O folclore na literatura brasileira

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O folclore na literatura brasileira Pare por um instante e tente lembrar nomes de personagens do folclore brasileiro. A lista é grande, mas fácil de ser lembrada, pois pelo menos uma vez você deve ter ouvido contos envolvendo lobisomens, sacis, botos, caiporas, uiaras, não é mesmo? Esses e outros seres saíram da imaginação nacional - e mesmo universal - para compor mitos e lendas. Vamos conhecer algumas histórias que concretizam nosso folclore e ver como grandes nomes da literatura brasileira abordaram os diversos aspectos da cultura popular.

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O folclore na literatura brasileira

Pare por um instante e tente lembrar nomes de personagens do folclore brasileiro. A lista é grande, mas fácil de ser lembrada, pois pelo menos uma vez você deve ter ouvido contos envolvendo lobisomens, sacis, botos, caiporas, uiaras, não é mesmo? Esses e outros seres saíram da imaginação nacional - e mesmo universal - para compor mitos e lendas. Vamos conhecer algumas histórias que concretizam nosso folclore e ver como grandes nomes da literatura brasileira abordaram os diversos aspectos da cultura popular.

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Como surge o folclore

O folclore surge por meio da fala, canto, dança, representações, costumes, brincadeiras, criações, crenças e mesmo doença ou medo. Sempre que o povo cria e desenvolve sua sabedoria temos o folclore - conhecimento reunido desde o início de nossos tempos. O folclore abrange uma gama imensa de fatos que os estudiosos agrupam em pelo menos oito categorias diferentes: linguagem; música e dança; usos e costumes; crendices e religiosidade; artesanato; brinquedos; festas; literatura.

O folclore brasileiro e a literatura O folclore deve estudar todas as manifestações tradicionais na vida coletiva. Assim considerado, o folclore brasileiro apresenta uma composição de influências indígenas, africanas e portuguesas, registrada em uma imensa bibliografia. Entre nossos grandes folcloristas estão Alceu Maynard Araújo, Luís da Câmara Cascudo, Sílvio Romero e Rossini Tavares de Lima. Mas não são apenas os estudiosos que se debruçaram sobre esse tema apaixonante. A diversidade e a amplitude de nossas manifestações também estão registradas em romances da literatura nacional. As mais variadas tradições inserem-se no desenrolar da história ou mesmo impulsionando o desenvolvimento da narrativa. Paralelamente, muitos textos em versos contêm aspectos folclóricos com os quais exprimem emoções ou sentimentos. A presença dessas tradições mostra uma característica fundamental para que essas obras sejam consideradas grandes clássicos da produção literária no país.

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O breve da moreninha - Joaquim Manuel de Macedo – A Moreninha

Analisando a vida familiar na sociedade do Rio de Janeiro do século XIX, Joaquim Manuel de Macedo escreveu A Moreninha, relatando uma história de amor cujo final feliz está ligado a um objeto valorizado pelas diferentes classes sociais da época: o breve.

Promessas de amor

Carolina e Augusto, personagens do romance escrito por Macedo, ainda eram crianças quando se encontraram pela primeira vez em uma praia. Brincaram, prometeram casar-se depois de crescidos e, pela iniciativa de um homem agonizante, trocaram breves com o propósito de proteger o amor e o juramento entre os dois. Anos mais tarde, Augusto, agora estudante de medicina, encontra Carolina, irmã de seu colega de classe, mas não a reconhece. Depois de muitas peripécias, ambos descobrem por meio dos breves serem aquelas crianças que haviam firmado uma promessa com um objeto considerado mágico.

Valha-me breve!

Considerado um grande protetor, o breve era um saquinho de pano ou couro que levava em seu interior uma oração qualquer, sempre tida como prodigiosa. Era usado pendente do pescoço por

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uma fita ou torçal e supersticiosamente empregado como elemento de crença para realizar um desejo ou como garantia contra todos os perigos e dificuldades.

Batuque nas noites de Natal - José de Alencar – O Tronco do Ipê

José de Alencar foi um pesquisador de elementos nacionais, utilizando vários deles em seus romances. Graças ao interesse pelo tema, sua obra traz um vasto panorama do nosso folclore. No livro O Tronco do Ipê, por exemplo, o capítulo Batuque oferece um quadro detalhado de alguns usos e costumes da época.

Batuque: início da festa

As festas de Natal sempre tiveram enorme importância na vida de todas as classes sociais e, de acordo com o relato de Alencar, muitos fazendeiros do século XIX permitiam aos negros comemorar a data a seu modo. Alguns senhores costumavam honrar seus escravos, assistindo ao "batuque" que, na verdade, era apenas a abertura da festa.

Comemoração na senzala

Da casa-grande à senzala, senhores e escravos seguiam por entre archotes, precedidos pela banda de música, formando uma espécie de rancho. Pelo caminho percorrido, já se ouvia o som do jongo e dos pandeiros vindo da senzala. Nessas comemorações, os escravos trajavam roupas

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de festas, fantasias orientais ou europeias. Após saudarem a chegada dos brancos com grande algazarra, os negros davam início ao samba, ainda sem grande entusiasmo. Quando o senhor e sua comitiva se retiravam, era o momento de dar vazão total à alegria. Pelo menos é assim que Alencar compõe a cena, rica em elementos genuínos, com a menção das palavras rancho, batuque, jongo e samba. Elas apontam manifestações típicas do folclore ligado às tradições europeias e africanas.

Batendo palmas e pés...

RanchoA denominação veio de Portugal. No Norte do Brasil, a palavra era empregada para indicar agasalho, hospedagem, pousada. Da Bahia para o Sul, denominava um grupo de festeiros das solenidades populares do Natal. Mais para o centro do país, esse grupo de festeiros ficou conhecido com o nome de Reisado. Primando pela variedade de roupas vistosas, o rancho dividia-se em duas categorias: uma séria e aristocrata e a outra mais divertida e democrática. No Rio de Janeiro, durante o carnaval, o rancho tornou-se um grupo de foliões, com instrumentos de corda e sopro, cantando versos alusivos ao grupo.

Batuque O batuque era uma dança de origem africana ligada ao ritual de procriação. Os portugueses passaram a utilizar o termo para indicar qualquer dança dos negros. Eles

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não se referiam a uma coreografia típica, mas à dança em geral, ao ajuntamento para o baile. Geralmente, a manifestação se caracterizava pelo sapateado e pelas palmas, ao som de cantigas acompanhadas de tambor.

Jongo Dança africana ligada ao canto e à percussão. Entre os pares poderia haver disputa quanto à dança. O jongo tornou-se característico das regiões do café e a coreografia diferenciava-se em cada localidade. De modo geral, não era dançado à noite e, de sua origem africana, manteve a fama dada a seus bailadores que eram considerados feiticeiros, sabedores de segredos e de poderes mágicos.

Samba A origem mais aceita da palavra é do angolês semba, termo que significa umbigada. No Brasil, referia-se ao baile popular, urbano ou rural. Em São Paulo, a dança passou para o salão; nas zonas rurais deu origem ao samba-de-roda, ao campineiro e ao samba-de-lenço. O nome samba teve vulgarização lenta no país e só cresceu a partir de 1916, quando foi citado na letra de Pelo telefone. Essa composição – primeiro samba gravado na história da música brasileira – foi escrita por Ernesto de Sousa, o Donga, no Rio de Janeiro. Pelo telefone também foi a primeira do gênero que

conseguiu ser impressa.

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O Espírito Santo nas memórias de um sargento - Manuel Antônio de Almeida – Memórias de um Sargento de Milícias

Embora haja comprovações da origem alemã, muitos estudiosos afirmam que a comemoração do Divino Espírito Santo surgiu no início do século XIV, por influência de D. Isabel, esposa do rei português D. Dinis. A devoção cresceu rapidamente e se tornou uma da mais populares em Portugal. A tradição foi estabelecida no Brasil no século XVI.

Tradição em decadência Em Memórias de um Sargento de Milícias, Manuel Antônio de Almeida afirma que, no século XIX, a festa já estava em decadência. Narrando as peripécias de Leonardo Pataca, no tempo do rei D. João VI, o autor coloca no caminho da personagem, ainda criança, e de seu padrinho, a Folia do Divino, uma espécie de preparação da festa principal. A descrição é detalhada e inclui um trecho das cantigas utilizadas pelos pastores, que retrata o espírito das comemorações: O Divino Espírito Santo É um grande folião, Amigo de muita carne, Muito vinho e muito pão.

A Bandeira do Divino Na festa do Divino, havia palanques e coretos armados para o assento do Imperador do Divino: uma criança ou um adulto era escolhido para presidir a festa, com direitos régios. Em certas

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localidades do Brasil, o Imperador do Divino podia até mesmo libertar presos comuns. Para os preparativos e a organização da festividade, havia antes a Folia do Divino. Nela, um grupo, liderado pelo Imperador e composto por pastores, barbeiros e irmãos, pedia e recebia auxílio de toda espécie. Eram músicos e cantores que percorriam vastas regiões, durante meses, levando uma bandeira ilustrada pela pomba, símbolo do Espírito Santo. A bandeira do Divino era recepcionada com devoção em toda parte. A celebração do Espírito Santo é móvel: ela acontece dez dias após a quinta-feira da Ascensão do Senhor. Com sua festa - que inclui missa cantada, procissão, leilão de prendas, exibição de autos e cavalhadas -, a tradição ainda vive em certas vilas e cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. Neste último, uma das maiores e mais conhecidas é a de Mogi das Cruzes. Várias localidades situadas em Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Maranhão, Amazonas, Espírito Santo, Goiás e Distrito Federal também se dedicam a promover e manter a fé e o costume.

A mezinha cura Inocência, mas o mau-olhado... - Visconde de Taunay – Inocência

No romance Inocência, de Visconde de Taunay, o personagem Cirino representa os curandeiros e médicos ambulantes do sertão que levavam adiante a tradição da cura pelas plantas e pelas forças da natureza. Ele percorria as regiões distantes, atrás de quem necessitasse de seus

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conhecimentos médicos, baseados, sobretudo, em um guia chamado Chernoviz, do qual tinha grande orgulho. Essa medicina prática o faz encontrar Inocência, que sofria de maleita e é por meio de sua mezinha que ele entra na vida da sertaneja reclusa.

Medicina contra mal de amor O tratamento receitado por Cirino consistia em suador de folhas de laranjeira, café com sulfato de quinina, limões doces para matar a sede e a mudança da cama para a linha do nascente ao poente. São componentes típicos da medicina popular do Brasil, que se constituiu com elementos indígenas, africanos e portugueses. De mezinha em mezinha e, ainda, preceituando uma dieta alimentar em que excluía carne fresca, ervas, ovos e farinha de milho por um mês, Cirino apaixona-se pela sertaneja e é correspondido. O sentimento do par não tem futuro, pois Inocência já estava prometida a Manecão Doca e, no sertão da época, esse tipo de compromisso era definitivo. Cirino parte em busca da ajuda do padrinho de Inocência. A moça, sentindo-se abandonada, acha que o rapaz lhe pôs um mau-olhado, pois não consegue tirá-lo da mente. Como sertaneja típica, a personagem manifesta a crendice popular sobre os poderes negativos de alguém. Verdade ou não, o certo é que, na narrativa, Inocência morre depois que Cirino é assassinado por Manecão...

Curando com limão e... cama Para Câmara Cascudo, o pajé - que até hoje sobrevive nas grandes cidades na figura do

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vendedor de ervas ou de remédios do mato - não tem preservadas suas verdadeiras tradições medicinais. Os nossos remédios do mato são formas populares de fonte portuguesa, que valorizam os recursos naturais da terra. As espécies de prestígio desde o século XVIII, tais como alho, arruda, alecrim, agrião, alfazema, limão, sal e pimenta, hortelã, manjericão, originaram-se da Europa. Aliás, Cirino baseava suas receitas em um livro chamado Chernoviz, de larga tradição em Portugal. Escrito por Pedro Luiz Napoleão Chernoviz, doutor em medicina, cavaleiro da Ordem de Cristo, oficial da Ordem da Rosa, esse livro era um guia para a saúde do povo português, com importante papel em sua formação espiritual. No Brasil, país imenso e sertanejo, o guia era obra indispensável nos lares dos fazendeiros prósperos, compensando a inexistência de médicos.

Cruz, Credo!

O mau-olhado - também conhecido no Brasil como "olho de seca-pimenteira" ou "olho-grande" - é, na verdade, uma crença universal e milenar, registrada em todas as literaturas. Os gregos utilizavam a cabeça da Medusa para reprimir essa força negativa. No Brasil, amuletos como figa, corninho, meia-lua, corcunda, elefante, folhas de arruda, um vaso de comigo-ninguém-pode ou de espada de São Jorge destinam-se, segundo o povo, a combater o mal.

Um domingo com Rita Baiana - Aluísio Azevedo – O Cortiço

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No romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo, os capítulos dedicados ao domingo compõem um retrato dos costumes, cujas origens estão registradas em nosso folclore de tradição africana: não só a comida, como a música e a dança que acontecem depois do almoço. O narrador chama o festejo de pagode, palavra que hoje define um estilo musical, mas que antes indicava somente uma reunião festiva e ruidosa. Esse encontro podia ter comida, bebida, danças, cantares e até prazeres considerados licenciosos. O pagode, enquanto festa, era e ainda é de caráter íntimo, com a presença de amigos. Assim, a narrativa de O Cortiço nos deixa saber que, às três da tarde, Firmo, com seu violão, e Porfírio, com seu cavaquinho, chegam à casa de Rita Baiana, no cortiço de João Romão, prontos para o "rega-bofe".

Parati como abrideira

Depois que todos se acomodam, começam a tomar como "abrideira" a "parati", aguardente típica da cidade de mesmo nome, no litoral sul do Rio de Janeiro. Além do vatapá, o almoço era composto por leitão ao forno, sopa, café e pratos feitos pela vizinha das Dores, como o zorô. Ao cair da noite, Firmo e Porfírio saem da casa para iniciar um chorado baiano. Enquanto Firmo canta, forma-se uma roda em torno dos mulatos e os participantes batem palmas. Mais tarde, Rita sai de seu barraco e entra no meio da roda, sapateando e gingando ao som de palmas cadentes. Com a chegada de outros moradores do cortiço, o círculo vai aumentando e o pagode segue até de madrugada.

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O domingo da baiana tem... Inserido em nosso folclore alimentar, o vatapá é um tradicional prato afro-baiano, originário dos negros nupês e adotado pelos iorubanos, que o introduziram no Brasil. Consiste em peixe ou crustáceos numa papa de farinha de mandioca, com molho de dendê e pimenta. Sobre essa base, há uma infinidade de variantes, algumas com carne de boi. Já o zorô é um prato tradicional em que se fervem camarões, que depois são cortados em pedaços, refogados com salsa, pimenta-do-reino, cebola, cebolinha e tomates. A esse refogado, juntam-se maxixes, jilós ou quiabos, cortados em rodelas, e um pouco de água. Deixa-se cozinhar bem. Serve-se com angu de milho.

Chorado e batuque Com relação à música e à dança, o chorado citado pelo narrador pertence ao folclore amazônico da Zona Bragantina, no Pará. Trata-se de uma coreografia da "marujada", dança apresentada durante os festejos de São Benedito, em dezembro. Suas raízes estão no lundum. Os participantes fazem uma roda e a mulher sai sozinha para dançar por algum tempo até escolher o par. Ela demonstra qual é o escolhido, batendo o pé com mais força na direção do eleito e acenando com os dedos. Só um par dança por vez. Tomado em seus aspectos gerais, o chorado espalhou-se pelo Brasil, adquirindo acentos próprios em cada região. O lundum - ou lundu - denomina o canto e a dança trazidos pelos escravos bantos. Na coreografia, o par evolui solto. O

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lundum dividiu-se em várias alterações, entre elas o chorado, citado na narrativa, e o samba solto, individual, sacudido, a batucada em que cada bailarino procura superar o anterior.

Uma rapsódia de temas - Mário de Andrade – Macunaíma

Mário de Andrade, referindo-se à sua obra, classificou-a como rapsódia, ou seja, assim como as rapsódias musicais fazem colagem de elementos retirados dos cantos populares tradicionais, Macunaíma é composta por fragmentos da cultura popular e de elementos do folclore. Também a linguagem apresenta características folclóricas, expressas em ditos populares como "espinho que pinica, de pequeno já traz ponta", nos quais o povo se vale de sua experiência do dia-a-dia para retratar em frases de efeito as situações que observa.

Choque cultural Macunaíma é índio, negro e branco, uma síntese do caráter do brasileiro e de sua cultura. Mário de Andrade faz um profundo estudo do folclore nacional para abordar o choque do índio amazônico com a tradição e a cultura européia de São Paulo. Pela narrativa simbólica vão desfilando personagens e elementos de nossas raízes culturais como Ci, Cobra Preta, muiraquitã, Negrinho do pastoreio, Uiara.

Nas águas e nas matas

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CiCi significa a Mãe e aparece em muitas terminações: Iaci, Coaraci. Ainda é usado em muitos lugares, sempre se referindo a alguma das mães que, conforme a crença indígena, é a origem de algo e que por isso rege o destino.

MuiraquitãPedra de diversos formatos à qual se atribuía a força de realizar sonhos. É preciso fazer distinção entre muiraquitã , amuleto de pau, e muiraquitá, pedra de chefe, uma espécie de insígnia de poder. Da junção desses dois elementos, surgiu a "muiraquitã" de nefrite, um silicato natural, uma espécie de jade de cor verde, com poderes de talismã. Artefato originário do baixo Amazonas, segundo uma tradição ainda viva, seria o presente que as amazonas davam aos homens como lembrança de sua visita. Uma vez por ano, as guerreiras se aproximavam dos jovens índios de tribos vizinhas que, devido ao fato, eram chamados de "esposos de uma noite". Quando partiam, as amazonas ofereciam o amuleto, que dava poderes ao guerreiro, de acordo com o animal desenhado. O rapaz que o recebia acreditava tornar-se forte como a onça bravia, poderoso como a águia e assim por diante...

Uiara

Ser da mitologia indígena que cuida da sorte dos peixes. Em alguns relatos, pode transformar-se no famoso Boto cor-de-rosa, o golfinho amazônico que seduz as moças ribeirinhas.

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Boa língua - Raul Bopp – Cobra Norato

Cobra Norato é a obra mais importante de Raul Bopp. Significando "boa língua" em tupi, o livro resume toda a corrente modernista situada entre o verde-amarelismo e antropofagismo, movimentos aos quais o escritor esteve ligado. Raul Bopp utiliza o folclore amazônico, valendo-se do mito conhecido como Cobra Honorato: no poema, o herói mata a cobra e assume a pele do animal. A seguir, parte em busca da amada, a filha da rainha Luísa. No fabuloso cenário da floresta, entre perigos e aventuras, o herói enfrenta seu principal antagonista, a cobra-grande (outro mito representativo do norte brasileiro). Cobra Norato vence a cobra-grande graças à sua esperteza e se casa com sua amada.

Mito ribeirinho A cobra-grande – também conhecida como cobra-preta – é um mito pertencente às populações ribeirinhas do Amazonas e afluentes. Os indígenas falavam de uma força assombrosa, voraz, que comia crianças e adultos que se banhavam naquelas águas. Um registro, datado de 1819, conta que os índios se recusavam a matar cobras, para evitar a ruína não só de quem tivesse dado fim ao réptil, mas de toda a tribo.

Cuidado com o moço alto e bonito na beira do rio...

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A lenda de Cobra Honorato conta que uma mulher indígena tomava banho entre os rios Amazonas e Trombetas quando foi engravidada pela cobra-grande. Nasceram um menino, chamado Cobra Honorato, ou Norato, e uma menina, Maria Caninana, que se torna má e traz muitos problemas para o irmão. Para conseguir viver com tranquilidade, Honorato acaba matando a irmã. Cobra e homem ao mesmo tempo, à noite Honorato se desencanta e se torna um rapaz alto e bonito que dança nas festas próximas ao rio. Na margem, fica o couro da cobra. Quem conseguisse derramar leite na boca do réptil imóvel e dar uma cutilada (golpe com instrumento de ponta) em sua cabeça a ponto de verter sangue, acabaria com a penitência de Honorato: ele voltaria a ser apenas um rapaz. Um soldado cumpre as exigências e Honorato é desencantado.

Vira Vira Lobisomem - José Lins do Rego – Menino de Engenho

A história de Menino de Engenho, obra de José Lins do Rego, acontece na região limítrofe entre Pernambuco e Paraíba e reconstrói um vasto panorama das tradições, das crenças e das superstições que marcaram o ciclo da cana-de-açúcar. É desse universo que Carlos Melo, a personagem principal, dá testemunho, relatando seu envolvimento com o dia a dia do engenho de seu avô, o coronel José Paulino.

Superstições e crendices Como todos os outros engenhos, o Santa Rosa tinha alguns de seus dias tumultuados pelas superstições. Uma dessas crendices atingia José Cutia, um paraibano comprador de ovos, que muita gente afirmava ter visto por

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debaixo dos ingazeiros, virando bicho. Nas palavras assustadas das pessoas do lugar, as unhas de Cutia cresciam como lâminas enormes, os pés ficavam como os de cabra e os cabelos viravam crinas de cavalo. Chegavam a comentar que, no momento da transformação, o homem grunhia como porco na faca. Ele não queria, mas seu corpo não podia viver sem sangue. "E bancava o lobisomem contra a vontade."

O povo desconfiava de José Cutia porque ele andava sempre à noite, era amarelo e magro. Diziam que comia fígado de menino e tomava banho com sangue de criança no peito. E que também bebia sangue de animais, chupando-os no pescoço. Um dos potros do coronel José Paulino amanheceu com um talho minando sangue, o que firmou a crença do menino Carlos na lenda do lobisomem e o fazia ir para a cama assustado. Dormia com medo do desconhecido, das matas, de homens amarelos que comiam meninos. Adormecia, pensando nas histórias do bicho-carrapato, da cabra-cabriola, do caipora, da burra-de-padre.

O mais popular dos animais fabulosos A licantropia faz parte do folclore universal. Na África, existe a tradição sagrada das transformações: homens-lobos, homens-tigres, homens-hienas. Na Europa, alemães, franceses, eslavos e os povos indo-europeus achavam que por um mau agouro um homem se transformava em lobo, jumento, bode ou cabrito. Em Portugal, acreditavam que o lobisomem era filho de comadre e compadre ou padrinho e afilhada. A identificação da pessoa marcada por esse destino não era difícil pois, segundo a convicção popular, uma aparência sempre magra e cores doentias denunciavam o possuidor do mal. No relato de Menino de Engenho, José Cutia, o provável lobisomem, também era amarelo, magro e só andava durante a noite, o que dava às pessoas a certeza de ser ele o misterioso

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bicho da Mata do Rolo, macilento, com orelhas compridas e nariz levantado. Isso demonstra que a crença brasileira seguia o pensamento português, acrescentando-se que o fado surgia de um incesto ou de uma doença chamada hopoemia. Pelos sertões do país, a população pensava que o bicho grande sangrava crianças, animais novos ou a quem encontrasse antes de o dia raiar. Para desencantar o portador do mal, seria necessário feri-lo até sair sangue ou utilizar uma bala untada com cera de vela que tivesse queimado durante três missas de domingo ou na missa do galo. Há centenas de depoimentos registrados em documentos oficiais, afirmando encontros e lutas pessoais com o lobisomem.

Cara feia espanta? - Carlos Drummond de Andrade

Considerado sóbrio e comedido, características que também podem ser aplicadas à segunda geração modernista na qual está inserido, Carlos Drummond de Andrade é o poeta do cotidiano, da realidade aparentemente simples e corriqueira. "Realidade aparente", porque, com sua sensibilidade, Drummond consegue revelar toda a singularidade escondida no prosaico. Essa marca - conseguir revitalizar o usual - também se aplica às tradições. O poeta vai buscar as imagens da emoção e do sentimento materializadas em aspectos folclóricos, como as carrancas do rio São Francisco, para falar de um cotidiano atual. Com isso, traduz o que parece indizível ou cria uma outra feição para o dia a dia do homem comum.

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Poesia do cotidiano Drummond consegue fazer poesia, no sentido mais sublime da palavra, falando de cheques, duplicatas, recibos, bancos e desconfiança. Aborda com delicadeza o medo daquilo cuja existência desconfiamos, mas que não sabemos exatamente o que é, nem quando vai nos passar para trás. De modo comovente, fala dos temores urbanos e das ameaças sempre presentes, quando sugere, diante desse cotidiano, a ajuda das carrancas do São Francisco. Será que essas figuras, acostumadas pelos anos, pela energia da fé e da tradição a enfrentar forças traiçoeiras e muitas vezes insuspeitas, podem salvar a todos? O paralelo entre o rio São Francisco e suas carrancas com uma rua central e financeira que possui identificação, mas que pode estar em qualquer cidade, revela, com lirismo, o nosso abandono, a nossa solidão, a nossa impotência diante do que nos circunda e nos ameaça.

Indicadores de prestígio A evolução das embarcações primitivas levou as figuras de proa, surgidas basicamente com conotações místicas, aos grandes navios, nos quais sua função passou a ser meramente decorativa. As carrancas do São Francisco originaram-se dessas figuras criadas na decoração naval dos povos ocidentais. Imitando navios de alto-mar vistos nas capitais da província da Bahia e do resto do país, os pequenos nobres e os fazendeiros do São Francisco fixaram as figuras de proa em uma sociedade rural primitiva. Seus cidadãos, dependendo da posição social, deram conotações diferentes às tais figuras. Assim, os fazendeiros as empregavam como elemento de prestígio e também como indicação de propriedade.

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Para o carro que canta, mostre a carranca! As condições de vida, a superstição e a ingenuidade dos remeiros geravam explicações sobrenaturais para tudo que os rodeava ou lhes acontecia: os encalhes, os naufrágios, os afogamentos. As fatalidades enfrentadas pelos remeiros e as suas crenças juntaram-se aos pavores noturnos da gente ribeirinha, fazendo nascer seres ameaçadores aos quais se atribuíam os acontecimentos funestos. O baixo São Francisco transformou-se na habitação do Caboclo-d'água; da Mãe-d'água; do Minhocão, também conhecido como Surubim-Rei. Para as camadas populares, também povoavam a região o Duende, o Lobisomem, o Anhangá, o Angaí, a Alma, o Esqueleto, o Gato Preto, o Capetinha, o Cavalo-de-água, a Cachorrinha-d'água, a Cobra-d'água, o Cavalo-do- Rio, a Serpente-do-Rio, o Bicho-d'água e o Carro-de-boi mágico, que cantava de noite no fundo do rio.

Para espantar o mal Contra todas essas entidades ameaçadoras, as pessoas utilizaram figuras impressas nos barcos, cujo valor estava na feiúra. O isolamento da região contribuiu para uma expressão singular: olhos esbugalhados, misto de homem, com suas sobrancelhas arqueadas, e animal, com sua expressão feroz e sua cabeleira de juba leonina. As feições ameaçadoras eram preferencialmente pintadas em vermelho, preto e azul. Nos tempos modernos, as únicas embarcações populares que apresentaram as figuras de proa foram as do baixo São Francisco. As carantonhas iniciais datam de 1875-1880, mas foram citadas pela primeira vez em livro no ano de 1888. Transformadas pela população em amuleto protetor dos navegantes, as carrancas se generalizaram no século XX.

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Figuras sagradas Sendo manifestação artística coletiva, com caracteres comuns, fruto de uma cultura e de uma região em isolamento, seus primeiros artesãos buscaram a solução plástica no hábito de esculpir santos, seguindo a influência ibérica. Francisco Guarany, um dos mais destacados escultores de carrancas, tinha iniciado seu trabalho com figuras sagradas; porém, o baixo rendimento o fez abandonar a prática. Em 1901, aos 17 anos, produziu sua primeira cabeça de proa e, ao lado de Sebastião Branco e Moreira do Prado, tornou-se artista de destaque. Com o Regulamento do Tráfego Marítimo de 1940, as embarcações foram substituídas pelo motor e as carrancas do São Francisco deixaram de ser feitas para a sua função original.

Adivinha, adivinhão - Manuel Bandeira

Poeta de grande sensibilidade e profundo lirismo, Manuel Bandeira aborda sobretudo o cotidiano e o biográfico. Construindo uma espécie de relato íntimo no qual desfilam cenas tradicionais, comuns em sua infância, consegue tornar vivos no presente os jogos, as brincadeiras, as festas, as crenças, as cenas carregadas de conteúdo folclórico. Com frequência, retoma com carinho, como uma brincadeira expressiva, as formulações tradicionais da linguagem popular: os jogos com as palavras e com a sonoridade, as trovas, as quadrinhas, tudo que provavelmente ouviu quando menino. Entre essas expressões da linguagem e da literatura oral, Bandeira utilizou também a adivinha, elemento lúdico de integração e desenvolvimento na pedagogia dos lares, nas brincadeiras infantis, nas reuniões de adultos. Desse modo, aproxima-se mais de seu leitor,

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ao mesmo tempo em que o instala nas raízes nacionais e o faz refletir sobre a grandeza do cotidiano.

Adivinha O animal deu nome às ilhas:Estas deram nome à ave.O animal como se chama?Como se chamam as ilhas?E como se chama a ave?Responda, senhor ou dama.(Manuel Bandeira)

O que é o que é? Gênero universal e favorito de todos os povos, é difícil determinar a origem das adivinhas brasileiras. Muitas são de procedência portuguesa, algumas têm origem indígena ou mestiça e há um legado da África. Pertencentes à literatura oral, esses jogos do espírito tanto possuem um caráter lúdico quanto pedagógico. Na cultura religiosa, serviu largamente ao exercício das coisas da fé, do catecismo laico. A articulação do jogo com recursos orais concede às adivinhas ou aos enigmas um papel didático ideal para o ensino na infância.

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O colocador de adivinhas

As adivinhas ainda se conservam no meio rural, onde é centro de interesse na reunião familiar, como nos séculos anteriores. Nessa época já distante, em feiras do sertão brasileiro, o colocador de adivinhas era uma figura imprescindível; ao seu redor se juntavam velhos, moços e crianças para o torneio verbal. Propor e decifrar enigmas são formas literárias nas quais a ideia do objeto ou ser vem envolta em uma alegoria, a fim de dificultar a descoberta. As adivinhas são enunciadas normalmente com uma fórmula popular para garantir a atenção: elas podem iniciar-se com uma pergunta do tipo "O que é o que é?", "Me diga lá, agora me diga", ou "Que será, que será?". Ora a linguagem é metafórica, ora emprega-se a comparação que induz ao deciframento. Sua forma pode ser metrificada, em quadrinhas com rimas, o que facilita a fixação e a transmissão. De acordo com o assunto, podem ser classificadas em adivinhas de religião, adivinhas de goga (maliciosas ou escatológicas) e as chamadas comuns, que reúnem diversos assuntos.

Popular e anônima

De impossível identificação autoral, as adivinhas atravessaram séculos anônimas, transmitidas oralmente. A primeira coleção impressa é do século XVIII. Atualmente, já se podem diferenciar os

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enigmas com formulação literária, mais rebuscados e obscuros e as formas populares, enfatizando a sonoridade e a repetição, como o exemplo abaixo, referente ao sal: N'água nasci,N'água me criei;Se n'água me botarem,N'água morrerei.