O GLOBO - Vida Em Blocos

8
18 RIO 2ª edição • Domingo, 8 de maio de 2011 O GLOBO . BLOCOS VIDAS EM “Esses edifícios que os rodeiam nesse momento não são mais que o começo de um programa que há de trazer definitivamente o conforto de que precisa o operário brasileiro." MARECHAL HERMES DA FONSECA, no discurso de inauguração da Vila Operária Marechal Hermes, em 1913 Um teto de cem anos ERGUIDA HÁ UM SÉCULO, A VILA OPERÁRIA MARECHAL HERMES MARCOU O INÍCIO DA POLÍTICA DE CONSTRUÇÃO DE CONJUNTOS HABITACIONAIS Rafael Galdo e Rogério Daflon C em anos depois do iní- cio das obras do primei- ro conjunto habitacio- nal do governo federal no país — a Vila Operá- ria Marechal Hermes —, mais de um milhão de pessoas vivem nesse tipo de moradia na cidade do Rio, o que representa 17% da popu- lação (6.320.446 de habitantes, se- gundo o Censo 2010 do IBGE) e se aproxima dos cerca de 1,1 milhão que vivem em favelas. Levanta- mento do GLOBO mos- tra que 304 mil unidades habitacionais populares foram construídas na capital ao longo deste um século, o que não re- solveu o problema da moradia, como revela esta série de reporta- gens que começa a ser publicada hoje. O déficit de domicílios no Rio ul- trapassa 221 mil unida- des, enquanto políticas atuais como o programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, não conseguem atender à demanda. — A partir dos anos 90, com a reurbanização de favelas em foco, os conjuntos tiveram a im- portância minimizada pelos governos, pelas universidades e pela mí- dia, impedindo políticas mais amplas e enfraque- cendo o debate sobre a habitação social — dis- se a arquiteta Luciana Corrêa do Lago, do Ins- tituto de Pesquisa e Pla- nejamento Urbano e Re- gional (Ippur) da UFRJ. O começo da política habitacional nacional lançou uma quase sem- pre errante aventura de erguer moradias popu- lares no Brasil. Em 1 o - de maio de 1911, o então presidente Hermes da Fonseca instalou a pedra fundamen- tal da Vila Operária Marechal Her- mes (numa homenagem a ele mes- mo). Na época um longínquo subúr- bio, o local deveria receber 738 casas e sobrados para 1.350 famílias, além de creches, quatro escolas, materni- dade, hospital e outros serviços. Três anos depois, porém, quando a vila foi ocupada, a realidade dava for- ma a apenas dois colégios e 170 ca- sas (20% do previsto), como relata o historiador Alfredo Oliveira. — Hermes enfrentou resistências, mas foi pioneiro. Previu toda a in- fraestrutura para a autossuficiência do lugar, como uma estação de trem. No fim de 1913, no entanto, as obras ficaram paradas, após o senador Pi- nheiro Machado promover a demis- são do diretor da comissão da cons- trução da vila, Palmyro Pulcherio. E, depois de entregue, a vila passou a ser boicotada pelos governos libe- rais posteriores, até cair no completo esquecimento — conta Oliveira. — A primeira política habitacional do país já nasceu descontínua. Getúlio retoma a obra de Hermes Hoje, grande parte dos casarões da vila, na área central do atual bairro de Marechal Hermes, está em ruínas ou descaracterizada, como símbolo de uma cidade que dá as costas para a sua história. Sobrados foram inva- didos para dar lugar a comércios im- provisados. Um deles abriga seis fa- mílias, como num cortiço. Apesar disso, algumas ruas ainda remetem ao início do século XX e foram loca- ção para filmes como “A suprema fe- licidade”, de Arnaldo Jabor, e “Chuva de verão”, de Cacá Diegues. O passado é motivo de orgulho pa- ra antigos moradores, como Ruth Hallais Motta, de 92 anos, que nasceu num dos casarões, em 1919. Filha de um escrivão de polícia, ela conta que a maioria das primeiras casas foi en- tregue a funcionários públicos. E lembra, em detalhes, os costumes do bairro que ganhava formas em torno dos sobrados e da estação. — Marechal era um lugar chique. No trem, quando as meninas daqui chegavam a Madureira, de tão bem vestidas, eram logo reconhecidas: “Lá vêm as moças de Marechal” — conta dona Ruth. — Era na estação de trem que as meninas encontra- vam os melhores partidos. Dona Ruth fala de um tempo ro- mântico no bairro, que até hoje guarda ruas largas e planejadas. — Aos 12 anos, fui a primeira me- nina a andar de bicicleta em Mare- chal. Foi um escândalo. Outra que deu muito o que falar foi a mulher de Hermes (Nair de Teffé), professora de uma das escolas daqui. Ela era linda, 31 anos mais nova que o presidente! E não há dúvidas sobre a qualidade dos casarões. Ninguém conseguia en- fiar um prego nas paredes — diz ela, que morou 22 anos num casarão da antiga Rua Sete de Setembro, até se casar e continuar no bairro. Da infância de dona Ruth até o bairro chegar às dimensões imagina- das pelo marechal Hermes, seriam necessários mais 40 anos. Só em 1931 foram retomadas as obras, já na Era Vargas. Um ano depois de Getúlio assumir a Presidência, a posse da vi- la foi passada ao Instituto de Previ- dência dos Funcionários Públicos da União (IPFPU), que encontrou um ce- nário desolador: 128 casas desocu- padas e muitas inacabadas. Nessa fa- se foram construídas 300 casas, o Ci- ne Lux, hoje em ruínas, e o Hospital Carlos Chagas. — É como se Getúlio retomasse a obra de Hermes — diz Oliveira. Só nos anos 40 e 50 surgiriam no- vos empreendimentos habitacionais do governo no bairro, concomitantes aos nascentes projetos de moradia dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs). Com a transforma- ção do IPFPU em Instituto de Previ- dência e Aposentadoria dos Servido- res do Estado (Ipase), Marechal ga- nha 589 casas, um ginásio, uma ma- ternidade e o Teatro Armando Gon- zaga, projeto de Afonso Eduardo Rei- dy, com jardins de Burle Marx. Nessa fase foram erguidos três no- vos conjuntos no lugar: o Comercial, de 1948; o Três de Outubro, em 1949; e o do Ipase, de 1954. Ao redor da Vi- la Operária, eles compõem um belo um retrato da habitação social da primeira metade do século XX. O GLOBO NA INTERNET VÍDEO Historiador detalha como foi criado o conjunto de Marechal Hermes oglobo.com.br/rio/info/conjuntos-habitacio- nais VIDAS EM ABANDONO: diante da praça alagada em Marechal Hermes, dois sobrados do início do século em péssimo estado de conservação, transformados em cortiços, ao lado de um preservado Fotos de Custodio Coimbra Foi nas vilas e cidades-modelo construídas pela indústria na Europa do século XIX, principal- mente na Alemanha e na França — para onde Marechal Hermes viajou em 1908 e 1910, respec- tivamente —, que o militar se inspirou para projetar sua Vila Proletária carioca como presi- dente da República. Mas, se por aqui os conjuntos que vieram depois de Marechal não resolveram a falta de mora- dia digna, outros países conse- guiram, com o mesmo tipo de iniciativa, equacionar seu déficit habitacional. É o caso da pró- pria Alemanha visitada por Her- mes, da Inglaterra e da Áustria. Neles, a solução quantitativa do problema veio acompanhada da qualidade construtiva. — Esses conjuntos eram pro- jetados com serviços coletivos, como lavanderias e escolas — diz a arquiteta Flávia Brito, do Instituto do Patrimônio Históri- co e Artístico Nacional (Iphan). — Eles surgiram com o cresci- mento das cidades e a indus- trialização dos anos 20. Nessa época, em paralelo ao déficit habitacional acumulado e à reconstrução da Europa no primeiro pós-guerra, vivia-se a ebulição do Modernismo na ar- quitetura, que influenciaria os primeiros conjuntos. Flávia cita construções em Viena, na Áus- tria, com pátios centrais, conhe- cidos como Höfe vienenses, e seis conjuntos de Berlim, capital alemã, tombados pela Unesco, para ilustrar esse pioneirismo. — O nazismo e a Segunda Guerra interromperam esse processo, que, com a reconstru- ção das cidades, seria retoma- do, ainda sob inspiração do mo- dernismo — diz Flávia. Os primeiros conjuntos BLOCOS E os casarões, não há dúvidas de sua qualidade. Ninguém conseguia enfiar um prego nas paredes. Ruth Hallais Motta, de 92 anos, que nasceu no bairro UMA MORADORA passa pelos casarões antigos que já serviram como locação para filmes RUTH MOTTA, que se lembra de quando Marechal era um bairro chique Simone Marinho SOBRADOS DA Vila Operária de Marechal Hermes Marcelo

description

Reportagem

Transcript of O GLOBO - Vida Em Blocos

Page 1: O GLOBO - Vida Em Blocos

18

R I O2ª edição • Domingo, 8 de maio de 2011O GLOBO

.

O GLOBO ● RIO ● PÁGINA 18 - Edição: 8/05/2011 - Impresso: 7/05/2011 — 18: 46 h AZUL MAGENTA AMARELO PRETO

BLOCOSVIDAS EM

“Essesedifíciosqueos rodeiamnessemomentonãosãomaisqueocomeçodeumprogramaqueháde trazerdefinitivamenteo

confortodequeprecisaooperáriobrasileiro."MARECHAL HERMES DA FONSECA, no discurso de inauguração da Vila OperáriaMarechal Hermes, em 1913

Um teto de cem anosERGUIDA HÁ UM SÉCULO, A VILA OPERÁRIA MARECHAL HERMES MARCOUO INÍCIO DA POLÍTICA DE CONSTRUÇÃO DE CONJUNTOS HABITACIONAIS

Rafael Galdo e Rogério Daflon

Cem anos depois do iní-cio das obras do primei-ro conjunto habitacio-nal do governo federalno país — a Vila Operá-ria Marechal Hermes —,

mais de um milhão de pessoas vivemnesse tipo de moradia na cidade doRio, o que representa 17% da popu-lação (6.320.446 de habitantes, se-gundo o Censo 2010 do IBGE) e seaproxima dos cerca de1,1 milhão que vivemem favelas. Levanta-mento do GLOBO mos-tra que 304 mil unidadeshabitacionais popularesforam construídas nacapital ao longo desteum século, o que não re-solveu o problema damoradia, como revelaesta série de reporta-gens que começa a serpublicada hoje. O déficitde domicílios no Rio ul-trapassa 221 mil unida-des, enquanto políticasatuais como o programaMinha Casa, Minha Vida,do governo federal, nãoconseguem atender àdemanda.

— A partir dos anos90, com a reurbanizaçãode favelas em foco, osconjuntos tiveram a im-portância minimizadapelos governos, pelasuniversidades e pela mí-dia, impedindo políticasmais amplas e enfraque-cendo o debate sobre ahabitação social — dis-se a arquiteta LucianaCorrêa do Lago, do Ins-tituto de Pesquisa e Pla-nejamento Urbano e Re-gional (Ippur) da UFRJ.

O começo da políticahabitacional nacionallançou uma quase sem-pre errante aventura deerguer moradias popu-lares no Brasil. Em 1o- de maio de1911, o então presidente Hermes daFonseca instalou a pedra fundamen-tal da Vila Operária Marechal Her-mes (numa homenagem a ele mes-mo). Na época um longínquo subúr-bio, o local deveria receber 738 casase sobrados para 1.350 famílias, alémde creches, quatro escolas, materni-dade, hospital e outros serviços.Três anos depois, porém, quando avila foi ocupada, a realidade dava for-ma a apenas dois colégios e 170 ca-sas (20% do previsto), como relata ohistoriador Alfredo Oliveira.

— Hermes enfrentou resistências,mas foi pioneiro. Previu toda a in-fraestrutura para a autossuficiênciado lugar, como uma estação de trem.No fim de 1913, no entanto, as obrasficaram paradas, após o senador Pi-nheiro Machado promover a demis-são do diretor da comissão da cons-trução da vila, Palmyro Pulcherio. E,depois de entregue, a vila passou aser boicotada pelos governos libe-rais posteriores, até cair no completoesquecimento — conta Oliveira. — Aprimeira política habitacional dopaís já nasceu descontínua.

Getúlio retoma aobra de Hermes● Hoje, grande parte dos casarões davila, na área central do atual bairrode Marechal Hermes, está em ruínasou descaracterizada, como símbolode uma cidade que dá as costas paraa sua história. Sobrados foram inva-didos para dar lugar a comércios im-provisados. Um deles abriga seis fa-mílias, como num cortiço. Apesardisso, algumas ruas ainda remetemao início do século XX e foram loca-ção para filmes como “A suprema fe-licidade”, de Arnaldo Jabor, e “Chuvade verão”, de Cacá Diegues.

O passado é motivo de orgulho pa-ra antigos moradores, como RuthHallais Motta, de 92 anos, que nasceunum dos casarões, em 1919. Filha deum escrivão de polícia, ela conta quea maioria das primeiras casas foi en-tregue a funcionários públicos. Elembra, em detalhes, os costumes do

bairro que ganhava formas em tornodos sobrados e da estação.

— Marechal era um lugar chique.No trem, quando as meninas daquichegavam a Madureira, de tão bemvestidas, eram logo reconhecidas:“Lá vêm as moças de Marechal” —conta dona Ruth. — Era na estaçãode trem que as meninas encontra-vam os melhores partidos.

Dona Ruth fala de um tempo ro-mântico no bairro, que até hojeguarda ruas largas e planejadas.

— Aos 12 anos, fui a primeira me-nina a andar de bicicleta em Mare-chal. Foi um escândalo. Outra quedeu muito o que falar foi a mulher de

Hermes (Nair de Teffé), professora deuma das escolas daqui. Ela era linda,31 anos mais nova que o presidente!E não há dúvidas sobre a qualidadedos casarões. Ninguém conseguia en-fiar um prego nas paredes — diz ela,que morou 22 anos num casarão daantiga Rua Sete de Setembro, até secasar e continuar no bairro.

Da infância de dona Ruth até obairro chegar às dimensões imagina-das pelo marechal Hermes, seriamnecessários mais 40 anos. Só em1931 foram retomadas as obras, já naEra Vargas. Um ano depois de Getúlioassumir a Presidência, a posse da vi-la foi passada ao Instituto de Previ-

dência dos Funcionários Públicos daUnião (IPFPU), que encontrou um ce-nário desolador: 128 casas desocu-padas e muitas inacabadas. Nessa fa-se foram construídas 300 casas, o Ci-ne Lux, hoje em ruínas, e o HospitalCarlos Chagas.

— É como se Getúlio retomassea obra de Hermes — diz Oliveira.

Só nos anos 40 e 50 surgiriam no-vos empreendimentos habitacionaisdo governo no bairro, concomitantesaos nascentes projetos de moradiados Institutos de Aposentadoria ePensões (IAPs). Com a transforma-ção do IPFPU em Instituto de Previ-dência e Aposentadoria dos Servido-res do Estado (Ipase), Marechal ga-nha 589 casas, um ginásio, uma ma-ternidade e o Teatro Armando Gon-zaga, projeto de Afonso Eduardo Rei-dy, com jardins de Burle Marx.

Nessa fase foram erguidos três no-vos conjuntos no lugar: o Comercial,de 1948; o Três de Outubro, em 1949;e o do Ipase, de 1954. Ao redor da Vi-la Operária, eles compõem um beloum retrato da habitação social daprimeira metade do século XX. ■

O GLOBO NA INTERNETVÍDEO Historiador detalha como foi

criado o conjunto de Marechal Hermesoglobo.com.br/rio/info/conjuntos-habitacio-nais

VIDAS EM

ABANDONO: diante da praça alagada em Marechal Hermes, dois sobrados do início do século em péssimo estado de conservação, transformados em cortiços, ao lado de um preservado

Fotos de Custodio Coimbra

● Foi nas vilas e cidades-modeloconstruídas pela indústria naEuropa do século XIX, principal-mente na Alemanha e na França— para onde Marechal Hermesviajou em 1908 e 1910, respec-tivamente —, que o militar seinspirou para projetar sua VilaProletária carioca como presi-dente da República.

Mas, se por aqui os conjuntosque vieram depois de Marechalnão resolveram a falta de mora-dia digna, outros países conse-guiram, com o mesmo tipo deiniciativa, equacionar seu déficithabitacional. É o caso da pró-pria Alemanha visitada por Her-mes, da Inglaterra e da Áustria.Neles, a solução quantitativa doproblema veio acompanhada daqualidade construtiva.

— Esses conjuntos eram pro-jetados com serviços coletivos,como lavanderias e escolas —diz a arquiteta Flávia Brito, doInstituto do Patrimônio Históri-co e Artístico Nacional (Iphan).— Eles surgiram com o cresci-mento das cidades e a indus-trialização dos anos 20.

Nessa época, em paralelo aodéficit habitacional acumuladoe à reconstrução da Europa noprimeiro pós-guerra, vivia-se aebulição do Modernismo na ar-quitetura, que influenciaria osprimeiros conjuntos. Flávia citaconstruções em Viena, na Áus-tria, com pátios centrais, conhe-cidos como Höfe vienenses, eseis conjuntos de Berlim, capitalalemã, tombados pela Unesco,para ilustrar esse pioneirismo.

— O nazismo e a SegundaGuerra interromperam esseprocesso, que, com a reconstru-ção das cidades, seria retoma-do, ainda sob inspiração do mo-dernismo — diz Flávia.

Osprimeirosconjuntos

BLOCOS

“E os casarões,não há dúvidasde suaqualidade.Ninguémconseguiaenfiar um pregonas paredes.Ruth Hallais Motta, de 92anos, que nasceu no bairro UMA MORADORA passa pelos casarões antigos que já serviram como locação para filmes

RUTH MOTTA, que se lembra de quando Marechal era um bairro chique

Simone Marinho

SOBRADOS DA Vila Operáriade Marechal Hermes

Mar

celo

Page 2: O GLOBO - Vida Em Blocos

RIO ● 19Domingo, 8 de maio de 2011 • 2ª edição O GLOBO

O GLOBO ● RIO ● PÁGINA 19 - Edição: 8/05/2011 - Impresso: 7/05/2011 — 18: 46 h PRETO/BRANCO

Rafael Galdo e Rogério Daflon

E x -moradora da Favelada Praia do Pinto, no Le-blon, e há 43 anos noconjunto Cidade Alta

(erguido em 1969, com 2.597unidades), em Cordovil, CidaNeves Moraes teve que se des-pedir de duas de suas filhas, quedeixaram o apartamento de doisquartos rumo à favela vizinhade Vila Cambuci. Chana, de 31anos, e Fabíola, de 28, construí-ram suas casas na comunidadeapós se casarem e não teremcondições de comprar ou alugarum imóvel no conjunto.

— Com o crescimento das fa-mílias, pelo menos 80% dos mo-radores das favelas em volta doCidade Alta são filhos e parentesde moradores dos três conjun-tos do bairro. No caso das mi-nhas filhas, o apartamento nãodava para tanta gente, e minhafamília foi uma das que invadi-ram a Vila Cambuci — conta Ci-da, que deixou a Praia do Pintoapós um incêndio que devastoua comunidade em 1968.

Os três conjuntos em Cordo-vil aos quais Cida se referiu sin-tetizam o fracasso da políticahabitacional no Rio. Com 4.077unidades habitacionais e, numaestimativa modesta, pelo menos14.600 habitantes, a maioria dasfamílias chegou ali vinda de fa-velas removidas na Zona Sul. Osconjuntos foram construídosnas décadas de 60 e 70, e, alémde não garantirem a qualidadede vida de seus moradores, de-ram origem a cinco favelas emseu entorno: Vila Cambuci, Avi-lã, Parque Proletário, Divineia ePica-Pau. As comunidades sãofrutos da explosão demográficanos apartamentos dos conjun-tos, sem que o poder públicofosse capaz de alocar as pes-soas em moradias formais.

Um desafio àsleis da física● Viviane Pereira foi uma dasque fizeram o percurso do con-junto para a favela. Há noveanos, após se casar e ter um fi-lho, ela trocou o dois-quartos-e-sala da família no Cidade Alta,onde na época já residiam novepessoas, por uma casa na Divi-neia. E, mesmo com a saída dela,a divisão de espaço no aparta-mento desafia as leis da física.Hoje são 11 pessoas no lugar. Ca-be a Alcilene Pereira, irmã de Vi-viane, tentar organizar tantagente: ela, o marido, quatro fi-lhos, três netos e dois genros,que sustentam a casa com rendaem torno de mil reais por mês.

— No meu quarto dormimoseu e meu marido na cama, omeu neto de 1 ano entre nósdois, e a minha filha de 14 nochão. Na sala, a minha filha,meu genro e meu outro neto. E,no outro quarto, meu filho nochão, minha filha e o marido de-la na cama e meu neto no car-rinho de bebê. A dificuldademaior é na hora de tomar ba-nho de manhã. É uma bagunça— conta ela, auxiliar de servi-ços gerais desempregada.

No Cidade Alta, Alcilene eseus vizinhos não vivem em

condições tão melhores queseus parentes na favela. O con-junto é repleto de puxadinhos,que tomaram o lugar dos jardinsna frente dos prédios. Os corre-dores dos edifícios ou estão es-curos ou iluminados graças acentenas de “gatos” de energiaelétrica. Faltam serviços bási-cos, como uma melhor coleta delixo e áreas de lazer. A presençado tráfico de drogas, emboraatualmente de forma menos os-tensiva, sempre se faz notar. Tu-do o que leva o próprio conjun-to, muitas vezes, a se ver e servisto como uma favela.

A organização nos prédiostambém é precária. Na maioriados blocos não se paga condo-mínio. Dos três conjuntos deCordovil, a situação mais precá-ria é a do Porto Velho. Construí-do pela Companhia Estadual deHabitação (Cehab) em 1970, elesoma mil unidades, em 45 blo-cos verdes-musgo, à beira daAvenida Brasil. De tão degrada-do, ganhou o apelido de “pé su-jo”. De acordo com o síndico An-dré Miranda, boa parte dos pré-dios teve a luz e a água cortadaspor falta de pagamento.

— É uma cultura que foi tra-zida da favela (a maioria dos mo-radores veio da Praia do Pinto).Dos 45 blocos, dez têm algum ti-po de organização e procurampagar as contas. Muitos mora-dores venderam seus aparta-mentos e foram morar nas fave-las vizinhas para não pagaremnada. Quase toda a comunidadedo Pica-Pau foi formada por ex-moradores e filhos deles.

Numa situação um pouco me-lhor, com 480 unidades em 30edifícios, está o conjunto VistaMar, entre o Cidade Alta e o Por-to Velho. Com estrutura mantidapor 28 funcionários, exibe umacuriosa diferença de status emrelação aos demais, alimentadapelos próprios moradores.

— Nós somos o pé limpo, o láde baixo (Porto Velho) é o pé su-jo e o lá de cima é o pé mal la-vado — disse, sem se identificar,um dos moradores do Vista Mar,construído pelo Banco Nacionalde Habitação (BNH).

O conjunto, explica o síndicodos 30 blocos, Carlos Silva, seriamoradia preferencialmente parabancários, masmuitos se recusa-ram a morar láquando viram osoutros dois con-juntos:

— Ainda hoje,muitos morado-res do Vista Marnão gostam de semisturar.

Uma senhorado Vista Mar re-forçou o clima deseparação:

— G o s t o d eeles lá; e eu, cá —disse, sem darmuita conversa.

Prova de queos preconceitos ligados à mora-dia vão além da divisão entre fa-vela e asfalto. ■

O GLOBO NA INTERNETGALERIA Veja mais fotos do

Cidade Altaoglobo.com.br/rio/info/conjuntos-habi-tacionais

Favelas filhasde conjuntos

POPULAÇÃO DO CIDADEALTA EXPLODE E INVADE

TERRENOS VIZINHOS

“Pelo menos 80% dos moradoresdas favelas em volta do CidadeAlta são filhos e parentes demoradores dos conjuntos

“A dificuldade maior é na hora de tomarbanho de manhã. É uma bagunça.ALCILENE PEREIRA, que mora com outras dez pessoasnum dois-quartos no Cidade Alta

.

O Rio como protagonistada habitação social

Arquiteto destaca produção na cidade

● Para o arquiteto e professor Nabil Bonduki, da Facul-dade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade deSão Paulo (USP), o Rio é a cidade brasileira que maisrepresenta a produção habitacional promovida pelo po-der público no país. Na sua opinião, em 1911, com o pri-meiro conjunto habitacional construído pelo governofederal em Marechal Hermes, o Brasil deu o pontapé ini-cial no setor. Mas foi somente a partir da década de 30,que, segundo ele, a habitação passou a ser tratada co-mo uma questão social.

— De 1930 a 1964, o Rio concentrou mais de um terçodas unidades habitacionais do país — disse Nabil Bon-duki, que lançará ainda este ano o livro “Pioneiros dahabitação social no Brasil”.

O GLOBO NA INTERNETOPINIÃO Arquiteto: Rio resume a trajetória da produção dos

conjuntos habitacionais no paísoglobo.com.br/rio

BLOCOSVIDAS EMVIDAS EMBLOCOS

CIDA NEVES em seu apartamento: as filhas, após se casarem, não conseguiram morar no conjunto

PRÉDIO do conjunto Cidade Alta com a fachada descaracterizada por um puxadinho construído onde deveria haver um jardim para os moradores

ALCILENE PEREIRA com oito das 11 pessoas que moram no apartamento dela

CIDA DA SILVA, moradora da Cidade de Deus

Fotos de Márcia Foletto

AMANHÃ: A grandiosidade dos conjuntos na Era Vargas

Page 3: O GLOBO - Vida Em Blocos

9

R I OSegunda-feira, 9 de maio de 2011 O GLOBO

.

O GLOBO ● RIO ● PÁGINA 9 - Edição: 9/05/2011 - Impresso: 8/05/2011 — 21: 43 h AZUL MAGENTA AMARELO PRETO

BLOCOSVIDAS EMVIDAS EMBLOCOS

CASAS GEMINADASdo IAPI de Realengo

Mar

celo

Moradias emlarga escala

CONJUNTOS NA ERA VARGAS SE MULTIPLICARAMPARA DAR TETO A TRABALHADORES

Márcia Foletto

PRÉDIOS DO IAPI da Penha, considerado um dos exemplos mais bem-sucedidos dos projetos de habitação popular dos anos 40: moradores se organizaram em condomínios para garantir a conservação

Rafael Galdo e Rogério Daflon

“Simplesmenteduas mil habita-ções. Isto erau m n e g ó c i omuito chocante,porque, na épo-

ca, o máximo que o governo cons-truía era 200 casas”. O espanto do ar-quiteto Carlos Frederico Ferreira —em depoimento pouco antes de suamorte, em 1994 — ilustra como o pri-meiro conjunto habitacional em largaescala do país, o IAPI de Realengo, de1942, na Zona Oeste, projetado porele, rompia com os padrões da épo-ca. Com 2.344 unidades, era o inícioda maior política de moradia popularbrasileira até então, implementadano governo de Getúlio Vargas a fimde oferecer casa aos trabalhadorespor meio dos Institutos de Aposen-tadoria e Pensão (IAPs). Empreitada,porém, que saía atrasada na corridacontra os problemas urbanos no Rionaquele período, quando milharesde pessoas já se aglomeravam em fa-velas. Desde ontem, uma série de re-portagens do GLOBO mostra que,em cem anos, os conjuntos habita-cionais não resolveram os proble-mas de moradia.

Do IAPI de Realengo até 1950, fo-ram construídos outros 12 grandesconjuntos dos IAPs no Rio, num totalde 12.238 unidades, beneficiando61.190 pessoas. No mesmo ano, o Ser-viço Nacional de Recenseamentocontava 169.305 habitantes (7,12% dapopulação) nas 58 favelas pesquisa-das. E pior: a política de Getúlio, se-guida por seu sucessor, Gaspar Dutra,voltada aos trabalhadores formais debaixa renda, não atendia à populaçãomarginalizada dos morros.

— Todas as políticas habitacionaisa partir daí mantêm o padrão: come-çam correndo atrás de um prejuízo já

configurado. Enquanto o país não en-tender a origem de seu passivo ha-bitacional e, sobretudo, sua evoluçãohistórica, não resolverá o déficit demoradias. O Rio é um exemplo em-blemático disso — diz o professorAdauto Cardoso, do Instituto de Pes-quisa e Planejamento Urbano e Re-gional (Ippur) da UFRJ.

Os velhos IAPs guardam, no entan-to, uma diferença crucial: a qualidadearquitetônica. Em Realengo, foramerguidos os primeiros blocos deapartamentos num conjunto no Bra-sil. Um deles tem nas varandas pro-jetadas por Carlos Frederico com ainfluência da Bauhaus, a escola de ar-quitetura e design de vanguarda ale-mã. Há ainda casas de diferentes ti-pos, umas geminadas, outras isola-das, com a preocupação quanto àventilação e à iluminação. Padrão dequalidade comum a quase todas as26.504 unidades habitacionais cons-truídas de 1937 a 1964 pelos IAPs esuas diferentes categorias, como asdos Comerciários (IAPC) e dos Ban-cários (IAPB), como se vê em levan-tamento do arquiteto Nabil Bonduki,que entrevistou Carlos Frederico.

Promessas dopaternalismo● Filho de tipógrafo, o aposentadoRubens Esteves, de 75 anos, tinha 8quando o pai levou a família para oIAPI de Realengo, em 1943. Ele lem-bra o impacto do conjunto na vidados novos moradores.

— O IAPI nos dava todo o mobi-liário. Aqui havia comércio, postode saúde, creche. A partir da décadade 60, o governo não deu mais nada.Muita gente chiou. Infelizmente, ho-je a creche foi invadida, e nosso co-mércio deixa a desejar. Mas as casas

continuam boas — diz Rubens.Outro morador, José Cavalcanti,

de 78 anos, ainda tem na mente osecos dos discursos paternalistasde Getúlio ao inaugurar os IAPs:

— A promessa era resolver o pro-blema da moradia no Rio, que muitosconjuntos viriam pela frente. Esteaqui (o de Realengo) era uma cidade.Para quem estava acostumado embarracos, receber uma casa comotrabalhador foi uma dádiva.

Depois de Realengo, os IAPs po-voariam áreas inteiras de bairros co-mo Irajá, Olaria e Padre Miguel. E temna Penha um dos exemplares maisbem-sucedidos. O IAPI do bairro,construído em 1949, com 1.248 uni-dades em 44 blocos, ainda hoje éuma espécie de oásis na região, queao longo do último meio século viusua importância se esvaziar com aexpansão dos complexos de favelasda Penha e do Alemão. Não que o IA-PI tivesse ficado totalmente incólu-me a essa decadência. Mas os mora-dores garantem que, no conjunto,com sistema viário próprio com 20ruas, esse efeito foi menos sentido.

— Aqui a violência não chegou. Noinício, o estado fornecia quase tudo:empregados, limpeza, pintura, tudopor conta do IAPI. Com a transferên-cia da capital federal, em 1960, issomudou. Os moradores, em vão, fo-ram a Brasília protestar. Os blocos seorganizaram, então, em condomínios— conta Jonas Camacho sobre oconjunto, construído pelo corpo téc-nico do IAPI, inspirado num projetoinicial dos Irmãos Roberto.

A paz do conjunto a professoraSelma Salles credita a essa organiza-ção em condomínios. Não passam decinco os malconservados. Puxadi-nhos, não há. E o Grêmio Esportivo(Greip) oferece aulas gratuitas.

— Difícil é achar apartamento paraalugar ou comprar — diz Selma. ■

Mudança de perfilMorador de favela migrou para conjunto

Custodio Coimbra

A CRUZADA vista de cima: dez blocos ao lado do Shopping Leblon

● Irene Oliveira, de 79 anos, conta uma história de muitas mudan-ças e aflições. Até chegar à Cruzada São Sebastião, conjunto idea-lizado por Dom Helder Câmara no Leblon em 1955 para recebermoradores da Praia do Pinto, Irene vivenciou a primeira experiên-cia de realocação de moradores de favela do Rio. Em 1942, com 5anos, ela deixou a antiga favela do Largo da Memória, no Leblon,para viver parte de sua infância no Parque Proletário da Gávea,um dos três centros de moradia provisórios criados da década de40, quando se tentava pôr em prática a política incipiente de er-radicação de favelas. Era um momento concomitante com a po-lítica dos IAPs e, de certa forma, representava uma mudança deperfil dos moradores de conjuntos habitacionais da época. Irenenão tem boas lembranças do parque proletário, que, em 1950, jáera considerado uma favela pelo Censo.

— No parque proletário, sequer havia banheiro. A primeiravez que eu usei um vaso sanitário foi na Cruzada São Sebastião.Eu amo isso aqui — diz dona Irene.

Antes mesmo da Cruzada, na Zona Sul já existia o ConjuntoDona Castorina, no Horto, fruto da remoção de moradores defavelas. Outros conjuntos da Zona Sul, como o Pio XII, em Bo-tafogo, também serviram para o mesmo fim.

“Nãohábarulho, éumrumor justo, paraexplicarquea vidaestápresente. As criançascorrem

àvontade, nãoháhipótesedepoderemmorrerdebaixodosautomóveis."

ARQUITETO MARCELO ROBERTO, um dos Irmãos Roberto, em 1948, sobre o IAPI da Penha

ONTEM: Os cem anos do primeiro conjunto habitacional; AMANHÃ: O fracasso das remoções

Page 4: O GLOBO - Vida Em Blocos

10

R I OTerça-feira, 10 de maio de 2011O GLOBO

.

O GLOBO ● RIO ● PÁGINA 10 - Edição: 10/05/2011 - Impresso: 9/05/2011 — 21: 43 h AZUL MAGENTA AMARELO PRETO

BLOCOSVIDAS EMVIDAS EMBLOCOS

.

CASA NA Vila Kennedy

Mar

celo

Remoções nãocontiveram favelas

● As remoções iniciadas por Carlos Lacerda,que realocou cerca de 12% da população de fa-velas, não terminaram com o fim de seu gover-no. Os governadores Negrão de Lima (1966-1971) e Chagas Freitas (1971-1974) — por inter-médio da Coordenação da Habitação de Interes-se Social da Área Metropolitana do Grande Rio(Chisam) — eliminaram mais de 60 favelas e re-moveram cerca de cem mil pessoas, o que nãofreou a expansão dessas comunidades. De 1960a 1980, período com maior número de remo-ções, a população de favelas cresceu 115%, che-gando a 722.424 em 1980 (dado do IBGE).

Um exemplo é a Rocinha, que teve algumasremoções e não parou de crescer. Nivaldo Go-mes conta que deixou a favela para o Conjuntode Oswaldo Cruz devido à construção da EscolaAmericana, na Estrada da Gávea.

— Anos depois, onde eu morava estava to-mado por casas. Antes, era como uma vila comruas largas. Agora, são dezenas de vielas e bar-racos — disse Osvaldo. — Alguns voltaram paraa Rocinha, mas eu não, por causa da violência.

Um contraponto às remoções foi a reurbani-zação de uma favela em Brás de Pina, feita peloarquiteto Carlos Nelson Ferreira, no governoNegrão de Lima, em diálogo com os moradores.Ele inspirou o Favela-Bairro, que intensificou areurbanização de favelas na década de 90.

Do ruim para o piorFAVELAS FORAM REMOVIDAS PARA CONJUNTOS SEM QUALQUER INFRAESTRUTURA

Márcia Foletto

UMA CRIANÇA brinca em praça da Cidade de Deus, que recebeu vítimas das enchentes de 1966: moradores hoje temem uma nova remoção, devido à valorização da região

Arquivo/ 12-10-1959

A FAVELA do

Pasmado, em

Botafogo,

removida em

1964, no

governo de

Carlos Lacerda,

e substituída

por prédios e

por um parque

Márcia Foletto

ANTÔNIOCândido

Ferreira em

sua casa na

Vila

Kennedy: “As

chaves eram

todas iguais

e abriam

qualquer

porta”

Rafael Galdo e Rogério Daflon

Equilibrando-se em caminhões pausde arara, os moradores chegavampor ruas de terra batida com milha-res de casas, todas idênticas. Era ja-neiro de 1964. Começava a ser ocu-pado um dos maiores conjuntos ha-

bitacionais do Rio: a Vila Kennedy, na ZonaOeste, com 5.054 moradias. Os moradores vi-nham de favelas de áreas centrais da cidade,como o Morro do Pasmado, em Botafogo, a co-munidade do Esqueleto, no Maracanã, e as daPraia de Ramos e de Maria Angu, na Zona daLeopoldina. E, num lar imposto, a 40km do Cen-tro, tiveram que readaptar suas vidas com co-mércio e transporte precários e sem trabalhoperto. Desde domingo, uma série de reporta-gens do GLOBO mostra o fracasso das políticashabitacionais no Rio nos últimos cem anos.

Quarenta e sete anos depois,imagens daquele tempo são re-constituídas por Ana MariaBarbosa, uma das mais de 42mil pessoas que, de 1960 a1965, foram removidas de fave-las na gestão do governadorCarlos Lacerda no então Esta-do da Guanabara. Ele promo-via, na época, a mais radical po-lítica de remoção de comunida-des no Rio e iniciava um debateque se estende até hoje entre arealocação de moradores decomunidades e a urbanizaçãode favelas.

— Nós nos sentíamos nomeio do nada: mato por todolado, mosquito. A casa era pe-quena, de 44 metros quadradose um quarto, para meus pais ecinco irmãos. Era comum vermóveis na rua porque não ca-biam nas casas. Quando cho-via, alagava e perdíamos tudo— relembra Ana Maria, cuja fa-mília foi removida de Ramos.

Verba pra obraveio dos EUA● Além da Vila Kennedy, Lacer-da construiu outros dois gran-des conjuntos para removidos:Vila Aliança, em Bangu (com2.183 unidades), e Vila Esperan-ça, em Vigário Geral (464). Jun-tos, os três receberam 37 milmoradores (dos 42 mil removi-dos por Lacerda), vindos de 32 favelas erradi-cadas parcial ou totalmente. De 1950 a 1960, acidade assistiu a um crescimento de 99% da po-pulação de favelas, num salto de 169.305 habi-tantes (em 58 comunidades) para 337.412 (em147 favelas), enquanto a população da capitalaumentou 39% (2.245.208 em 1960).

— A imprensa tocava no tema favela o tempotodo. Na Zona Sul, havia pressões da especu-lação imobiliária. Lacerda, ferrenho anticomu-nista, obteve verbas dos Estados Unidos pormeio da Aliança pelo Progresso (entidade cria-da pelo presidente John Kennedy para financiarprojetos sociais na América Latina e conter oavanço do socialismo). Com esses recursos, eleproduziu conjuntos habitacionais distintos dosanteriores: longe dos centros de trabalho e semarticular as necessidades dos moradores —afirma a socióloga Maria Laís Pereira, da Escolade Arquitetura e Urbanismo da UFF.

Antônio Cândido Ferreira viveu essa mudan-ça ao sair do Pasmado para a Vila Kennedy.

— Passei a acordar de madrugada para ir aoCentro. Muita gente perdeu o emprego. Masnão tivemos opção. Era a Vila Kennedy ou arua. Nem escolhemos nossas casas. Funcioná-rios do governo apontavam onde moraríamos.Para piorar, as chaves eram todas iguais eabriam as portas de qualquer casa — conta.

Hoje, a pequena residência de seu Antônio vi-rou um sobrado de dois andares. Uma das pou-cas casas originais da Vila Kennedy é a de Re-jane da Silva. Pintada de amarelo, a residênciachama a atenção em meio aos puxadinhos.

— Nossa casa é original porque não tive-mos nem temos dinheiro para fazer nada —disse Rejane, cujo marido veio removido daFavela Maria Angu, em Ramos.

A Maria Angu, aliás, antes da remoção, tinhasido a comunidade com maior crescimentoproporcional no Rio: de 271 moradores em 1950para 6.605 em 1960, multiplicando-se 24 vezes.Aumento vertiginoso semelhante ao de outrasfavelas, como a Rocinha, que na época se trans-formava na segunda maior comunidade do Rio,passando de 4.513 moradores para 14.793 nomesmo período (no Censo de 2010, foram con-tados cerca de 70 mil habitantes). Ou o Pasma-do, que cresceu 200%, e o Esqueleto, 50%.

O empresário Jorge Melo foi um dos remo-vidos do Esqueleto — que deu lugar à Uerj —para a Vila Kennedy. Ele lembra que, na época,os pais receberam a promessa de que os filhosteriam vaga na universidade, o que não foicumprido. E diz que, se moradores dali tiveramuma mobilidade social, foi por conta própria.

— Desde o início o lugar foi deixado ao largo,possibilitando o surgimento de favelas próxi-

mas ao conjunto, como Vila Metral e Alto Ken-nedy — diz Melo, constatando uma favelizaçãoque também atingiu todos os construídos porLacerda. — Conjuntos que vieram depois naprópria Vila Kennedy, como o Quafá e o Mal-vinas, passaram pelo mesmo problema.

A Cidade de Deus, que ganhou fama mundialpelo cinema, sofreu ação semelhante. As pri-meiras casas do conjunto foram construídasainda no governo Lacerda. Com a enchente de1966, já no governo Negrão de Lima, recebeudesabrigados de favelas destruídas. Dali parafrente, com cerca de cinco mil casas construí-das em diferentes governos, acabou sendo odestino de 63 favelas extintas por inteiro ouparcialmente, prioritariamente as da Zona Sul,como Catacumba, Parque Proletário da Gáveae Praia do Pinto.

Numa dessas levas de moradores veio Ma-nuel Severino de Jesus, de 59 anos, que morava

na Favela Macedo Sobrinho, no Humaitá. Comoestudava no Largo do Machado e trabalhavaem Ipanema, a nova rotina o levou a muitas ve-zes dormir na rua, sem ônibus para voltar.

— Não era a Cidade de Deus. Era a cidade doinferno. O poder público nos largou aqui. Se asolução é a remoção, tudo bem. Mas que se re-mova oferecendo infraestrutura às pessoas.Não como fizeram aqui. Hoje, a minha MacedoSobrinho virou casa de bacana; e a Cidade deDeus, um câncer para eles. Ninguém imaginariaque aqui valorizaria tanto. Hoje estamos pertode tudo, de algumas das áreas mais nobres doRio. O pessoal teme agora que nos tirem daqui.É o trauma da remoção. ■

O GLOBO NA INTERNETVÍDEO Moradores contam os transtornos causados

pela remoçãooglobo.com.br/rio/info/conjuntos-habitacionais

“Atravésdebrigas, jogosde futebol, bailes (...),umanovacomunidadesurgiuefusivamente.Osgruposdecada favela integraram-seemumanova redesocial forçosamenteestabelecida.”

PAULO LINS, num trecho de seu livro "Cidade de Deus”

DOMINGO: Os cem anos do primeiro conjunto; ONTEM: A multiplicação das moradias para trabalhadores; AMANHÃ: O maior conjunto do Rio.

Page 5: O GLOBO - Vida Em Blocos

12

R I OQuarta-feira, 11 de maio de 2011 O GLOBO

.

O GLOBO ● RIO ● PÁGINA 12 - Edição: 11/05/2011 - Impresso: 10/05/2011 — 21: 13 h AZUL MAGENTA AMARELO PRETO

BLOCOSVIDAS EMVIDAS EMBLOCOS

A cidade das ‘puxadas’MAIOR CONJUNTO HABITACIONAL DO RIO TEM 26 MIL

MORADORES E ANEXOS IRREGULARES DE ATÉ 7 ANDARES

O BAR que

funciona num

puxadinho:

comércio

informal

Fotos de Márcia Foletto

SONINHABatista, ex-

porta-bandeira

da Mocidade:

moradora

INFORMALIDADE: construções irregulares, a maioria com comércio, ocupam espaços onde deveriam estar as áreas de lazer dos prédios, que também sofrem com o tráfico

Rafael Galdo e Rogério Daflon

Sete mil e 200 apartamen-tos, em 180 blocos distri-buídos por uma área decerca de 450 mil metrosquadrados (54 vezes ogramado do Maracanã).

O maior conjunto habitacional doRio, o Dom Jaime Câmara, construí-do em 1969, atravessa dois bairros— Bangu e Padre Miguel — tem cer-ca de 26 mil moradores, populaçãosuperior à de 37 dos 92municípios do Estadodo Rio, e uma quantida-de de problemas igual-mente superlativa. Emseus 42 anos, a fase decrescimento do conjun-to não cessa. Nele, pelomenos 1.800 puxadi-nhos rompem com a ho-mogeneidade dessa “ci-dade” de prédios gê-meos. Gatos de energia,prestações acumuladas,praças malconservadas,ausência de escolas deensino médio e aparta-mentos invadidos pelotráfico também com-põem o quadro.

Das centenas de pu-xadinhos — chamadosde “puxadas” pelosmoradores —, mais dametade é ocupada porpequenos comércios,contabiliza o presiden-te da associação demoradores do conjun-to, Alex Ignacio, umaespécie de síndico. Ne-les funcionam pada-rias, lanchonetes, lojasde roupas, oficinas, lanhouses e toda sorte deestabelecimentos quesuprem as necessida-des do lugar, cujo pro-jeto não previu lojas.

A cabeleireira Lucine-te Bezerra da Silva, de53 anos, dona um pe-queno salão de beleza,conta que as áreas ondehoje está o comércioeram espaços de lazerdos blocos. Aos poucos,foram substituídos porgaragens e, depois, alu-gados ou vendidos a co-merciantes.

— A compra das “pu-xadas” é apalavrada. É ilegal. Mas, sea prefeitura cobrasse imposto, seriabom, valorizaria o lugar — acredita.

Os puxadinhos, no entanto, não serestringem ao térreo. Estão em quasetodos os andares. Alguns prédios (to-dos de cinco pavimentos) ganharamum sexto ou até sétimo piso. Há ver-dadeiros prédios anexos. Em algu-mas áreas, ruas se transformaramem vielas, devido à ocupação dos es-paços públicos. Até igrejas evangéli-cas se estabeleceram nos puxadi-nhos, hoje um dos maiores motivosde brigas no Jaime Câmara.

— Sempre contornamos brigas deum vizinho acusando o outro de in-vadir o seu espaço — diz Ignacio.

Resolver essas questões não ésimples. Cálculo da associação demoradores expõe que apenas 20%dos apartamentos (cerca de 1.500)estão em dia com suas documenta-ções. O restante está alugado, em in-ventários na Justiça ou invadido, oque dificulta a organização dos blo-cos em condomínios e facilita a ina-

dimplência. Há prédios com dívidasde até R$ 300 mil em conta d’água.Uma bola de neve antiga, desde achegada dos primeiros moradores.Eles compraram o apartamento fi-nanciado pelo Banco Nacional de Ha-bitação (BNH) ou foram reassenta-dos de favelas pela Coordenação deHabitação de Interesse Social (Chi-sam) e tiveram que assumir umaprestação pela casa própria.

Em 1977, quando a Companhia Es-tadual de Habitação (Cehab) iniciouo despejo dos inadimplentes, 46,9%das famílias do local não tinham se-quer contrato com a companhia e17% deviam de 43 a 48 prestações.

A ‘imobiliária’do tráfico● Hoje, outro drama é a invasão deapartamentos por traficantes, amaioria da Vila Vintém. Sem se iden-tificar, uma moradora conta que os

bandidos tomam imóveis de viciadosem dívida. Ou simplesmente se apo-deram de residências vazias, que se-riam vendidas.

— O tráfico funciona quase comouma imobiliária. Invade e vende apar-tamentos — conta a moradora.

O tráfico se concentra em duasruas, a L e a I, esta última uma dasmais extensas e próximas da VilaVintém. É chamada de Rua da Mortepor vizinhos. Mas a violência se es-palha por todo o conjunto. Outramoradora diz que já assistiu da jane-la a dois assassinatos. Nas duas ve-zes, o mesmo tipo de ação: tiros àqueima-roupa, em frente à portariado bloco das vítimas.

A criminalidade remonta à ocu-pação do conjunto. Em 1969, juntocom moradores removidos, vieramgangues de favelas rivais.

— Havia uma disputa de poder. E,como estavam todos misturados, foiuma época de convivência muito di-fícil — conta o morador Jorge Alber-to de Sousa, de 57 anos. — Hoje, pelo

menos, não há mais disputa.A violência não impediu que, do

encontro de tanta gente de lugaresdiferentes, surgisse uma comunidadeunida e de identidade própria.

— Se você falar um ai, vem todomundo socorrer — diz a moradoraSelma Rodrigues, de 44, ilustrando oclima de solidariedade.

O coração dePadre Miguel● Berço da cultura na Zona Oeste,um dos celeiros da escola de sambaMocidade Independente de PadreMiguel, o Jaime Câmara é onde mo-ra uma das mais renomadas porta-bandeiras da agremiação, SoninhaBatista, ex-moradora da Vila Vin-tém, que defendeu o pavilhão verdee branco de 1978 a 1985.

— Qual favelado não sonha sair dafavela? Como todo filho de pobre, eutrabalhava de dia e estudava à noite.

Minha mãe ficava me esperando naentrada da comunidade, com umlampião, pois o caminho era escuro.Muita gente veio da Vila Vintém paraos apartamentos, inclusive baluartesda Mocidade — conta Soninha.

É perto dali, num conjunto vizinhoao Jaime Câmara, um dos dois doInstituto de Aposentadorias e Pen-sões dos Industriários (IAPI) em Pa-dre Miguel, que fica um dos centrosda cultura da Zona Oeste: o PontoChique. Uma rua que reúne a resis-tência de movimentos como os dosamba, do hip-hop, do funk e docharme na cidade.

— Aqui é o coração de Padre Mi-guel, onde todos se manifestam —diz Bernadete da Silva, uma das or-ganizadoras da Festa de São Jorgedo Ponto Chique, que mês passadoreuniu mais de 30 mil pessoas. ■

O GLOBO NA INTERNETGALERIA Veja mais fotos do

conjuntão e suas ‘puxadas’www.oglobo.com.br/rio

“FazendaBotafogo, Pedregulho,EnquartoLeãoEa famosaRua I fica lánoconjuntodePadreMiguel

Daquelesmorros voltei pra falardas favelas..."TRECHO DA MÚSICA "As favelas que não exaltei", de Bezerra da Silva

DOMINGO PASSADO: Os cem anos do primeiro conjunto SEGUNDA: Moradias para trabalhadores ONTEM: As remoções de favelas AMANHÃ: O período do BNH

Page 6: O GLOBO - Vida Em Blocos

14

R I OQuinta-feira, 12 de maio de 2011O GLOBO

.

O GLOBO ● RIO ● PÁGINA 14 - Edição: 12/05/2011 - Impresso: 11/05/2011 — 21: 45 h AZUL MAGENTA AMARELO PRETO

BLOCOSVIDAS EMVIDAS EMBLOCOS

O CONJUNTO FAZENDA BOTAFOGO

Sob a ditadura do BNHMORADORES ENFRENTAM CONDIÇÕES PRECÁRIAS EM

CONJUNTOS E DIFICULDADES PARA PAGAR PRESTAÇÕES

Márcia Foletto

O CONJUNTO Fazenda Botafogo, de 1978, com 86 prédios e 3.440 apartamentos: os moradores reclamam de aperto nos imóveis de 35 a 44 metros quadrados

Fotos de Custódio Coimbra

O COMPLEXOda Maré (ao

lado) e Maria

Eny (abaixo)

em frente à

sua casa, uma

das poucas da

Vila do João

com as

características

originais

Rafael Galdo e Rogério Daflon

Na Fazenda Botafogo,apartamentos seme-lhantes a caixotes. NaVila do João, uma qua-dra inteira com apenasum alicerce para todas

as casas. Em Antares, duplex de 26metros quadrados. E, no Cesarão, te-tos de amianto, que transformavamos cômodos num forno no verão.Nos classificados, provavelmente es-ses imóveis não atrairiam muitoscompradores. Mas eram moradiasassim que o Banco Nacional de Ha-bitação (BNH) oferecia à populaçãode baixa renda nos conjuntos habita-cionais erguidos no Rio durante o re-gime militar. Criado em 1964 e extintoem 1986, o BNH, por meio do SistemaFinanceiro Habitacional, captava re-cursos do Fundo de Garantia. Nuncase construíram tantas unidades na ci-dade como no período 64-86: forammais de 75 mil — pelo BNH e parteem parceria com a Companhia Esta-dual de Habitação (Cehab). Maseram moradias em condições subu-manas, pelas quais os moradores seendividariam por anos, revela maisuma reportagem da série “Vidas emblocos”, iniciada domingo passado,sobre os cem anos dos conjuntos ha-bitacionais do Rio.

Em 1981, quando Jacira Mourãotrocou o aluguel na Baixada Flumi-nense por um imóvel no ConjuntoOtacílio Câmara, o Cesarão, em San-ta Cruz, realizou o sonho da casaprópria — mesmo que o novo lar (deum quarto, sala, cozinha e banheiro)não fosse o que imaginava para umcasal e quatro filhos. Em pouco tem-po, no entanto, ela viu o sonho virarum problema, ao ter que separar, dapequena renda familiar, o dinheiropara as prestações da Cehab/BNH.

— Era pouco. No fim, menos deR$ 30 mensais. Mesmo assim,atrasávamos porque não dava pa-ra pagar. Tínhamos que parcelaras dívidas e pagar tudo de novo.Eu precisava lavar roupapara fora e ajudar meumarido — conta. — Oúnico quarto que cons-truímos foi com dinheiropoupado para a festa de15 anos da nossa filha.

Mutuários como Jaciraenfrentaram ainda o fan-tasma da hiperinflação.Mais um motivo para o au-mento da inadimplência.

— Muitos no meu con-junto não conseguirampagar. Alguns perderam oimóvel. E mesmo nós, quepagamos, não temos acertidão definitiva — dizAparecida Rodrigues, mo-radora do Conjunto Espe-rança, na Maré.

Paredes nãotinham reboco● Para piorar, a má quali-dade dos imóveis oneroua vida de quem se mudoupara os conjuntos na épo-ca. Lourenço Cezar da Sil-va conta que, para tornarseus lares menos descon-fortáveis, a grande maio-ria dos moradores da Vilado João, na Maré, modifi-cou as casas. Em 1982, quandochegou ao conjunto, aos 12 anos,ele até acreditava que ali era o pa-raíso, pois pela primeira vez vive-ria numa casa de alvenaria, depoisde sair de uma palafita na Baixa doSapateiro (também na Maré). Lo-go, porém, percebeu que a realida-de era outra:

— As casas eram péssimas. O te-lhado de amianto retinha muito ca-lor. As paredes não tinham reboco,e a pintura era feita diretamentesobre o tijolo — diz Lourenço, queapontou a residência de Maria Enyde Oliveira como uma das poucascom planta original no conjunto.

Na Fazenda Botafogo, de 1978,com seus 86 prédios e 3.440 aparta-mentos (de 35 a 44 metros quadra-dos), aperto é a palavra dos mora-

dores para descrever como se sen-tem em casa. Sensação reforçadapelo pé-direito baixo dos aparta-mentos, de 2,2 metros.

No Pedro I, em Realengo, a faltade espaço também impressiona.Ali, há três tipos de apartamento,que vão de 32 a 49 metros quadra-dos. Para o arquiteto Mauro San-tos, do Laboratório de Habitaçãoda UFRJ, o lugar é um exemplo doque o BNH fez nos conjuntos.

— Pretendia-se, com o BNH, de-senvolver a construção civil, geran-do novos empregos. O conteúdo damoradia, contudo, se perdeu. Tratou-se a casa apenas como dormitório.

O arquiteto Adauto Cardoso, doInstituto de Pesquisa e PlanejamentoUrbano e Regional (Ippur), destacaque a experiência do BNH deixou um

legado de equívocos. E lista alguns: aocupação de áreas periféricas semprévio planejamento; a construçãode conjuntos com muitas unidades;a ausência de equipamentos coleti-vos como praças e escolas.

— A solução do BNH logo setransformou num problema. Os con-juntos se degradaram, as poucasáreas comuns foram sendo ocupa-das e nem mesmo a prometida casaprópria foi alcançada, já que boaparte dos moradores ou não conse-guiu quitar suas dívidas ou não ob-teve o título de propriedade. ■

O GLOBO NA INTERNETVÍDEO Geógrafo mostra as mudanças

na Vila do João ao longo dos anosoglobo.com.br/rio/info/conjuntos-habitacio-nais

Onde mora o bom exemploConjunto em Jacarepaguá é elogiado

Custódio Coimbra

O CONJUNTO do Cafundá, em Jacarepaguá: boa ventilação e jardins

● O projeto do Conjunto Habitacional do Cafundá — de autoriados arquitetos Sérgio Magalhães, Ana Luiza Petrik, Clóvis Barrose Silvia Pozzana —, em Jacarepaguá, é um contraponto à pro-dução do BNH, embora tenha sido financiado e realizado peloInstituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais-RJ (Ino-coop), órgão do próprio Banco Nacional de Habitação.

Diferentemente dos projetos do BNH para a população de bai-xa renda, em que a planta em forma de H exigia, por vezes, quese modificasse a topografia dos terrenos, no Conjunto Habita-cional do Cafundá os 14 prédios têm alturas diferentes, justa-mente para se adequar à área. Dentro dos apartamentos, há boacirculação de ar e iluminação. Nas escadas, a ventilação é as-segurada por elementos vazados.

A construção do Cafundá terminou em 1982. Apesar de mal-cuidados, os jardins dão alguma beleza aos dez hectares do ter-reno. Os moradores do conjunto, que tem 1.500 apartamentos,contam com elevadores, algo inédito em projetos habitacionaisna época e ainda hoje raro. E os corredores dos prédios são am-plos e largos. Equipamentos comunitários como escola e áreade lazer também estão lá, mas a conservação é precária.

— As tubulações do Cafundá são aparentes, facilitando a ma-nutenção — acrescenta Sérgio Magalhães.

Do projeto original, os cobogós (tijolos vazados) e as janelasde madeira dentro dos apartamentos foram substituídos por es-quadrias de alumínio, numa reforma tocada pela Caixa Econô-mica Federal e criticada por arquitetos. Já os moradores fazemelogios ao conjunto.

— Isto aqui é um sonho — diz Maria Maximiliano.

DOMINGO PASSADO: Os cem anos do primeiro conjunto SEGUNDA-FEIRA: Na Era Vargas, moradias para os trabalhadores TERÇA: As remoções de favelasONTEM: O maior conjunto do Rio tem 26 mil pessoas AMANHÃ: Conjuntos sob o domínio do tráfico e da milícia

“A refavelaRevelaosalto

Queopretopobre tentadarGILBERTO GIL, num trecho da música "Refavela"

QuandosearrancaDoseubarraco

PrumblocodoBNH".

Mar

celo

Page 7: O GLOBO - Vida Em Blocos

14

R I OSexta-feira, 13 de maio de 2011O GLOBO

.

O GLOBO ● RIO ● PÁGINA 14 - Edição: 13/05/2011 - Impresso: 12/05/2011 — 21: 56 h AZUL MAGENTA AMARELO PRETO

BLOCOSVIDAS EMVIDAS EMBLOCOS

O CONJUNTO HABITACIONALAmarelinho, em Irajá

Mar

celo

Territórios proibidosMORADORES DE GRANDE PARTE DOS CONJUNTOS

AINDA ESTÃO SOB O DOMÍNIO DO TRÁFICO OU DA MILÍCIAMarcia Foletto

O CONJUNTO AMARELINHO: a presença ostensiva de traficantes armados, que embalam drogas numa praça da comunidade, prejudica serviços básicos como o dos Correios

Custódio Coimbra

EM REALENGO, troncos ocupam uma rua do Conjunto Água Branca: barricada contra a polícia

Marcia Foletto

CONDOMÍNIO em Cosmos: a polícia investiga se milicianos agem na área

Rafael Galdo e Rogério Daflon

“Vocês não estãocom medo?” Ap e r g u n t a d euma adolescen-te aos repórte-res do GLOBO

que faziam mais uma reportagemda série “Vidas em blocos”, sobreos cem anos dos conjuntos habita-cionais do Rio, mostra a realidadedos moradores do Amarelinho, naentrada do com-plexo de favelas deAcari. Na cidadedas Unidades dePolícia Pacificado-ra (UPPs), o lugarainda está sob ojugo do tráfico ar-mado. Em grandeparte dos conjun-tos do Rio, quandonão existe o domí-nio de traficantes,são milicianos queimpõem o terror.

No Amarelinho,o tráfico é onipre-sente.

— Vocês não po-dem andar sozi-nhos aqui , é peri-goso — alertou ummorador.

A presença decriminosos prejudi-ca serviços básicos.Há meses a comuni-dade não tem car-teiro. E, das sete va-gas para médiconum dos postos doconjunto, só trêsestão preenchidas.

— Os traficantesembalam drogasnuma praça do con-junto, a João Fabia-no, e andam arma-dos pelas ruas. Elestambém tomam apartamentos irre-gularmente e cobram uma taxa de R$20 de cada comerciante — contauma moradora.

Nas entradas de Acari próximas aoAmarelinho, visíveis para quem pas-sa pela Avenida Brasil, há barricadaspara dificultar a ação policial. Obstá-culos também ocupam as ruas doConjunto Água Branca, o Fumacê, emRealengo, embora ele fique em frenteà UPP do Batam, do outro lado daAvenida Brasil. O Fumacê, aliás, estána lista de áreas prioritárias para re-ceber as próximas UPPs. O poder pa-ralelo também se estende a conjun-tos como Vila Kennedy, Vila Aliança,Taquaral, Antares, Nova Cidade, Fa-zenda Botafogo, Vila do João, NovoPinheiro, Senador Camará e os doPAC em Manguinhos.

Em conjuntos, açãodiferente da polícia● No Getúlio Vargas, em Deodoro, senão há barricadas, um valão entre os19 blocos próximos à Avenida Brasile os sete junto à comunidade do Mu-quiço serve como trincheira. Mora-dores aconselham não entrar.

— Isso aqui é um barril de pól-vora. Vivemos em meio a disputasentre diferentes facções do tráfico— disse uma moradora.

Titular da Delegacia de Repressãoàs Ações Criminosas Organizadas(Draco), o delegado Alexandre Capo-te conhece bem o conjunto de Deo-doro. De 2005 a 2008, ele trabalhouna 30a- DP (Marechal Hermes), ondeinvestigou uma série de crimes noGetúlio Vargas. De suas incursões nolugar, a sensação de ser observado omarcou. Em qualquer ação em con-junto habitacional, aliás, Capote afir-ma serem necessárias estratégias es-pecíficas, diferentes das usadas, porexemplo, em favelas. Um fator funda-mental, diz ele, são as várias entradase saídas dos conjuntos, que exigemcuidados ao se montar um cerco:

— Muitas vezes, criminososusam apartamentos de inocentespara guardar armas e drogas.

Durante a Operação Blecaute, emabril, a Draco encontrou apartamen-

tos do Conjunto do Ipase, na PraçaSeca, ocupados pela cúpula da milí-cia da região. Até o fornecimento deágua era controlado pelo grupo. Em2008, no Conjunto da Palmeirinha,em Anchieta, moradores foram ex-pulsos de casa por milicianos, queocupavam e vendiam os imóveis. Se-gundo Capote, que investiga o caso, aprática pode estar acontecendo noscondomínios Livorno, Trento e Trevi-so, do programa Minha Casa Minha

Vida, em Cosmos. Nos três, de acor-do com denúncias anônimas, há imó-veis ocupados por paramilitares che-fiados pelo ex-PM Ricardo Teixeira daCruz, o Batman, que está preso.

Repórteres do GLOBO estiveramem 14 de abril nesses condomínios,recém-entregues. Neles, símbolos damilícia estavam pintados nos muros,embora houvesse assistentes sociaisda prefeitura há três meses no local.Ao retornar, um dia depois, a equipe

encontrou todos os símbolos cober-tos com tinta. O único vestígio erauma marca mal apagada num doscondomínios, onde os moradores senegaram a dar entrevista.

O relatório da CPI das Milícias daAssembleia Legislativa do Rio (Alerj),concluída em novembro de 2008, re-gistrou a presença de paramilitaresem pelo menos 14 conjuntos, como oQuitungo, em Brás de Pina, o DomPedro I, em Realengo, e o João XXIII,

em Santa Cruz. Nesses locais, as qua-drilhas controlavam o comércio debujões de gás e a venda clandestinade sinal de TV a cabo, além de cobrartaxa de “segurança”. ■

O GLOBO NA INTERNETVÍDEO Delegado da Draco explica as

estratégias para ações policiais emconjuntosoglobo.com.com.br/rio/info/conjuntos-habita-cionais

“Os traficantesembalam drogasnuma praça doconjunto eandam armadospelas ruas. Elestambém cobramR$ 20 de cadacomerciante.Moradora do Amarelinho

“Isso aqui éum barrilde pólvora.Vivemos emmeio a disputasentre diferentesfacções dotráfico de drogas.Moradora do ConjuntoGetúlio Vargas, em Deodoro

“Moradoresdoconjunto residencialAmarelinhoadotaramumbem-humorado

código: ‘NovaYork’ significa aFaveladeAcari;‘BolsadeValores’ éo ‘movimento’; e

‘corretores’ sãoos traficantes.”

DOMINGO PASSADO: Os cem anos do primeiro conjunto SEGUNDA: Na Era Vargas, moradias para os trabalhadores TERÇA: As remoções de favelasQUARTA: O maior dos conjuntos do Rio ONTEM: O período das construções precárias do BNH AMANHÃ: As joias arquitetônicas

TRECHO DO livro "As cores de Acari", de Marcos Alvito

.

UPP traz a paz de volta● Enquanto nessas comunidadeso medo continua a ditar as re-gras, na Cidade de Deus, primei-ro conjunto a receber uma UPP,Wilma Lopes conta sem receio atrajetória da comunidade:

— Eu me lembro bem dos tra-ficantes Zé Pequeno e Bené (re-tratados no filme “Cidade deDeus”). Na década de 90, aconte-ceram os piores confrontos. Ho-je, falta muita coisa, mas a vidaestá mais tranquila.

Na Cruzada São Sebastião, noLeblon, não há UPP, mas PMs vãoao conjunto semanalmente.

— Isso melhorou a Cruzada.Há dois anos, havia até fila deviciados — disse um morador.

Subchefe operacional da Polí-cia Civil, Fernando Veloso dizque na Cruzada houve muita co-laboração dos moradores:

— Ali, há quem se incomodenão só com a arrogância dos tra-ficantes, mas com o tráfico em si.

Page 8: O GLOBO - Vida Em Blocos

14

R I OSábado, 14 de maio de 2011 O GLOBO

.

O GLOBO ● RIO ● PÁGINA 14 - Edição: 14/05/2011 - Impresso: 13/05/2011 — 22: h AZUL MAGENTA AMARELO PRETO

BLOCOSVIDAS EMVIDAS EMBLOCOS

O PEDREGULHO,em Benfica

Mar

celo

DOMINGO PASSADO: Os cem anos do primeiro conjunto habitacional SEGUNDA-FEIRA: Na Era Vargas, teto para os trabalhadores TERÇA: As remoçõesQUARTA: O maior conjunto do Rio QUINTA: A dura fase do BNH ONTEM: Territórios sob o domínio do tráfico e a milícia AMANHÃ: Cem mil unidades até 2016

Amor concretoNA DÉCADA DE 50, CASAL DE ARQUITETO E URBANISTACRIOU AS MAIS BELAS OBRAS DA HABITAÇÃO SOCIAL DO RIO

Márcia Folleto

NO MINHOCÃO da Gávea, os corredores servem como espaço de convivência para os moradores: a proximidade do comércio e de serviços públicos foi uma das preocupações dos criadores do projeto

Márcia Folleto

AS LINHAScurvas do

Pedregulho, em

Benfica, criação

de Affonso Reidy,

com o painel de

Portinari na

fachada da

escola pública

construída para

receber as

crianças do

conjunto

Márcia Foletto

AS FORMAS cúbicas do Nova Maré, que dificultam os “puxadinhos”

Custodio Coimbra

O CONJUNTO Getúlio Vargas, de 1954: como uma onda em Deodoro

Rafael Galdo e Rogério Daflon

Dizem que paixão dá epassa, e o amor é algoque se constrói e semantém como uma ca-sa bem-feita. Ao revisi-tar a fase de maior qua-

lidade na habitação social no Rio, umdiscreto casal, que nunca assumiu oromance publicamente, tem de sercitado: o arquiteto Affonso EduardoReidy e a urbanista Carmem Porti-nho, do Departamentode Habitação Popular(DHP), órgão da prefei-tura do então DistritoFederal, que atuou de1948 até 1964. Reidy le-vou a fama de ter proje-tado duas joias da arqui-tetura: o conjunto Mar-quês de São Vicente, naGávea, e o Pedregulho,em Benfica, prestes aser tombado pelo Insti-tuto Estadual do Patri-mônio Cultural. Mas,por trás de seus traços,estava a mão de Car-men, primeira urbanistado país, chefe do DHP ede Reidy, que tambémprojetou o MAM e o Par-que do Flamengo.

— Eles viviam juntos,mas não tocavam no as-sunto nem em família.Como ela era chefe, osdois não queriam darmargem a comentários— conta a cineasta AnaMaria Magalhães, sobri-nha de Carmem, quelançará no segundo se-mestre o filme “Reidy, aconstrução da utopia”.

Quase no fim da Se-gunda Guerra, Carmenviajou para a Inglaterra.E acompanhou de pertoas soluções para a habi-tação na reconstruçãodas cidades. E o que sevê nos conjuntos de Rei-dy traz a percepção deCarmen nessa viagem edos princípios do arqui-teto franco-suíço Le Cor-busier: o desenho ondulante dos pré-dios sobre pilotis acompanhando atopografia, a ventilação cruzada dosapartamentos (basta abrir a porta eas janelas para o vento cruzar a ca-sa), pavimentos de uso comum, pro-ximidade dos serviços públicos.

Foi nos corredores iluminados e

ventilados do Pedregulho, aliás,que outro romance embalou.

— Conheci Cláudio aqui, aos 13anos. Casei aos 24. Já moramos nu-ma quitinete do primeiro andar. Ago-ra, estamos num dois quartos no Pe-dregulho — conta Mônica Costa.

Esse é outro aspecto do conjunto

— com 328 apartamentos, 272 noedifício de curva. O Pedregulho temimóveis de quitinete a quatro quar-tos, sem falar do paisagismo de BurleMarx e dos painéis de azulejos dePortinari e Anísio Medeiros na escolae na quadra esportiva do conjunto.

Para Ana Luiza Nobre, professo-

ra de história de arquitetura daPUC, a produção do DHP no Rionão deve ser analisada tanto emtermos numéricos — não chegama mil unidades em 16 anos:

— O diferencial está na luta peloideal moderno de habitar. Habitação,escola, posto de saúde, mercado, la-

vanderia: tudo isso era consideradonão um privilégio, mas um direito.

Motivos que fizeram a mãe da ar-quiteta Angela Fontes escolher oMarquês de São Vicente, conhecidocomo Minhocão da Gávea, para mo-rar, em 1965, depois de passar peloPedregulho e pelo Conjunto GetúlioVargas, em Deodoro.

— Quando ela chegou aqui, não te-ve dúvidas: tinha duas escolas e oMiguel Couto perto. Chamo o prédiode Minhoca Mares. Com a vantagempara os outros condomínios de aquivocê não se sentir só — diz Angela.

A convivência com os vizinhostem um motivo claro: os corredoresservem como varandas no Minho-cão, que tem 308 apartamentos noprédio principal — 20 foram demo-lidos na construção do Túnel Acús-tico, em 1971.

Corredores longos comos os doMinhocão são os do Getúlio Vargas,em Deodoro, de 1954. Concebido pe-lo arquiteto Flávio Marinho Rego, in-

dicado por Reidy, o con-junto tem grandes blo-cos sinuosos, o maiordeles com 450 metrosde extensão, e 24 blocoslaminares (retos).

Se nos conjuntos dadécada de 50 são as cur-vas que chamam a aten-ção, no Nova Maré, dadécada de 90, perto daLinha Amarela, os cubosse destacam. O arquite-to Demetre Anastassa-kis se baseou no jogoLego e fez sequência deencaixes nas casas, quedificultam puxadinhos.O resultado impressio-

na, embora a falta de conservaçãodas residências tire qualquer espíritoinfantil do lugar. ■

O GLOBO NA INTERNETGALERIA Veja mais fotos

oglobo.com.br/rio/info/conjuntos-habitacio-nais

“"OPedregulhoésimbólico—oseupróprionomeatesta a vitóriadoamoredoengenhonummeiohostil, e a suaexistênciamesmaé

uma interpelaçãoeumdesafio.”LÚCIO COSTA, sobre o Pedregulho, no livro "Affonso Eduardo Reidy”, de Nabil Bonduki