O Francisco imaginário | Courrier Internacional

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E m 31 de dezembro de 2013, a comu- nicação social recebia um despa- cho surpreendente: o Vaticano desmentia oficialmente a intenção do Papa Francisco de abolir o pecado. Pare- cia uma brincadeira, mas não era. Quem teria levado o Vaticano a publicar um comentário sobre algo tão imprová- vel? Parece que foi um dos mais proemi- nentes jornalistas de Itália: Eugenio Scal- fari, cofundador do jornal esquerdista La Repubblica. O seu artigo intitulava- -se “A revolução de Francisco: ele abo- liu o pecado”. Porque teria um jornalista, sobretu- do um analista tão prestigiado como Scalfari, imaginado que o Papa teria mandado às urtigas um dos princípios fundamentais da teologia cristã? Pois bem, desde que assumiu o cargo, no ano passado, Francisco foi promovido a es- trela mundial da esquerda liberal [libe- ral, no sentido anglo-saxão, isto é, refor- mista]. As suas origens modestas (foi se- gurança numa discoteca), a sua aversão pela pompa do Vaticano (cozinha as su- as próprias refeições de esparguete) e a sua determinação em destacar o com- promisso da Igreja com os pobres tem levado pessoas de esquerda, e até mes- mo ateus como Scalfari, a acreditar que é tão avesso aos dogmas da Igreja como eles. Por outras palavras, pensam que o Papa não é católico. No ano passado, quase todos os comentadores com orien- tação de esquerda se renderam aos en- cantos deste jesuíta lavador de pés. Arti- go atrás de artigo, projetam os seus so- nhos mais loucos em Francisco. O “novo herói da esquerda” Em novembro, Jonathan Freedland, jor- nalista de The Guardian, anunciou que Francisco era “o novo herói óbvio da es- querda”. Para ele, os retratos do Sumo Pontífice deviam substituir os cartazes desbotados de Obama “nas paredes dos quartos dos estudantes, por todo o mun- do”. Poucos dias depois, Francisco pro- nunciava uma homilia em que denuncia- va aquilo a que chamou “progressismo F AUTOR Luke Coppen (excertos) dATA 11.01.2014 TRAdUTORA Ana Cardoso Pires O Francisco imaginário Tolerante, progressista, senão próximo do marximo, o Papa Francisco é o novo ídolo dos colunistas da esquerda bem-pensante. Uma ideia com que o semanário conservador britânico não concorda por aí além... REVISTA ThE SPECTATOR LONdRES C vaticano papa O NOVO PAPAMÓVEL. ILUSTRAÇÃO DE NATE BEELER PARA THE COLOMBUS DISPATCH, EUA 24 MARÇO 2014 — N.º 217

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Vale bem a pena ler este artigo de Luke Coppen intitulado “O Francisco imaginário”. Escrito para a revista britânica “The Spectator” e agora publicado e traduzido para português — alguns excertos — pela Courrier Internacional. O artigo analisa a imagem de um Papa “tolerante, progressista, senão próximo do marxismo” que “é o novo ídolo dos colunistas da esquerda pensante. Uma ideia com que o semanário conservador britânico não concorda por aí além…”, escreve o Courrier Internacional. Particularmente interessante é a explicação que Coppen dá sobre o interesse que os jornalistas têm em manter um Francisco “idílico”, “imaginário”. Ao fim e ao cabo “um interesse económico” já que “os artigos vendem bem. “Afinal, foi a personalidade mais batida na internet no ano passado. Se colocarem na web uma bela fotografia dele a beijar uma criança, ou um selfie [retrato do próprio tirado por telemóvel) comm jovens admiradores do Papa no vaticano, o número de visualizações dispara. Francisco tornou-se

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E m 31 de dezembro de 2013, a comu-nicação social recebia um despa-cho surpreendente: o Vaticano

desmentia oficialmente a intenção doPapa Francisco de abolir o pecado. Pare-cia uma brincadeira, mas não era.Quem teria levado o Vaticano a publicarum comentário sobre algo tão imprová-vel? Parece que foi um dos mais proemi-nentes jornalistas de Itália: Eugenio Scal-fari, cofundador do jornal esquerdistaLa Repubblica. O seu artigo intitulava--se “A revolução de Francisco: ele abo-liu o pecado”.

Porque teria um jornalista, sobretu-do um analista tão prestigiado comoScalfari, imaginado que o Papa teriamandado às urtigas um dos princípiosfundamentais da teologia cristã? Poisbem, desde que assumiu o cargo, no anopassado, Francisco foi promovido a es-trela mundial da esquerda liberal [libe-ral, no sentido anglo-saxão, isto é, refor-

mista]. As suas origens modestas (foi se-gurança numa discoteca), a sua aversãopela pompa do Vaticano (cozinha as su-as próprias refeições de esparguete) e asua determinação em destacar o com-promisso da Igreja com os pobres temlevado pessoas de esquerda, e até mes-mo ateus como Scalfari, a acreditar queé tão avesso aos dogmas da Igreja comoeles. Por outras palavras, pensam que oPapa não é católico. No ano passado,quase todos os comentadores com orien-tação de esquerda se renderam aos en-cantos deste jesuíta lavador de pés. Arti-go atrás de artigo, projetam os seus so-nhos mais loucos em Francisco.

O “novo herói da esquerda”Em novembro, Jonathan Freedland, jor-nalista de The Guardian, anunciou queFrancisco era “o novo herói óbvio da es-querda”. Para ele, os retratos do SumoPontífice deviam substituir os cartazesdesbotados de Obama “nas paredes dosquartos dos estudantes, por todo o mun-do”. Poucos dias depois, Francisco pro-nunciava uma homilia em que denuncia-va aquilo a que chamou “progressismo

F AUTORLuke Coppen(excertos)

dATA11.01.2014

TRAdUTORAAna Cardoso Pires

O FranciscoimaginárioTolerante, progressista, senãopróximo do marximo,o Papa Francisco é o novo ídolodos colunistas da esquerdabem-pensante. Uma ideia comque o semanário conservadorbritânico não concorda por aí além...

REVISTA ThE SPECTATORLONdRES

C vaticano papa

O NOVO PAPAMÓVEL. ILUSTRAÇÃO DE NATE BEELER PARA THE COLOMBUS DISPATCH, EUA24 MARÇO 2014 — N.º 217

© Todos os direitos reservados. A cópia ou distribuição não autorizada é proibida. Ficheiro gerado para o utilizador 1563910 - [email protected] - 77.43.75.115 (26-02-14 08:52)

adolescente”. Mas as pessoas só veem eouvem o que querem e ninguém repa-rou nisso.

Eis como se fez do Papa um ídolo daesquerda. Assim que se manifesta fiel àdoutrina católica, os seus fãs de esquer-da fazem orelhas moucas. Em dezem-bro, a mais antiga revista gay dos Esta-dos Unidos, The Advocate, saudava emFrancisco o seu Homem do Ano, pelacompaixão expressa para com os homos-sexuais. Não tinha nada de revolucionári-o: o artigo 2358 do catecismo da IgrejaCatólica apela a que se trate os homosse-xuais “com respeito, compaixão e sensi-bilidade”. Por reafirmar um ensinamen-to católico, Francisco tornou-se um he-rói. Mas a palma da glorificação mais ab-surda cabe aos jornalistas da Esquire,que o fizeram passar pelo homem maisbem vestido do ano, em 2013, ele que usaa mesma indumentária todos os dias.

Alguns especialistas assinalaram jáo fosso existente entre o Francisco ima-ginário, figura nascida da fantasia da es-querda, e o ocupante real do trono deSão Pedro. James Bloodworth, redatordo blogue político Left Foot Forward,apelou recentemente a que os seus pa-res moderassem as manifestações de en-tusiasmo. “As posições do Papa Francis-co sobre a maioria dos temas são de pôros cabelos em pé a qualquer pessoa deesquerda”, escreveu. “Em vez disso, ar-tigo após artigo, mesmo jornalistas dosquais seria de esperar um pouco maisde ponderação escrevem as mesmas xa-ropadas.”

A observação de Bloodworth anun-cia um despertar dos laicos? Durante al-gum tempo, pareceu inevitável que osadeptos do novo Papa se fossem dandoconta de que ele não está disposto a dara sua bênção ao sacerdócio de mulhe-res, ao uso do preservativo, ao casamen-to homossexual ou ao aborto, e que issoos faria voltar-se contra ele. Mas come-ça a parecer pouco provável. Agora queinventaram um Francisco imaginário,os seus simpatizantes de esquerda não

parecem com vontade de matar a suacriação. Obviamente, os jornalistas têmtambém um interesse económico emmanter o seu idílio com esse Franciscoimaginário: os artigos sobre este perso-nagem vendem bem.

Afinal, foi a personalidade mais de-batida na internet no ano passado. Secolocarmos na web uma bela fotografiadele a beijar uma criança, ou um selfie[retrato do próprio tirado por telemó-vel] com jovens admiradores do Papano Vaticano, o número de visualiza-ções dispara. Francisco tornou-se umdos produtos com mais venda pela in-ternet. A nenhum bloguista interessaestragar o negócio.

O papa é marxista?Rush Limbaugh, apresentador de rádionorte-americano, conservador, acu-sou o pontífice de pregar “um marxis-mo puro e duro”. Obviamente, tratava--se de um novo avatar do Franciscoimaginário. Com Francisco, a Igreja es-tá firmemente empenhada em pôr emprática aquilo a que os teólogos cha-mam “opção preferencial pelos po-bres”. Mas, para fazer esta opção, aIgreja tem de cortejar os mais ricos.Por exemplo, alguns multimilionáriosgenerosos financiam a maior parte dasiniciativas católicas em Inglaterra e noPaís de Gales.

Bastaria que um deles se sentisse de-cecionado com a imagem “marxista” deFrancisco para a Igreja ficar em apuros.

Este homem de 77 anos sabe que de-ve pôr rapidamente em prática as refor-mas financeiras iniciadas pelo seu ante-cessor, Bento XVI, remodelar a Cúria Ro-mana, impor padrões rigorosos de con-duta para responder a casos de abusossexuais cometidos por padres, continu-ar a defender a paz na Síria, convidarisraelitas e palestinianos para negocia-ções durante a sua visita à Terra Santa esupervisionar um sínodo marcado pelacontrovérsia, que pode rever a posiçãoda Igreja em relação aos católicos divor-ciados e casados de novo.

Entretanto, o Francisco imagináriovai suprimindo dogmas, atiçando a lutade classes e influenciando as tendênciasda moda masculina. Mas não se deixeiludir: trata-se de uma ilusão alimenta-da pela comunicação social, tal como aideia de que a Igreja Católica vive obce-cada por sexo e dinheiro.

O que conta são as palavras e os atosdo verdadeiro Francisco. Que deviamser mais interessantes do que as inven-ções, mesmo as mais cativantes.

CPOR OUTRO LAdOIMPOPULARAo contrário do capital desimpatia de que goza noutroslugares, o Papa Francisco nãoestá nas boas graças dosbispos croatas. Uma meiadúzia deles, consideradospróximos da direitanacionalista, poderá serdestituída na primavera,a pretexto da sua idadeavançada. Mas é a atençãoque o Papa dedica aos pobresque não se compadece como luxo e os Mercedes dossacerdotes da Igreja croata,considera o diário de BelgradoDANAS. “A hipocrisia éconsequência do clericalismoe o clericalismo é um dosmales maiores”, declarourecentemente o PapaFrancisco. A Igreja croatarecebeu essas palavras comouma ameaça.

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Assim que o Papa semanifesta fiel à doutrinacatólica, os seus fãsde esquerda fazemorelhas moucas

25N.º 217 — MARÇO 2014

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