.
Por ser uma narrativa impressionista, em que o narrador imprime aos fatos
uma visão subjetiva espontânea, caracterizada pela ausência de uma elaboração
mais consciente, Angústia pode ser considerada uma forma de ficção onde
predomina o fluxo da consciência. Este, apresenta, através da linguagem truncada
ou desordenada, o pensamento ainda não claramente formulado do ponto de vista
lógico-lingüístico, pois procura exprimir a fluida realidade psíquica quebrando os
moldes da linguagem tradicional. Essa técnica apresenta uma livre associação de
idéias que é fruto de um monólogo interior do personagem Luís da Silva. Neste, os
pensamentos se sucedem de maneira associativa e não em ordem lógica, em que o
ponto de vista central se reduz simples e absolutamente à da posição do narrador,
segundo uma focalização interna do personagem.
Pode-se afirmar que em Angústia todos os acontecimentos e pensamentos do
personagem têm significados múltiplos, apesar da impressão tão pessoal e
monológica transmitida do narrador.
O estudo dessa obra, à luz dos conceitos de foco narrativo e monólogo
interior, é importante à medida que nos dá a dimensão da atualidade e
inesgotabilidade interpretativa da obra de Graciliano Ramos. Diante disso, Angústia
constitui um verdadeiro convite à análise e ao estudo em todos os seus aspectos
estruturais e semânticos.
Tomando como base o método crítico de Antonio Candido, que busca
compreender os mecanismos sociais existentes no texto literário e a forma como
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eles atuam como componentes da estrutura da obra, faremos uma análise da
estrutura narrativa de Angústia, privilegiando os aspectos formais da estruturação
que serão associados aos fatores psicológicos e sociais que interferem em sua
constituição. Para tanto, dividimos nosso estudo em duas partes: a primeira parte,
intitulada “Fundamentação teórica”, aborda questões relativas ao foco narrativo.
Nessa análise, apresentamos as opções teóricas que serão utilizadas para
abordagem do foco narrativo em Angústia; as técnicas narrativas modernas que
serão utilizadas por Graciliano Ramos para representar o que acontece no interior do
personagem Luís da Silva. Abordaremos, ainda, a pertinência de uma categoria de
análise, criada por Lúcia Helena Carvalho, a narrativa-parafuso.
Para melhor desenvolvimento do trabalho, dividimos a segunda parte,
intitulada “Análise textual”, em três itens: apresentação do enredo; caracterização do
personagem; indícios de epopéia negativa.
No primeiro apresentamos de forma linear o enredo de Angústia. No segundo,
partindo do conceito de personagem cunhado por Antonio Candido, bem como
utilizando outras abordagens críticas e teóricas que contribuem para a compreensão
do personagem Luís da Silva, analisamos o processo de construção do personagem
e suas implicações na estruturação formal da narrativa, aspecto primordial para a
nossa proposta de análise. No terceiro, partindo das considerações de Theodor
Adorno sobre “A posição do narrador no romance contemporâneo”, procuramos
apresentar, com base na ação do personagem Luís da Silva, um novo olhar sobre o
romance Angústia.
Procuramos analisar a obra balizados por vertentes contemporâneas dos
estudos literários, tendo sempre a teoria como ponto de partida para a análise,
buscando sempre a centralidade do texto, nosso norte durante toda a análise.
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I. Fundamentação Teórica
1. O foco narrativo
1.1. Três opções teóricas
A questão do ponto de vista na narrativa vem sendo tratada com seriedade e
persistência na teoria da literatura. É possível considerá-lo um recurso de grande
importância para o entendimento de uma obra literária.
Desde sempre a questão do foco narrativo preocupou quem abordasse os
domínios da teoria literária, porém, essa questão é muito complexa para ser contida
em algumas definições.
As classificações criadas pelos críticos literários são úteis, mas não podem
abarcar plenamente as inovações contidas em uma obra literária, sobretudo as do
século XX.
Para abordarmos o foco narrativo em Angústia, de Graciliano Ramos,
partiremos basicamente de três concepções teóricas. A primeira delas é a de
Pouillon, que apresenta uma teoria das visões na narrativa, articulada à questão do
tempo. A segunda concepção utilizada será a sistematização feita por Friedman, na
qual ele estabelece uma tipologia com oito categorias de narrador.
A terceira concepção teórica é a de Genette, na qual ele propõe que vejamos
o foco narrativo como uma focalização que pode ser interna ou externa, dependendo
da posição focal do narrador.
Pouillon (1974), em sua obra O tempo no romance, apresenta três formas de
análise da relação narrador-personagem: a visão “com”, a visão “por detrás” e a
visão “de fora”. Para Pouillon, ao analisar as posições de existência dos
personagens, nós determinamos as visões possíveis da narrativa.
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Na visão “por detrás” o narrador domina todo um saber sobre a vida do
personagem e sobre o seu destino. Ele é onisciente, saber de onde parte a para
onde se dirige a narração, o que pensam, fazem e dizem os personagens. O
narrador encontra-se distanciado do personagem. A finalidade deste distanciamento
é mostrar o personagem de uma posição privilegiada, pois o narrador não se
encontra “dentro” do mundo descrito, mas “por detrás dele”, como um demiurgo ou
como um espectador que conhece todos os lados da narrativa.
Neste tipo de visão não é o personagem que se mostra impondo-nos uma
visão que dele deveremos ter, mas o narrador é quem escolhe a sua forma de
mostrar o personagem. Em um romance “por detrás” o narrador nos apresenta de
forma transparente e imparcial tanto os personagens como o mundo em que vivem.
Este tipo de visão não se aplica ao romance Angústia, pois neste romance o
narrador, que também é o personagem, nos apresenta o mundo de forma subjetiva e
parcial; dessa forma, temos apenas sua visão sobre os demais personagens e o
mundo em que vivem.
Na visão “de fora” o narrador limita-se a descrever os acontecimentos, falando
do exterior, o que não permite um adentramento nos pensamentos, emoções,
intenções ou interpretações dos personagens, a visão “de fora” corresponde a uma
narrativa baseada na observação de fatos externos. O narrador nos apresenta o
exterior dos personagens de maneira progressiva, revelando suas características
físicas, o seu caráter, limitando-se a descrever a conduta do mesmo.
Segundo Pouillon, através da descrição aprofundada do exterior de um herói,
é possível termos a impressão de conhecer diretamente o seu caráter. Essa visão
externa da narrativa não se aplica ao romance Angústia, pois nesse romance a
abordagem é interna. É possível adentrarmos na mente do personagem, ter acesso
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aos seus pensamentos, suas emoções, intenções e interpretações. Mesmo quando
o narrador apresenta fatos externos, eles estão filtrados de forma subjetiva pela
mente do personagem, cuja visão conduz a narrativa, não se limitando apenas a
descrever os fatos, pessoas e situações narradas como ocorre na visão “de fora”.
Por último temos a visão “com”, na qual um único personagem constitui o
centro da narrativa, ficando esta limitada ao campo mental de um só personagem,
podendo estar em primeira ou terceira pessoa. A visão “com” é a que melhor se
aplica a Angústia, pois um único personagem, Luís da Silva, constitui o centro da
narrativa, ficando esta limitada ao campo mental deste personagem.
É a partir de Luís da Silva que vemos os outros personagens, é “com” ele que
acompanhamos os acontecimentos narrados e sabemos o que se passa com ele,
sempre a partir dele mesmo.
Ver “com”, segundo Pouillon, é ver o que se vê tal como isto se apresenta à
pessoa com quem se está. Trata-se, portanto, de uma visão do exterior a partir do
interior; essa visão é significativa por ser interiorizada pelo personagem, ou seja, o
que vemos é reflexo do que o personagem vê ou acha que vê.
Nesse romance, o centro de onde procede a descrição e a compreensão dos
demais personagens é evidentemente Luís da Silva, esses personagens serão
compreendidos dentro do pensamento dele, em cujo íntimo nos colocamos desde o
início da narrativa.
Para justificar essas afirmações, podemos tomar como exemplo a descrição
de Marina, a vizinha nova do narrador, por quem ele irá se apaixonar: “Era uma
sujeitinha vermelhaça, de olhos azuis e cabelos tão amarelos que pareciam
oxigenados” (ANGÚSTIA, 1998. p.33).
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Ao longo da narrativa, Luís da Silva vai caracterizando Marina como uma
mulher vulgar, muito jovem e ambiciosa ao extremo. Marina existe apenas em
imagem, o que significa que a descrição de Marina faz parte essencialmente da
compreensão que obtemos através de Luís da Silva, adquirimos a respeito dela um
conhecimento que é fruto das informações que nos são dadas por ele.
Luís da Silva vê Marina sentimentalmente, ou seja, em função do sentimento
que nutre por ela. Nós vemos Marina “com” ele. Quando o narrador, Luís da Silva,
analisa um determinado personagem ou uma determinada situação, não se trata de
uma análise impessoal e sim uma análise afetada por sua interioridade e recebemos
dele a imagem que ele concebe dos outros. O modo como ele analisa Julião
Tavares, Marina, seu Ramalho, dona Adélia, seu Ivo, o pai, o avô, entre outros
personagens, é sempre afetado pela sua visão subjetiva: vemos os outros “com” ele
e a partir dele.
No romance Angústia, quando o personagem central se encontra com um
outro protagonista, tudo que é narrado faz parte da compreensão deste
personagem. Num romance “com” são as inúmeras impressões do personagem que
nortearão a narrativa.
Friedman (2003), em seu ensaio “O ponto de vista na ficção”, ao tratar do
foco narrativo, sistematiza os principais problemas relativos a este tema. Para
operacionalizar essas questões ele estabelece uma tipologia de oito narradores.
Ao procurar classificar o narrador de Angústia, de acordo com a tipologia de
Friedman, constatamos que a categoria que melhor se aplica a essa narrativa é a do
narrador protagonista, na qual o narrador aparece representado por um
personagem, que conta sua própria história, em primeira pessoa, narra a história de
um centro fixo e, por não ter acesso ao estado mental das demais personagens, fica
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limitado exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos. É
justamente esse tipo de narrador que Graciliano Ramos utiliza na construção do
romance Angústia.
Em Angústia, é do ponto de vista do personagem, Luís da Silva, que tudo é
visto e narrado, a narrativa está centrada neste personagem, ele é o centro do relato
e o leitor verá as outras personagens e seguirá a história ancorado nele.
Diante disso, temos no romance uma abordagem interna, pois Luis da Silva
conta sua própria história, o que faz com que tenhamos representada na obra uma
visão mais restrita, tendo em vista que a finalidade do narrador é narrar a si mesmo.
Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas, umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios (ANGÚSTIA, 1998, p.7).
Nas primeiras linhas da narrativa, já tomamos conhecimento da inquietação
interior do personagem. Ele nos relata que se sente confuso e perturbado por
sombras que se misturam à realidade. A história vai sendo contada sob a forma de
um diário, no qual predomina uma introspecção permanente e uma exacerbada
tendência à auto-análise por parte do narrador, que vai confessando para si mesmo,
a história de um amor mal resolvido e de um crime.
Na narrativa tudo é apresentado pela ótica de Luís da Silva, a história vem
filtrada diretamente da mente do personagem, o que, apesar de restringir a visão de
outros ângulos da narrativa, contribui para o delineamento mais cuidadoso das
motivações psicológicas deste personagem.
Ao analisar a categoria do modo narrativo e suas várias nomeações (visão,
ponto de vista, perspectiva ou mesmo narrador), Genette (1995) propõe uma nova
tipologia para a classificação do foco narrativo: as focalizações.
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Para classificar a obra segundo essa tipologia, Genette toma por base a
posição do personagem que narra a história: esse personagem desempenhará a
função de focalizador.
Com base na posição focal do personagem que conduz a corrente narrativa,
Genette estabelece três formas de focalização: a focalização zero ou narrativa não
focalizada, que corresponde ao modo narrativo clássico; a narrativa de focalização
interna, que pode ser fixa, variável ou múltipla, conduzida do ponto de vista de um
personagem inserido na história; e por fim a narrativa de focalização externa, na qual
o narrador refere-se de modo objetivo aos eventos e personagens que integram a
história, não estando inserido no universo diegético.
O tipo de focalização que melhor se aplica a Angústia é a focalização interna,
pois o ponto de vista central se reduz simples e absolutamente à posição do
narrador, que conduz a narrativa de forma subjetiva estando completamente inserido
na diegese.
Segundo Genette (1995, p.191): “A focalização interna só se encontra
plenamente realizada na narrativa em monólogo interior”.
Em Angústia, a narrativa é predominantemente introspectiva e monológica,
temos um denso monólogo interior que é fruto dos traumas do personagem focal, o
que permite a utilização da focalização interna como base para a análise do foco
narrativo.
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1.2. A questão do fluxo da consciência
Para registrar o drama que tem lugar dentro da consciência individual do
personagem Luís da Silva e mimetizar estruturalmente, na narrativa, essa
consciência esfacelada, os complexos e os conflitos interiores vividos pelo
personagem, Graciliano Ramos aplica algumas técnicas narrativas modernas que
são utilizadas para representar o que acontece no interior do personagem: são elas
o monólogo interior e o fluxo da consciência.
O monólogo interior, segundo Humphrey (1976, p.22) :
É a técnica usada na ficção para representar o conteúdo e os processos psíquicos do personagem, parcial ou inteiramente inarticulados, exatamente como esses processos existem em diversos níveis de controle, níveis de controle consciente antes de serem formulados para fala deliberada.
Observemos os trechos abaixo:
Se pudesse, abandonaria tudo e recomeçaria as minhas viagens. Esta vida monótona, agarrada à banca das nove ao meio-dia e das duas às cinco, é estúpida. Vida de Sururu. Estúpida. Quando a repartição se fecha, arrasto-me até o relógio oficial, meto-me no primeiro bonde de Ponta da Terra [...] Que estará fazendo Marina? Procuro afastar de mim essa criatura. Uma viagem, embriaguez, suicídio... [...] Penso no meu cadáver, magríssimo, com os dentes arreganhados, os olhos com os dentes arreganhados, os ,cruzado no peito fundo... [...] Esforço-me por desviar o pensamento dessas coisas. Não sou um rato, não quero ser um rato [...] (ANGÚSTIA,1998, p.9).
Temos nesses trechos representações dos conteúdos e processos psíquicos
do personagem, exatamente da maneira como vão acontecendo na mente dele, sem
que ele verbalize através da fala qualquer um desses pensamentos. Em meio ao
monólogo interior, ficamos sabendo que ele sente vontade de abandonar tudo e
voltar a viajar, não suporta a monotonia da repartição, pensa em Marina, mas
procura afastar de si essa criatura, pensa no seu cadáver. Porém, ele se esforça
para desviar o pensamento dessas coisas.
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Quanto mais o conflito interno vai se adensando, mais os pensamentos vão
povoando a narrativa e o fluxo da consciência do personagem nos vai sendo
apresentado no desenrolar do drama. Dessa forma, Angústia pode ser caracterizada
como uma ficção onde predomina o fluxo da consciência.
Fluxo da consciência é um termo criado pelo psicólogo Willians James para
exprimir a forma como acontecem os processos mentais. James criou esse termo
para mostrar que a consciência não é fragmentada em partes sucessivas e
conjuntas, não há junções, mas um fluxo contínuo de processos psíquicos.
A consciência [...] não aparece a si mesma talhada em pedaços. Palavras tais como “cadeia ou sucessão” não a descrevem adequadamente como ela se apresenta na primeira instância. A consciência não é algo juntado; ela flui. Um “rio” ou um “fluxo” são as metáforas pelas quais ela é mais naturalmente descrita. Ao falar dela, daqui por diante, chamemo-la o fluxo do pensamento, da consciência ou da vida subjetiva. (JAMES, 1979, p.132, grifo do autor).
Ao analisar a busca de alguns ficcionistas modernos por formas de
representação da consciência dos personagens e da continuidade de seus
processos mentais, tomando por base o termo criado por James, Humphrey (1976,
p.4) define a ficção de fluxo da consciência “como um tipo de ficção em que a ênfase
principal é posta na exploração dos níveis de consciência que antecedem a fala com
a finalidade de revelar, antes de mais nada, o estado psíquico dos personagens”.
No ensaio “A meia marrom”, através de um fragmento do romance de Virginia
Woolf – To the lighthouse –, Auerbach (1987) analisa o fenômeno da ficção moderna
que se estrutura desestruturando-se aparentemente, pela tentativa de expressar o
procedimento mutável e contraditório do psiquismo humano, alterando também,
radicalmente, as noções de tempo e de espaço. E com essas alterações
naturalmente o foco narrativo muda no sentido de concorrer para o aprofundamento
subjetivo.
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No ensaio “A posição do narrador no romance contemporâneo”, Adorno
(2003), reflete sobre a ficção moderna e sua tendência para assumir, cada vez mais,
a subjetividade, fugindo do preceito épico da objetividade na narrativa.
É esse tipo de ficção que Graciliano Ramos nos apresenta em Angústia, não
num nível radical, de completa ruptura, porém num nível mais tímido. Em Angústia,
através da memória associativa do narrador, acompanhamos seus fluxos de
consciência e seus estados emocionais. A narrativa é marcada por momentos de
puro delírio confessional.
Essa narrativa atormentada é feita a partir de um estilo digressivo, confuso e
caótico, porque resulta de um estado mental de confusão e sofrimento. O narrador
Luís da Silva é um indivíduo atormentado, inseguro, marcado por um complexo de
inferioridade e por uma baixa auto-estima.
O relato procura traçar o perfil psicológico de um indivíduo atormentado pela
traição, pelo sentimento de perda e pelo complexo de inferioridade. Ao longo da
narrativa tomamos conhecimento de uma série de complexos que rodeiam o
narrador. Em vários momentos é possível observar o forte complexo de inferioridade
que marca o narrador:
[...] me desprezam porque sou um pobre-diabo[...] tipos bestas. Ficam dias inteiros fuxicando nos cafés e preguiçosos, indecentes. Quando avisto essa cambada, encolho-me, colo-me às paredes como um rato assustado. Fujo dos negociantes[...] (Angústia, 1998, p.8). [...] a mesa a que me sento fica ao pé da vitrina dos cigarros. É um lugar incômodo: as pessoas que entram e as que saem empurram-me as pernas. Contudo não poderia sentar-me dois passos adiante, porque às seis da tarde estão lá os desembargadores. (ANGÚSTIA, 1998, p.24).
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A forma como Luís da Silva foge das outras pessoas no café, sente-se
desprezado, e até o lugar que ele escolhe para sentar-se, denotam seu grande
complexo de inferioridade. O próprio narrador diz que, ao sentar-se próximo da porta
do café, sente-se “[...] uma criaturinha insignificante [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p.24).
O narrador, com sua mania de auto-análise, torna o relato uma rememoração
de suas angústias mais íntimas. O que se configura na obra pela presença de
intermináveis digressões e devaneios do narrador.
Seu Ivo, silencioso e faminto, vem visitar-me [...] não quero vê-lo, baixo os olhos para não vê-lo [...] seu Ivo está invisível. Ouço a voz áspera de Vitória e isto me desagrada. Entro no quarto, procuro um refúgio no passado [...] não sou o que era naquele tempo. Falta-me tranqüilidade, falta-me inocência, estou feito um molambo que a cidade puiu demais e sujou [...] (ANGÚSTIA, 1998, p.20).
Em meio aos seus devaneios, o narrador relembra o passado e se auto-
analisa; mais uma vez nos revela uma forte tendência à auto abjeção e depreciação
de si mesmo.
Observemos o seguinte trecho:
Esta repartição me exasperava e endoidecia. O corpo em completo sossego, o cigarro apagado. Não sabia em que posição estavam as pernas. As mãos pesavam em cima do peito. Mas as pernas, onde estariam elas? Flutuava como um balão. O corpo quase adormecido e sem pernas. As idéias, porém, não me deixavam, idéias truncadas. Uma guerra na Europa. D. Mercedes comprará discos novos para a vitrola. Moisés se ocultava com medo da polícia. Um espírito puro, um espírito boiando, livre da matéria. As botinhas do Lobisomem estavam cada vez mais camba. Onde andaria seu Ivo? Um espírito boiando. Como seria? O espírito de Deus era levado sobre as águas. (ANGÚSTIA, 1998, p.105).
Temos nesse trecho uma livre associação de idéias que é fruto do monólogo
interior de Luís da Silva. Nele os pensamentos vão se sucedendo de maneira
associativa, depois vão deslanchando num fluxo ininterrupto de pensamentos que se
exprimem numa linguagem frágil de nexos lógicos, que misturam pensamentos,
27
lembranças e traumas. No adensamento dessa sondagem interna da mente do
personagem, o monólogo interior vai deslizando para o fluxo da consciência do
personagem, que é caracterizado pela mistura de idéias, presentes no final do
trecho.
Observemos o seguinte trecho:
[...] – e não podia levantar-me da cama. Quatro paredes. As quatro paredes da repartição esmagavam-me. Algumas horas depois da função, o feixinho de lenha, composto de Mateus, figuras, burrinha, rei embaixador, suaria arrastando a enxada no eito [...] (ANGÚSTIA, 1998, p.223). [...] Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Ria-me como um idiota... [...] passavam chineses armados. E o dedo enrolava-se, dava um nó [...] (ANGÚSTIA, 1998, p.224).
Nesses trechos do monólogo final de Angústia, que se adensa por várias
páginas na narrativa, são apresentados, através do fluxo da consciência, sensações,
lembranças, imaginações, concepções, sentimentos e processos associativos que
se passam na mente desse personagem.
Dessa forma, podemos concluir que Angústia possui uma estrutura circular e
ininterrupta que simula a imitação de estados psíquicos do personagem Luís da
Silva, que é dominado por uma idéia fixa em torno da qual flutuam uma infinidade de
outras idéias e imagens correlacionadas.
Ao introduzir a consciência humana estruturalmente na sua obra ficcional,
através das técnicas narrativas de fluxo da consciência e monólogo interior,
Graciliano Ramos torna-se um dos primeiros romancistas brasileiros a utilizar
algumas técnicas modernas de análise da natureza humana na literatura.
Segundo Candido (1978, p.108), Angústia é um romance que constitui
essencialmente uma pesquisa progressiva da alma humana, no sentido de descobrir
o que há de mais recôndito no homem, sob as aparências da vida superficial. A
28
matéria tratada é relatada em primeira pessoa por um homem atormentado por
acontecimentos de seu presente, lembranças que se confundem, a infância, o
isolamento, o complexo de inferioridade. As referências temporais são captadas do
passado através de digressões que se ajuntam aos dramas do presente, o que, na
estrutura da obra, configura-se como desordem e fragmentação de idéias.
Nos momentos de introspecção, ao relembrar o passado, mais precisamente
de sua infância, o personagem lembra repetidas vezes uma mesma cena. Em
conseqüência da introspecção permanente do personagem e de sua inquietação
interior, a ação não flui, constrói-se aos poucos, girando sempre em torno dos
mesmos elementos. É essa fuga para o devaneio e a constante introspecção do
personagem que impedem o desenrolar das ações na narrativa.
Para Carvalho (1998, p.23), o que o sujeito nos conta em Angústia, não é a
sua vida, linearmente entendida, mas o percurso de uma obsessão, no fervilhante
descompasso de uma consciência esfacelada. No romance temos muita repetição,
introspecção e pouca ação: essa desproporcionalidade não é gratuita na narrativa,
pois as repetições têm uma funcionalidade interna.
Tanto para Candido quanto para Carvalho, a fragmentação de idéias, a
mistura de elementos e o entrelaçamento temporal presentes na obra surgem de um
fluxo incessante de associações mentais do narrador, e o desequilíbrio social e
psíquico do personagem Luís da Silva contribui para a construção fragmentada e
oscilante da narrativa.
29
1.3. A narrativa - parafuso
Carvalho (1998, p.23), ao estudar o romance Angústia, de Graciliano Ramos,
conceitua a “narrativa parafuso” da seguinte forma: “É uma narrativa que circula
sempre em torno do mesmo motivo, como um parafuso, onde a ação pouco avança,
ao contrário, se enovela sobre si mesma e multiplica-se em variantes, num sistema
complexo de repetição”.
Podemos observar que a conceituação acima citada é sumamente
importante e pertinente à obra, pois é possível provar textualmente na narrativa a
repetição de elementos e frases que circulam em torno de si mesmos, fazendo com
que a ação pouco avance e se enovele em si mesma, como nos trechos:
“[...] certo dia uma cascavel se tinha enrolado no pescoço do velho Trajano, que
dormia no banco do Copiar [...]” (Angústia, 19 p.76);
“[...] pensei em seu Evaristo e na cobra enrolada no pescoço do velho Trajano [...]”
(ANGÚSTIA , 1998, p.77);
“[...] pensava na fazenda, em Camilo Pereira da Silva, em Amaro vaqueiro e nas
cobras, especialmente numa que se enrolava no pescoço do velho Trajano [...]”
(ANGÚSTIA, 1998, p.135);
“[...] as cascavéis torciam-se por ali. Uma delas enroscou-se no pescoço de Trajano,
que dormia no banco do alpendre [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p.142).
Esses trechos em que o personagem lembra do avô com uma cobra enrolada
no pescoço aparece repetidas vezes na narrativa, principalmente nos momentos de
introspecção, ao remoer lembranças do passado, mais precisamente de sua
infância. Por isso, Carvalho afirma que a “metáfora parafuso” define os processos
mentais do protagonista, afirmativa esta que pode ser comprovada textualmente nos
trechos abaixo:
“[...] teriam as suas pequeninas almas de parafusos fazendo voltas num lugar só [...]”
(ANGÚSTIA, 1998 p.114);
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“[...] dentro de vinte anos as que gostassem de torcer-se no mesmo canto seriam
parafusos [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p.115);
“[...] eu era um sujeito de fala arrevesada e modos de parafuso [...] lá estava
novamente entrando no passado, torcendo-se como parafuso [...]” (ANGÚSTIA,
1998, p.116).
Nos trechos acima, o “parafuso” aparece claramente no plano semântico, ou
seja, na evidenciação do sentido. O narrador metaforiza textualmente o “parafuso”
como processos mentais. Diante disso, é possível constatar a solidez da
conceituação criada por Carvalho.
Observemos a seguinte passagem do romance: ”[...] assim, não invejo
ninguém, caminho batendo nos transeuntes, enrolando palavras de desculpa,
entrando no futuro como um parafuso [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p.119).
Nessa passagem do romance é possível evidenciar a “narrativa parafuso”
tanto no plano estrutural quanto no semântico, aparecendo no mesmo parágrafo.
Aparece no plano estrutural por ser esse trecho repetido várias vezes durante a
narrativa. O protagonista relata por diversas vezes o fato de caminhar batendo nos
transeuntes, o que, segundo Carvalho, seria conseqüência dos traumas do
personagem. No plano semântico temos a metáfora do parafuso relacionado aos
processos mentais, fazendo uma referência temporal ao futuro.
Segundo Candido (1978, p.108), seria uma fuga para o devaneio que impede
o desenrolar da narrativa:
A narrativa não flui, constrói-se aos poucos, em fragmentos, num ritmo de vai e vem entre a realidade presente, descrita com saliência naturalista, a constante evocação do passado, a fuga para o devaneio e a deformação expressionista.
31
Essa constatação feita por Candido pode ser comprovada no seguinte trecho:
[...] antes desse uivo prolongado o homem soltava palavrões obscenos. Parecia-me que o meu quarto se enchia de órgãos sexuais soltos, voando. A brasa do cigarro iluminava corpos atracados, gemendo: - “Bichinha, gordinha...” – “ui”! Na escuridão a parede estreita desaparecia. Estávamos os três na mesma peça, eu rebolando-me no colchão estreito, picado de pulgas, respirando o cheiro de pano sujo e esperma, eles agarrados, torcendo-se, espumando, mordendo-se. Aquilo iria prolongar-se por muitas horas. Depois o silêncio, o cansaço, a luz da madrugada, o sono, a parede, nos afastariam [...] (ANGÚSTIA, 1998, p.102).
O trecho acima comprova a constatação feita por Candido, pois é escrito de
forma compulsiva, surgindo de um fluxo incessante de associações mentais do
narrador. As cenas e imagens do mundo íntimo do narrador desdobram-se e
multiplicam-se de forma exacerbada, sendo fruto de sua imaginação exagerada e
confusa. O fato é criado de forma fragmentada, formando um vasto número de
elementos misturados, díspares, deslocados no tempo e no espaço, o que pode ser
caracterizado como um traço da deformação expressionista.
Para Candido (1978, p.80), a fragmentação de idéias faz com que a narrativa
apresente um tempo “tríplice”: Daí um tempo novelístico muito mais rico e, diríamos,
tríplice, pois cada fato apresenta ao menos três faces: a sua realidade objetiva, a
sua referência à experiência passada, a sua deformação por uma crispada visão
subjetiva.
Observemos as seguintes passagens do romance que evidenciam essa
constatação feita por Candido:
[...] o sino da igrejinha bate a primeira pancada das aves-Marias. Não, não é o sino da igreja, é o relógio da sala de jantar. Oito e meia. Preciso vestir-me depressa, chegar à repartição às nove horas [...] por fora devo ser um cidadão como os outros, um diminutivo cidadão que vai para o trabalho maçador, um Luis da Silva qualquer [...] tenho contudo a impressão que os transeuntes me olham espantados por eu estar imóvel. Imóvel. Camilo Pereira da Silva, também estava imóvel, debaixo da terra. Dona Conceição vinha oferecer-me comida [...] não precisava de nada. Os ossos de Camilo Pereira da Silva desconjuntavam-se na podridão da cova, e a alma já não me fazia medo [...] começo a andar depressa, receando encontrar o ponto
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encerrado. Tolice. Provavelmente tudo aquilo se passou num segundo [...] (ANGÚSTIA, 1998, p.23).
É possível observar que fragmentação de idéias presentes no romance faz
com que a narrativa oscile nos três planos temporais. No primeiro momento o
narrador apresenta sua realidade objetiva: o fato de estar a caminho da repartição.
No segundo momento, tem a impressão de que os transeuntes o olham espantados,
o que seria uma conseqüência de sua conturbada visão subjetiva. No terceiro
momento recua até a infância por um mecanismo associativo, fazendo referência a
experiências passadas, à morte do pai. Ele volta à obsessão presente e à visão
deformada da rua, fazendo com que na narrativa misturem-se presente, passado e
imaginário. Não há ordem precisa nestes planos temporais, pois o personagem
descreve sua consciência, o que faz desencadear correntes de memória que são
provocadas por associações mentais e recordações que inundam o momento
presente.
O exagero de recordações e associações mentais do narrador e sua
constante introspecção fazem com que a narrativa entrave, não evolua e gire
sempre em torno dos mesmos motivos. Segundo Carvalho (1998, p.25):
Desdobramento infinito de repetição, conjugados, processam o adentramento vertiginoso. Enquanto se desdobram, os fragmentos retornam ao discurso e, aí retornando, mais e mais se desdobram e se adentram. A narrativa gira em torno do seu próprio eixo, acumulando-se de séries significantes entrecruzadas; fios que trançam a malha textual em superposições e deslizes de sentido e matizam o tecido de insuspeitada polissemia, o que, em última instância, caracteriza a eficácia da construção em abismo.
O desdobramento infinito de repetições presentes no romance faz com que os
fragmentos do discurso de Luís da Silva retornem ao seu discurso e se desdobrem,
assumindo outros significados, porém sem fugir do eixo principal da narrativa,
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apenas acumulando outros significantes, entrecruzando-os, girando sempre em
torno do mesmo motivo, o trauma.
Para Carvalho, o singular interesse dessa narrativa reside na complexa rede
de significantes que tece o seu corpo textual. Vejamos agora um dos significantes
privilegiados na narrativa. Trata-se de “corda”, com algumas de suas variações:
[...] um pedaço de corda amarrado no pescoço entrava-lhe na carne branca, e duas mãos repuxavam as extremidades da corda, que parecia quebrada. Só havia as pontas, que as mãos seguravam: o meio tinha desaparecido, mergulhado na gordura balofa como toicinho [...] (Angústia, 1998, p.111).
No trecho acima temos um entrelaçamento entre a representação do conto de
seu Ramalho, “O moleque da bagaceira”, e a figura motivadora do desejo destruidor
de Luís da Silva, Julião Tavares. A imagem do moleque vai embranquecendo, as
feridas secando, metamorfoseando-se na imagem de um homem com um pedaço de
corda no pescoço. Neste momento temos uma representação de sentido figurativo
do desejo que desponta e cresce, de forma alucinatória, a ponto de adquirir, na
representação deformada, a visualização premonitória de Julião Tavares morto.
A forma não linear da narrativa faz com que ela apresente um enovelamento
descontínuo, movido pelo deslize do significante privilegiado, através da cadeia de
associações mentais, que instaura o jogo associativo.
Observemos os trechos abaixo:
“[...] o cano estirava-se como uma corda grossa bem esticada, uma corda muito
comprida [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p.92);
“[...] pensava na fazenda, em Camilo Pereira da Silva, em Amaro Vaqueiro e nas
cobras, especialmente numa que se enrolava no pescoço do velho Trajano [...]”
(ANGÚSTIA, 1998 p.135).
Nos trechos acima temos momentos de introspecção de Luís da Silva, em
que o significante “corda” apresenta duas variações: “cano” e “cobra”. No primeiro
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trecho o personagem associa de forma alucinatória o cano a uma corda. No
segundo trecho, o personagem, através de suas rememorações, mais
especificamente de uma cena antiga da sua infância na qual o avô aparece com a
cobra enrolada no pescoço, associa de forma implícita a cobra à corda,
estabelecendo um jogo de associações mentais entre o significante “corda” e suas
variações.
O significante corda, que até então aparecia na narrativa em um plano
secundário, por associações, rememorações e alucinações, começa a aparecer de
forma explícita: “[...] aproximei-me da mesa, desenrolei a peça de corda. Mas, com
um estremecimento, larguei-a e meti as mãos no bolso [...]” (ANGÚSTIA, 1998,
p.143).
[...] evitava dizer o nome da coisa que ali estava em cima da mesa, junto ao prato de seu Ivo. Parecia-me que, se pronunciasse o nome, uma parte de minhas preocupações se revelaria [...] sentei-me. O herói que a corda me inspirava foi diminuindo, mas o desconchavo nos meus modos e nas minhas idéias continuou. Pareceu-me que uma das idéias estava ali em cima da mesa [...] (ANGÚSTIA, 1998, p.144).
Ao receber de seu Ivo o rolo de corda, Luís da Silva vê-se tomado de
estranha inquietação. A simples possibilidade de nomear o objeto o deixa perturbado
e com medo de revelar seus sentimentos, intenções e preocupações. Aos poucos
vai diminuindo o horror que ele sente da corda, porém a idéia que circula em sua
mente como um parafuso continua a persegui-lo.
Segundo Carvalho (1998, p.35):
Antes de receber a corda, o desejo de eliminar o negociante só se manifesta através de representações: cenas de tortura, imagens de defuntos antigos, casos de vingança, enfim, experiências penosas revivescidas pelo sujeito, as quais, ludibriando o aparelho censor, contrabandeiam o desejo reprimido e o exteriorizam de forma distorcida e transformada. A corda configura-se na sua realidade palpável, como o elemento essencial que faltava para compor o quadro do assassinato.
35
A presença concreta do elemento “corda” constitui por si mesma a
materialização do desejo de Luís da Silva de eliminar o rival, Julião Tavares. O que
até o momento só aparecia no texto através de representação, passa a aparecer de
forma concreta e palpável.
Ao acompanhar o desenrolar da narrativa, mais precisamente do significante
corda, não temos a clareza de que o mesmo seria o instrumento do crime. Temos
apenas algumas prolepses que poderiam indicar as supostas intenções do narrador:
“[...] e Julião Tavares? Julião Tavares estaria expatriado, fuzilado ou enforcado.
Enforcado, Julião Tavares enforcado [...]” (ANGÚSTIA,1998, p. 120);
“[...] dentro de alguns anos estaria enforcado, mas agora estava bem vivo [...]”
(ANGÚSTIA, 1998, p.121);
“[...] enforcando os homens ricos nos ramos das árvores [...]” (ANGÚSTIA, 1998,
p.143);
“[...] era evidente que Julião Tavares devia morrer [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p.140).
Os trechos acima nos mostram o aumento da inquietação do narrador e sua
conscientização da necessidade de consumar a ação criminosa. O narrador vai nos
dando indícios de que havia se convencido da necessidade de Julião Tavares ser
eliminado.
A certeza de que a corda seria a arma com a qual Luís da Silva eliminaria
Julião Tavares só aparece no momento em que o ato criminoso é “concretizado”:
[...] retirei a corda do bolso e em alguns saltos, silenciosos como os das onças de José Baía, estava ao pé de Julião Tavares. Tudo isso é absurdo, é incrível, mas realizou-se naturalmente. A corda enlaçou o pescoço do homem, e as minhas mãos apertadas afastaram-me [...] (ANGÚSTIA, 1998, p.191).
No trecho acima, após recordar a figura do assassino José Baía, usando a
corda que recebera de seu Ivo, o narrador enforca o seu rival. Nesta passagem do
36
romance temos a suposta concretização do desejo que norteia a cabeça do narrador
durante toda a trama, o que nos remete à “metáfora do parafuso”.
Ao acompanharmos o relato do crime na unidade narrativa, nos deparamos
com Luís da Silva atocaiado, espreitando os passos de Julião Tavares, seguindo-o e
perseguindo-o, para finalmente sobre ele saltar e estrangulá-lo. Enquanto espreita,
cresce-lhe o ódio, e ele remói todas as suas angústias e complexos. Seus
pensamentos giram sempre em torno do mesmo motivo.
Pode-se afirmar que em Angústia todos os acontecimentos e pensamentos do
personagem têm significados múltiplos. Cada significante oculta a verdade que está
escondida por trás da cena textual.
Podemos afirmar que a conceituação da “narrativa parafuso”, criada por
Carvalho, pode ser utilizada com segurança, como base estratégica, para a
abordagem de Angústia, de Graciliano Ramos, tendo em vista o alto grau de
pertinência da mesma com relação ao romance. Os argumentos utilizados pela
autora com relação à obra, serão analisados de forma sólida e cautelosa neste
estudo, com o qual procuraremos comprovar a solidez da conceituação estudada. A
conceituação da “narrativa parafuso” contribui de forma efetiva para o conhecimento
do romance Angústia e de sua cadeia narrativa.
37
II. Análise Textual
1. Apresentação do enredo
O enredo gira em torno de Luís da Silva, um indivíduo feio, como ele mesmo
afirma: “Um sujeito feio, os olhos baços, a boca muito grande, o nariz grosso, um
sorriso besta e a atrapalhação, o encolhimento que é mesmo uma desgraça.”
(ANGÚSTIA, 1998, p.34).
Funcionário público na Diretoria da Fazenda em Maceió, onde recebe
quinhentos mil réis de salário, intelectual frustrado, autodidata, não completa seus
estudos, escreve artigos e faz traduções por encomenda.
Luís é um homem solitário e inseguro, marcado por um complexo de
inferioridade e uma baixa auto- estima, que o tornam extremamente negativo,
atormentado por profundas frustrações, que acompanham toda sua existência, tendo
origem numa infância problemática e solitária, como ele mesmo diz: “Sempre
brinquei só.” (ANGÚSTIA, 1998, p. 13).
Descendente de uma família rural, em decadência ao longo de duas
gerações, atinge um estado de quase privação. O avô, Trajano Pereira de Aquino
Cavalcante e Silva, foi outrora um latifundiário próspero; o pai, Camilo Pereira da
Silva, era um modesto vendeiro em uma vila do interior. Aos quatorze anos, com a
morte do pai, Luís, órfão e pobre, migra do interior para a cidade de Maceió, em
Alagoas. Passa grandes dificuldades nesse período, assenta praça como soldado, é
mendigo, até conseguir um emprego numa repartição pública.
Luis da Silva vive com dificuldades com o mesquinho salário que recebe, mas
consegue completar seus rendimentos com seus escritos. Ele reúne em torno de si
um pequeno grupo de amigos: Moisés, Pimentel e Seu Ivo. Mora em uma casinha
alugada na rua da Macena, do Dr. Gouveia, que o explora como inquilino.
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Apesar do pouco dinheiro, Luis leva uma existência tranqüila até conhecer
Marina, uma moça que se muda com os pais para a casa vizinha: “Foi lá que vi
Marina pela primeira vez.” (ANGÚSTIA, 1998, p.38).
Ele não consegue deixar de observar a bela jovem da casa ao lado. Luís e
Marina tornam-se amigos e começam uma espécie de namoro. Luís propõe
casamento a Marina e entrega suas economias para que ela possa preparar o
enxoval. Marina gasta todo o dinheiro em bobagens, o que decepciona Luís.
Luís fica conhecendo Julião Tavares durante uma festa no Instituto Histórico.
Julião é bacharel, rico e metido a escritor. Julião Tavares passa a visitar com
freqüência Luís da Silva, contra a vontade dele.
A angústia de Luís tem início ao ver uma cena intrigante: ao chegar em casa
um dia, encontra Julião e Marina olhando-se através da janela. Luis chega a xingar
Julião, que finge não ter entendido. Luis e Marina discutem, mas Marina consegue
dissimular para Luis.
Marina, após alguns dias, deixa Luís, sem sequer comunicar sua decisão,
mesmo depois de Luís presenteá-la com um anel e um relógio - pulseira.
Luís acompanha com sofrimento as visitas de Julião à casa de Marina. Luís
costuma vigiar o banho de Marina através de seu banheiro. Numa dessas
observações, ouve Marina e a mãe discutirem e fica sabendo que Marina está
grávida. Seu ódio por Julião Tavares aumenta e ele chega à conclusão de que Julião
deve morrer.
Luís vigia os movimentos de Julião e de Marina, com medo de que os
amantes se encontrem às escondidas, já que ainda tem esperanças de ter Marina de
volta.
39
Ao seguir Marina, descobre que esta procura Dona Albertina, parteira
diplomada, para fazer um aborto. Luís segue Marina depois de sair da casa da
parteira e a chama de puta várias vezes.
Luís descobre que Julião tem uma nova conquista e segue-o à noite até a
casa da nova amante. Aproveita-se do adiantado da hora e da neblina e mata Julião
Tavares com a corda que ganhou de Seu Ivo e que traz sempre no bolso. Depois
disso, volta para casa e fica doente, permanecendo quase dois meses de cama.
Depois levanta-se, bastante debilitado física e emocionalmente, e começa a
escrever o relato atormentado de sua frustração amorosa e do crime que cometeu
motivado pelo ciúmes.
Essas informações não aparecem no romance de forma linear. Elas são
apresentadas de forma fragmentada e só podemos reconstituir linearmente a história
narrada por Luís da Silva acompanhando o fluxo de sua consciência, através da
junção das digressões, monólogos e delírios do personagem.
Por ser uma narrativa conduzida pelo fluxo da consciência do personagem,
temos em Angústia uma quebra da causalidade e conseqüentemente uma fuga da
linearidade tradicional. Essa fuga não chega a ser total, pois alguns parágrafos
apresentam uma certa causalidade, porém a narrativa em sua quase totalidade
apresenta um certo truncamento que é fruto desse constante vaivém da consciência
do personagem. É típico do fluxo da consciência não permitir essa ordenação linear
dos fatos, a relação entre as diversas informações contidas na narrativa não são de
forma física e sim mental.
É praticamente impossível, do ponto de vista lógico lingüístico, que um
personagem angustiado, física e emocionalmente, no estado de inquietação crônica
40
em que se encontra Luís da Silva, consiga narrar os fatos de maneira linear e
causal.
Observemos os seguinte trechos:
“[...] em duas horas escrevo uma palavra: Marina, aproveitando letras deste nome,
arranjo coisas absurdas: ar, mar, rima, arma, ira amar. Uns vinte nomes [...]”
(ANGÚSTIA, 1998, p.8);
“[...] foi entre essas plantas que, no começo do ano passado, avistei Marina pela
primeira vez, suada, os cabelos pegando fogo [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p. 16);
“[...] o vulto que se mexia não era a senhora idosa: era uma sujeitinha vermelhaça,
de olhos azuis e cabelos amarelos que pareciam oxigenados. Foi só o que vi, de
supetão [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p. 33);
“[...] foi lá que vi Marina pela primeira vez [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p. 38).
Nas primeiras páginas do romance, o narrador fala o nome Marina, mas não
apresenta informações ordenadas de quem ela é ou por que esse nome o incomoda.
Vinte e cinco páginas depois, em uma de suas rememorações, Luís descreve uma
moça que viu no quintal e só depois de mais algumas páginas é que descobriremos
quem é Marina, quando e como a conheceu. Até chegarmos à apresentação de
Marina, que é um dos personagens basilares do enredo, Luís tem várias
rememorações, sem obedecer a nenhuma ordenação temporal. A parti daí, ao longo
de sua corrente de consciência, ele vai desvendando o enredo.
Ao acompanharmos o fluxo de sua consciência é que podemos unir as
lembranças fragmentadas e montar a história de sua infância.
Ao juntarmos as informações contidas nas narrativas secundárias é que
tomamos conhecimento da origem de vários complexos do personagem. Na
memória de Luis da Silva estão registrados alguns fatos que se referem ao avô e ao
pai, cuja deterioração física, mental, social e econômica ele testemunhou. Esses
fatos regressam à consciência do sujeito constantemente:
41
Volto a ser criança, revejo a figura do meu avô, Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, que alcancei velhíssimo. Os negócios na fazenda andavam mal. E meu pai, reduzido a Camilo pereira da Silva, ficava dias inteiros manzanzando numa rede armada no esteio do copiar, cortando palha de milho para cigarros, lendo o Carlos Magno, sonhando com a vitória do partido que padre Inácio chefiava. (ANGÚSTIA, 1998, p.11).
Luís, a todo momento, traz em suas recordações a figura ancestral do velho
Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva: “[...] no sábado reuniu o povo da feira,
homens e mulheres, moços e velhos, mandou desmanchar o cercado do vigário,
armou todos com estacas e foi derrubar a cadeia.” (ANGÚSTIA, 1998, p. 28).
[...] quando a política de padre Inácio caiu, o delegado prendeu um cangaceiro de Cabo Preto. O velho Trajano subiu à vila e pediu ao doutor juiz de direito a soltura do criminoso. Impossível. Andou, virou, mexeu, gastou dinheiro com habeas-corpus – e o doutor duro como chifre. (ANGÚSTIA, 1998, p. 28).
Esta narrativa da soltura do cangaceiro é uma das poucas recordações do
passado positivo, como o próprio Luís diz: “Está aí uma história que narro com
satisfação a Moisés.“ (ANGÚSTIA, 1998, p. 28).
As recordações referentes à infância de Luís da Silva vêm em sua grande
maioria povoadas de imagens de decadência:
[...] penso em coisas percebidas vagamente: o gado, escuro de carrapatos, roendo a madeira do curral; o cavalo de fábrica, lazarento e com esparavões; bodes definhando na morrinha, o carro de bois apodrecendo; na catinga parda, manchas brancas de ossada e vôo negro de urubus... (ANGÚSTIA, 1998, p. 28).
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Em Angústia é através das digressões, aparentemente inúteis e repetitivas,
que podemos ter a dimensão do que é realmente significativo na narrativa. É a partir
das idas e vindas na memória do personagem que gradativamente formamos a
figura do narrador.
Os fatos narrados apresentam uma certa complexidade à medida que o
narrador submete suas experiências passadas ao crivo de sua consciência atual,
perturbada por todo um estado de desequilíbrio emocional. “È a consciência que o
personagem descreve ou reproduz desde o primeiro momento.” (MOURÃO, 2003, p.
8).
Todas as ações são interiorizadas, tendo em vista que o psicológico
predomina sobre o mundo exterior. O enredo, no qual acompanhamos a trajetória de
Luis da Silva, que nos conta um crime que cometeu, traz um relato entrecortado pela
infância do narrador através de constantes rememorações, monólogo interior e de
estados de desequilíbrio. O estilo digressivo, confuso e caótico da narrativa é
determinado por estados de ânimo do narrador.
Segundo Mourão (2003, p. 90), “o personagem de Angústia procura trazer
para o seu relato todas as sensações, tudo o que lhe aconteceu no passado, para
dentro de um único instante – o instante da sua consciência.” Dessa forma, os fatos
nessa narrativa não obedecem a uma estrita ordem causal, mas são estruturados
pelas associações significantes, características do mundo da experiência
conservado na memória.
As imagens compõem uma estrutura não objetiva, diferente da causalidade
do mundo exterior, povoada de símbolos, em que o presente e o passado se
intercomunicam dinamicamente de forma associada, as imagens sugeridas no início
da narrativa vão adquirindo força e se reiterando, desdobrando-se, assumindo uma
43
maior amplitude semântica: “Tudo se move na minha cabeça, como um bando de
vermes.” (ANGÚSTIA, 1998, p.9).
A noção de causalidade e temporalidade romanesca tradicional dilui-se, pois
a narrativa não segue passo a passo o relato.
A adoção sistemática do ponto de vista de um único personagem proporciona
uma quase completa obscuridade com relação ao que pensam os outros
personagens sobre Luís da Silva. Dessa forma, constitui-se uma personalidade
misteriosa e ambígua.
Luís da Silva tenta adivinhar, faz conjecturas sobre o que pensam os seus
interlocutores, a partir da expressão de seus rostos, de gestos e olhares. Ele é o
narrador e impõe seu ponto de vista e isso não deixa espaço para outros olhares
sobre o narrador.
O monólogo interior se confunde com a totalidade da narrativa. É esse
monólogo interior que propicia a idéia do conjunto que é Luís da Silva: sentimentos,
pensamentos, frustrações, dores, ódios, lembranças, desejos, imagens, visões,
sonhos e delírios.
Em seu ensaio “Reflexões sobre o romance moderno”, Rosenfield (1982,
p.80) ao comentar a questão do tempo afirma que:
Muitos dos romances mais famosos do nosso século procuram assinalar não só tematicamente e sim na própria estrutura essa ‘discrepância entre o tempo no relógio e o tempo na mente’ (Virgínia Woolf). Mesmo num romance como Angústia, de Graciliano Ramos, que não adota processos muito radicais, se nota intensamente essa preocupação: o passado e o futuro se inserem – através da repetição incessante que dá ao romance um movimento giratório – no monólogo interior da personagem que se debate na sua desesperada angústia, vivendo o tempo do pesadelo. A irrupção, no momento atual, do passado remoto e das imagens obsessivas do futuro não pode ser apenas afirmada como tratado de psicologia. Ela tem de processar-se no próprio contexto narrativo em cuja estrutura os níveis temporais passam a confundir-se sem demarcação nítida entre passado, presente e futuro.
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Ao compor uma estrutura não objetiva, desprovida da causalidade do mundo
exterior, povoada de símbolos, em que presente e passado se misturam , Graciliano
Ramos quebra com a temporalidade tradicional:
[...] quando o carro parar, essas sombras antigas desaparecem de supetão e vejo coisas que não me excitam nenhum interesse: os focos da iluminação pública... [...] à medida que nos aproximamos do fim da linha as paradas são menos freqüentes. Os postes cintados de branco passam correndo, o carro está quase vazio, as recordações da minha infância precipitam-se. E a decadência de Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva precipita-se também. (ANGÚSTIA, 1998, p. 12).
Nestes trechos, presente e passado se encontram na narrativa. Temos uma
duplicidade no enredo, que é fruto da mistura entre a realidade objetiva do
personagem, o que ele vê do carro e o fluxo dos seus pensamentos que se volta
para o passado. Em seu monólogo, o próprio personagem tem consciência desta
mistura:
Lembro-me de um fato, de outro fato anterior ou posterior ao primeiro, mas os dois vêm juntos. E os tipos que evoco não têm relevo. Tudo empastado, confuso. Em seguida os dois acontecimentos distanciam e entre eles nascem outros acontecimentos que vão crescendo até me darem sofrível noção da realidade. (ANGÚSTIA, 1998, p. 16).
O personagem tem sua consciência, mas não consegue lutar contra sua
mente transtornada e em desalinho.
Para Genette (1995, p.171) “uma das grandes vias de emancipação do
romance moderno, consiste em levar ao extremo, ou ao limite a mimese do discurso,
diluindo as últimas marcas da instância narrativa e dando logo à primeira a palavra à
personagem.”
É esse tipo de narração romanesca que Graciliano Ramos nos apresenta em
Angústia: “Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me
restabeleci completamente...” (ANGÚSTIA, 1998, p. 7).
45
A palavra é dada, desde as primeiras linhas, à personagem. De início, não
sabemos sequer o seu nome, mesmo que esteja conduzindo a narrativa, não
sabemos claramente quem é o narrador, os primeiros parágrafos nada indicam a
respeito do personagem que ocupa, desde o início da narrativa, à frente da cena.
Luís só se apresentará textualmente muitas páginas depois do início da narrativa.
O personagem Luis da Silva faz constantes mergulhos na infância. Para
Coutinho (1997, p.402)
Os mergulhos na infância têm uma função referencial para a ordenção e desenvolvimento da narrativa: é nesse regredir que o personagem tenta liberar-se de um presente insatisfatório e inútil e, simultaneamente, reassegurar-se naquele velho mundo mais conhecido.
O próprio personagem, em sua introspecção, admite: “Tenho-me esforçado
por tornar-me criança – e em conseqüência misturo coisas atuais e coisas antigas.”
(ANGÚSTIA, 1998, p. 17).
Em Angústia, o protagonista projeta o seu mundo interior no exterior. Dessa
forma temos uma confusão entre realidade e aparência. Os limites entre realidade e
aparência são difusos.
A memória é o elemento fundamental para a compreensão dos traumas do
presente. Através da rememoração do passado é possível elucidar os problemas
que atingem o personagem. O relato fragmentado, constantemente interrompido por
cenas que se repetem, contribui para a elucidação dos pontos significantes da
narrativa, como por exemplo: o pai morto, o avô entre cangaceiros ou com a cobra
enrolada no pescoço, José Baía e as conversas infantis, Amaro vaqueiro e o sertão,
a figura sinistra de seu Evaristo enforcado, entre outras imagens recorrentes, tudo
converge para a forma como será praticado o crime da morte de Julião Tavares.
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Apesar do privilégio de focalização ser concedido a uma única personagem,
que ocupa posição central na narrativa, o ângulo de visão é limitado e passível de
dúvida: o próprio personagem põe em dúvida sua narração ao questionar sua
memória.
[...] há nas minhas recordações, estranhos hiatos. Fixaram-se coisas insignificantes. Depois um esquecimento quase completo. As minhas ações surgem baralhadas e esmorecidas, como se fossem de outra pessoa. Penso nelas com indiferença. Certos atos aparecem inexplicáveis. Até as feições das pessoas e os lugares por onde transitei perdem a nitidez. (ANGÚSTIA, 1998, p. 106).
Neste trecho, Luís da Silva coloca uma sombra de dúvida em tudo o que ele
narrou até agora. Revirando a memória, ele não vê com nitidez os fatos. Nessa
digressão, o narrador reconhece a impotência e precariedade de sua memória para
organizar com precisão os fatos, que gera a impossibilidade de uma rememoração
fiel e linear. Demonstrando assim insegurança com relação a sua própria narração.
Em Angústia motivos casuais desencadeiam processos de consciência
prolongados em Luís da Silva, porém há um certo descompasso entre o tempo
interior e exterior: “[...] os defuntos antigos me importunam. Deve ser por causa da
chuva. Nos meses compridos daqueles invernos...” (ANGÚSTIA, 1998, p.14).
A casualidade de um acontecimento externo, como a chuva, serve para
desencadear o processo interno mais importante como a lembrança de inverno na
infância, de Marina, o banho no poço de pedra, a escola, seu Evaristo, entre outros.
Para Humphrey (1976, p.7), os romancistas “quando estão escrevendo fluxo
da consciência, tentam ampliar a arte da ficção descrevendo os estados interiores de
seus personagens.” Apesar do alto grau de subjetividade do personagem, revelado
na narrativa, podemos observar que o drama que se representa em sua memória
tem uma aparência individual, mas é de origem social e coletiva.
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As terríveis lembranças que lhe marcaram a vida e causaram os complexos,
estão relacionadas a questões sociais e históricas:
“Uma criaturinha insignificante, um percevejo social [...] só se dirigiam a mim para
dar ordens...” (ANGÚSTIA, 1998, p.25);
“[...] penso numa ditadura militar, em paradas, em disciplina.” (ANGÚSTIA, 1998,
p.10);
“[...] no dia seguinte os credores passaram os gadanhos no que acharam...”
(ANGÚSTIA, 1998, p. 19);
“[...] não brinque, madame. Sou um sertanejo, um bruto, um selvagem. [...]”
considerava-me um valor, valor miúdo, uma espécie de níquel social. (ANGÚSTIA,
1998, p. 37).
[...] e coisas piores que me envergonham não conto a Moisés. Empregos vasqueiros, a bainha das calças roída, noites passadas num banco, importunado pelo guarda. Farejava o provinciano de longe, conhecia o nordestino pela roupa, pela cor desbotada, pela pronúncia... (ANGÚSTIA, 1998, p. 27).
Fruto de uma sociedade rural empobrecida, Luis é obrigado a migrar do
interior para a capital, devido à decadência financeira de sua família. Ele precisa
adaptar-se a todo um estado de coisas para as quais não está preparado. Ele é
obrigado a enfrentar o processo de competição social, o que o frustra bastante, e
esse sentimento de frustração social ele vai disseminando em seus monólogos ao
longo do romance:
“Contento-me com muito pouco, habituei-me cedo a dormir nas estradas, nos
bancos dos jardins.” (ANGÚSTIA, 1998, p. 72);
“[...] cidadão, um nortista perseguido pela adversidade...” (ANGÚSTIA, 1998, p. 98).
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Angústia, por ser um romance de fluxo da consciência, se ocupa da
experiência mental e de suas categorias: sensações; lembranças; imaginações;
concepções; intuições; incluindo também as simbolizações; os sentimentos e os
processos de associação.
Observemos os processos associativos presentes no seguinte trecho: “[...] o
gato amava nos telhados, gato ordinário. Uns miados estridentes, indiscretos: -
“Rasga, diabo”. Marina, quando se excitava, enrolava-se como uma gata e miava.
Miava baixinho, para não acordar a vizinhança.” (ANGÚSTIA, 1998, p. 89).
Ao ouvir o barulho dos gatos no telhado, Luís associa a figura do gato a
Marina excitada. Processo semelhante é observado na utilização de um dos
recursos mais constantes na composição textuala livre associação mental. Vejamos
o seguinte exemplo: “[...] por ali passava um cano. Algumas porcas da juntas
estavam mal apertadas, por elas a água esguichava, formando poças no tijolo gasto.
O cano estirava-se como uma corda grossa bem esticada, uma corda muito
comprida.” (ANGÚSTIA, 1998, p. 92).
Luís associa linearmente o cano de água a uma corda. Ele guarda sempre em
sua memória coisas que, como ele mesmo confessa são: “Certos acontecimentos
insignificantes que tomam vulto, perturbam a gente!” (ANGÚSTIA, 1998, p.129).
Os acontecimentos lembrados por Luís em seu monólogo são sempre
negativos:
“[...] a escola era triste... “ (ANGÚSTIA, 1998, p. 16);
“[...] penso na morte de meu pai...” (ANGÚSTIA, 1998, p. 17);
“[...] de todo aquele romance as particularidades que melhor guardei na memória
foram os montes de cisco, a água empapando a terra, o cheiro dos monturos, urubus
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nos galhos da mangueira farejando ratos em decomposição no lixo. Tão morno, tão
chato! “ (ANGÚSTIA, 1998, p. 87).
No monólogo final há uma fusão total dos elementos que aparecem durante a
narração, que são unidos pela livre associação de idéias:
[...] meu pai estava deitado, muito comprido, envolto num pano que se dobrava entre as pernas e tinha no lugar da cara uma nodoa vermelha cheia de moscas. [...] a batina do padre Inácio, o capote do velho Acrísio, a farda de cabo José da Luz e o vestido vermelho de Rozenda [...] (ANGÚSTIA, 1998, p. 221).
[...] acomodavam-se todos. 16.384. Um colchão de paina. Milhares de figurinhas insignificantes. Eu era uma figura insignificante e mexia-me com cuidado para não molestar os outros. (ANGÚSTIA, 1998, p. 227).
Neste delírio final, há uma superposição dos níveis passado, presente,
infância, maturidade, mortos e vivos, todos e tudo se misturam no monólogo do
personagem, há uma certa descontinuidade no discurso. A consciência caótica e em
desalinho é representada pela incoerência das frases numa corrente ininterrupta de
informações, o que é característico do mundo interior, vivido precariamente pelo
personagem.
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2. O externo X interno
Segundo Candido (2000, p.4): “O externo (no caso o social) importa, não
como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo
papel na constituição da estrutura, tornando-se portanto, interno”.
Em Angústia o elemento social é infiltrado na obra de forma a colaborar para
sua composição. Os elementos externos, a exemplo de problemas sociais e
econômicos aparecem internalizados na obra, o que repercute na aflição do
personagem, em contínua instabilidade psicológica.
Os problemas psicológicos que desequilibram e conturbam a mente do
personagem, se refletem na narrativa, moldam sua estrutura, que assume forma
semelhante ao estado mental desse personagem. Essas questões são apresentadas
também como conteúdo, no monólogo interior do personagem, em momentos de
introspecção: “Do lado esquerdo são as casas da gente rica, dos homens que me
amedrontam.” (ANGÚSTIA, 1998, p.10).
Tynianov (1976, p.100), em seu ensaio “A noção de construção”, afirma que:
“A noção de “material” não extravasa os limites da forma, o material é igualmente
formal; e é um erro confundi-lo com elementos exteriores à construção.”
O “material”: palavras, vocábulos, em Angústia são determinantes na
estrutura da narrativa e não escolhidos aleatoriamente. Ele é determinado pela sua
construção formal.
As palavras em Angústia têm uma função concreta que é acentuar a carga de
negatividade, medo, pessimismo e desequilíbrio presentes na mente do
personagem. Dessa forma, vocábulos recorrentes na narrativa, tais como lama,
sombras, visões, terror, tremura, obsessão, perseguição, lixo, cadáver, miserável,
entre outros, são determinados por elementos interiores à construção da narrativa.
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Em Angústia a estrutura formal, o conteúdo, os vocábulos são determinados
pela constituição psicológica do personagem, Luís da Silva. A questão social é vista
atuando no texto tanto na constituição da estrutura, quanto no conteúdo, explicitado
por vocábulos significativos que são transplantados para o texto através dos
processos mentais do protagonista.
O fluxo da consciência do personagem, que é apresentado através de seu
monólogo interior, é fruto de traumas sociais que norteiam toda a existência do
personagem, desde a infância até a idade adulta.
Luís tem consciência de sua falta de importância social, o que o angustia
profundamente: “Por fora devo ser um cidadão como os outros, um diminuto cidadão
que vai para o trabalho maçador, um Luís da Silva qualquer.” (ANGÚSTIA, 1998,
p.22).
A consciência que o personagem tem dessa realidade instala cada vez mais a
angústia em seu espírito. Os desgostos e decepções do personagem estão sempre
associados às questões econômicas, falta de dinheiro, dificuldades financeiras,
perda de bens materiais, impossibilidade de pagar dívidas, entre outras questões
dessa ordem:
“[...] dinheiro e propriedades, que me dão sempre desejos violentos de mortandade e
outras destruições [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p.9);
“[...] Rua do Comércio. Lá estão os grupos que me desgostam” (ANGÚSTIA, 1998,
p.11);
“[...] mas ainda devo muito,nem sei quanto.” (ANGÚSTIA, 1998, p.24).
Através do monólogo do personagem, tomamos conhecimento que dinheiro,
propriedades e pessoas que possuem dinheiro, os comerciantes, são coisas que o
incomodam, despertando-lhe instintos de violência e desprezo.
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Tanto no presente quanto no passado, a dificuldade material o atormenta.
Desde a infância ele convive com a falência financeira: “Os negócios na fazenda
andavam mal.” (ANGÚSTIA, 1998 ,p.11).
[...] no dia seguinte os credores passaram os gadanhos no que acharam. Tipos desconhecidos entravam na loja, mediam peças de pano. Chagavam de chapéu no café, cigarro no bico, invadiam os quartos, praguejavam. [...] e os homens batiam os pés com força, levavam as mercadorias, levavam os móveis, nem me olhavam [...] (ANGÚSTIA, 1998 p.19).
Nesses trechos o narrador relembra as perdas materiais que sofreu após a
morte do pai, perdas estas que tiveram considerável importância, pois
impulsionaram o seu deslocamento em busca de melhores condições de vida:
[...] o Rio de Janeiro, São Paulo, Minas, lugares que me atraíam, que atraem a minha raça vagabunda e queimada pela seca. Resolvi desertar para uma dessas terras distantes. Abandonei a vila, com uma trouxa debaixo do braço e os livros da escola [...] (ANGÚSTIA, 1998 P.23).
Essa fuga de uma situação financeira desfavorável, em vez de melhorar sua
situação o impulsiona a outras situações de privação ainda maior. Os fatores
externos, ou seja, os traumas sociais do personagem vão se configurando ao longo
da narrativa, moldam a obra, contribuindo para que ela se apresente de forma
fragmentada, caótica, tumultuada e descontínua, reproduzindo em sua estrutura o
interior do indivíduo angustiado que nos conta a história.
A associação entre fatores sociais e psíquicos influenciam as ações do
personagem e atuam diretamente na estrutura da obra. A narrativa nos apresenta a
angústia gerada pela frustração de um indivíduo diante da absoluta falta de
realização humana, profissional, intelectual ou amorosa, vivendo uma condição de
subserviência: “Só se dirigem a mim para dar ordem” (ANGÚSTIA, 1998, p.23).
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Em Angústia, questões sociais, tais como a luta de classes, aparecem de
forma explicita ou velada. Observemos o seguinte trecho:
[...] há o grupo dos médicos, o dos advogados, o dos comerciantes, o dos funcionários públicos, o dos literatos. Certos indivíduos pertencem a mais de um grupo, outros circulam, procurando familiaridades proveitosas. Naquele espaço formam-se várias sociedades com caracteres perfeitamente definidos, muito distanciadas. A mesa a que me sento fica ao pé da vitrina dos cigarros. É um lugar incômodo: as pessoas que entram e as que saem empurram-me as pernas. Contudo, não poderia sentar-me dois passos adiante, porque ás seis horas da tarde estão lá os desembargadores. É agradável observar aquela gente. Com uma despesa de dois tostões, passo ali uma hora, encolhido junto à porta, distraindo-me [...] (ANGÚSTIA, 1998, p.23-24).
[...] os olhos estão quase invisíveis por baixo da aba do chapéu, e uma folha da porta oculta-me o corpo. Uma criaturinha insignificante, um percevejo social, acanhado, encolhido para não ser empurrado pelos que entram e pelos que saem [...] perto um capitalista fala muito alto, e os cotovelos sobre o mármore dão-lhe na sala estreita espaço excessivo. No grupo da justiça as palavras tombam medidas, pesadas, e os gestos são lentos. Além, dois políticos cochicham e olham para os lados [...] (ANGÚSTIA, 1998, p. 25).
A luta de classes aparece de forma metafórica no espaço do café, local que
Luís da Silva descreve minuciosamente. Ao descrever os freqüentadores, ele faz um
retrato da sociedade em que vive.
Nos trechos em que Luís descreve o ambiente e os freqüentadores do café, é
possível observar as atitudes dos freqüentadores da classe dominante, o lugar de
destaque em que eles sentam e suas ações. A forma com que eles agem e se
comportam se diferencia completamente das ações e comportamento de
freqüentadores como Luís e Moises, que são menos favorecidos economicamente.
Os grupos mais abastados têm lugares marcados, privilegiados. Eles mantêm uma
atitude de destaque, ao passo que Luís senta-se num lugar incômodo e ignorado,
mantendo-se sempre recuado. O que aparentemente é apenas complexo de
inferioridade, configura-se como pura representação de uma hierarquia social e
econômica.
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Em Angústia, temos retratada a impossibilidade de ascensão social do
indivíduo. Na tentativa de vencer na vida, Luís abandona o campo e vai para a
cidade: mas, em vez de ascender socialmente, ele conhece mais a fundo a miséria
econômica.
Segundo Coutinho (1977, p.96) em Angústia “As deformações psíquicas do
personagem, sua frustração agressiva e sua incapacidade de equilíbrio, estão todas
centradas sobre a sua miséria, sobre a sua inferioridade econômica e social”.
Luís diz em monólogo que só se interessou por Marina porque “Os negócios
não iam mal. E foi exatamente por me correr à vida quase bem que a mulherzinha
me inspirou interesse - novidade, pois sempre fui alheio aos casos de sentimento.”
(ANGÚSTIA, 1998, p.34-35).
Luís associa o fato de ter se interessado por Marina a sua situação financeira,
que se encontrava no momento equilibrada. Dessa forma, com poucas
preocupações econômicas, ele pôde dar atenção a assuntos sentimentais. O
narrador, a todo momento, faz referências ao pouco dinheiro que possui:
“Contava mentalmente o dinheiro suado e mesquinho [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p.35);
“[...] eu levava no bolso uns dinheiros curtos[...]” (ANGÚSTIA, 1998 p.36). Luís
atribui a si próprio pouco valor: “Considerava-me um valor, valor miúdo, uma espécie
de níquel social, mas enfim valor.” (ANGÚSTIA, 1998 p.37).
Vemos que, ao longo se seus monólogos, o pensamento do protagonista
exprime em cada lembrança sua obsessão com relação a bens financeiros, seu
repúdio a membros das classes mais abastadas, representados na narrativa por
Julião Tavares:
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[...] a primeira pessoa conhecida que encontrei na rua foi Julião Tavares. Senti um estremecimento desagradável, a repugnância que sempre vinha quando dava de cara com aquele sujeito, e fingi não vê-lo, entrei numa loja para não falar com ele [...] (ANGÚSTIA, 1998 p.71).
Julião Tavares desagradou Luís desde a primeira vez em que o viu no
Instituto Histórico:
“Conheci esse monstro numa festa de arte [...] Julião Tavares não tinha nenhuma
das qualidades que lhe atribuíram” (ANGÚSTIA, 1998 p.43);
“[...] o homem do Instituto atrapalhou-me a vida e separou-me dos meus amigos [...]”
(ANGÚSTIA, 1998 p.47).
Aos poucos Luís vai revelando a aversão que tem pela figura de Julião
Tavares e por tudo que ele representa. Em seu monólogo ele associa sua
instabilidade emocional e a deterioração de sua relação com os amigos à figura de
Julião Tavares. A situação financeira de Julião Tavares, sua postura de
superioridade incomodam Luís constantemente.
[...] família rica Tavares Cia. Comerciantes de secos e molhados, donos de prédios, membros influentes da Associação comercial, eram uns ratos. Quando eu passava pela Rua do Comércio, via-os por detrás do balcão, dois sujeitos papudos, carrancudos, vestidos de linho pardo e absolutamente iguais. Esse Julião literato bacharel, filho de um deles, tinha os dentes miúdos, afiados e devia ser um rato, como o pai. Reacionário e católico. (ANGÚSTIA, 1998, p.44).
Julião Tavares é apresentado na narrativa com qualidades
caracteristicamente opostas a Luís, ao possuir tudo que Luís não alcança. Para
Candido (1992, p.83) Julião seria “a metade triunfante” que falta a Luís, essa seria a
razão principal do sentimento tão exacerbado de repulsa que ele nutre pelo rival.
Além de todas as frustrações que Luís nutre com relação a Julião, é acrescido
também seu envolvimento com Marina, objeto de desejo de Luís. Para ele Marina só
se envolveu com Julião Tavares pela possibilidade de ascensão social que o mesmo
lhe possibilitaria:
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[...] aos domingos iam ao cinema, de braços dados, bancando marido e mulher – ele com ar bicudo e saciado, ela bem vestida como boneca e toda dengosa. Seda, veludo, peles caras, tanto ouro nas mãos e no pescoço que era uma vergonha [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p.95).
Luís não tinha dinheiro para proporcionar tais luxos a Marina, o que o
angustiava ainda mais:
[...] agora não tinha dinheiro. De quando em quando metia a mão no bolso. Desarmado e só, inteiramente só, encostado à janela, ouvindo barulho dos automóveis. Nenhum desejo de fugir das pessoas que iam ao teatro. Sentia rea vontade de ir também, sentar-me numa cadeira junto do palco, bater palmas, olhar os camarotes [...] (ANGÚSTIA, 1998, p.119).
A carência financeira aparece explicitada no monólogo, apesar de Luís dizer:
Não preciso de automóveis, nem de rádios, viveria bem numa casa de palha, dormiria bem numa cama de varas, num couro de boi ou numa rede de cordas, como Quitéria, como o velho Trajano e Camilo Pereira da Silva. Para que me habituei a ler papel impresso, a ouvir o rumor de linotipos? Desejaria calçar alpercatas [...] (ANGÚSTIA, 1998, p.157).
Apesar de todo esse monólogo em que ele diz não precisar, não desejar
determinadas coisas, sabemos que na verdade ele deseja e se angustia por não tê-
las.
Um número é recorrente em alguns dos momentos de maior introspecção na
narrativa, o 16.384:
“O cego dos bilhetes de loteria passou entre as cadeiras, batendo com o cajado no
chão, cantando o número [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p.71);
“- 16.384, gemia o cego batendo com a bengala no cimento.” (ANGÚSTIA, 1998,
p.72);
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“Se eu pegasse a sorte grande. Marina teria colchas bordadas à mão. Pobre de
Marina! Precisava fazenda macia, pulseiras de ouro, penduricalhos [...]” (ANGÚSTIA,
1998, p.71).
Esse número que reaparece repetidas vezes no delírio final do personagem é
significativo, pois representa a possibilidade de Luís da Silva acertar sua vida
financeira e proporcionar à Marina os “luxos” desejados por ela. A vida social do
personagem e suas relações afetivas são cheias de amarguras.
Segundo Candido (1992, p.64), em Angústia “sentimos clara a atitude de
rejeição consciente da sociedade, condicionada por tantas reminiscências e
impulsos profundos”. Observamos claramente na narrativa a incompatibilidade do
personagem com relação à sociedade em que está inserido.
Temos no texto a negação e a repugnância do personagem ao mundo
capitalista e a burguesia. Esse capitalismo que reduz o neto de Trajano Pereira de
Aquino Cavalcante e Silva a um “parafuso insignificante na máquina do Estado”.
(ANGÚSTIA, 1998, p.114).
Graciliano Ramos aborda questões sociais do Nordeste e os problemas
existenciais do personagem, não de forma linear e explícita, o que cairia na
repetição do que outros escritores já fizeram. Ele nos apresenta esses problemas na
intimidade da consciência do homem que vivencia. Dessa forma, ele não analisa
objetivamente a estrutura social de fora, ou seja, externamente, mas a repercussão
desta estrutura na subjetividade do indivíduo. O desvendamento da estrutura social
é feito de forma aparentemente individual, isolada e implícita, porém o que é
“individual” em Angústia é representativo de uma coletividade.
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3. Caracterização do personagem
Para Candido (1981, p.21), “É a personagem que com mais nitidez torna
patente a ficção, e através dela a camada imaginária se adensa e se cristaliza.”
Em toda narrativa a personagem é uma categoria preponderante. Em
Angústia isso se confirma ainda mais: “a personagem realmente constitui a ficção.”
(CANDIDO, 1981, p.27). É Luís da Silva o centro da narrativa e as demais categorias
são determinadas por sua visão: o tempo, o espaço, a constituição do enredo e ação
assumem formas intimamente ligadas à constituição deste personagem. É a sua
imaginação pessoal que conduzirá a narrativa. “Luís da Silva, sujeito da ação
nuclear e eixo virtual em torno do qual tudo circula, encontra-se, ele próprio, disperso
e reduplicado no mundo fictício de Angústia.” (CARVALHO, 1983, p.60).
Luís monta no romance sua própria imagem tanto física quanto psicológica.
Luís se descreve de quatro formas ao longo do romance: fisionômica, social,
ideológica e lingüística. Ele atribui a si características fisionômicas bastante
significativas de sua personalidade em desalinho: magro, pálido, feio, boca muito
grande, nariz grosso, beiços franzidos, testa enrugada, cabisbaixo, encolhido,
curvado, desengonçado, roupa velha, gravata enrolada, camisa estufada, sapato
mal engraxado e cobertos de poeira.
Suas características sociais também são significativas de sua condição:
níquel social, parafuso na máquina do Estado, valor miúdo, ocupação estúpida,
funcionário público, nunca estudou, vida monótona.
Ideologicamente Luís é um homem desconfiado, desconfia da revolução, mas
a deseja, desconfia da religião, desconfia da justiça.
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Lingüisticamente Luís também se define:
“Minha linguagem é baixa, acanalhada. Às vezes sapeco palavrões obscenos.”
(ANGÚSTIA, 1998, p.49);
“Ia escreve-lhe uma carta com laços sagrados, felicidade conjugal, himeneu. Infâmia.
Só a idéia de escrever isto me dava náuseas.” (ANGÚSTIA, 1998, p.68);
“As minhas frases eram convencionais.” (ANGÚSTIA, 1998, p.43).
3.1. Pessimismo e negatividade
Duas características básicas definem o personagem de Angústia: pessimismo
e negatividade. “Qualquer coisa desagradável persegue-me sem se fixar claramente
no meu espírito.” (ANGÚSTIA, 1998, p.13).
Em Angústia a memória incumbe-se de selecionar as lembranças que vão
jorrando torrencialmente em Luís da Silva. Essas lembranças que norteiam e
condicionam a narrativa são sempre negativas.
Carvalho (1983, p.61) ressalta que “a existência de Luís da Silva é pura
inquietação: lembranças e visões de perseguição, tortura e crime, cenas de
humilhação e decadência [...]”
Em meio a tamanha inquietude, Luís constrói o seu perfil negativo: funcionário
público pobre e medíocre, pobre diabo, criança isolada, homem traído, violento e
homicida.
Em sua totalidade, o personagem assume uma posição extremamente
negativa e afunda-se em penosas recordações que revelam a origem de sua visão
pessimista diante do mundo das pessoas e da vida.
60
Luís subestima-se, sua auto-análise é sempre depreciativa. Dessa forma, a
narrativa é norteada por imagens de decadência. Tudo que o narrador vê, analisa ou
recorda é feio, sujo, triste ou negativo:
“[...] o bonde chega ao fim da linha, volta. Bairro miserável, casas de palha, crianças
doentes [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p.10);
“[...] tenho a impressão de que ele me vai levar ao meu município sertanejo.”
(ANGÚSTIA, 1998, p.11).
As imagens do presente misturam-se à imagens do passado num movimento
associativo entre o bairro que morava na infância e o bairro pobre que vê do bonde.
As recordações do passado do personagem são repletas de imagens de
decadência:
“[...] um carro de bois apodrecia debaixo das catingueiras sem folhas [...]”
(ANGÚSTIA, 1998, p.11);
“[...] via a casa da fazenda arruinada, os bichos definhando na morrinha, o chiqueiro
bodejando [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p.19);
“[...] as recordações da minha infância precipitam-se. E a decadência de Trajano
Pereira de Aquino Cavalcante e Silva precipita-se também. Estava pegando um
século quando entrou a caducar. Encolhido na cama de couro cru, mijava-se todo,
contava os dedos dos pés e caia na madorna [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p.12).
Nestes trechos o narrador descreve a decadência não só material de sua
fazenda, mas também a decadência física do avô, o que é bastante significativo para
a narrativa, pois o avô é uma figura bastante representativa para Luís da Silva.
O momento presente do narrador é invadido a todo instante por imagens de
decadência. Essas imagens fazem parte do seu ambiente concreto, do seu espaço
físico.
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[...] olhando a janela, a porta aberta, os degraus de cimento que dão para o quintal. Água estagnada, lixo, o canteiro de alfaces amarelas, a sombra da mangueira. Por cima do muro baixo ao fundo vêem-se pipas, montes de cisco e cacos de vidro, um homem triste enche dornas sob um telheiro [...] (ANGÚSTIA, 1998, p.20).
[...] o meu horizonte ali era o quintal da casa á direita: as roupas, o monte de lixo, o mamoeiro. Tudo feio, pobre, sujo. Até as roseiras eram mesquinhas: algumas rosas apenas miúdas. Monturos próximo, águas estagnadas mandavam para cá emanações desagradáveis. (ANGÚSTIA, 1998, p.39).
O complexo de inferioridade é um traço marcante na personalidade de Luís
da Silva, como se percebe nas seguintes recorrências:
“[...] sou um sertanejo, um bruto, um selvagem.” (ANGÚSTIA, 1998, p.37);
“[...] sou um ignorante...” (ANGÚSTIA, 1998, p.45);
“[...] diante dele me sentia estúpido. Sorria, esfregava as mãos com esta covardia
que a vida áspera me deu...” (ANGÚSTIA, 1998, p.49);
“[...] eu sou um infeliz, não tenho onde cair morto.” (ANGÚSTIA, 1998, p.52);
“[...] sou um besta...” (ANGÚSTIA, 1998, p.78);
“[...] a gente é molambo sujo de pus e rola nos monturos com outras porcarias...”
(ANGÚSTIA, 1998, p.139).
Ele se autodeprecia constantemente, tudo em Luís é negativo, sua linguagem,
segundo ele, “é baixa, acanalhada” (ANGÚSTIA, 1998, p.49). Seus escritos “não
prestam” (ANGÚSTIA, 1998, p.47).
As opiniões de Luís da Silva sobre ele são sempre negativas, depreciativas.
Ele sofre de uma incapacidade crônica de aceitação de si próprio, o que gera uma
autonegação, que ele estende também às coisas e às pessoas que o rodeiam.
Segundo Candido (1992, p.80/81), em Luís da Silva:
Passam a colidir no mesmo indivíduo um ser social, ligado à necessidade de ajustar-se a certas normas convencionais para sobreviver, e um ser profundo, revoltado contra elas, inadaptado, vendo a marca da contingência e da fragilidade em tudo e em si mesmo.
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Luís é introvertido, medroso, incapaz de uma ação eficaz, apenas sonha com
decisões que jamais tomará: “Enquanto estou fumando, nu, as pernas esticadas,
dão-se grandes revoluções na minha vida [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p.132). Ele é um
ser isolado e com uma dificuldade extrema de comunicação, o que fica claro na
própria composição da obra, pela quase ausência de diálogos, que é resultado da
solidão emocional e social do personagem no passado. Luís foi uma criança
insegura, tímida, confusa e pouco comunicativa. No presente é um homem
introspectivo, desconfiado e pouco sociável.
Luís repete diversas vezes na narrativa suas inúmeras características
negativas, medíocre, uma criatura desprovida de beleza física, um intelectual
marginalizado, juntamente com outras informações que ele dissemina ao longo da
narrativa.
Segundo Genette (1995, p.113-114) “A repetição é, na realidade, uma
construção do espírito”. Observamos que essa repetição constante de vocábulos
negativos são reflexos do estado de desequilíbrio interior do personagem.
Luís é pessimista com relação aos sentimentos humanos, desconfia dos
sentimentos, diz que nunca recebeu nenhuma generosidade. Desconfia
principalmente das ações humanas, para ele “um crime, uma ação boa, dá tudo no
mesmo.” (ANGÚSTIA, 1998, p.157). Ele é insensível diante da morte: “Defuntos não
me comovem.” (ANGÚSTIA, 1998, p.147).
O extremo pessimismo que norteia os pensamentos e as ações do
personagem, são reflexos do mundo em que ele vive: “O ambiente familiar
decadente e sem amor, as duras lições da vida e da escola, o meio hostil e
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desumano que o cerca: penso nas minhas misérias passadas...” (ANGÚSTIA, 1998,
p.114).
É freqüente em seu monólogo e em suas observações a repetição de
determinadas imagens cinzentas, triste e monótonas: “Um homem triste que enche
dornas sob um telheiro, uma mulher magra que lava garrafas...” (ANGÚSTIA, 1998,
p.20), que reproduzem o mundo em que vive. Essas imagens externas condizem
com o interior do personagem.
[...] debrucei-me e distraí-me acompanhando os movimentos da mulher que lava garrafas. O gato pulou de um galho da mangueira, saltou o muro, trepou num monte de lixo e cacos de vidro. O homem triste andava entre as pipas, debaixo do telheiro, a encher dornas. (ANGÚSTIA, 1998, p.55).
“[...] chap, chap, chap. Era o vascolejar da água nas garrafas. Líquido se derramava:
o homem triste enchia dornas...” (ANGÚSTIA, 1998, p.57);
“[...] chap, chap, chap. A mulher magra não acabava de lavar as garrafas...”
(ANGÚSTIA, 1998, p.59).
Essa cena é repetida com bastante freqüência ao longo da narrativa, com
algumas variações, mas sempre com a presença da mulher que lava garrafas e do
homem que enche dornas. Temos uma recorrência desse acontecimento.
De acordo com Genette (1995, p.114), nada impede que “um enunciado
narrativo não somente seja produzido como pode ser reproduzido, repetido uma ou
várias vezes num mesmo texto.” Para ele a identidade e a repetição são fatos de
abstração, nenhuma das ocorrências é material (fônica ou graficamente) por
completo idêntica às outras, nem sequer idealmente (lingüisticamente), pelo simples
fato da sua co-presença e da sua sucessão, que se diversificarão a cada ocorrência.
É exatamente o que ocorre com essa cena em Angústia. A cada repetição
outros elementos são introduzidos ou subtraídos; ela nunca ocorre de forma idêntica.
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Há, dessa forma, uma repetição constante de elementos negativos que são
conseqüência dos traumas do personagem. Essas repetições possuem
semanticamente o mesmo valor, porém se diferenciam sintática e estruturalmente.
O elemento negativo é predominante na narrativa, principalmente quando
Luís fala de sua relação com Marina:
[...] de todo aquele romance as particularidades que melhor guardei na memória foram os montes de cisco, a água empapando a terra, o cheiro de monturos, urubus nos galhos da mangueira farejando ratos em decomposição no lixo. Tão morno, tão chato! Nesse ambiente empestado Marina continuava a oferecer-se negaceando... (ANGÚSTIA, 1998, p.87).
Nesse trecho vemos que o narrador não traz recordações positivas nem
sequer dos seus encontros amorosos com Marina.
As características da personalidade do narrador direcionam toda a estrutura
da obra, a permanente introspecção do narrador faz com que a narrativa assuma
uma estrutura digressiva.
O enredo fragmentado, repleto de digressões, entrecortado por inúmeras
rememorações e lembranças do narrador faz com que a narrativa apresente uma
estrutura flexível, pois não há dependência tão rígida entre os fatos.
Há digressões que têm um sentido determinante na obra: “A tranqüilidade era
pouco a pouco substituída por uma inquietação que me tornava brutal com os
companheiros. Instabilidade, ruína, o mundo perdido...” (ANGÚSTIA, 1998, p.162).
Algumas nos mostram a instabilidade emocional do personagem; outras nos dão
uma visão do ponto de vista de Luís sobre determinado assunto, porém a maioria
delas são uma completa fuga do mundo real.
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Candido (1992, p.85) diz que em Angústia temos uma visão quebrada do
mundo:
Um mundo reconstituído com fragmentos de lembranças, englobados arbitrariamente no devaneio, graças à percepção falha e incompleta. Resulta uma realidade deformada, nebulosa, tremendamente subjetiva, projetando em EU em crise permanente.
Luís da Silva guarda dos acontecimentos certos pormenores neuroticamente
fixados, geralmente os que permitem uma interpretação deprimente ou brutal, assim
como guarda das cenas de rua pedaços descosidos e incompletos. Quando
caminha, bate nos outros e não percebe os obstáculos, que lhes chegam à
percepção em partes destacadas do todo: um olho, uma perna, uma pedra. As
pessoas são vistas segundo o estado da sua própria alma – descritas de maneira
selvagem, esganadas pela imaginação, bestializadas por suspeitas delirantes.
Observemos o seguinte trecho:
... gastei meses construindo essa Marina que vive dentro de mim, que é diferente da outra, mas se confunde com ela. Antes de eu conhecer a mocinha dos cabelos de fogo, ela me aparecia dividida numa grande quantidade de pedaços de mulher, e as vezes os pedaços não se combinavam bem, davam-se a impressão de que a vizinha estava desconjuntada. Agora mesmo temo deixar aqui uma sucessão de peças e de qualidades: nádegas, coxas, olhos, braços, inquietação, vivacidade, amor ao luxo, quentura... [...] foi difícil reunir essas coisas e muitas outras[...] (ANGÚSTIA, 1998, p.67).
No trecho acima, o conteúdo da digressão do narrador revela a consciência
que ele tem da sua impossibilidade de ter uma visão completa de Marina, de sua
dificuldade em reunir e compreender as pessoas e as coisas.
As digressões do narrador fazem com que haja uma suspensão freqüente da
trama:
- O pior é que você ainda não me pediu, gemeu Marina. E fingiu-se amuada. Liguei pouca importância ao amuo, mas fiquei remoendo aquela idéia desagradável de explicar-me aos outros sobre coisas que só eram interessantes para nós. Explicações horríveis. Necessário entender-se com seu Ramalho, pedir o consentimento dele,
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dizer besteiras. Ia escrever-lhe uma carta com laços sagrados, felicidade conjugal, himeneu. Infâmia. Só a idéia de escrever isto me dava náuseas. Intenções puras. Domingo, na missa, o padre leria: - “Querem casar-se Luís Pereira da Silva, com trinta e cinco anos, etc, etc, e Marina Ramalho, etc, etc”. Luís Pereira da Silva daquela verbiagem? Depois os cartões de comunicação, grandes, com letras douradas, aos colegas da repartição, aos conhecidos, às amigas de Marina, ao padrinho, que era oficial do exército e servia em Mato Grosso. Alguém me mandaria um telegrama. Intenções puras. Marina dá grande valor aos telegramas. - Peço amanhã, murmurei compondo mentalmente as frases bestas da carta. Falo amanhã ou escrevo. (ANGÚSTIA, 1998, p.68).
Nesse trecho temos um diálogo entre Marina e Luís sobre a possibilidade de
um pedido de casamento. Este diálogo é entrecortado por aproximadamente vinte
linhas de pura digressão do narrador, que faz inúmeras conjecturas sobre a
possibilidade de casar-se com Marina. Entre uma fala e outra, temos um extenso
devaneio, no qual o narrador imagina todas as implicações a que se submeteria ao
pedir Marina em casamento.
Uma outra característica do narrador que merece destaque é sua mania de
reflexão a respeito do discurso, seja o dele ou de outros personagens. Falada ou
escrita a análise da linguagem é uma constante nos monólogos de Luís da Silva. Ele
justifica o que escreve: “Julgo que meus escritos não prestam.” (ANGÚSTIA, 1998,
p.45).
O narrador questiona e ataca a linguagem escrita:
“[...] a linguagem escrita é uma safadeza que vocês inventaram para enganar a
humanidade, em negócios ou com mentiras.” (ANGÚSTIA, 1998, p.79);
“[...] não há um livro que não seja um estrupício.” (ANGÚSTIA, 1998, p.88).
Em um de seus devaneios, ele chega a imaginar que o diretor da repartição
sentirá ciúmes de um livro que ele nunca fez:
Faço um livro, livro notável, um romance. Os jornais gritam, uns me atacam, outros me defendem. O diretor olha-me com raiva, mas sei perfeitamente que aquilo é ciúme e não me incomodo. Vou crescer muito. Quando o homem me repreender por causa da informação errada, compreenderei que
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se zanga porque meu livro é comentado nas cidades grandes. E ouvirei as censuras resignadas. Um sujeito me dirá: Meus parabéns, seus Silva. O senhor escreveu uma obra excelente [...] (ANGÚSTIA, 1998, p.132).
Todo esse trecho não passa de devaneio, não existe esse livro, porém a idéia
de escrever um livro o persegue ao longo da narrativa. Desse modo, Luís da Silva
apresenta ao longo do texto uma série de reflexões sobre a linguagem. Como tudo
que ele interpreta ao seu redor, sua reflexão sobre a linguagem também assume
essa postura negativa.
A visão pessimista que constrói o sistema de valores da visão de mundo de
Luís da Silva estende o drama individual até o âmbito das relações sociais,
desvendando-as como responsáveis pelas impossibilidades humanas.
3.2. A angústia duplicada
O crime, ação nuclear em Angústia, seria para Luís da Silva a solução
definitiva de seus problemas.
A morte de Julião Tavares, o sujeito: “gordo, vermelho, risonho, patriota,
falador e escrevedor de linguagem arrevesada, muitos adjetivos, pensamento
nenhum.” (ANGÚSTIA, 1998, p.43), que o cumprimentava de longe, fingindo
superioridade. Para Luís era preciso livrar-se deste homem que lhe atravancou o
caminho e atrapalhou sua vida.
Candido (1992, p.39) afirma que a morte de Julião Tavares se impõe a Luís
quase com a mesma necessidade de purificação que o faz procurar água. Em meio
à imundície dos seres, inclusive a própria, são necessários certos arrancos bruscos,
que não solucionam, mas constituem tentativas de seguir vivendo. O narrador
admite: “Comecei a odiar Julião Tavares. Farejava-o, percebia-o de longe só pelo
modo de empurrar a porta e atravessar o corredor.” (ANGÚSTIA, 1998, p.50).
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A morte de Julião Tavares já é um fato consumado quando Luís inicia a
narração, mas ele não nos apresenta isso explicitamente. A morte de Julião vai
sendo insinuada no discurso do narrador, devagar, numa lenta progressão, através
de prolepses.
Segundo Cristina & Reis (1988, P.283), “Prolepse corresponde a todo
movimento de antecipação, pelo discurso, de eventos cuja ocorrência, na história, é
posterior ao presente da ação.”
Essas prolepses assumem várias formas ao longo da narrativa, algumas são
explícitas:
“[...] enforcado, Julião Tavares, enforca.” (ANGÚSTIA, 1998, p.120);
“[...] dentro de alguns anos estaria enforcado, mas agora está bem vivo.”
(ANGÚSTIA, 1998, p.121);
“Julião Tavares será enforcado [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p.122);
“[...] necessário que ele morresse. Julião Tavares cortado em pedaços...”
(ANGÚSTIA, 1998, p.140).
A morte de Julião também aparece através de prolepses metafóricas,
implícitas nas micronarrativas rememoradas pelo narrador:
“[...] certo dia uma cascavel se tinha enrolado no pescoço do velho Trajano, que
dormia no banco do copiar...” (ANGÚSTIA, 1998, p.76);
“[...] quem teria morrido ali? E alguém me informaria, repetindo as histórias dos
cantadores e as conversas das velhas nas fontes: - Um sujeito que namorou a noiva
do outro.” (ANGÚSTIA, 1998, p.77);
“A voz oleosa de Julião Tavares continuava a perseguir-me[...]” (ANGÚSTIA, 1998,
p.95);
“Necessário dar cabo daquela voz.” (ANGÚSTIA, 1998, p.95).
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A morte de Julião Tavares é anunciada constantemente em narrativas
menores, símbolos, idéias de morte sem nitidez aparente, reportando a pessoas
estranhas, Luís vai se denunciando ao longo da narrativa através do seu fluxo de
consciência.
Segundo Candido (1992), “Luís da Silva se anula pela autopunição e só
consegue equilibrar-se assassinando o rival, equilíbrio precário que o deixa
arrasado, mas de qualquer modo é a única maneira de afirmar-se.”
A destruição de Julião Tavares é uma vingança de Luís contra tudo o que ele
representa. Com essa destruição Luís procura superar seus trauma, econômicos,
sociais e afetivos.
Para Brayner (1977, p.211):
Essa tensão de índices em torno de um complexo econômico – cultural faz com que a ação do personagem assuma uma dimensão ética, pois condicionada por um sistema de valores em conflito com a sociedade, lança-se tragicamente num caminho errado, no qual a morte de Julião Tavares é vislumbrada como a solução.
Julião Tavares se intromete no relacionamento de Luís e Marina. Ele possui
dinheiro, posição social, duas coisas que Luís não possui. Segundo Luís, Marina o
trocou por Julião Tavares pela possibilidade de ascender econômica e socialmente.
Inconformado por perder Marina para Julião Tavares, Luís passa a ter
impulsos de assassínio, que o levam a estrangular o rival. Após uma longa
convalescença, causada pelo abalo nervos, Luís conta sua história.
Para Candido (1992), o assassínio surge como um ato de reequilíbrio do
personagem; na narrativa não é isso que se configura. Tendo matado Julião
Tavares, Luís permanece desequilibrado, frustrado, tentando convencer a si mesmo
70
de que o seu ato criminoso era necessário. Ele comete o crime na ilusão de resolver
seus problemas, para libertar-se de Julião Tavares e de tudo o que ele representa.
O crime possibilitaria o fim de sua angústia. Entretanto, ele não consegue
reconstituir com clareza o ato criminoso: “As vezes eu estava certo de que Julião
Tavares se tinha calado, mas a voz não deixava de perseguir-me [...] (ANGÚSTIA,
1998, p.95). Luís não tem certeza se a voz de Julião Tavares se tinha silenciado,
pois sentia-se perseguido por ela.
Observemos os seguintes trechos:
”Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas insignificantes.
Depois um esquecimento quase completo. As minhas ações surgem baralhadas e
esmorecidas, como se fossem outra pessoa [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p.100);
“[...] sentia um medo horrível e ao mesmo tempo desejava que um grito me
anunciasse qualquer acontecimento extraordinário. Aquele silêncio, aqueles
rumores, comuns, espantavam. – Seria tudo ilusão?” (ANGÚSTIA, 1998,p.209);
“Não fui eu. Escrevo, invento mentiras sem dificuldade. Mas as minhas mãos são
fracas e nunca realizo o que imagino.” (ANGÚSTIA, 1998, p.217).
Nesses trechos, Luís levanta dúvidas sobre o ato que praticou, devido aos
hiatos da memória, ao fato de ninguém comentar o assassinato, ninguém procurá-lo.
Ele chega a dizer que nunca realiza as ações que imagina.
A partir daí, ele vai mergulhando cada vez mais em sua angústia. O crime
cometido, em vez de provocar alívio, causa-lhe inquietação, angústia física e
psicológica. Ao revirar os seus atos na memória, procura em si confirmações, mas
só encontra dúvidas: “Marina, Julião Tavares, as apoquentações que tenho
experimentado nestes últimos tempos, nunca existiram...” (ANGÚSTIA, 1998, p.11).
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Ele não consegue ter certeza da existência real dos problemas que enfrentou.
O crime que representaria seu momento de libertação, o retorno de sua virilidade
abalada pela traição de Marina, esbarra na incerteza de Luís de tê-lo cometido.
Dessa forma, sua angústia não termina: ao contrário, ela se duplica, pois é
acrescentada às suas angústias já existentes a angústia pela incerteza de ter
cometido o crime.
O crime não corresponde às suas expectativas, sua angústia se prolonga e se
reduplica pela incerteza da prática real do crime e pela consciência que Luís tem da
inutilidade de seu ato: “inútil, tudo inútil.” (ANGÚSTIA, 1998, p.193).
O narrador mergulha numa angústia prolongada, o que se caracteriza no
delírio final. Sua desordem interior se adensa ainda mais. Após ler a última página
do romance retornamos à primeira. Veremos como após o ato criminoso Luís
encontra-se debilitado física e emocionalmente, a inutilidade do seu ato se confirma
textualmente na estrutura da narrativa.
Observemos os seguintes trechos:
Retirei a corda do bolso e em alguns saltos, silenciosos como os das onças de José Baía, estava ao pé de Julião Tavares. Tudo isto é absurdo, é incrível, mas realizou-se naturalmente. A corda enlaçou o pescoço do homem, e as minhas mãos apertadas afastaram-se. Houve uma luta rápida, um gorgolejo, braços a debater-se. Exatamente o que eu havia imaginado... [...] a obsessão ia desaparecer. Tive um deslumbramento. (ANGÚSTIA, 1998, p.191).
[...] uma alegria enorme encheu-me. Pessoas que aparecessem ali seriam figurinhas insignificantes... [...] os mergulhos que meu pai dava no poço da Pedra, a palmatória de mestre Antonio Justino, os berros do sargento, a grosseria do chefe da revisão, a impertinência macia do diretor, tudo virou fumaça. Julião Tavares estrebuchava [...] (ANGÚSTIA, 1998, p.191).
Os trechos acima relatam a suposta morte de Julião Tavares. Após o crime
Luís faz longas digressões, fugindo sempre da narração linear do ato cometido. Os
72
sentimentos de Luís são confusos e incoerentes. Ele sente alegria, dá a entender
que com a morte de Julião seus problemas e obsessões iriam desaparecer, porém
não é isso o que acontece. Ele mergulha no monólogo interior, seu estado
psicológico é de absoluta desordem, seus pensamentos parecem desencontrados:
[...] a réstia descia a parede, vigiava em cima da cama, saltava no tijolo – e era por aí que se via que o tempo passava. Mas no tempo não havia horas. O relógio da sala de jantar tinha parado. Certamente fazia semanas que me estirava no colchão duro, longe de tudo. Nos rumores que vinham de fora as pancadas dos relógios da vizinhança morriam durante o dia. E o dia estava dividido em quatro partes desiguais: uma parede, uma cama estreita, alguns metros de tijolo, outra parede. Depois, a escuridão cheia de pancadas, que às vezes não se podia contar porque batiam vários relógios simultaneamente [...] (ANGÚSTIA, 1998, p.218).
O estado de confusão mental vai dominando Luís da Silva, que perde a noção
dos fatos, apreendendo a realidade deformada através de sons e ruídos que
chegam até ele. Nesses trechos vemos que ele perde a noção do tempo, pois fica
doente e desacordado por muito tempo, quase dois meses. No delírio final, todas as
cenas do passado mais remoto, bem como cenas do presente, se entrecruzam na
narrativa, misturando-se a detalhes presentes e visões alucinadas. As lembranças
negativas recorrentes no texto ressurgem no monólogo com uma força ainda maior.
Após o crime o monólogo se adensa e essa densidade é transportada para a
estrutura do texto.
Em seu estado de completa confusão, depois da doença, Luís reúne
fragmentos de toda a sua vida. Tudo se mistura na mente do personagem, o
presente com seus ruídos, o passado com suas rememorações, e seus traumas e
suas impossibilidades. Em alguns momentos o estado de confusão e delírio domina
Luís completamente. As últimas passagens deságuam pelo texto através do fluxo da
consciência do narrador. Dessa forma, temos a sensação de que a narrativa
encontra-se com o início do romance, quando o narrador comunica que se levantou
73
há trinta dias. O romance completa dessa forma uma trajetória circular, terminando
onde começou.
4. Indícios de uma epopéia negativa
No ensaio “A posição do narrador no romance contemporâneo”, ao refletir
sobre a ficção moderna e sua tendência para assumir, cada vez mais, a
subjetividade, fugindo do preceito épico da objetividade na narrativa, Adorno aponta
alguns elementos que são essenciais para entendermos a degradação da figura do
herói nas narrativas modernas, compreendermos a utilização de algumas técnicas
narrativas que desagregam a forma do romance tradicional e a preferência dos
escritores pelo excesso de subjetividade na narrativa contemporânea.
Nesse ensaio, Adorno (2003, p.62) compara os romances do século XX a
“epopéias negativas”.
De fato os romances que hoje contam, aqueles em que a subjetividade liberada é levada por sua própria força de gravidade a converter-se em seu contrário, assemelham-se a epopéias negativas. São testemunhas de uma condição na qual o indivíduo liquida a si mesmo, convergindo com a situação pré-individual no modo como esta um dia pareceu endossar o mundo pleno de sentido.
Essa colocação é aparentemente circunstancial, mas após o devido
entendimento essa noção mostra-se bastante relevante para a elucidação do
processo de degradação pelo qual passa o herói da narrativa moderna. Para melhor
compreendermos a noção de epopéia negativa, tomaremos por base o ensaio “A
epopéia negativa do século XX”, de Arturo Gouveia.
Ao analisar a pertinência metodológica e o uso analítico da noção de epopéia
negativa proposta por Adorno, Gouveia afirma que a utilização dessa expressão
negativa como categoria analítica é “consistente para a qualificação de determinada
74
linhagem de romances do século XX, assim como para a análise da configuração de
personagens que se destacam, paradoxalmente, pela incapacidade de agir.”
(GOUVEIA, 2004, p.13 -14).
Tomando por base a afirmação de Gouveia, segundo a qual os personagens
da epopéia negativa se configuram paradoxalmente aos personagens da epopéia
clássica pela incapacidade de agir, utilizaremos, em certa medida, o perfil de Luís da
Silva, como exemplo do herói do século XX, mais precisamente para exemplificar a
primazia do pensamento degradado sobre a ação. Para tanto, estabeleceremos uma
comparação entre o herói clássico e o herói moderno. Segundo Gouveia (2004,
p.14), “A própria expressão epopéia negativa já é em si um paradoxo se tomarmos
como base o referencial clássico, no qual o herói desenvolve uma ação quase
infinita”
Brandão (1989, p.51), ao estudar o perfil do herói clássico, caracteriza-o da
seguinte forma: “O herói é um personagem especial, que sempre deve estar
preparado para a luta, para os sofrimentos, para a solidão e até mesmo para as
perigosas catabases à outra vida.”
Diante disso, o herói seria um homem idealizado, que nos é apresentado
interior e exteriormente, provido de qualidades infinitas e habilidades valiosas,
surgindo aos nossos olhos como alto, forte, bonito, destemido e triunfador. O herói
seria física e espiritualmente superior aos homens, basta nos lembrarmos das
descrições grandiosas dos heróis gregos Aquiles, Ulisses, entre outros, feitas por
Homero na Ilíada.
Os heróis clássicos servem de modelo para o seu povo e têm a função de
conduzi-los à vitória. A luta é a razão da existência desse herói modelar. Ele está
preparado para enfrentar qualquer batalha em defesa de seu povo. Caracterizado
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por seus feitos grandiosos e motivados por fatores externos, o herói enfrenta
desafios, para os quais está profundamente preparado por suas infinitas habilidades
e por contar com o amparo dos deuses.
Jaerger (1995, p.40), ao analisar os heróis da Ilíada, afirma que o espírito
heróico:
Junta numa unidade ideal a imagem tradicional dos antigos heróis, transmitida pelas sagas e incorporada aos cantos, e as tradições vivas da aristocracia do seu tempo, que já conhece a vida organizada da cidade [...] o valente é sempre o nobre, o homem de posição. A luta e a vitória são para ele a distinção mais alta e o conteúdo próprio da vida.
Os heróis clássicos são provenientes da classe alta, providos de grandeza, e
por esse motivo têm um percurso fundamentalmente elevado. Mesmo no caso do
herói trágico, cujo percurso é o da queda, essa queda o possibilita resplandecer em
glórias e grandezas. Quanto maior sua desgraça, tanto maior sua grandeza. A
solução do conflito trágico leva esse herói também à solução do conflito interior. Os
sentimentos desse herói são transformados em ação.
As narrativas do século XX promovem uma ruptura no perfil do herói
modelado desde a epopéia clássica. Essas narrativas nos apresentam homens
comuns que não estão preparados para enfrentar as lutas, sofrimentos e solidão,
que não conseguem sequer enfrentar problemas do cotidiano. Dessa forma, o
século XX desconstrói os arquétipos da figura do herói, apresentando em suas
narrativas homens frágeis, envolvidos em problemas que aparentemente se
restringem a questões individuais. Os heróis do século XX são criaturas medíocres e
desprovidas de habilidades valiosas se comparados aos heróis antigos.
Na modernidade encontramos um herói num percurso atribulado, isolado e
em conflito com a sociedade, com suas convenções. Certos ideais e anseios são
76
protagonizados pelo herói, porém todo um estado de coisas contribui para a não
concretização dos seus projetos.
O que nos permite analisar o personagem Luís da Silva como herói moderno
é a constante introspecção do personagem que, ao invés de agir, monologa
constantemente, reflete, analisa aos outros e a si mesmo sempre negativamente.
Luís da Silva é um homem atormentado por acontecimentos do seu presente,
lembranças que se confundem, a infância, o isolamento e o complexo de
inferioridade. Em conseqüência da introspecção permanente do personagem e de
sua inquietação interior, a ação não flui na narrativa. Ao contrário da epopéia
clássica, que nos mostra seus heróis como seres fortes, ativos e destemidos, em
Angústia o herói é apresentado como fraco, recluso, medroso, aterrorizado, como no
seguinte trecho: “[...] vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que
emagreceram. As mãos já não são minhas, são mãos de velho, fracas e inúteis [...]”
(ANGÚSTIA, 1998, p.7). Ao expor o personagem central debilitado física e
emocionalmente, a narrativa desconstrói desde o princípio a figura do herói,
apresentando fraquezas físicas e psicológicas.
Na epopéia negativa, como é o caso de Angústia, os personagens não
conseguem realizar completamente suas ações: “[...] impossível trabalhar. Dão-me
um ofício, um relatório, para datilografar na repartição [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p. 7).
Neste trecho, a inquietação constante do personagem impossibilita-o até mesmo de
realizar uma simples tarefa do seu cotidiano.
Repetidas vezes na narrativa, a introspecção do personagem o impede de
realizar várias ações, desde ações simples no trabalho a coisas que ele gostaria de
dizer ou fazer com relação a outros personagens. A narrativa é conduzida pela ótica
subjetiva do herói, o que comprova a constatação feita por Adorno sobre a tendência
77
das obras modernas de assumir a subjetividade e romper com o preceito épico da
objetividade. Segundo ele, as obras modernas do século XX não contam mais nada
em termos clássicos devido ao excesso de introspecção.
Observemos os seguintes trechos do romance:
“[...] certo dia uma cascavel se tinha enrolado no pescoço do velho Trajano, que
dormia no banco do copiar [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p.76);
‘[...] pensei em seu Evaristo e na cobra enrolada no pescoço do velho Trajano [...]”
(ANGÚSTIA, 1998, p.77);
“[...] cascavéis torciam-se por ali. Uma delas enroscou-se no pescoço de Trajano,
que dormia no banco do alpendre [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p. 142);
“[...] pensava-se na fazenda [...] e nas cobras, especialmente numa que se enrolava
no pescoço do velho Trajano [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p.135).
Os trechos acima aparecem repetidas vezes na narrativa. O narrador lembra
constantemente da cena em que o avô aparece com uma corda amarrada no
pescoço. Devido às projeções interiores do personagem, a ação pouco avança e se
enovela em si mesma. Na epopéia clássica, os personagens são pragmáticos, têm
que cumprir uma determinada ação, não deixando espaço para projeções interiores,
o que intensifica a ação.
Nas epopéias clássicas, grandes preocupações e acontecimentos afetam o
herói e conseqüentemente o seu povo. Os heróis do século XX são perturbados por
preocupações “individuais” e por problemas cotidianos: “[...] não posso pagar o
aluguel da casa [...] há também o homem da luz, o Moisés das prestações, uma
promissória de quinhentos mil réis, já reformulada. E coisas piores, muito piores [...]”
(ANGUSTIA, 1998, p.8). Neste trecho observamos o herói preocupado com coisas
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do cotidiano, dívidas, promissórias vencidas, entre outras aflições aparentemente
menores e secundárias.
Na epopéia negativa, a busca do herói é introspectiva e a fuga para o mundo
interior é impulsionada pelo mundo externo. Seus pensamentos são relacionados
com traumas sociais que não consegue superar: “[...] me desprezam porque sou um
pobre-diabo [...] colo-me às paredes como um rato assustado [...]” (ANGÚSTIA,
1998, p.8).
O discurso do narrador é marcado por um forte complexo de inferioridade,
entre outros que o atormentam e o impedem de agir.
[...] não consigo escrever. Dinheiro e propriedades, que me dão sempre desejos violentos de mortandade e outras destruições, as duas colunas mal impressas, Caixilho, Dr. Gouveia, Moisés, homem da luz, negociantes, políticos, diretor e secretário tudo se move na minha cabeça, como um bando de vermes, em cima de uma coisa amarela [...] essas sombras se arrastam com lentidão viscosa, misturando-se, formando um novelo confuso [...] (ANGÚSTIA, 1998, p.9).
No trecho acima, de monólogo interior do personagem, percebemos
claramente que ele, impulsionado por problemas externos, como a impossibilidade
de cumprir as tarefas da repartição e pagar suas dívidas, mergulha em uma longa
introspecção. Após esse longo monólogo interior, no qual o personagem reflete
sobre vários problemas, ele continua sentado a “riscar palavras no papel” e toda
essa reflexão cai no vazio e na inércia como o próprio personagem conclui: “[...]
afinal tudo desaparece. E, inteiramente vazio, fico tempo sem fim ocupado em riscar
as palavras e os desenhos [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p.9).
Suas reações aos problemas são transformadas em introspecção, os
sentimentos e conjecturas do personagem não saem do plano das idéias colocadas
no monólogo.
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As narrativas do século XX não são claras devido ao truncamento da ação e à
redução do enredo. É justamente isso que acontece com o discurso fragmentado de
Luís da Silva: um mesmo acontecimento é refletido inúmeras vezes.
Ao comentar o excesso de devaneios do personagem Luís da Silva, Candido
(1978, p.108) constata que em Angústia “[...] a narrativa não flui, constrói-se aos
poucos, em fragmentos, num ritmo de vai e vem [...]”. Essa constatação é discutível
em Candido, pois, ao nosso ver, o que não flui em Angústia é a ação e não a
narrativa, os devaneios do personagem impedem o desenrolar da ação na narrativa,
tendo em vista que narrativa é diferente de ação, sendo esta uma das categorias
narrativas. É o fluxo da consciência do personagem que entrava a ação.
Gouveia, ao comentar a forma como as narrativas de vanguarda
surpreenderam a crítica do século XX, com o esvaziamento do enredo e a
inabilidade dos personagens, tece alguns comentários com relação à condição dos
personagens no século XX, exemplificando com Luís da Silva:
[...] cada vez mais os personagens perdem sua condição de “agentes” do conhecimento e dos fatos. Eles se confinam nos monólogos em busca de algum conhecimento produtivo, sobre si mesmos e o mundo, mas não alcançam o menor êxito. Preocupações imediatas fundem-se a lembranças traumáticas, crônicas, que se perpetuam, em certos casos patologicamente, nas suas mentes. A única via da experiência é o mergulho em si mesmo, uma vez que as experiências externas são hostis e improdutivas [...] (GOUVEIA, 2004, p. 41).
Essa afirmativa confirma-se com extrema pertinência em Angústia.
Observemos o seguinte trecho:
[...] penso em mestre Domingos, no velho Trajano, em meu pai. Não sei por que mexi com eles, tão remotos, diluídos em tantos anos de separação. Não têm nenhuma relação com as pessoas e as coisas que me cercam [...] os defuntos antigos me importunam. Deve ser por causa da chuva [...]” (ANGÚSTIA, 1998, p.14).
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Observando os trechos citados, é possível concluir que, mesmo quando o
personagem tem consciência de que seus monólogos não têm relação com os
problemas que o cercam no momento presente, ele não consegue fugir dessas
imposições. Suas lembranças, principalmente as mais traumáticas, como por
exemplo a morte do pai, se perpetuam cada vez mais em sua mente e são
freqüentes no seu discurso. Ao contrário da memória épica, retomada para
engrandecer o herói clássico, a memória de Luís da Silva é fragmentária, negativa e
não traz para ele nenhuma compensação. Sempre que Luís tenta uma
compensação no passado, mais se sente inferior. Um exemplo disso é a própria
hierarquia dos sobrenomes: o avô chamava-se Trajano Pereira de Aquino
Cavalcante e Silva, o pai chamava-se Camilo Pereira da Silva, e ele apenas Luís da
Silva. Essa hierarquia decrescente pela qual passa o nome de Luís da Silva é um
indicador da queda de sua grandeza genealógica.
A degradação do herói é iminente, contínua e irreversível ao longo da
narrativa, cada vez mais ele se afunda em traumas e pensamentos negativos.
Segundo Jaeger (1995), o destino do herói é privilegiado, está em harmonia
com a ordem divina do mundo e os deuses lhes dispensam a sua proteção. Uma
prova disso é na Ilíada, onde o escudo e as armas de Aquiles são feitos por um
deus. Os deuses fazem as armas de Aquiles na epopéia clássica. Na epopéia
negativa as armas do herói não têm nenhuma proteção dos deuses. Em Angústia, a
corda que seria a arma com a qual Luís eliminaria seu inimigo, Julião Tavares, é
dada a ele por seu Ivo, um bêbado:
Enquanto Vitória lhe preparava a comida, fez-me um presente: - Está aqui, seu Luisinho, que eu lhe trouxe. E pôs em cima da mesa uma peça de corda. - Para que me serve isso seu Ivo? Onde foi que você furtou isso? - Não furtei não, seu Luisinho, achei na rua [...] (ANGÚSTIA, 1998,
p.143).
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A ação condiciona o deslocamento espacial do personagem. O deslocamento
do herói épico é imenso, ao passo que o herói da epopéia negativa é limitado a um
espaço restrito. O trajeto espacial de Luís da Silva no romance é reduzido a algumas
ruas, casas, repartição. Para o herói da epopéia negativa, a saga é a interiorização
de uma ação, nos momentos de menor deslocamento do personagem. O que ocorre
é a interiorização da ação, o que possibilitaria uma leitura às avessas das grandes
missões dos heróis épicos.
No monólogo final de Luís da Silva, ele praticamente não se desloca, porém
seus pensamentos fervilham caoticamente. Os personagens da epopéia negativa
são tipicamente incapazes de agir. Esses heróis não conseguem enfrentar nem
tampouco resolver seus conflitos. Os conflitos internalizados pelo herói da epopéia
negativa são em sua maioria de origem histórica e social e, não podendo resolvê-los,
o personagem assimila-os, transformando-os em introspecção. O herói moderno, na
incapacidade de solucionar seus problemas, contrapõe-se ao herói épico que,
mesmo que decaia é restituído e glorificado pela memória.
A queda de um herói clássico representa alegoricamente a queda do seu
povo, como é o caso de Heitor na Ilíada. A queda do herói moderno, como é o caso
de Luis da Silva, não atinge ninguém, não traz repercussões ao seu povo, a uma
coletividade. O herói clássico está destinado ao triunfo, o herói moderno está fadado
ao fracasso, incapaz de agir à margem do sistema.
Segundo Gouveia (2004, p.26), “Os indivíduos se sentem insignificantes
diante da máquina gigantesca do poder”. Em suas introspecções eles analisam,
conjecturam, porém são incapazes de desenvolver uma ação coletiva. Por mais que
Luís da Silva analise seus problemas, não toma nenhuma iniciativa para modificar a
sua situação.
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Essa impotência e precariedade do personagem é o que melhor caracteriza
os heróis da epopéia negativa. Suas reflexões ficam apenas no plano mental,
totalmente desprovido de ação.
Podemos afirmar que o percurso do herói moderno é a reversão do percurso
do herói antigo. Tendo em vista o fato de que o percurso evolutivo do herói na
narrativa contemporânea não pode ser dissociado do curso evolutivo da história, é
pertinente afirmar que a degradação do herói no século XX mimetiza a impotência e
a incapacidade do homem moderno de agir à margem do sistema capitalista.
No século XX torna-se difícil traçar o perfil do herói, pois ele se encontra cada vez
mais inserido na massificação. Dessa forma, constatamos que a conceituação da
epopéia negativa, cunhada por Adorno no ensaio A posição do narrador no romance
contemporâneo e explicitada por Gouveia no ensaio A epopéia negativa do século
XX, contribui de forma efetiva para a análise do herói Luís da Silva, do romance
Angústia e de suas ações ao longo da narrativa.
83
III. Considerações finais
Essa análise nos leva a verificar em Angústia um modelo diferente na escrita
de Graciliano Ramos.
Ao analisar a obra de Graciliano Ramos, a crítica é unânime em apontar como
características principais: a ausência de sentimentalismo, uma extraordinária
capacidade de síntese, uma linguagem rigorosa, enxuta e concisa.
Candido (1992, p.16) observa em Graciliano Ramos “a vocação para a brevidade e o
essencial, a condensação, a capacidade de dizer muito em pouco espaço”.
Diante disso, como inserir Angústia nesse modelo cristalizado pela crítica,
tendo em vista seu excesso de repetições e sua estrutura digressiva?
Em comum com as demais obras ficcionais do autor, como diz Candido
(1992, p.17-18) Angústia apresenta o seguinte:
A preocupação ininterrupta com o caso individual, com o ângulo do indivíduo singular, que é – e será – o seu modo de encarar a realidade. No âmago do acontecimento está sempre o coração do personagem central, dominante, impondo na visão das coisas a sua posição específica.
A utilização do foco narrativo de primeira pessoa é sem dúvida o ponto de
convergência nos romances de Graciliano Ramos, com exceção de Vidas Secas, o
único em terceira pessoa. Porém a forma como esse ponto de vista vai ser
representado na estrutura interna da obra é o que vai diferenciar a constituição
formal de Angústia dos demais romances graciliânicos.
Candido (1992, p.34) em seu célebre ensaio “Ficção e confissão” ao analisar
Angústia, observa: “romance excessivo, contrasta com a discrição, o despojamento,
apesar das partes gordurosas e corruptíveis”. Mesmo vendo em Angústia suas
repetições com certo receio, Candido aponta para o contraste que esta obra
apresenta com relação ao estilo peculiar do autor.
84
O próprio Graciliano Ramos, em carta enviada a Candido, concorda com o
julgamento e afirma:
Angústia é um livro mal escrito. Foi isto que o desgraçou. Ao reeditá-lo, fiz uma leitura atenta e percebi os defeitos horríveis: muita repetição desnecessária, um divagar maluco em torno de coisinhas bestas, desequilíbrio, excessiva gordura, enfim, as partes corruptíveis tão bem examinadas no seu terceiro artigo. (FICÇÃO E CONFISSÕES, 1992, p.8).
O que ao nosso ver é relativo, pois Graciliano Ramos era sempre muito
rigoroso ao analisar seus escritos. O que para ele é visto como excesso, nós vemos
como essencial para a compreensão e composição da obra. Seria impossível
apreender a narrativa como um todo, sem analisarmos seus excessos como
elementos ligados a composição da obra, principalmente aos desdobramentos da
psicologia do personagem.
Em Memórias do Cárcere, Graciliano Ramos faz freqüentes referências a
Angústia: “Romance desagradável, abafado, ambiente sujo, povoado de ratos, cheio
de podridões, de lixo. Nenhuma concessão ao gosto do público. Solilóquio doido,
enervante [...]” (MEMÓRIAS DO CÁRCERE, 2004, p.266-267).
Os concertos não me satisfaziam: indispensável recopiar tudo, suprimir as repetições excessivas. Alguns capítulos não me pareciam muito ruins, e isto fazia que os defeitos medonhos avultassem. O meu Luís da Silva era um falastrão, vivia a badalar à toa reminiscências de infância, vendo cordas em toda a parte. Aquele assassinato, realizado em vinte e sete dias de esforço, com razoável gasto de café e aguardente, dava-me impressão de falsidade. Realmente eu era um assassino bem chinfrim. O delírio final se atamancara numa noite, e fervilhava de redundâncias. Enfim, não era impossível canalizar esses derramamentos. O diabo era que no livro abundavam desconexões, talvez irremediáveis. (MEMÓRIAS DO CÁRCERE, 2004, p.42).
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As repetições excessivas, as redundâncias, as reminiscências de infância e
desconexões, que para Graciliano Ramos representam falhas evidentes, foram
vistas nesse estudo como elementos estruturais intrínsecos à obra.
O equívoco da crítica, a princípio, deu-se pela falta de utilização de
procedimentos formais de análise capazes de compreender os excessos e
repetições, como elementos estruturais do texto.
As digressões em Angústia têm função essencial no delineamento do
personagem, são elas que nos informam o pensamento do personagem, seus
anseios, suas motivações e principalmente as preocupações que o afligem.
O estilo seco e contido tão preconizado pela crítica é quebrado em Angústia.
A concisão não é, com certeza, uma das características do estilo de Graciliano
Ramos que possa ser aplicado a Angústia.
Carvalho (1983, p.20) afirma que Angústia instaura, no contexto dos
romances de Graciliano Ramos, o “princípio da diferença”, por contrastar com o rigor
que precede a escritura de suas demais obras.
Amparados em uma base formal sólida, procuramos elucidar pontos
importantes com relação à problemática da constituição da estrutura em Angústia.
Podemos constatar a impossibilidade de submeter a obra graciliânica a um
nivelamento formal, até mesmo dentro do seu conjunto.
A técnica narrativa que flui exclusivamente da materialidade psicológica do
personagem, modificando a estrutura da obra, é o principal traço que diferencia
Angústia das demais obras de Graciliano.
Podemos concluir que nenhuma sondagem crítica, por mais fecunda e
pertinente que seja, será capaz de exaurir completamente a densa complexidade do
romance.
86
Esse trabalho mostrou-se relevante à medida que se discutem aspectos
importantes da obra Angústia, principalmente no que se refere à ampla utilização,
por parte do autor, de recursos técnicos e estéticos inovadores, oriundos dos
vagabundos do século XX como o fluxo da consciência o que torna um modelo
diferente na obra de Graciliano Ramos.
87
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