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    O governo da populao infantojuvenil no Brasil durantea ditadura civil-militar: apontamentos entre o nacional e o local

    Camila Serafim Daminelli

    TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMGVol. 5, n. 2, Mai/Ago - 2013 ISSN: 1984 -6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 86

    O governo da populao infantojuvenil no Brasildurante a ditadura civil-militar: apontamentos

    entre o nacional e o local

    Camila Serafim DaminelliMestre em HistriaUFSC

    Pesquisadora Associada do LABGEF/[email protected]

    RESUMO: Este artigo aborda as polticas sociais voltadas infncia e juventude no Brasildurante o governo civil-militar, instaurado em 1964. Neste contexto, marcado pela atuaoda Doutrina de Segurana Nacional, fosse a mbito legislativo ou operacional, a populaoinfantojuvenil foi governada a partir de dois matizes: as diretrizes da Poltica Nacional doBem-Estar do Menor, levada a cabo pela Fundao de mesmo nome e o Cdigo deMenores de 1979. Partindo deste contexto planteado no cenrio federal, analisamos aoperacionalizao das polticas sociais para crianas e adolescentes no estado de SantaCatarina. Uma vez que as aes ficavam a cargo das fundaes estaduais e entidadesmunicipais, o modo como se concretizaram em cada estado da federao tevecaractersticas prprias que se distanciaram em grande medida da letra da lei. As fontesdocumentais utilizadas para escrita dessa narrativa histrica foram matrias jornalsticas

    veiculadas pelo principal impresso do estado de Santa Catarina no perodo, o jornal OEstado, alm das diretrizes e da legislao pertinente.

    PALAVRAS-CHAVE: Histria; Polticas sociais; Infncia e juventude.

    ABSTRACT: This article discusses the social policies geared to children and youth inBrazil during the civil-military government, established in 1964. In this context, marked bythe performance of the National Security Doctrine, was the legislative framework oroperational, the juvenile population was governed from two shades: the National Policy to

    Welfare of Children, conducted by Foundation with same name and the 1979 MinorsCode. Based on this context, we analyze the execution of social policies for children andadolescents in the state of Santa Catarina. Once the actions were the responsibility of statefoundations and municipal entities, how to materialize in each state of the federation hadcharacteristics that distanced themselves largely of the letter of the law. The documentarysources used to write this historical narrative was conveyed by the main news storiesprinted in the State of Santa Catarina in the period, the newspaper O Estado, in addition tothe guidelines and relevant legislation.

    KEYWORDS: History, Social Policies; Childhood and youth.

    Durante os anos da dcada de 1980, os leitores e leitoras do jornal O Estado, editado

    em Santa Catarina, foram informados mais de duas dezenas de vezes acerca de seminrios e

    congressos a realizar-se nas cidades catarinenses, cuja temtica seria a questo ou

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    problema do menor1. A que se referia o problema, enfrentado pela populao

    infantojuvenil, digno de tanta comoo social? A infncia e a adolescncia publicizada em

    Santa Catarina, alada categoria de problema de Estado, seguia os rumos do cenrio

    nacional: o problema era a criminalidade infantojuvenil. No entanto, as matrias

    jornalsticas produzidas pelo peridico, sugeriam, tambm, tanto o desgoverno de uma

    infncia e juventude mal abarcadas pelas polticas sociais vigentes, quanto a tolerncia de

    outras realidades que foram minimizadas pelos discursos da mdia impressa, concentrados

    no problema do conflito com a lei, considerado germe da criminalidade adulta no pas.

    O que instigou a pesquisa histrica da qual resultou esta narrativa foi buscar

    conhecer algumas vidas que tiveram seu caminho cruzado com o dos programas sociais do

    perodo compreendido pela ditadura civil-militar no Brasil. Foi tambm objetivo entender opapel da mdia impressa na construo e/ou disseminao de discursos2acerca do modelo

    operativo das polticas pblicas, suas prioridades e seu envolvimento com os movimentos

    poltico-partidrios do estado. As fontes principais utilizadas neste estudo foram

    reportagens do jornal O Estado, o mais significativo peridico editado no estado de Santa

    Catarina durante o perodo. As narrativas jornalsticas se tornaram campo profcuo de

    estudo do cotidiano da operacionalizao, tanto da Poltica Nacional do Bem-Estar do

    Menor, instaurada em 1964, quanto do movimento de consolidao da Doutrina da

    Situao Irregular, assentado com a promulgao do Cdigo de Menores de 1979.

    A Histria Cultural forneceu o vis que a abordagem do problema requereu. Por

    um lado, vemos que a Histria Cultural fruto de certo desinteresse por anlises

    generalizantes, que buscavam dar explicaes histricas encaixadas em certos esquemas

    tericos amplos, da nossa opo metodolgica. Por outro, a entrada em cena de estudiosos

    interessados em aspectos culturais do comportamento humano, como relaes de gnero,

    1 Apesar de conhecermos as crticas em torno da utilizao deste conceito, menor, ele vir a ser empregadoquando fizer referncia s font es documentais, ainda que destacado do resto do texto. Quando expressamosnosso pensamento e tambm ao referenciarmos os sujeitos-alvo das polticas em questo, o termo no serempregado, mas sim os conceitos crianas e adolescentes.2O conceito de discurso como ser utilizado nesta narrativa o da trade discurso-objeto-sujeito, explicadopor Gilles Deleuze, com base nos estudos foucaultianos, como verdades produzidas atravs de dispositivos,que so mquinas de fazer ver e fazer falar. Para Foucault, em todas as sociedades a produo dos discursos controlada, selecionada e organizada a fim de conjurar poderes e perigos. Apropriando-se destes conceitos,entendemos a mdia impressa como uma pea dessa maquinaria dos discursos: parte da ideologia por trs docorpo editorial para dom inar o elemento aleatrio, criar sujeitos e caracteriz -los, selecion-los, criminaliz-losou no, de acordo com procedimentos de excluso e interdio, que visam a adequao do mundo conhecido produo de verdades teis. Os estudos referenciados so, respectivamente: DELEUZE, Gilles. Que s undispositivo? In: Michel Foucault , f ilsofo . Barcelona: Gedisa, 1990, p. 155; FOUCAULT, Michel. A ordem dodiscurso. 6 ed. So Paulo: Loyola, 2000, p. 09.

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    tnicas, religiosas, bem como em temas das mentalidades, hbitos e costumes, impulsionou

    uma virada para a cultura, da qual este trabalho, sua temtica e seu problema, so

    subsidirios3.

    Esta narrativa est dividida em duas partes. A primeira versa sobre o mbito

    nacional das diretrizes do governo da infncia e da juventude no Brasil entre os anos de

    1964 e 1990. Apresenta, tambm, o processo poltico em curso no pas e estabelece

    relaes com as polticas sociais voltadas aos infantojuvenis. A segunda parte se dedica ao

    contexto do estado de Santa Catarina, tendo sido construda com base em narrativas

    jornalsticas. Visando informar sobre as polticas sociais em curso, os jornalistas de O

    Estadodeixaram indcios de uma srie de negligncias, politicagens e prioridades no que se

    referia ao tratamento e demanda, atendida ou no, pelos programas sociais em Santa

    Catarina.

    Contexto e diretrizes nacionais do governo da infncia e juventude no Brasil

    (1964-1990)

    No alvorecer da dcada de 1960, o Brasil vivia sob os auspcios de uma democracia

    frgil, ameaada dentro e fora do pas, embora sustentada por intensa participao social e

    comunitria. A nao atravessava um contexto de reformas sociais, as chamadas reformas

    de base, que se caracterizavam por esforos no sentido de resolver pela raiz algumas das

    questes sociais latentes na sociedade brasileira: a questo agrria, a temtica educacional e

    a interferncia estrangeira no pas so alguns exemplos. Estas questes estavam sendo

    pensadas como investimentos que, alm de promover a ampliao do Estado de Bem-Estar

    Social, em longo prazo e estendidos a grande massa da populao seriam os pilares para

    uma ao nacional preventiva da criminalidade e da violncia. Ou seja, vigorava certo

    consenso social de que as oportunidades desiguais no mbito rural, dada a enorme

    concentrao de terras, a marginalizao da pobreza nas cidades e a educao como umprivilgio de classe, quase inacessvel s classes populares, no serviam seno para engordar

    os nmeros da chamada delinquncia juvenil. O golpe civil-militar4 instaurado em 1964

    calou, portanto, um dos movimentos sociais mais atuantes e democrticos da histria do

    3BURKE, Peter. O que Histria Cultural?2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.4 Neste texto utilizaremos o conceito ditadura civil-militar, ao invs de ditadura militar, visando reforar a

    participao de uma parcela da sociedade civil no golpe que subjulgou o Brasil ao governo dos militares,iniciado em 1964.

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    pas5. Em seu lugar, estabeleceu um aparato institucional, legislativo e operacional com

    caractersticas prprias que visavam, essencialmente, o estabelecimento da ordem social.

    O problema da criminalidade no Brasil adquiriu, aps o golpe, um significado

    prprio, ligado ao conceito de defesa nacional. As relaes possveis entre criminalidade,

    ilegalidade, violncia e insatisfao social foram traduzidas pelo conceito de foras

    internas de agitao6. Tal conceito foi transformado em inimigo pblico da nao e ao seu

    redor desenvolveu-se uma doutrina que embasaria grande parte da legislao e das polticas

    sociais que governariam a populao brasileira no perodo 1964-1985: a Doutrina de

    Segurana Nacional. Arno Vogel explica como, apesar do termo foras internas de

    agitao referir-se ao subversivo poltico, a delinquncia infantojuvenil preocupava aos

    idealizadores da DSN:

    Em suma, a massa crescente de crianas e adolescentes marginalizadosfazia prever, a curto e mdio prazos, prejuzos considerveis, quer doponto de vista socioeconmico, quer do ponto de vista poltico. [...] Nosegundo [caso], em virtude do risco de que o potencial constitudo poresses irregulares viesse a ser capitalizado por foras contrrias aoregime.7

    Apesar de ter sido largamente disseminada no Brasil aps o advento do governo

    civil-militar, atravs da Escola Superior de Guerra e, mais especificamente com o livro deGolbery de Couto e Silvia publicado em 19678, a DSN teve sua origem no pas no final do

    sculo XIX, vinculada a teorias geopolticas e calcada no antimarxismo e em tendncias

    conservadoras do pensamento social catlico9. O governo civil-militar adaptou a Doutrina

    aos anos em marcha, alando-a ao patamar de principal corpo terico e ideolgico para o

    planejamento dos programas governamentais a serem implantados.

    5 Sustenta essa afirmao a historiadora Lucilia Almeida Neves Delgado, na seguinte obra: DELGADO,Luclia Almeida Neves. O governo Joo Goulart e o golpe de 1964: memria, histria e historiografia. RevistaTempo, UFF, 2009, pp. 123143.6 COIMBRA, Ceclia Maria Bouas. Doutrina de Segurana Nacional: banalizando a violncia.Revista Psicologia em Estudo, Maring, v.5, n. 2, 2000, p.10.7 VOGEL, Arno. Do Estado ao Estatuto: propostas e vicissitudes da poltica de atendimento infncia eadolescncia no Brasil contemporneo. In: PILOTTI, Francisco; RIZZINI, Irene (Orgs.). A Arte de governarcrianas: a histria das polticas sociais, da legislao e da assistncia infncia no Brasil. So Paulo: Cortez,2011, p 293.8 Refere-se aqui seguinte obra: SILVA, Golbery do Couto e. Geopoltica do Brasil. Rio de Janeiro: JosOlympio, 1967.9BECHER, Franciele. Operigo moral em tempos de segurana nacional: polticas pblicas e menoridade em Caxias

    do Sul - RS (1962 1992). 302 f. Dissertao (Mestrado em Histria) Universidade Federal do Rio Grandedo Sul, Programa de Ps-Graduao em Histria, 2012, p. 66.

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    Como grande parte das questes de Estado naquele momento, o governo da

    infncia e da juventude foi marcado fortemente pela Doutrina de Segurana Nacional. Para

    esse segmento da populao, os esforos visavam a interveno sob aquele que vinha

    consolidando-se como um grande problema social: a marginalizao de crianas e

    adolescentes. Este problema emergiu no Brasil com o decorrer da dcada de 1950.

    Gestado durante um momento de intenso xodo rural, este incentivado indiretamente

    pelos movimentos produzidos pela era desenvolvimentista, o problema do menor era o

    produto mais visvel, mais deletrio e mais incmodo10de um problema amplo ligado ao

    modelo de crescimento em voga no pas: o da sobra populacional nas mdias e grandes

    cidades brasileiras. Segundo Arno Vogel,

    A marginalidade desses grupos sociais consistia, pois, no fato de seremdesassistidos, seja por falta de meios de se proverem a si prprios, seja pelasua indigncia de fora poltica [...], em virtude da qual noconseguiam ter acesso aos programas desenvolvidos pelo governo.Frutos de um processo social perverso, tais grupos tendiam a converter-se em geradores de desarmonia. De marginalizados passavam amarginalizantesem consequncia dos efeitos deletrios de seus caracterescomuns sobre a prpria reproduo social, isto , sobre crianas eadolescentes, nascidos ou criados em seu meio.

    Nesse contexto, a atuao do Estado at o momento parecia insuficiente para

    assimilar fosse pelas vias do trabalho ou da assistncia social uma massa no

    previdenciria que vivia s margens do trabalho formal, da escolarizao e do consumo.

    Nos casos em que a famlia fora considerada marginalizante da prpria prole, o Estado

    poderia intervir para evitar a reproduo social da desarmonia que estes grupos

    representavam para o futuro prximo do pas.

    O perodo civil-militar se iniciou com uma srie de preocupaes nesse sentido. Os

    subsdios para o fortalecimento de sua legitimidade viriam do esforo empreendido para a

    anulao de alguns problemas sociais que urgiam interveno. No caso do problema do

    menor, a reao foi imediata. Ao final do ano da revoluo, em dezembro de 1964, o

    governo civil-militar lanou as bases daquele que viria a ser um dos mecanismos de

    governo da infncia e da juventude em situao irregular: a FUNABEM Fundao

    Nacional do Bem-Estar do Menor, adjunta poltica de mesmo nome, a PNBEM

    Poltica Nacional do Bem-Estar do Menor. Essa poltica foi elaborada tendo em vista o

    10PILOTTI, Francisco; RIZZINI, Irene. A infncia sem disfarces: um a leitura histrica. In: ______ (Orgs.).

    AArte de governar crianas: a histria das polticas sociais, da legislao e da assistncia infncia no Brasil. SoPaulo: Cortez, 2011, p. 27.

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    conceito de Bem-Estar, que fazia referncia s necessidades fundamentais do ser

    humano, a serem garantidas pelo Estado, neste contexto, em troca das liberdades

    individuais e das garantias institucionais, um ligeiro sacrifcio em favor da ordem social e,

    tambm, da ptria em si.

    Especialistas em polticas pblicas no Brasil, Francisco Pilotti e Irene Rizzini

    descrevem a criao da FUNABEM nos seguintes termos:

    Sua misso era velar para que a massa crescente de menoresabandonados no viesse a transformar-se em presa fcil do comunismoe das drogas, associados no empreendimento de desmoralizao esubmisso nacional. [...] Desse ponto de vista, a questo do menorinteressava segurana nacional, no s pela eventual canalizao dopotencial do sentimento de revolta dessa juventude marginalizada

    pelos movimentos de contestao do regime, mas, tambm, tendo emvista os efeitos da dilapidao do seu potencial produtivo para oprocesso de desenvolvimento.11

    A Lei n. 4.513, de 1 de dezembro de 1964, criava a FUNABEM, cujo objetivo

    imediato era enterrar a instituio que a sucedeu na execuo das polticas sociais para

    infncia e juventude no Brasil, o SAM Sistema de Atendimento ao Menor. Esta

    instituio, criada na dcada de 1940, havia sido apelidada de escola do crime, pois, ao

    adotar a institucionalizao dos menores em grandes estabelecimentos, que mesclavam

    os considerados infratores, os abandonados, sem representao legal ou em situao de rua,

    todos submetidos mera privao de liberdade, o SAM promoveu a reproduo de

    contextos sociais violentos, contextos os quais era responsvel por evitar12. Eram

    competncias da Fundao Nacional do Bem-Estar do Menor:

    1 Realizar estudos, inquritos e pesquisas para desempenho da missoque lhe cabe, provendo cursos, seminrios e congressos e levando emconsiderao o problema do menor em mbito nacional;2 Promover a articulao de atividades das entidades pblicas e

    privadas;3 Opinar, quando solicitado pelo Presidente da Repblica, pelosMinistros de Estado ou pelo Poder Legislativo, nos processospertinentes concesso de auxlios ou de subvenes pelo GovernoFederal entidades pblicas ou particulares dedicadas ao problema domenor;4Fiscalizar o cumprimento de convnios e contratos efetivados com areferida instituio;

    11______. A infncia sem disfarces: uma leitura histrica, p. 27.12 Esta discusso foi realizada por Edson Pasetti no premiado livro Histria das Crianas no Brasil, cuja

    referncia a seguinte: PASETTI, Edson. Crianas carentes e polticas pblicas. In: DEL PRIORI, Mary(org.). Histria das Crianas no Brasil. So Paulo: Contexto, 2009, pp. 347375.

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    objetivos gerais esses verbos sem conjugao seriam executados e quais as implicaes

    destas aes na vida dos maiores interessados, as crianas, os adolescentes e suas famlias?

    De qualquer forma, seno imediatamente, o pas logo sentiria os sintomas de um

    problema social mal resolvido. No ano de 1967, entrou em vigor em todo o territrio

    nacional a lei n. 5.258, que instituiu a idade penal em 16 anos e restaurou um antigo

    conceito jurdico, o critrio do discernimento, que deveria ser utilizado pelos Operadores

    do Direito para julgar se o adolescente, entre os 14 e 18 anos, havia cometido infrao com

    ou sem conscincia dos seus atos15. O cenrio da promulgao da lei foi o seguinte: os

    debates no Senado Federal no resultavam em acordo no sentido de atualizar o Cdigo que

    legislava sob a populao infantojuvenil brasileira, o Cdigo de Menores de 192716. De

    acordo com este corpo de leis, eram inimputveis crianas e adolescentes menores de 18

    anos completos. Ou seja, no se poderia instaurar um processo penal a essa populao,

    pelo menos no atravs da mesma prxis voltada ao pblico adulto. A organizao da

    FUNABEM levou algum tempo para consolidar-se. Em 1967, trs anos aps a sua

    fundao, eram praticamente inexistentes as Fundaes Estaduais. O que fazer, nesse

    contexto, com os considerados menores infratores que no apresentassem conduta

    antissocial grave situao em que a privao de liberdade era permitida? A prtica

    corrente era que fossem levados s delegacias, especializadas ou no, advertidos e liberadosem seguida. Da numerosa reincidncia de menores nas delegacias do pas surgiu o objetivo

    da referida lei: antecipar a idade de responsabilidade penal e acabar com a impunidade

    dos jovens, permitindo o encarceramento em institutos correcionais voltados ao pblico

    adulto a partir dos 16 anos.

    De acordo com Paulo Roberto Sandrini, a aprovao da referida lei ocorreu em um

    momento bastante duro de censura e represso aos movimentos de contestao ao regime,

    o que no impediu que inmeras manifestaes fossem contrrias sua implementao.Mesmo no meio jurdico, a reduo da idade de responsabilidade penal foi duramente

    contestada, sendo considerada um retrocesso na histria jurdica do pas alm de ineficaz

    e substituda em 1968 pela de n. 5.439, que reestabeleceu os critrios a ser observados

    com relao ao menor em conflito com a leijovens at os 18 anos incompletos17.

    15BRASIL. Lei n. 5.258, de 10 de abril de 1967.16BRASIL. Decreto- Lei n. 17.943-A, de 12 de outubro de 1927.17SANDRINI. Paulo Roberto. O cont role social da adolescncia brasileira: gnese e sentidos do Estatuto da Criana

    e do Adolescente. 164f. Tese. (Doutorado em Cincias Humanas). Florianpolis: Universidade Federal deSanta Catarina, 2009, p. 5354.

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    A dcada de 1970 alvorece sem que se delineiem aes significativas no campo da

    infncia e da juventude. Com a eleio para a presidncia do pas do General Emilio

    Garrastazu Mdici, entre 1969 e 1974, a populao brasileira experimentava o

    endurecimento da militarizao da sociedade, bem como a expanso da tortura, dos exlios

    polticos, do governo pelo medo. Em termos sociais, segundo Arno Vogel, os dados

    disponveis indicavam uma realidade assustadora: de acordo com o Censo de 1970, em

    uma populao global de 93.292.100 habitantes, contava-se 49.378.200 com idade entre 0-

    19 anos (52,93%). Dessa populao infantojuvenil um tero podia considerar-se em estado

    de marginalizao18.

    Estes so dados oficiais. Contudo, cabe fazer uma ressalva acerca do contexto de

    sua produo. Os nmeros da marginalizao, extremamente altos, tem relao com o

    ponto de vista pelo qual crianas e adolescentes das famlias pobres eram vistos pelo

    Estado. Esta populao, oriunda de famlias cuja formao e dinmica eram desconhecidas

    pelas autoridades, costumava ser classificada em dois grandes grupos: os considerados

    abandonados e os considerados infratores. Este olhar, no qual se pautava o projeto de

    famlia e de comunidade descrito nas diretrizes da FUNABEM, era o modelo das camadas

    mdias urbanas. Portanto, era considerada em situao irregular toda a gama da infncia

    e da juventude que no se encontrasse escolarizada, coabitando com progenitores e queexercesse atividades laborais, sobretudo as informais. Portanto, sem questionar a expanso

    da marginalizao das periferias das grandes cidades brasileiras, consideramos que os

    nmeros podem ter sido um tanto superestimados, visto que a noo de abandonado, ou

    infrator, era bastante distinta no entendimento das camadas que viviam a norma familiar

    burguesa e no das classes populares19.

    Apesar da necessria crtica aos nmeros, poucas aes no mbito do Estado, para

    alm das propagandas oficiais, permitem inferir que, naquele momento, caminhava bem acausa da infncia e da adolescncia no Brasil. Foi em decorrncia de presses

    internacionais a movimentao em prol desta causa esquecida. No ano de 1979, o Fundo

    das Naes Unidas para a Infncia UNICEF estabeleceu uma programao

    internacional para que se fizesse valer os preceitos da Declarao dos Direitos da Criana,

    18 VOGEL, Arno. Do Estado ao Estatuto: propostas e vicissitudes da poltica de atendimento infncia eadolescncia no Brasil contemporneo, p. 292.19Esta discusso foi realizada pela historiadora Silvia Maria Fvero Arend, na seguinte obra: AREND, Silvia

    Maria Fvero. Histrias de abandono: infncia e Justia no Brasil (dcada de 1930). Florianpolis: EditoraMulheres, 2011, 357p.

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    de 1959. Dentre as aes estava a proclamao do Ano Internacional da Criana, cujo

    objetivo central era chamar a ateno dos pases membros da ONU para a situao da

    infncia e adolescncia mundiais: contextos marginais, desnutrio, analfabetismo eram

    algumas das bandeiras levantadas. No Brasil, as comemoraes em torno do Ano

    Internacional ficaram marcadas pela promulgao de um corpo de leis que viria substituir o

    considerado obsoleto Cdigo de Menores de 1927: o Novo Cdigo de Menores ou Cdigo

    de Menores de 197920.

    Atravs de reportagens veiculadas pelo jornal O Estado, de Santa Catarina, vemos

    que a nova legislao foi recebida com certo otimismo. Logo aps a aprovao da lei, os

    leitores e leitoras do referido peridico eram informados que o presidente Joo Batista

    Figueiredo, entusiasmado, quebrou o protocolo e abraou o Senador Nelson Carneiro,

    autor do projeto21.

    20BRASIL. Lei n. 6.697, de 10 de outubro de 1979.21O ESTADO. Figueiredo sanciona novo cdigo e elogia ao de Carneiro. 11 out. 1979. Cabe atentar, no

    entanto, para o fato de que a proposta de renovao do Cdigo de Menores, realizada pelo senador NelsonCarneiro, foi substituda por um texto de autoria da Asso ciao Brasileira de Juzes de Menores.

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    Junto informao sobre a derrota do Ava Futebol Clube na Copa do Brasil de 1979, os leitores eleitoras dO Estadoinformavam-se de que havia sido aprovada uma nova poltica, no campo das leis,voltada aos infantojuvenis no Brasil. 11 de outubro de 1979.

    Quando o cdigo entrou em vigor, em fevereiro de 1980, lemos no mesmo

    peridico que com satisfao havia sido recebida a nova lei por aqueles que viriam a

    operacionaliz-la. Uma vez munida do objetivo de tornar legtimas prticas que no

    estavam sustentadas por lei, mas j vinham sendo executadas pela polcia e pelos Juzes de

    Menores, o jornal O Estado, para noticiar sua promulgao, informou o seguinte:

    A existncia de dispositivo, obrigando a apresentao do menor suspeitode delito autoridade judiciria do Estado, desde a criao doDepartamento de Polcia de Menores de 1974, fez com que noconstitusse novidade, para os policiais de menores de Pernambuco, aaplicao do Novo Cdigo de Menores, que comeou a vigorar ontemem todo o pas.Para o diretor executivo da Delegacia de Menores de Pernambuco,delegado Jos Porto Mello, o que vai acontecer agora ser apenas oamparo legal do cdigo, pois o juiz de menores da Capital, Sr. Nelson

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    Lopes Ribeiro, sempre era informado da existncia de menores detidospara averiguao pela polcia do Estado.22

    Poder-se-ia afirmar que o Cdigo de Menores de 1979 caracterizou-se por umamera adequao jurdica poltica operacionalizada pela FUNABEM? Vale a pena, antes de

    adentrar na realidade prtica de ambas diretrizes, realizar um esforo filosfico de

    compreenso das transformaes advindas da nova legislao.

    A ttulo de comparao, percebe-se a simples vista que o Cdigo de Menores de

    1979 enxugou grande parte das possibilidades colocadas por seu antecessor. Quer dizer, o

    detalhamento do Cdigo de Menores de 1927 era significativo: objetivava abarcar o maior

    nmero possvel de situaes envolvendo a populao infantojuvenil. Este dado servecomo escopo para todos os itens da nova legislao, diminudos em comparao anterior.

    No entanto, o captulo mais evidente o que se referia ao trabalho. Enquanto a lei de 1927

    descrevia as possibilidades laborais dos menores, bem como as condies de sua

    realizao, a lei de 1979 infere, a este respeito, da seguinte maneira: Do trabalho do Menor

    -Art. 83. A proteo ao trabalho do menor regulada por legislao especial23.

    Entretanto, para que no parea que esta discusso gira em torno da diminuio do

    nmero de artigos, atravs de uma comparao entre os dois Cdigos de Menores, vamos

    analisar as implicaes de uma legislao que no d conta da totalidade das situaes

    jurdicas possveis, e cujo objeto e fim da lei era o menor em situao irregular. Para fins

    desta lei, considerava-se nesta situao jurdica omenor:

    I - privado de condies essenciais sua subsistncia, sade e instruoobrigatria, ainda que eventualmente, em razo de:a) falta, ao ou omisso dos pais ou responsvel;b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsvel para prov-las;Il - vtima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ouresponsvel;III - em perigo moral, devido a:a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrrio aos bonscostumes;b) explorao em atividade contrria aos bons costumes;IV - privado de representao ou assistncia legal, pela falta eventual dospais ou responsvel;V - com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptao familiar oucomunitria;VI - autor de infrao penal.

    22O ESTADO. Desde ontem em vigor no pas o novo Cdigo de Menores. 12 fev. 1980.23BRASIL. Lei n. 6.697, de 10 de outubro de 1979. Ttulo VIII .

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    dada em uma porta desencadeia processos incontrolveis, aquela queKafka descreve [...].26

    Havia tamanha flexibilidade na situao jurdica conceituada como situao

    irregular, que ela se tornou uma existncia potencial. Podemos imaginar, no contexto da

    ditadura civil-militar brasileira, com que facilidade a autoridade jurdica, mas tambm

    policial, enquadraria o menor delito vadiagem, conduta antissocial, situao de perigo

    moral o na chamada situao irregular. No esqueamo-nos de que o texto da lei,

    aprovado em sua forma final, foi redigido pela ABJM Associao Nacional de Juzes de

    Menores, rgo formado por aqueles que viriam a operar a referida lei menorista, sendo

    essa porta que abre para o nada uma estratgia normativa que outorgava de forma

    autoritria o poder de deciso sobre a vida do menor s autoridades competentes.

    Uma lei menorista que entrasse em vigor no incio da dcada de 1980 esbarraria,

    brevemente, em intenso debate acerca de polticas sociais para crianas e adolescentes,

    ou seja, pessoas menores de 18 anos sem referncias sua situao socioeconmica e

    cultural. O Cdigo de Menores de 1979, nascido tardiamente, no pde resistir aos

    movimentos sociais e comunitrios que marcaram o perodo de reabertura poltica no

    Brasil, vividos no decorrer da dcada de 1980. Sucumbiu, primeiramente, Constituio

    Cidad de 1988, que iniciou os debates sobre a Doutrina da Proteo Integral e, finalmente,ao Estatuto da Criana e do Adolescente, de 1990, que encerra no Brasil a Era Menorista

    e abre espao a inmeras dificuldades, mas tambm Era dos direitos dos

    infantojuvenis.

    Entre o nacional e o local: a operacionalizao das polticas sociais para

    infncia e

    juventude em Santa Catarina

    Esta parte da narrativa ser, em grande parte, construda com base em matrias

    jornalsticas, sejam aquelas de carter informativo, sejam as investigativas. Com base nos

    peridicos disponveis na Biblioteca Pblica do Estado de Santa Catarina, optamos por

    utilizar o jornal O Estado uma vez que este foi o nico peridico que circulou

    ininterruptamente entre 1964 e 1990, respectivamente, o ano de ascenso do governo civil-

    26AGAMBEN, Giorgio. O poder soberano e a vida nua, I, p. 58.

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    militar e o ano em que foi extinta a PNBEM. Cabe apresentar o peridico e o peculiar

    contexto de sua edio durante esse perodo.

    A primeira edio dO Estadosaiu s bancas no ms de maio de 1915. O jornal eraherdeiro de outros peridicos de tradio republicana conservadora e trouxe consigo, ao

    longo do sculo XX, a marca da predominncia poltica em suas pautas, temtica em torno

    do qual se originou e a qual serviu27. Em sua origem, O Estadopoderia ser considerado um

    veculo de comunicao do Partido Social Democrtico PSD, cuja formao tinha

    marcada a presena do cl Ramos, famlia tradicional na poltica catarinense. No perodo

    compreendido pelo governo civil-militar, os dois arranjos poltico-partidrios mais

    importantes do estado de Santa Catarina organizados em torno das famlias Ramos e

    Konder-Bornhausen foram unificados dentro do partido de sustentao do regime, a

    ARENA. Devido a esta unidade poltico-partidria entre o estado e o governo central, a

    Poltica Nacional do Bem-Estar do Menor e a FUCABEM, entidade operacional da mesma

    em Santa Catarina, foram promocionadas e propagandeadas como instituies de

    imprescindvel utilidade pblica. As sries de denncias de arbitrariedades ocorridas nas

    dependncias das instituies voltadas infncia e juventude no Estado foram em grande

    parte desconectadas dos governos que as administravam. Em alguns casos, houve

    tentativas de desacreditar tais denncias.

    Neste contexto, os leitores e leitoras do peridico experimentaram a coexistncia de

    duas realidades em torno dos servios prestados infncia e juventude em Santa Catarina:

    a expanso do atendimento, as comemoraes, campanhas e iniciativas pblicas que

    sugeriam o bom encaminhamento das questes sociais relativas aos infantojuvenis e o

    contexto de srias denncias envolvendo monitores dos abrigos, policiais e delegados, em

    geral referindo-se violncias fsicas, mas tambm sexuais, alm de outras arbitrariedades

    ocorridas no interior das instituies administradas pela FUCABEM. No caso desta ltima

    realidade, a origem das denncias era comumente ex-internos das instituies ou familiares

    dos mesmos28.

    27 PEREIRA, Moacir. Imprensa e Poder: a comunicao em Santa Catarina. Florianpolis: Lunardelli: FCCEdies, 1992, p. 34.28 Esta afirmao refere-se ao perodo compreendido pela pesquisa da qual resultou este trabalho, entre osanos de 1979 e 1990. Talvez a denncia mais significativa do perodo, dentre aquelas veiculadas por O Estado,tenha sido a de uma jovem de 20 anos, tornada pblica em 1984. A jovem dirigiu-se a edio desse peridico

    para informar sobre uma srie de i rregularidades ocorridas nas d ependncias das instituies de abrigamentoadministradas pela FUCABEM. A importncia da denncia situa-se, em nosso entender, na gravidade das

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    Do nacional ao regional, como foi executada a Poltica Nacional do Bem-Estar do

    Menor? De acordo com suas diretrizes, a FUNABEM operacionalizaria as polticas

    pblicas para infncia e juventude no pas como entidade autnoma e com recursos

    prprios. A presidncia da instituio prestaria contas diretamente ao presidente da

    repblica, a quem cabia igualmente nomeao daquele posto. Era, sem dvida, uma

    instituio gigantesca. Criada nestes termos, a FUNABEM tornou-se instituio

    caracterstica do perodo civil-militar, cuja marca eram as obras faranicas, como a

    construo da estrada transamaznica e da ponte Rio-Niteri29. Para que o mecanismo que

    governaria a populao infantojuvenil funcionasse era necessrio, entretanto, fragmentar a

    operacionalizao da poltica nacional. Apesar da sugesto, nas diretrizes de 1964, de que

    fossem criadas entidades estaduais da FUNABEM, as chamadas FEBENS FundaesEstaduais do Bem-Estar do Menor em cada Estado da federao, os incentivos do Estado

    brasileiro neste sentido comearam a sentir-se no final da dcada de 1960 na regio sudeste

    e, na regio sul, apenas no meado da dcada de 1970. No estado de Santa Catarina, a

    FUCABEMFundao Catarinense do Bem-Estar do Menor tornou-se uma realidade, em

    1975, pelas mos do governador binico do estado, Antnio Carlos Konder Reis. As

    instituies pblicas voltadas aos infantojuvenis no estado s organizaram-se em torno da

    Poltica Nacional do Bem-Estar do Menor deste momento em diante.

    Nas reportagens coletadas no jornal O Estado, entre os anos de 1979 e 199030,

    percebemos que o termo FUCABEM, para aqueles que estavam incumbidos da redao

    das matrias, no era entendido como sigla de uma fundao que seguia uma poltica

    nacional, mas sim como a instituio que abrigava os menores em situao irregular,

    sediada at os primeiros anos da dcada de 1980 onde atualmente se encontra, na cidade de

    Florianpolis, a Cidade da Criana, no bairro Agronmica. Depois, por FUCABEM

    acusaes realizadas pela jovem. De acordo com o relato publicado em 13 de outubro, sevcias sexuais contraas jovens do sexo feminino, castigos imoderados e confinamento na solitria durante uma semana eramprticas perpetradas pelos monitores das instituies de abrigamento provisrio, na cidade de Florianpolis.

    Ver: O ESTADO. Jovem que ajuda os viciados denuncia FUCABEM. 13 out. 1984. Cabe ressaltar quehouveram outros casos noticiados, como o da cidade de Lages, em 1985, quando cinco monitores/as foramafastados de suas atividades aps investigao das denn cias de violncia fsica contra os abrigados, denn ciasrealizadas por familiares destes. Ver: O ESTADO. Fucabem confirma denncias de maus tratos contra osmenores. 07 set. 1985, e; O ESTADO. Fucabem demite cinco acusados de agresso contra trs menores. 08set. 1985.29COIMBRA, Ceclia Maria Bouas. Doutrinas de Segurana Nacional: banalizando a violncia, p.07.30A referida pesquisa foi realizada para a elaborao da dissertao de mestrado da autora, defendida em2013. A investigao contou com auxlio da CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de NvelSuperior. Ver: DAMINELLI, Camila Serafim. Governar, assistir, tolerar: uma histria sobre infncia e juventude

    em Florianpolis atravs das pginas de O Estado(1979 1990). 249f. Dissertao. (Mestrado em Histria).Universidade Federal de Santa Catarina, 2013.

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    buscava-se referir aos Centros Educacionais situados nas cidades de Palhoa e de So Jos.

    Em outras cidades do estado esta prtica tambm se popularizou: sobre a inaugurao do

    Centro Educacional Regional da Fundao Catarinense do Bem-Estar do Menor na cidade

    de Itaja, regio norte de Santa Catarina, l-se o seguinte: Fucabem de Itaja entrar em

    funcionamento ainda nesta semana31 (grifos nossos). A FUCABEM, como instituio de

    promoo social, j se fazia presente na cidade de Itaja, disponibilizando verbas,

    promovendo campanhas e coordenando os Centros de Bem Estar do Menor, por exemplo.

    No entanto, o sentido atribudo FUCABEM como instituio de abrigamento.

    No dia 08 de novembro de 1979, O Estado informou a captura de Sapo, um

    considerado delinquente juvenil, aps longa perseguio policial que fez despertar mais

    cedo naquela manh a cidade de Tijucas, cerca de 50 km ao norte da capital catarinense,

    Florianpolis. O episdio, aos olhos dos jornalistas de tal peridico, pareceu um bom

    momento para mostrar como a criminalidade era gestada desde os primeiros anos da

    infncia. Dentre os feitos relevantes da vida de Sapo, foi destacado um nmero incontvel

    de furtos cometidos. A narrativa informava sobre a passagem do jovem pela rede

    assistencial do estado: Aos 11 anos de idade foi colocado no Centro de Recepo e

    Triagem de menoresrgo da Fucabem: aquilo l como um sistema carcerrio comum

    diz ele. Ficou sete anos, at completar 18 anos, e depois foi excludo32.

    O Centro de Recepo e Triagem, local onde Sapo ficou abrigado por sete anos,

    era uma instituio prescrita pelas diretrizes da FUNABEM, cuja execuo ficaria a cargo

    das Fundaes Estaduais. Como sugere o nome da instituio, ela no se destinaria a

    realizar abrigamento permanente, mas sim recepcionar menores apreendidos que

    aguardassem triagem a abrigos permanentes, fosse aqueles caracterizados por privao de

    liberdade ou por regime aberto. No estado de Santa Catarina, tanto as atividades do CRT

    quanto do RPM Recolhimento Provisrio de Menores foram executadas num mesmolocal, onde tambm estava situado o Educandrio XXV de Novembro. Este ltimo era,

    oficialmente33, o nico abrigo permanente de crianas e adolescentes na capital catarinense.

    31O ESTADO. Fucabem de Itaja entrar em funcionamento ainda nesta semana. 12 set. 1985.32O ESTADO. Polcia de Tijucas prende um dos arrombadores do supermercado. 08 nov. 1979.33Referimos-nos oficialidade desta instituio no sentido de sua exclusividade enquanto abrigo gerido pelopoder pblico. Havia pelo menos outras duas instituies cuja caracterstica era o abrigamento de crianas ejovens em regime de internato, ambas administradas por setores religiosos. A primeira, e mais antiga

    instituio de abrigamento do estado, era o Lar So Vicente de Paulo, internato para meninas, fundado pelaIrmandade do Divino Esprito Santo no incio do sculo XX; a segunda, o Lar das Crianas, internato misto

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    Estas instituies, cuja finalidade e objetivos distinguiam-nas, permaneceram, portanto,

    mescladas durante quase uma dcada, todas elas, conforme mencionamos, entendidas

    como abrigos de menores. Esta realidade foi transformada, em parte, no ano de 1982,

    quando os abrigados permanentes foram transladados ao recm-inaugurado Centro Piloto

    de Palhoa ou Centro Educacional Dom Jayme de Barros Cmara. Quanto ao CRT,

    tambm mudou-se a um novo local, no bairro Barreiros, j o RPM permaneceu na antiga

    sede. Quando estas mudanas ocorreram, no entanto, muitos jovens, tais como Sapo,j

    haviam atingido a maioridade penal, momento em que, inexistindo programas auxiliares

    que visassem fazer a passagem vida social adulta, eram excludos.

    Um cabisbaixo Sapo apresentado aos leitores e leitoras de O Estado. A fisionomia contrasta coma descrio das peripcias do jovem, realizada pelos policiais e publicada nessa ocasio.

    Na reportagem que informa sobre a priso de Sapo, que decidira contar todos os

    delitos polcia de maneira voluntria, o jovem contrastou a depreciao do CRT, descrito

    como um sistema carcerrio comum, com o tratamento recebido na Delegacia de Furtos,

    Roubos e Defraudaes: Fui trazido aqui pra delegacia, disse tudo o que sabia e tinha

    feito, mas no levei um pau sequer. Ningum me bateu34. A afirmao parece, por um

    lado, uma estratgia do jovem para ficar de bem com os polcias, temendo seu perodo de

    estadia naquela delegacia. Por outro lado, faz referncia a passagens anteriores pelos

    gerido pela sociedade esprita do estado de Santa Catarina. Ambas as instituies ainda existem. Para esta

    temtica, ver: DAMINELLI, Camila Serafim. Governar, assistir, tolerar..., 2013, pp 165 - 216.34O ESTADO. Polcia de Tijucas prende um dos arrombadores do supermercado. 08 nov. 1979.

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    Distritos Policiais, onde era comum que adolescentes e jovens sofressem violncias fsicas

    caso optassem por fechar o bico.

    As matrias jornalsticas testemunhando agresses fsicas perpetradas pelo aparato

    policial so inmeras. No caso do famoso delinquente juvenil conhecido como Z

    Carioca, frequentador assduo da Delegacia de Costumes e Menores na dcada de 1980,

    somos informados de que o mesmo fora autuado em flagrante delito em maro de 1981.

    Entrevistado por jornalistas dO Estado, contou um pouco de si, relatando o seguinte sobre

    o perodo em que esteve envolvido em roubos de carros, na capital catarinense:

    Primeiro era o lance de arrastar a carreta e depois de dirigi-la que, comoningum da turma sabia fazer, quase sempre acabava dentro de umavaleta ou em cima de um poste.Mas, logo camos com os homens e vimos quecom os tiras que pegam puxadores, quem dana leva pau pra valer. 35 (grifosnossos)

    Nenhum desses relatos, no entanto, ganharia tanta repercusso no plano do

    simblico36, a longo prazo, como o espectro que rondava o Centro Educacional So Lucas,

    situado no municpio de So Jos, regio da Grande Florianpolis. significativo que,

    antes que fosse criada a fundao estadual da PNBEM em Santa Catarina, aos governantes

    do estado pareceu apropriado buscar resolver o problema da infncia e juventude em

    conflito com a lei atravs da implantao de um Centro Educacional que abrigasse

    exclusivamente essa demanda, em regime fechado de internamento. Ou seja, sua criao,

    em 1972, no buscou oferecer um local para abrigo e assistncia totalidade da populao

    infantojuvenil, mas resolver um problema concreto atravs do encarceramento juvenil.

    Sem jamais ter se tornado objeto de matria jornalstica at o ano de 1990, em O Estado,

    com exceo de uma referncia equivocada sua criao em 1983 37, o So Lucas foi

    interditado diversas vezes durante a dcada de 2000, sendo decretado seu fechamento

    definitivo no ano de 2010. Os motivos alegados pelas autoridades judicirias eram a

    superlotao, as pssimas condies da estrutura e denncias de torturas 38. Dentre os

    35O ESTADO. O menor Z Carioca segue rpido na delinquncia juvenil da capital. 22 mar. 1981. 36 O conceito emprestado do socilogo Pierre Bourdieu, que o define como um conjunto derepresentaes, discursos e mensagens que visam ordenar o mundo e criar um consenso em torno dele,cumprindo, portanto, uma funo ideolgica ao legitimar ou no os sistema de dominao vigentes. Ver:BOURDIEU, Pierre. A economia das tro cas simblicas. 7 ed. Coleo Estudos: So Paulo: Perspectiva, 2011,361p.37O ESTADO. FUCABEM inaugura novo centro edu cacional amanh, em Barreiros. 12 nov. 1982.38Ver: NOTICIAS DO DIA. Complexo So Lucas totalmente interditado em So Jos por denncias de

    maus tratos. 17 out. 2010. Disponvel em: http://www.ndonline.com.br/florianopolis/noticias/1238-complexo-saao-lucas-ae-interditado-em-saao-josae-nesta-sexta-feira.html.

    http://www.ndonline.com.br/florianopolis/noticias/1238-complexo-saao-lucas-ae-interditado-em-saao-josae-nesta-sexta-feira.htmlhttp://www.ndonline.com.br/florianopolis/noticias/1238-complexo-saao-lucas-ae-interditado-em-saao-josae-nesta-sexta-feira.htmlhttp://www.ndonline.com.br/florianopolis/noticias/1238-complexo-saao-lucas-ae-interditado-em-saao-josae-nesta-sexta-feira.htmlhttp://www.ndonline.com.br/florianopolis/noticias/1238-complexo-saao-lucas-ae-interditado-em-saao-josae-nesta-sexta-feira.htmlhttp://www.ndonline.com.br/florianopolis/noticias/1238-complexo-saao-lucas-ae-interditado-em-saao-josae-nesta-sexta-feira.html
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    TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMGVol. 5, n. 2, Mai/Ago - 2013 ISSN: 1984 -6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 105

    problemas que se evidenciaram no So Lucas, de acordo com o Educador Ricardo Bortoli,

    tcnico naquela instituio nos ltimos anos de funcionamento, constavam ainda: educao

    e profissionalizao precrias; ociosidade; incapacidade dos familiares de outras cidades em

    realizar visitas aos internos e instalaes inadequadas aos preceitos descritos no Estatuto da

    Criana e do Adolescente39. Com relao a este ltimo item, Bortoli refere-se organizao

    estrutural do centro, composto por celas, coletivas e individuais, como as do sistema

    carcerrio comum.

    Para os menores que eram recolhidos pela polcia at o limiar da dcada de 1990

    no havia um procedimento oficial nico. O encaminhamento dependia da situao

    irregular e jurdica do mesmo. Somente foi possvel esboar o trajeto da insero dos

    menores na rede administrada pela FUCABEM na cidade de Florianpolis, que

    concentrou grande parte das narrativas veiculadas por O Estado. Qualquer que fosse o

    motivo da apreenso do menor pela polcia, esse seria encaminhado Delegacia de

    Costumes e Menores40, o 6 DP da capital catarinense. Se o menor fosse fugitivo de uma

    das instituies que operavam em regime semi-aberto, como o Educandrio XXV de

    Novembro e, posteriormente, o Centro Educacional Dom Jayme de Barros Cmara ou de

    privao de liberdade, como o Centro Educacional So Lucas e o So Mateus, seria

    encaminhado/a ao 6 DP e, posteriormente, reconduzido instituio onde estavaabrigado. Tanto as narrativas de fuga quanto as de delito seriam acrescidas aos relatrios

    sociais do interno e entregues ao Juiz de Menores. No caso de menores reincidentes, mas

    no abrigados em instituies mantidas pela FUCABEM, melhor dizendo, os menores

    que viviam com familiares, em lares substitutos ou instituies administradas pela iniciativa

    privada, seriam encaminhados pelos comissrios de polcia ao 6 DP e conduzidos ao

    Centro de Recepo e Triagem. Caso a famlia pudesse ser encontrada e contatada, os

    considerados infratores certamente receberiam advertncias, tanto da delegada quanto do

    juiz, e seriam encaminhados para casa. Se o menor no pudesse ser entregue ao

    responsvel legal, poderia ficar detido no CRT ou no RPM. No entanto, se o delito fosse

    considerado grave, como envolvimento em homicdios e latrocnios, por exemplo, o

    39 BORTOLI, Ricardo. As relaes scio-familiares dos adolescentes internos no Centro Educacional So Lucas . 75f.Especializao em Metodologias de atendimento criana e ao adolescente em situao de risco.Universidade do Estado de Santa Catarina, 2004, p. 29 - 30.40 A Delegacia d e Costumes e Menores, como era chamado o DP voltado prioritariamente s crianas eadolescentes, na dcada de 1980 foi renomeado como Delegacia da Mulher e do Menor, nome ainda hoje

    utilizado. No perodo em que foi realizada esta mudana, o 6 DP passou a ser conduzido apenas por oficiaispoliciais, comissrios e delegadosdo sexo feminino.

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    menor, em uma cela especial da Penitenciria Estadual de Florianpolis, esperaria uma

    deciso do Juiz de Menores, que viria no sentido de sua incluso no Centro Educacional

    So Lucas ou no So Mateus, junto a outros menores considerados de alta

    periculosidade.

    Na mdia impressa peridica do estado de Santa Catarina, nos anos da dcada de

    1980, era muito comum encontrar referncias aos menores em situao irregular atravs

    de apelidos conferidos aos mesmos, ou ainda, utilizando seus nomes pessoais no

    diminutivo. Acreditamos que esta era uma maneira de suavizar as realidades, muitas vezes

    bastante duras, narradas diariamente pelos jornais no que se referia aos infantojuvenis. O

    caso de Jorginho exemplar. Jorginho era um garoto pobre, que vivia em companhia

    da me num bairro popular da cidade de Florianpolis. Ainda no havia chegado

    adolescncia quando fora, uma e outra vez, apreendido por perambulao nas ruas do

    centro da capital catarinense. Aos 12 anos, havia se envolvido com alguns menores que,

    considerados abandonados como ele, cometiam pequenos furtos e atentados ao patrimnio

    pblico. Desconhecemos se Jorginho participava dos mesmos. Tomamos conhecimento,

    apenas, de que o garoto havia sido encaminhado ao regime semi-aberto de internao no

    Educandrio XXV de Novembro. Este dado chama ateno, pois Jorginho no tinha

    histrico de delitos graves e, ademais, vivia com a famlia, dado que deveria ter sido levadoem considerao quando foi proposto seu abrigamento41.

    Apartado do lar, por motivo da suposta situao deabandono, traduo que a

    FUCABEM realizou a respeito de sua situao de rua, Jorginho viria a se amalgamar

    massa de menores institucionalizados pelo estado. Ademais, Jorginho tornou -se

    dependente do qumico conhecido como cola de sapateiro. De bicho solto, criado na rua,

    passou a ser membro degang. Chegou a ter sua internao em clnica especializada indicada

    pelo diretor do Centro Educacional Dom Jayme de Barros Cmara, o que no se realizou.Por meio de uma ironia triste, num dia 12 de outubro, Dia das Crianas do ano de 1983, O

    Estado anunciou que Jorginho, no dia anterior, no havia ido classe. Evadiu-se no

    caminho entre o Educandrio e a escola para passar o dia no parque de diverses situado

    no Aterro da baa Sul, em Florianpolis. Mareado pela inalao da cola de sapateiro, caiu da

    Roda Gigante, vindo a falecer alguns dias depois.

    41O ESTADO. Menor fratura o crnio aps cheirar cola no parque. 12 out. 1983.

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    governamentais relativas populao infantojuvenil ocorreu entre as duas ditaduras

    brasileiras, a do Estado Novo, entre 1937 e 1945, e a civil-militar, perodo em que situamos

    esta narrativa, entre 1964 e 198543. O modelo de abrigamento, gestado pelo Cdigo de

    Menores de 1927, foi concretizado ao longo do sculo em movimento concomitante ao de

    crtica ao modelo que institucionalizava o menor: desde o Sistema de Atendimento ao

    Menor e a Fundao Nacional do Bem Estar do Menor, at os preceitos descritos no

    Cdigo de Menores de 1979 buscou-se contemplar outras possibilidades para a insero

    social harmoniosa de crianas e adolescentes sem assistncia familiar. O cientista poltico

    Edson Passetti elabora o seguinte parecer a cerca da temtica prisional voltada aos

    infantojuvenis, no decorrer do sculo XX:

    O orfanato e a priso para crianas e jovens so imagens que assustamquem est fora deles e apavoram quem est dentro. Por isso, osreformadores no se cansam de constatar a ineficcia do internato comoinstituio capaz de corrigir comportamentos ou reeducar o jovemprisioneiro para/pelo trabalho. Entretanto, desenvolvem programas paraos polticos, a partir de um circuito ininterrupto de seminrios, estudos epublicaes, propondo mudanas arquitetnicas e novos estilos deabordagem do problema prisional. Discutem os comportamentoscriminalizveis e os descriminalizveis, sugerem rotinas ditadas pelasexigncias histricas de cada poca (que vai do cio ao aprendizado deofcios passando por alfabetizao) e redimensionam as penalizaes.Mesmo considerando a priso um mal, os reformadores,

    paradoxalmente, no se opuseram introduo do seu modelo comocorretivo comportamental ou como educador para jovens infratores.44

    O contexto em voga no Brasil entre as dcadas de 1960 e 1990 deu um novo

    sentido ao abrigamento infantojuvenil: a Doutrina de Segurana Nacional embasou

    filosoficamente aes preventivas, ou seja, a anulao prvia de foras internas de

    agitao ou desarmonia, antes mesmo que estas viessem a manifestar-se nos indivduos. A

    infncia e a juventude que se encontrava fora do modelo desejado pelos operadores das

    polticas das quais eram alvo, ou seja, a infncia e juventude considerada em situao

    irregular eram consideradas como fatores de desarmonia social, sob os quais deveria

    intervir o poder pblico. No estado de Santa Catarina, como buscamos demonstrar, o

    modelo de institucionalizao do menor em grandes estabelecimentos, em voga no

    cenrio nacional, tambm se tornou uma realidade. Os casos policiais veiculados pelo jornal

    O Estado, editado na capital catarinense, demonstram que tais instituies operaram

    43PASSETTI, Edson. Crianas carentes e polticas pblicas, p. 350.44______. Crianas carentes e polticas pbli cas, p. 356.

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    negligncias que se referiam, como no caso de Jorginho, institucionalizao de jovens

    sem histrico de delitos graves e que coabitavam com familiares, no se caracterizando,

    portanto, nem como abandonados, nem como infratores. Agrupando-os, esses

    meninos frequentemente se envolveram com entorpecentes e com as chamadas gangs de

    menores. Ou seja, atravs da preveno de um possvel futuro criminal, o Estado deu

    subsdios para o efetivo enfrentamento do mesmo com a lei. J atravs da histria de

    Sapo, percebemos como a FUCABEM lidou com a chegada dos jovens a maioridade:

    excluindo-os, simplesmente, da rede de promoo social.

    Com o advento do Estatuto da Criana e do Adolescente, em 1990, o Estado

    brasileiro procurou desenvolver aes assistenciais complementares contnuas com relao

    s famlias de origem de crianas e adolescentes que necessitam interveno pblica. O

    regime fechado de internao, como narramos na experincia do Centro Educacional So

    Lucas, continua sendo decretado, embora excepcionalmente, destinado aos casos

    considerados de grave inadaptao social ou comunitria. A este fato, devemos a anlise do

    passado recente, contexto que evidenciou a ineficcia do modelo de privao de liberdade,

    fosse parcial ou total, no tratamento destinado aos infantojuvenis.

    guisa de concluso, cabe fazer uma incurso pelo tempo presente. Enganam-se

    aqueles que acreditam que o encarceramento como mtodo de inibio de agentes de

    desarmonia fez parte de um passado marcado pela atuao autoritria do Estado. Aps

    tantas experincias negativas do ponto de vista do governo da populao, a criminalidade

    infantojuvenil continua a ser entendida por muitos como um problema que pode e deveria

    ser solucionado pelo poder pblico atravs do encarceramento. A reduo da idade de

    responsabilidade penal como proposta de emenda constitucional surgiu 22 vezes entre

    1995 e 2004, por exemplo45. Tirar de circulao adolescentes inadaptados socialmente ainda

    surge, portanto, vigente como medida propalada por aqueles que, no acreditando no

    poder de transformao dos indivduos, propem antecipar o juzo que submeteria pessoas

    entre 14 e 18 anos ao sistema penitencirio comum. Por outro lado, o Estado brasileiro

    20 anos aps ter promulgado o Estatuto da Criana e do Adolescente no conseguiu

    instituir um modelo alternativo para os infantojuvenis que cometeram infraes seno o de

    privao de liberdade.

    45MOREIRA, Ivana Aparecida Weissbach. As propostas de rebaixamento da idade penal de adolescen tes no Brasil e oposicionamento do conjunto CFESS/CRESS. 199f. Dissertao. (Mestrado em Histria). Universidade Federal deSanta Catarina, 2011.

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