O GALEGO Frente Ao PORTUGUÊS, Ou a Lógica Social Da Diferença

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O “galego” frente ao “português”, ou a lógica social da diferença Celso Alvarez Cáccamo Área de Linguística Geral, Faculdade de Filologia, Universidade da Corunha [email protected] Publicado em: Camilo Fernández, ed. 1999. A lingua e a literatura galegas nos alicerces do Terceiro Rexurdimento (1976-2000) / La llengua i la literatura gallegues als inicis del Tercer Ressorgiment (1976-2000). Terrassa: Xunta de Galicia/Amics de les Arts i Joventuts musicals de Terrassa/UNED-Terrassa, pp. 43-49. URL deste documento: http://www.udc.es/dep/lx/cac/1999terr.pdf

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Diferenciação e tradução

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  • O galego frente ao portugus , ou a lgica social da diferena

    Celso Alvarez Cccamo

    rea de Lingustica Geral, Faculdade de Filologia, Universidade da Corunha

    [email protected]

    Publicado em: Camilo Fernndez, ed. 1999. A lingua e a literatura galegas nos alicerces do Terceiro

    Rexurdimento (1976-2000) / La llengua i la literatura gallegues als inicis del Tercer Ressorgiment

    (1976-2000). Terrassa: Xunta de Galicia/Amics de les Arts i Joventuts musicals de

    Terrassa/UNED-Terrassa, pp. 43-49.

    URL deste documento: http://www.udc.es/dep/lx/cac/1999terr.pdf

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    O galego frente ao portugus , ou a lgica social da diferena

    Celso Alvarez Cccamo

    rea de Lingustica Geral, Faculdade de Filologia, Universidade da Corunha

    Introduo

    Deve ser a idade, mas continua a instaurar-se em mim um so cepticismo, e ele que me salva dum

    silncio auto-imposto. No pretendo ter a Razo: s aqueles que lhe do importncia de mais s suas ideias

    refusam confront-las com outras; da talvez que os que defendemos a unidade do galego-portugus

    sistematicamente no sejamos convidados a confrontar ideias nos foros oficiais de debate sobre a lngua

    na Galiza. Hoje, por cepticismo, recolho o convite a ocupar um lugar testemunhal neste volume. S quero

    clarificar que no podo aceitar a gratificao oferecida por este escrito, pois j recebo do Estado Espanhol

    mais do suficiente pola minha funo. Confio em que depois da leitura deste texto, se proceder, se

    compreendam melhor as minhas palavras.

    Quisera falar da definio do objecto lngua na Galiza. Em 1932, Francisco Fernndez del Riego

    escrevia o seguinte nas pginas de A Fouce - peridico galego, revista publicada na Argentina:

    Mais, anque o traballo d-uns poucos desleigados trate d-ilo, non se borrar dos beizos quea mamaron, a fala que empregou iste pobo por mais de dez sculos, que a que falani-entenden 42.000.000 de galegos, portugueses e brasileiros; non pode morrer un linguaxeque tn unha literatura esgrevia e nomes que son orgulo do entendemento humn(Fernndez del Riego 1932, p. 4).

    O texto, escrito durante a segunda repblica espanhola, reclama a unidade lingustica

    galego-portuguesa. Opinies semelhantes de intelectuais galeguistas eram habituais at h poucos anos.

    Hoje Fernndez del Riego presidente da Real Academia Galega, instituio que consagra legalmente a

    suposta independncia lingustica do galego a respeito dos outros falares galego-portugueses. Que

    aconteceu nestas dcadas na Galiza? A mudana sociolingustica mais veloz jamais registada? Ou, desde

    os incios do projecto culturalista do grupo Grial, a consolidao de ideologias lingusticas hegemnicas

    que sustentam a criao do galego como lngua independente, no quadro dum estado monrquico que

    impede constitucionalmente a secesso das suas partes?

    Um argumento frequente que a falta de estudos sobre os falares galegos nos impedia conhecer

    a realidade da lngua, isto : a suposta independncia estrutural do galego. Porm, os estudos filolgicos

    recentes no podem (polo seu prprio desenho) demonstrar tal independncia. Certo que h mais dados

    sobre a situao sociolingustica da Galiza (incluindo, de maneira importante mas ignorada, anlises micro-

    sociolingusticas das variadas prticas comunicativas dirias); mas este conhecimento no invalida o

    princpio de que a delimi tao das lnguas segue a ser uma construo terica.

  • 1 Obviamente, strictement linguistique deve ler-se como estritamente estrutural ,pois o sociolingustico e o estandardolgico tambm so lingusticos .

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    De facto, aps tantos estudos, desde a prpria posio circunstancialmente hegemnica da filologia

    galega se postula a relativa unidade estrutural do galego-portugus:

    Dans une perspective strictement linguistique, nous pouvons admettre que le galicien etle portugais parls aujourdhui constituent pratiquement une seuele et mme langueabstand (Fernndez Rei 1993, p. 111). 1

    Fernndez Rei continua a destacar que, contudo, do ponto de vista estandardolgico j existiriam

    duas normas distintas. Na realidade, existem mais (v. Alvarez Cccamo e Herrero Valeiro 1996). Porm,

    a lgica dita que este facto no invalida o reconhecimento explcito da relativa unidade estrutural

    galego-portuguesa. E se esta relativa unidade existe agora, incoerente argumentar, como se faz s vezes,

    que j no existia no perodo medieval.

    Por que, portanto, a nfase posta na dimenso da elaborao dum estndar galego, quando

    estruturalmente pertence mesma lngua que o portugus? Por que a defesa duma Lngua Prpria para

    a Galiza, quando j nos podemos reconhecer na portuguesa, da que o galego faz parte?

    Parto das seguintes assunes --acho que incontestveis-- para propor que a concepo hegemnica

    (mas no a nica) sobre a lngua na Galiza actual precisa, ainda e sempre, ser debatida:

    (1) O estabelecimento das fronteiras entre as lnguas sempre uma construo dos linguistas. O

    mesmo se pode dizer, obviamente, da delimitao dos dialectos, mas o dialecto no est directamente

    conectado com projectos dirigidos de construo identitria.

    (2) A relao entre fala e escrita arbitrria. Portanto, qualquer sistema escrito e ortogrfico em

    princpio adequado para representar qualquer forma de fala.

    (3) Na Galiza actual, quaisquer das propostas de lngua formal (a institucional diferencialista e a

    pro-reintegracionista) esto mais prximas entre si do que qualquer delas o est dos falares comuns,

    altamente hibidrizados e irregulares. A maior fronteira estrutural e simblica d-se portanto entre as falas

    (e escritas) codificadas, por uma parte, e as falas coloquiais pola outra.

    (4) Em todas as sociedades de classes a lngua escrita e formal um instrumento simblico cuja

    apropriao, regimentao e gesto serve interesses grupais. O papel do controlo da lngua na

    hierarquizao social est recolhido mesmo em textos basilares da sociolingustica nada militante

    ideologicamente (p. ex. Haugen 1966).

    (1) O estabelecimento das fronteiras lingusticas entre variedades prximas uma abstraco

    A primeira tarefa do linguista no estudo das lnguas construir o prprio objecto de estudo,

  • 2 Nem a desintegrao dirigida da Repblica Federal de Jugoslvia nos ltimos dezanos (cujos terrveis efeitos seguimos a viver no momento de escrever estas linhas, Maio1999) razo suficiente para cindir a realidade do servo-croata nos dous estandartessimblicos da lngua srvia frente lngua croata.

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    domesticando a difcil glotodiversidade em base a um bom nmero de critrios, todos eles to cientficos

    como acientficos. Do ponto de vista estrutural, portanto, to legtimo afirmar que o galego faz parte da

    lngua portuguesa como que o galego uma lngua independente do portugus. Reparemos, porm, que,

    mesmo para destacados dialectlogos, esta segunda opo no caso.

    Mas a questo no radica em tomar partido (sempre ideolgico) a respeito da caracterizao do

    galego: a verdadeira questo radica na coerncia na aplicao dos critrios de distino entre variedades

    lingusticas. Neste sentido, certas comparanas com outras situaes lingusticas so esclarecedoras. Por

    exemplo, aqueles que defendemos que os falares galegos e portugueses fazem parte duma nica lngua

    tambm defendemos que os falares catalo, valenciano, minorquino e outros fazem parte da mesma lngua. 2

    E vice-versa: aqueles que compreendem a unidade relativa da lngua catal ao longo de trs estados,

    deveriam em boa lgica assumir a unidade relativa da lngua portuguesa ao longo de vrios estados e

    continentes.

    Por semelhantes critrios de coerncia, aqueles que postulam a existncia da lngua galega

    deveriam em boa lgica defender a existncia da lngua valenciana ou da lngua minorquina, em p de

    igualdade com a lngua catal. Essa coerncia o mnimo que se pode exigir dum linguista. Dia aps dia

    constato que fora das fronteiras da Galiza a questo se compreende muito bem, enquanto na Galiza actual

    a incoerncia intelectual amide toma formas difceis de justificar em termos estritamente acadmicos;

    inevitavelmente, surge ento como explicao dessa incoerncia a lealdade a diversos interesses polticos.

    (2) A relao entre fala e escr ita inerentemente arbitrr ia

    As implicaes ideolgicas e polticas das opes escritas na Galiza escapam ao mbito deste

    testemunhal relato. Herrero Valeiro (1993) revisa em detalhe estas questes; um panorama do contnuo

    de sistemas escritos (que vo do portugus padro at ao espanhol padro, passando pola norma

    institucional e outras) pode-se achar tambm em Alvarez Cccamo e Herreiro Valeiro (1996). Deste ponto

    de vista, o uso da ortografia portuguesa (como a presente) para expressar-se em galego (como estou a

    fazer) no s perfeitamente vlido, mas a consequncia lgica duma concepo unitria da lngua como

    nvel superior de abstraco. De novo, os reintegracionistas (e lamento, por efectividade argumental,

    ter que auto-atribuir-me qualquer etiqueta) no somos unitaristas s com o galego: tambm

    compreendemos a utili dade da escrita unificada para todas as variedades do espanhol, catalo ou ingls no

  • 3 As pequenas diferenas entre pases so irrelevantes. Do meu ponto de vista, naaltura a questo da elaborao do estilo na escrita galega secundria: no se trata de imporsubitamente todos os modismos portugueses, brasileiros ou moambicanos possveis mas, polacontra, de exercermos livremente a diferena... dentro do mbito do portugus, no doespanhol.

    4 No Japo, por exemplo, ensinam-se e usam-se quatro sistemas de escrita (o knji , os

    silabrios katakana e hiragana, e o alfabeto latino); Japo tem um dos ndices de alfabetizaomais altos do planeta.

    5 Talvez uma causa mais plausvel da suposta dificuldade seja, por exemplo, que ooramento dedicado educao e cultura no Estado Espanhol uma mnima parte dodestinado ao exrcito indstria blica.

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    mundo 3 Na prtica, a grafia portuguesa instrumental para o reconhecimento do galego por outros

    lusfonos e lusgrafos como, precisamente, galego-portugus, no como espanhol da Galiza. A escrita

    institucional do galego no encarnao do diferencialismo a respeito do espanhol, mas, sem dvida, a

    respeito do portugus padro. Eis a questo, sobre a qual voltarei.

    De novo, quem defenda a diferena escrita do galego deveria tambm em toda lgica aceitar uma

    norma diferente para o espanhol do Caribe, ou para o ingls de Irlanda, e, sem dvida, para o valenciano,

    com uma ortografia supostamente fonmica espanhola: yo por jo, yens por gens, bach por vaig, etc.

    Um argumento comum contra esta reivindicao da coerncia que os galegos devem preocupar-se

    polo seu idioma, no polos outros. Como no falamos minorquino, valenciano ou barcelons, diz-se, no

    devemos posicionar-nos. Levando esta postura at as suas consequncias, aqueles que acreditam na

    independncia ortogrfica baseada nas diferenas de fala deveriam sentir que esto a trair a sua ideologia

    lingustica quando, por exemplo, se lhes requer escrever espanhol padro num volume editado em Sevilha,

    ou catalo padro num volume editado nas Ilhas Baleares.

    Em resumo: s na medida em que concebamos as relaes entre fala e escrita atravs da ptica da

    ortografia espanhola, e da sua mtica e suposta representao fonmica da fala, aceitaremos o dbil

    argumento de que a escrita institucional galega actual reflecte melhor o galego, ou de que um estudante

    galego no saberia pronunciar o idioma com a ortografia portuguesa. Visto que inerentemente nenhum

    sistema grfico pode reflectir nenhum falar, ambas opinies so sem-sentidos evidentes.

    Argumenta-se amide a dificuldade que suporia o ensino da ortografia portuguesa. Esta opinio,

    pedagogicamente, no se sustm: qualquer criana adequadamente instruda capaz de aprender qualquer

    sistema escrito para representar o idioma (e, obviamente, de cometer erros nele).4 Falta por demonstrar que

    a causa das erros seja a ensinana dum sistema complicado: as mesmas pessoas que aborrecem da

    estrangeira escrita portuguesa levam os seus filhos a custosas escolas a aprenderem a catica ortografia

    inglesa. 5 E, sobretudo, falta por demonstrar que o objectivo verdadeiro do sistema educativo nos regimes

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    democrticos seja, efectivamente, a alfabetizao universal, e no a seleco social por meio do suposto

    da alfabetizao universal.

    (3) Na Galiza actual, a verdadeira fronteira lingustica d-se entre variedades formais regularizadas

    e falas coloquiais hibridizadas e castelhanizadas

    Eis o fundo da questo, com a que nos aproximamos das relaes entre a especializao

    scio-funcional das variedades lingusticas e os padres de estratificao social. falacioso (mas

    politicamente produtivo) argumentar que as normas dominantes se aproximam mais da fala do povo

    porque surgiria dum interesse das instituies planificadoras polos Falantes . Seria longo expor como na

    construo actual do galego como lngua se d, precisamente, uma de-simbolizao sistemtica do que

    eram (e so) marcadores lingusticos tradicionais de identidades galegas: os fenmenos como o sesseio, as

    nasalaes, ou as variantes lexicais e morfolgicas lusistas , esto estigmatizados e desaparecidos da fala

    pblica, num pulcro processo que lembra a desinfeco macia, a purificao tnica e a consagrao dum

    corpo destinado Transcendncia. O resultado uma fala pblica aparentemente neutra e neutralizada que

    na prtica se torna no sinal de identidade das elites bilngues (Anderson 1983) que dirigem sempre os

    processos de recuperao dum idioma.

    (4) Nas sociedades de classes, a lngua escr ita e formal um instrumento de domnio das elites

    Enunciado assim, este argumento provavelmente provocar rechao a ser compreendido. Mas

    exactamente assim como deve ser enunciado, e o rechao a compreend-lo mais um sintoma da prematura

    agonia do pensamento crtico no estado espanhol nos ltimos vinte e cinco anos. Desde a revoluo

    filolgica ocidental (Anderson 1983), o duplo mecanismo dos regimes democrticos tem sido a extenso

    da alfabetizao como miragem de igualdade, complementada com o controlo dos itinerrios de circulao

    da produo cultural. O que est em jogo a distribuio do capital simbli co (Bourdieu 1977, 1982,

    1990) gerado polo controlo da lngua e da cultura, no isento s vezes de precioso capital econmico na

    forma de prmios, subvenes, prebendas e outras formas ainda menos benignas de cleptocracia.

    Desta perspectiva, as classes em pugna ficam definidas especificamente polo seu papel estrutural

    na sociedade. Bourdieu fala assim de elites econmicas que controlam os recursos materiais, elites

    tcnicas e cientficas que produzem o saber, elites polticas que gerem estes recursos, elites

    intelectuais , e elites artsticas . O termo elite suficientemente transparente, pois refere grupos

    especficos e identificveis, que representam sempre uma fraco mnima do corpo social.

    A Lngua , portanto, um recurso simblico e material em poder das elites. Talvez, frente ao poder

    dum avio F-18, o poder da Lngua no seja to fundamental. Mas numa cultura logocrtica como a nossa

    a palavra permeia toda actividade social. Bourdieu assinala que as relaes entre as anteditas elites nem

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    sempre so harmoniosas, pois podem ter interesses sectoriais distintos, e, por isso, podem reproduzir-se

    lutas e dissenses no seu seio ou entre elas. Mas, frente s grandes maiorias desapossadas do controlo dos

    recursos, as elites seguem a desfrutar do papel estrutural de, basicamente, perpetuar-se no seu prprio

    proveito.

    Para uma melhor compreenso deste quadro de anlise, fundamental incidir na noo, tambm

    de Bourdieu, de mercado lingustico. O mercado lingustico aquele mbito social onde a lngua legtima

    cobra o seu valor de troco como ponto de referncia para a obteno do capital simblico. Assim, a lngua

    padro, o standard, tanto uma norma quanto um estandarte da nova identidade. Igual que os trocos

    comerciais esto baseados no valor do padro econmico (a moeda comum, teoricamente respaldada polas

    reservas de ouro), os trocos simblico-culturais esto baseados no valor da lngua legtima. A percia nesta

    lngua legtima hegemnica, nos estilos hegemnicos e, sobretudo, no discurso hegemnico (aquele que,

    por exemplo, salienta a funo da Lngua Prpria para construir a identidade dum povo dentro duma

    ordem poltica dada) outorga constantes benefcios. Por contra, o desvio nos usos desta norma e desta

    linguagem, mesmo se estes usos so tolerados, priva os grupos e indivduos dissidentes destes benefcios

    tanto simblicos quanto materiais.

    Tambm na Galiza, na pretensa consagrao do galego institucional como padro de troco, est em

    jogo a conformao dum determinado mercado lingustico. Mas, dada a subordinao da lngua

    institucional ao padro espanhol, o mercado lingustico do galego na actualidade no pode deixar de ser

    o mbito do prprio Estado Espanhol. Simbolicamente, o galego j uma forma legtima mas distinta do

    Espanhol. O reconhecimento actual na capital do Reino da li teratura feita por galegos amostra

    precisamente desta subordinao estrutural, pois s na medida em que o galego seja parte do

    espanhol que a literatura da Galiza pode ser reconhecida. Experincias culturais como os encontros

    Galeusca de associaes de escritores em galego, basco e catalo (no em espanhol, nem em portugus)

    no so evidncias da fortaleza literria e cultural dos pases respectivos, mas, por contra, da assuno e

    defesa (ideologicamente arroupada de nacionalismo) do mercado lingustico Espanha.

    Devemos clarificar, porm, que o mercado lingustico no apenas o mbito de valorizao social

    da escrita: valorizam-se tambm outras formas de expresso, incluindo a comunicao oral. Por exemplo,

    tipicamente os falares galegos no so legendados nas televises de mbito estatal porque se entendem,

    enquanto o andaluz de Huelva no leva subttulos ainda que para muitos (como eu prprio) seja dificilmente

    compreensvel: galego e andaluz so assim situados no mesmo plano a respeito do padro Espanhol. Por

    isso mesmo, na televiso galega dobra-se o portugus de Portugal e Brasil, vistos como estrangeiros,

    mas no o castelhano ou o andaluz, vistos como galegos, quer dizer, tambm espanhis.

    Por fim, a construo dum mercado lingustico sempre um processo dirigido por grupos

    previamente privilegiados. Por acaso as elites que esto a dirigir a construo do galego como lngua

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    legtima representam o prottipo do falante rural monolngue em galego? A resposta negativa bvia, e

    as implicaes sociais tambm: s aqueles que possuem o controlo prvio dum cdigo simblico de

    prestgio (o espanhol) podem efectivamente levar a cabo a tarefa privilegiada de moldar outro cdigo

    simblico de (menos) prestgio (o galego institucional). Esta a funo estrutural das elites bilngues de

    que fala Anderson, e puramente propagandstico argumentar que a construo duma Lngua beneficiosa

    para os falantes, a maioria dos quais nem sequer saber nunca quem o presidente da Real Academia

    Galega ou o seu Conselheiro de Cultura.

    Concluses

    As argumentaes expostas so bastante singelas, quase auto-evidentes, e s o crescente cognicdio

    pode ocult-las na forma duma glorificao das polticas lingusticas. A articulao entre interesses e

    prticas das elites explica os lamentveis factos que se do quando numa sociedade inteira, como na galega

    na actualidade, o Estado (quer dizer, a Xunta de Galicia) se apropria dos recursos para a promoo duma

    s forma de escrita e duma exclusiva viso duma questo aparentemente cientfica como a forma,

    identidade e futuro do idioma. Contra os prprios postulados da liberdade de expresso democrtica,

    entre as minorias escreventes da Galiza na actualidade tal liberdade na prtica no existe. No exagero

    nem procede dum enfebrecido esprito de dissidentes clandestinos constatar que hoje na Galiza h processos

    administrativos abertos contra professores por oferecerem e praticarem uma concepo reintegracionista

    do idioma; que nos crculos intelectuais existe uma forte estigmatizao do lusismo; que as condies da

    imensa maioria dos prmios literrios (exageradamente remunerados ou no) excluem aquelas pessoas que,

    na sua livre criatividade, no optam pola norma institucional; ou que nos supostos centros de saber da

    Galiza, as Universidades, justo quando conclui o sculo democrtico, pessoas intrinsecamente totalitrias

    (abandeiradas de qualquer nacionalismo) arrancam ou deturpam sistematicamente cartazes redigidos em

    portugus, galego-portugus ou galego reintegrado, como se queira chamar. Tudo isto no um exagero,

    nem anedotal, mas tambm no casual: pois a outra forma de pensar e de agir, a isolacionista, a que

    melhor exemplifica o nacionalismo lingustico, no s no reprimida, mas a favorecida polas instituies.

    Obviamente, seria hipcrita pola minha parte dar a entender que o meu discurso crtico sobre a

    Lngua se deve a que estaria em jogo o meu destino ou o de outros estabelecidos reintegracionistas . Eu

    sou funcionrio do Estado, professor de Lingustica: fcil reclamar coerncia quando o Estado te retribui

    quase 300.000 ptas. ao ms pola duvidosa faanha de reproduzir pedacinhos de saber nas aulas

    universitrias. Mas h muitas pessoas mais jovens para quem obterem um legtimo lugar de sobrevivncia

    no mundo do ensino, da criao ou da cultura depende de que no se posicionem, no seu discurso ou na

    sua prtica, como lusistas . E isto um facto, no outra alucinao dos incompreendidos.

    Desenganemo-nos: Nem as lnguas so vitais, nem o galego vital, nem o portugus

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    importante. Mas quando as isoglossas que dividem lnguas se fazem coincidir por interesses grupais e sob

    escusas cientficas com as fronteiras polticas, no ganham uns e perdemos outros: perde sempre o

    raciocnio. Porque, no fundo, a verdadeira isoglossa do oeste da Pennsula Ibrica a que passa entre o

    Reino borbnico de Espanha e a Repblica de Portugal. Eu, quase sempre contra quase todos os estados,

    no desejo particularmente recolocar essa isoglossa poltica ao leste da Galiza para integr-la em Portugal

    (mas tampouco me escandalizaria). Eu desejo simplesmente ignorar essa falsa linha imaginria e, dentro

    da lgica do capital de que sou cmplice, inserir-me, com as minhas crescentes limitaes, num amplo

    mbito lingustico e cultural lusfono, lusgrafo e universal onde por fim a maioria dos privilegiados

    trabalhadores da palavra dum pas to pequeno como a Galiza podamos reconhecer-nos na nossa humana

    mediocridade, longe das pompas culturais onde diversos grupos endogmicos dilapidam periodicamente

    dinheiros necessrios para combater a misria (sim, a misria) dos desempregados.

    Referncias bibliogrficas

    Alvarez Cccamo, Celso e Mrio J. Herrero Valeiro. 1996. O continuum da escrita na Galiza: entre oespanhol e o portugus . Aglia. Revista Internacional da Associaom Galega da Lngua 46, pp. 143-156.

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