O HIBRIDISMO CULTURAL À LUZ DAS CONCEPÇÕES … · quanto o autor constroem sua subjetividade de...

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Web - Revista SOCIODIALETO www.sociodialeto.com.br Bacharelado em Linguística e Licenciatura em Letras UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 Volume 1 Número 6 fevereiro 2012 Homenagem ao Prof. Dr. Ataliba Teixeira de Castilho 1 O HIBRIDISMO CULTURAL À LUZ DAS CONCEPÇÕES BAKHTINIANAS: INFERÊNCIAS POSSÍVEIS Karine Miranda Campos (UniRitter) 1 [email protected] RESUMO O presente trabalho intenta estabelecer uma relação entre os conceitos de polifonia e carnavalização e a concepção de hibridismo cultural. Para que possamos realizar esse exercício de reflexão, partiremos das definições de identidade adotada por Stuart Hall para quem a identidade define-se como algo processual e de nação defendida por Benedict Anderson cujo conceito está vinculado à ideia de comunidade imaginada. Historicamente, o homem busca parâmetros com os quais possa se identificar de forma estável. A instauração dos processos de navegação provoca o contato entre diferentes culturas, transformando permanentemente os fatores que determinam as identidades do homem. A crise identitária que assola o homem moderno nos leva a questionar como podemos determinar hoje conceitos de cultura nacional, identidade e hibridismo. Partindo da compreensão de que o homem é resultado de uma infinda cadeia responsiva de enunciados, tentamos evidenciar a complexidade das identidades humanas na modernidade. PALAVRAS-CHAVE Polifonia, Carnavalização, Identidade, Nação, Hibridismo cultural. INTRODUÇÃO A importância do material produzido pelo grupo multidisciplinar de pensadores russos durante a década de 1920, mais tarde conhecido como Círculo de Bakhtin, se destaca pela busca da “Prima Philosofia” adotando uma perspectiva inovadora de abordagem das questões da linguagem. Ao afirmar que a subjetividade humana surge na e pela linguagem, cariam-se novos paradigmas para os estudos literários, artísticos e sociais. As ideias do círculo condenam o marxismo vulgar em que predomina uma lógica determinista e mecanicista, gerando uma visão unilateral e unidirecional 1 Graduada em Letras Português e suas Respectivas Literaturas pelo UniRitter e Mestranda do PPGL/ UniRitter.

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Homenagem ao Prof . Dr. Ataliba Teixeira de Castilho

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O HIBRIDISMO CULTURAL À LUZ DAS CONCEPÇÕES

BAKHTINIANAS: INFERÊNCIAS POSSÍVEIS

Karine Miranda Campos (UniRitter)1

[email protected]

RESUMO

O presente trabalho intenta estabelecer uma relação entre os conceitos de polifonia e carnavalização e a

concepção de hibridismo cultural. Para que possamos realizar esse exercício de reflexão, partiremos das

definições de identidade adotada por Stuart Hall − para quem a identidade define-se como algo

processual − e de nação defendida por Benedict Anderson cujo conceito está vinculado à ideia de

comunidade imaginada. Historicamente, o homem busca parâmetros com os quais possa se identificar de

forma estável. A instauração dos processos de navegação provoca o contato entre diferentes culturas,

transformando permanentemente os fatores que determinam as identidades do homem. A crise identitária

que assola o homem moderno nos leva a questionar como podemos determinar hoje conceitos de cultura

nacional, identidade e hibridismo. Partindo da compreensão de que o homem é resultado de uma infinda

cadeia responsiva de enunciados, tentamos evidenciar a complexidade das identidades humanas na

modernidade.

PALAVRAS-CHAVE

Polifonia, Carnavalização, Identidade, Nação, Hibridismo cultural.

INTRODUÇÃO

A importância do material produzido pelo grupo multidisciplinar de pensadores

russos durante a década de 1920, mais tarde conhecido como Círculo de Bakhtin, se

destaca pela busca da “Prima Philosofia” adotando uma perspectiva inovadora de

abordagem das questões da linguagem. Ao afirmar que a subjetividade humana surge na

e pela linguagem, cariam-se novos paradigmas para os estudos literários, artísticos e

sociais. As ideias do círculo condenam o marxismo vulgar em que predomina uma

lógica determinista e mecanicista, gerando uma visão unilateral e unidirecional

1Graduada em Letras Português e suas Respectivas Literaturas pelo UniRitter e Mestranda do PPGL/

UniRitter.

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simplificada das relações entre a base econômica e as manifestações da superestrutura,

além de criticar a visão formalista da literatura que estudava o texto literário apenas em

sua estrutura. O grupo considera o texto literário como produção humana e, por isso,

deve ser compreendido em seu caráter sócio-histórico assim como toda produção de

enunciados. A língua é um fato social cuja existência atrela-se à necessidade humana de

comunicação. A fala ou enunciado é o objeto principal de estudo e análise pelo qual é

possível evidenciar as questões da unicidade e eventividade do Ser, da formação do

caráter subjetivo no indivíduo e do componente axiológico intrínseco ao ser humano.

Bakhtin defende a existência de uma dicotomia entre o mundo da teoria – mundo

do juízo teórico, em que os atos concretos de nossa vida são objetivados na elaboração

teórica de caráter filosófico, científico, ético e estético – e o mundo da vida – ligado à

historicidade humana formado pela sequência irrepetível de atos. O dualismo apontado

por Bakhtin não pode ser superado a partir da razão teórica, mas pela razão prática da

qual emerge a unicidade dos atos efetivamente realizados. O agir, segundo o teórico, é o

ato de posicionar-se axiologicamente perante o mundo, ou seja, assumir a posição do eu

em oposição ao outro. O homem constitui sua subjetividade ao posicionar-se perante o

outro. É nessa relação de alteridade entre eu e tu que se encontra a balize do princípio

constitutivo maior do mundo real do ato realizado.

A vida conhece dois centros de valores que são fundamentalmente e

essencialmente diferentes, e ainda assim correlacionados um com o outro: eu

mesmo e o outro; e é em torno desses centros que todos os momentos

concretos do Ser são distribuídos e dispostos. (BAKHTIN apud FARACO,

2003, p.22)

A dinamicidade do universo de criação ideológica é estabelecida através do jogo

de forças, caracterizado pela metáfora do diálogo. A metáfora do diálogo, por sua vez, é

compreendida como uma infinda cadeia responsiva. Todo enunciado é, portanto,

resposta de um anterior ao mesmo tempo em que provoca o surgimento de outros

enunciados dos mais variados posicionamentos (confirmando, discordando,

questionando, completando, etc.).

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As relações dialógicas são, portanto, relações entre índices sociais de valor –

que, como vimos, constituem, no conceitual do Círculo de Bakhtin, parte

inerente de todo enunciado, entendido este não como unidade da interação

social; não como um complexo de relações entre palavras, mas como um

complexo de relações entre pessoas socialmente organizadas. (FARACO,

2003, p.64)

Admitirmos que o homem forma sua subjetividade na e pela linguagem é

compreendermos que a existência humana é essencialmente dialógica, característica que

se reflete em sua produção. Torna-se impossível detectarmos o termo adâmico do qual

se originaram todos os demais enunciados que circulam nas mais variadas esferas

sociais. Desse modo, podemos inferir que o homem moderno esteja imerso em uma

realidade híbrida por sua natureza linguística. As concepções filosóficas de Bakhtin

partem da observação da fala cotidiana e estendem-se para a produção literária. Os

conceitos de polifonia e carnavalização bakhtinianos originam-se nos estudos de

romances dos autores Dostoiévski e Rabelais. A observação de tais conceitos parece ser

fundamental para compreensão da formação identitária do sujeito na era da

modernidade.

Para Stuart Hall (2004), as definições identitárias do sujeito alteram-se, na

medida em que refletem a complexidade da realidade moderna, tornam-se

descentralizadas e fragmentadas. O sujeito do iluminismo – baseado na concepção de

unidade e centralização do indivíduo – desaparece, dando espaço ao sujeito sociológico

– cuja concepção vincula-se ao processo interativo entre o homem e a sociedade.

Nossas afirmações são baseadas em proposições e premissas das quais nós

não temos consciência, mas que são, por assim dizer, conduzidas na corrente

sanguínea de nossa língua. Tudo que dizemos tem um “antes” e um “depois”

uma “margem” na qual outras pessoas podem escrever. (HALL, 2003, p. 41)

A ideia do sujeito sociológico converge com a visão de Bakhtin, pois “o núcleo

ou essência interior desse sujeito é formado e modificado num diálogo contínuo e

permanente com os mundos culturais exteriores e as identidades que esses mundos

oferecem” (HALL, 2003, p.11). O sujeito pós-moderno surge do processo dialógico

entre o mundo pessoal e o mundo público, não possui uma identidade permanente, mas

identificação, ou seja, um contínuo processo de reconhecimento que se altera

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constantemente. O caráter dinâmico e permanentemente incompleto desse processo de

identificação parece nos remeter à ideia de que o homem e sua produção devam ser

considerados quanto ao seu caráter sócio-histórico. As antigas identidades atribuídas aos

indivíduos por fatores empíricos não nos possibilitam avançar nos estudos da sociedade

moderna. O conceito moderno de identidade está sujeito a constantes transformações o

que o torna permanentemente incompleto, característica que, consoante Bakhtin,

caracteriza o romance de Dostoiévski como polifônico.

O significado é inerentemente instável: ele procura o fechamento (a

identidade), mas ele é constantemente perturbado (pela diferença). Ele está

constantemente escapulindo de nós. Existem sempre significados

suplementares sobre os quais não temos qualquer controle, que surgirão e

subverterão nossas tentativas para criar mundos fixos e estáveis. (DERRIDA

apud. HALL, 2003, p.41)

A polifonia existente na obra de Dostoiévski é retirada do universo social

objetivo, universo cujos conflitos entre os diferentes planos e o caráter contraditório da

realidade social é dado como fato objetivo da época. O dialogismo instaurado pela

polifonia transforma o indivíduo, até então coisificado pelo autor, em senhor de sua

própria consciência. “O que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente

do grande coro de vozes que participam do processo dialógico” (BEZERRA, 2007, p.

194). Caracterizam a polifonia a interação e a coexistência de múltiplas vozes e

consciências equipolentes. As conversações entre as personagens, cujas consciências

interagem com liberdade, possibilitam que suas consciências não sejam pré-

determinadas pelo autor, mas construídas pelos próprios personagens. Entre autor e

personagens se estabelece uma relação dialógica solidária, em que tanto personagens

quanto o autor constroem sua subjetividade de forma permanentemente inacabada.

O conceito de carnavalização parece se aproximar do conceito de hibridismo

cultural. Desde as primeiras navegações, o homem inaugura um contínuo e progressivo

contato com múltiplas culturas distintas. De forma simplista, podemos inferir que a

natureza exploradora e a necessidade comunicacional humana vinculam de certo modo

os homens em uma mesma trama dialógica que constitui o tecido ao qual damos os

nomes de história e cultura. Bakhtin afirma que a produção de enunciados socialmente

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aceitos pressupõe o enquadramento desses, em regras convencionadas pelas instâncias

sociais institucionalizadoras do discurso oficial, tais como Igreja, Escola, Justiça, etc.

As identidades nacionais não subordinam todas as outras formas de diferença

e não estão livres do jogo de poder, de divisões e contradições internas, de

lealdades e de diferenças sobrepostas. Assim, quando vamos discutir se as

identidades nacionais estão sendo deslocadas, devemos ter em mente a forma

pela qual as culturas naciona9is contribuem para “costurar” as diferenças

numa única identidade. (HALL, 1998, p. 65)

As instancias oficiais exercem uma força centralizadora sobre as ações humanas,

o caráter balizador dos discursos oficiais determina axiologicamente o espaço ocupado

pelos indivíduos dentro da sociedade. Uma vez não reconhecido pelas instituições

oficiais o discurso é jogado à margem.

Fica registrada a carnavalização como movimento desestabilização,

subversão e ruptura em relação ao “mundo oficial”, seja este pensado como

antagônico ao grotesco criado pela cultura popular da Idade Média e

Renascimento, seja este pensado como modo de presença que aspira à

transparência e à representação da realidade como sentido acabo (sic), uno e

estável, o que é incompatível com a polifonia. (DISCINI, 2006, p.84)

Hall (1998) alega que as culturas nacionais são constituídas de instituições

culturais, símbolos e representações. “Uma cultura nacional é um discurso – um modo

de construir sentidos que influenciam e organizam tanto nossas ações, quanto a

concepção que temos de nós mesmos” (idem, p.50) do mesmo modo que as forças

centrípetas apresentadas por Bakhtin centralizam o discurso humano.

1 IDENTIDADE, NAÇÃO E HIBRIDISMO CULTURAL

A identidade, até então vista como unificada e estável, que estabilizava o

universo social em tempos anteriores não mais corresponde à complexidade da

realidade humana moderna. Para muitos teóricos “as velhas identidades, que por tanto

tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas

identidades e fragmentando o sujeito moderno” (HALL, 1998, p.7). O conceito de

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identidade está intrinsecamente relacionado ao conceito de alteridade, pois é no contato

com o outro que o indivíduo constitui sua determinação. “A consciência de si toma sua

forma na tensão entre o olhar sobre si próprio visão do espelho, incompleta e o olhar

do outro ou do outro de si mesmo visão complementar” (BERND, 2003, p.17). As

identidades dentro da modernidade estão deslocadas e fragmentadas.

Hall (1998) classifica três conceitos de identidades distintas: a do sujeito do

Iluminismo, a do sujeito sociológico e a do sujeito pós-moderno. O sujeito no

Iluminismo caracterizado como um indivíduo centrado, unificado, dotado de razão e

consciência cujo núcleo interior nasce com o sujeito e desenvolve-se com ele sem sofrer

alteração. “O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa” (HALL, 1998,

p.11). O sujeito sociológico permanece dotado de um núcleo centralizado que

corresponde a sua identidade. No entanto, o processo de formação e modificação desse

núcleo é realizado no diálogo continuo entre o mundo “exterior” e “interior”, ou seja,

entre o mundo pessoal e o mundo público. Muito próxima dessa dicotomia, Bakhtin ao

caracterizar o romance polifônico constata a existência de uma dicotomia entre o mundo

da teoria – mundo do juízo teórico, em que os atos concretos de nossa vida são

objetivados na elaboração teórica de caráter filosófico, científico, ético e estético – e o

mundo da vida – ligado à historicidade humana formado pela sequência irrepetível de

atos.

Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais

“lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as

“necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como

resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de

identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais,

tornou-se mais provisório, variável e problemático. (HALL, 1998, p.12)

Esse processo dialógico entre os mundos resulta no sujeito pós-moderno cuja

identidade não mais se caracteriza como fixa ou permanente, sua definição deixa de ser

biológica para ser historicamente definida. O indivíduo passa a assumir diferentes

identidades, não mais unificadas em torno de um “eu” coerente. “As sociedades

modernas são, portanto, por definição, sociedades de mudanças constante, rápida e

permanente” (HALL, 1998, p.14). “Encontramos, aqui, a figura do indivíduo isolado,

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exilado ou alienado, colocado contra o pano-de-fundo da multidão ou da metrópole

anônima e impessoal” (HALL, 1998, p. 32). O conceito de identidade cultural moderna

é constituído através da ideia de pertencimento a uma cultura nacional. Na medida em

que as sociedades modernas tornam-se complexas assumem uma forma mais coletiva.

No mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem

em uma das principais fontes de identidade cultural. Aos nos definirmos,

algumas vezes dizemos que somos ingleses ou galeses ou indianos ou

jamaicanos. Obviamente, ao fazer isso estamos falando de forma metafórica.

Essas identidades não estão literalmente impressas em nossos genes.

Entretanto, nós efetivamente pensamos nelas como se fossem parte de nossa

natureza essencial. (HALL, 1998, p.47)

Influenciada pelas transformações políticas que assolaram as sociedades nos

últimos séculos surge a ideia de nação cujo cerne indica um grupo de indivíduos que

comungam dos mesmos interesses. O conceito de nação deixa de ser vinculado apenas à

esfera política e se transforma em uma entidade que produz sentidos, um sistema de

representação cultural. Através desse processo de representação simbólica. Anderson

(1989) define nação como sendo uma comunidade imaginada. O termo “imaginada”

justifica-se a partir da constatação de que os indivíduos de uma nação, apesar de

acreditarem pertencer a uma unidade nacional, nunca terão conhecimento de seus

compatriotas e ainda que os conheçam, jamais chegarão a concordarem amplamente em

suas concepções.

Para dizer de forma simples: não importa quão diferentes seus membros

possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca

unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como

pertencendo à mesma e grande família nacional. [...] Uma cultura nacional

nunca foi um simples ponto de lealdade, união e identificação simbólica. Ela

é também uma estrutura de poder cultural. (HALL, 1998, p. 59)

As comunidades e nações, quando observadas fora do foco generalizador,

apresentam sua heterogeneidade, cada indivíduo se identifica parcialmente com os

parâmetros adotados pela cultura nacional em que está inserido. Entre comunidades e

nações diferentes se estabelece uma relação de espelhamento baseado na ideia de

superioridade/inferioridade, nem sempre pacífica. “A lealdade e a identificação que,

numa era pré-moderna ou em sociedades mais tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo,

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à religião, foram transferidas, gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura

nacional” (HALL, 1998, p.49).

O contato entre culturas diferentes é instaurado pelo processo de globalização

instaurado pelos navegadores durante o período de “descobrimentos”. Globalização é

compreendida como o conjunto de processos, atuantes em âmbito global, ultrapassando

as fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações tornando

o mundo cada vez mais interconectado.

A globalização implica um movimento de distanciamento da ideia

sociológica clássica da sociedade como um sistema bem delimitado e sua

substituição por uma perspectiva que se concentra na forma como a vida

social está ordenada ao longo do tempo e do espaço. (GIDDENS apud.

HALL, 1998, p. 68)

Os fluxos culturais, entre as nações, e o consumismo global criam

possibilidades de “identidades partilhadas” – como “consumidores” para os

mesmos bens, “clientes” para os mesmos serviços, públicos para as mesmas

mensagens e imagens – entre pessoas que estão bastante distantes umas das

outras no espaço e no tempo. À medida as culturas nacionais tornam-se mais

expostas a influências externas, e é difícil conservar as identidades culturais

intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do

bombardeamento e da infiltração cultural. (HALL, 1998, p. 74)

O contato intercultural provocado pela globalização desestabiliza as fronteiras

que, até então, delimitavam as diferentes identidades culturais, fazendo emergir o que

Hall denomina de “identidades partilhadas”. Identidades que se formam na intersecção

das fronteiras naturais, difundidas através dos processos migratórios, diásporas e pelo

advento da internet. Surge, nesse contexto, um sujeito hibridizado cuja identidade

fragmentada assume diferentes posicionamentos constituídos por fragmentos de outras

culturas. No entanto, a hibridização cultural não provoca um apagamento das tradições

originais do sujeito.

A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas no velho sentido,

porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas

interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias “casas” (e não

a uma “casa” particular). As pessoas pertencentes a essas culturas híbridas

têm sido obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir

qualquer tipo de pureza cultural “perdida” ou de absolutismo étnico.

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2 A POLIFONIA

A metáfora do diálogo é estabelecida dentro de determinadas regras

convencionadas socialmente e impostas aos sujeitos que desejem participar dessa

infinda cadeia responsiva. As instâncias oficiais da sociedade tendem a reger, de forma

centralizadora, as manifestações dialógicas através de regras e parâmetros que

determinam um modelo dialógico tornando-o socialmente aceito. A partir do estudo da

prosa romanesca de Dostoiévski, Bakhtin cria uma tipologia universal do romance

classificando-o em duas modalidades: o monológico e o polifônico. Ligado à categoria

monológica está o conceito de autoritarismo enquanto que ligado à categoria polifônica

estão os conceitos de realidade em formação, dialogismo e incompletude. O romance

polifônico caracteriza-se por ser um gênero em formação sujeito a alterações em que as

personagens são representadas em um infindo processo evolutivo. O romance

monológico é vinculado à indiscutibilidade dos discursos, ao autoritarismo, ao

dogmatismo e ao apagamento dos universos individuais das personagens e sua sujeição

ao universo do autor.

A polifonia e o dialogismo se imbricam na natureza ampla e multifacetada do

universo romanesco, instaurado pela presença de vários personagens e pela capacidade

do autor de recriar a riqueza dos seres e caracteres humanos, traduzindo a multidão de

vozes da vida social, cultural e ideológica representada. O monologismo centraliza o

discurso em seu produtor, no caso do romance o próprio autor, impedindo a

manifestação da consciência do outro. Esse modelo discursivo está atrelado às

instâncias oficiais de poder – a igreja, o Estado, a legislação, etc. – que exercem sob os

demais indivíduos sociais uma força de ordem centrípeta, cuja pretensão é estabelecer

ao seu discurso o valor de verdade absoluta e inquestionável. Os personagens, dentro do

universo monológico, não possuem nada a dizer; o autor manifesta tudo no lugar das

personagens. O autor, do alto de seu distanciamento, coisifica o outro, ignorando o

indivíduo, transformando-o em matéria muda.

A polifonia é aquela multiplicidade de vozes e consciências independentes e

imiscíveis cujas vozes não são meros objetos do discurso do autor, mas os

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próprios sujeitos desse discurso, do qual participam mantendo cada uma sua

individualidade caracterológica, sua imiscibilidade. (BEZERRA, 2007, p.

198)

3 CARNAVALIZAÇÃO

O riso e a carnavalização, segundo os teóricos do Círculo, estabelecem um

momento em que todas as vozes são equipolentes, um mundo de vozes plenivalentes. A

importância da carnavalização e do riso manifesta-se em sua força democratizadora que

dessacraliza os discursos oficiais, os discursos da ordem e da hierarquia, os discursos do

sério e do imutável.

[...] as leis, proibições e restrições que determinam a estrutura e a ordem da

vida ordinária, não carnavalesca, são suspensas durante o carnaval: o que se

suspende antes de tudo é a estrutura hierárquica e todas as formas correlatas

de terror, reverência, piedade e etiqueta – isto é, tudo aquilo que resulta da

desigualdade social hierárquica ou de qualquer outra forma de desigualdade

entre pessoas (inclusive etária). (BAKHTIN, 1997, p.122)

Bakhtin estuda o discurso literário de Dostoiévski e Rabelais como fato social.

Ao analisar o processo de criação do romance monológico, a partir do conceito de

reificação marxicista quanto à relação entre a produção da mercadoria e seu produtor,

cuja produção submete o homem reduzindo-o a coisa, o teórico conclui que a reificação

do homem surge com a sociedade de classes e chega ao limite com o capitalismo.

Paradoxalmente, o mesmo capitalismo que sujeita o indivíduo às mais variadas formas

de violência – econômica, política, ideológica, etc.– é responsável também pela

emergência de vozes que lutam contra essa submissão. Segundo Bezerra (2007), a visão

bakhtiniana do romance polifônico encontra na Rússia, durante o período capitalista, o

contexto perfeito para realizar-se.

[...] e justamente na Rússia, onde uma diversidade de universos e grupos

sociais nitidamente individualizados e conflituosos havia rompido o

equilíbrio ideológico, criado as premissas objetivas dos múltiplos planos e as

múltiplas vozes da existência, indicando que a essência conflituosa da vida

social em formação não cabia nos limites da consciência monológica segura e

calmamente contemplativa e requeria outro método de representação.

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Estavam criadas as condições objetivas da multiplicidade de vozes ou

polifonia [...] (BEZERRA, 2007, p.193)

As concepções desenvolvidas por Bakhtin de monologismo, dialogismo e

polifonia não as consideram como abstrações desvinculadas de seu conteúdo histórico,

social e ideológico. O autor interage com as personagens, regendo-as, sem interferir em

suas vozes, possibilitando a interação em pé de igualdade com e entre elas. Ao contrário

do que se imagina o romance polifônico não relega o autor a uma postura passiva, pois,

a consciência do autor não é apagada, tão pouco refletida na consciência da

personagem. É, portanto, dentro da categoria romanesca de polifonia que Bakhtin

identifica a carnavalização. O teórico na obra Questões de Literatura e de Estética ao

analisar a obra de Rebelais esclarece:

O objetivo deste trabalho é eliminar a ruptura entre o formalismo e o

ideologismo abstratos no estudo do discurso literário. A forma e o conteúdo

estão unidos no discurso, entendido como fenômeno social – social em todas

as esferas da sua existência e em todos os seus momentos – desde a imagem

sonora até os estratos semânticos mais abstratos. (BAKHTIN, 1998, p.71)

Bakhtin afirma que “A festa, as crenças populares ligadas a ela, sua atmosfera

particular de licenciosidade e de alegria arrancam a vida de sua trilha habitual, tornando

possível o impossível [...]” (BAKHTIN, 1998, p.430). A função social da festividade

carnavalesca brasileira observada pelo antropólogo Roberto da Matta – festa popular

originária do entrudo português – parece convergir com a posição bakhtiniana.

[...] discutir as peculiaridades de nossa sociedade é estudar também essas

zonas de encontro e mediação, essas praças e adros dados pelos carnavais,

pelas procissões e pelas malandragens, zonas onde o tempo fica suspenso e

uma nova rotina deve ser repetida ou inovada, onde os problemas são

esquecidos ou enfrentados; pois aqui – suspensos entre a rotina automática e

a festa que reconstrói o mundo – tocamos o reino da liberdade e do

essencialmente humano. É nessas regiões que renasce o poder do sistema,

mas é também aqui que se pode forjar a esperança de ver o mundo de cabeça

para baixo. (DAMATTA, 1997, p.18)

W e b - R e v i s t a S O C I O D I A L E T O • w w w . s o c i o d i a l e t o . c o m . b r Bacharelado em Linguística e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178-1486 • Volume 1 • Número 6 • feverei ro 2012

Homenagem ao Prof . Dr. Ataliba Teixeira de Castilho

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4 CONCLUSÕES

Bakhtin, em sua teoria acerca da polifonia e carnavalização, aponta a existência

de forças externas que centralizam os discursos sociais. À luz dos estudos

desenvolvidos pelo círculo de Bakhtin reconhecemos o processo de constituição da

subjetividade humana e consequentemente de sua identidade. O homem constitui-se

pela e na linguagem. Além disso, todo enunciado está vinculado a um enunciado

anterior cuja relação é estabelecida de diferentes formas: afirmação, refutação,

questionamento, etc. Compreender a importância da linguagem para a formação da

subjetividade do indivíduo parece ser uma condição indispensável para que se possa

compreender a importância da linguagem na formação identitária do sujeito.

Admitirmos que o homem forma sua subjetividade na e pela linguagem é

compreendermos que a existência humana é essencialmente dialógica, característica que

se reflete em sua produção. Torna-se impossível detectarmos o termo adâmico do qual

se originaram todos os demais enunciados que circulam nas mais variadas esferas

sociais. Desse modo, podemos inferir que o homem moderno esteja imerso em uma

realidade híbrida em virtude de sua natureza linguística. A necessidade comunicacional

humana aliada à globalização instaurada pelos antigos navegadores deu início ao

contato intercultural que resultou nas descentralizações observadas no sujeito moderno.

Estamos imersos em uma cadeia responsiva de enunciados, nossas identidades são

respostas dessa infindável cadeia de enunciados que nos vincula a um discurso adâmico

cuja origem permanece oculta nas “profundezas primitivas” da consciência humana.

A natureza dialógica da subjetividade e da identidade humana resulta em sujeitos

híbridos que dicotomicamente estão dentro e fora das culturas, ocupando um espaço

intermediário. A expressão cunhada em quimbundo pelo escritor José Luandino Vieira,

em Estória de Família, “Kiakudikika, kiazanga”, ou o que se mistura se separa parece

ilustrar com perfeição a situação do sujeito moderno. A mistura de culturas, no entanto,

não ocorre de forma pacífica, pois o caráter axiológico da consciência humana cria

categorias dicotômicas em que enquadramos as culturas e identidades como

superior/inferior e aceita/ rejeitada.

W e b - R e v i s t a S O C I O D I A L E T O • w w w . s o c i o d i a l e t o . c o m . b r Bacharelado em Linguística e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178-1486 • Volume 1 • Número 6 • feverei ro 2012

Homenagem ao Prof . Dr. Ataliba Teixeira de Castilho

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REFERÊNCIAS

ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. Trad. Lólio Lourenço de

Oliveira. São Paulo: Editora Ática, 1989.

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 2 ed.

Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética. 4ªed. São Paulo: UNESP,

1998.

BERND, Zilá. Literatura e Identidade Nacional. 2ª Ed. Porto Alegre: Editora

UFGRS,2003.

BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: Bakhtin: conceitos-chave. (org.) Beth Brait. 4ª edição.

São Paulo: Contexto, 2005.

DISCINI, Norma. Carnavalização. In:Bakhtin: outros conceitos-chave. (org.) Beth

Brait. São Paulo: Contexto, 2006.

MATTA, Roberto Da. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do

dilema brasileiro. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da

Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.

Recebido Para Publicação em 30 de outubro de 2011.

Aprovado Para Publicação em 23 de janeiro de 2012.