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    O homem como xam de seussignificados. A inveno da cultura deRoy Wagner e o campo aberto para areinveno da antropologia (ValriaMacedo)

    O HOMEM COMO XAM DE SEUS SIGNIFICADOS [1]

    A inveno da Cultura de Roy Wagner e o campo abertopara a reinveno da antropologia

    Valria Macedo

    PPGAS/USP

    Experenciar o mundo invent-lo. Tal a idia de Roy Wagnerao definir a agncia humana como uma mquina de smbolosque opera por meio de uma dialtica sem sntese entreconveno e inveno. Por sua vez, Cultura corresponderiaao modo predominante entre populaes no Ocidentemoderno de objetificao dessa experincia sob a forma deum domnio circunscrito de regras, valores e representaesartificialmente estabelecidas, contrastado com um fundo

    universal de realidade, que abarcaria tudo que supostamentepreexiste ao domnio cultural. As implicaes antropolgicas,sociolgicas, psicolgicas e polticas disso que o autoridentifica como nossa grande iluso so exploradas na obraA inveno da Cultura (The invention of Culture), s agoratraduzida para a lngua portuguesa por Marcela Coelho de

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    Souza a partir da edio revista pelo autor de 1981, a serpublicada pela Cosac & Naify.

    A 1a

    edio da obra, datada de 1975, corresponde ao perodoinaugural do que Eduardo Viveiros de Castro e MarcioGoldman vm chamando de "antropologia ps-social" [2], emque pessoas com diferentes repertrios e trajetrias passama ser afetados pelas mesmas questes, concernentes a umarecusa do pensamento entitrio e dicotmico, que opera pormeio de categorias como "indivduo e sociedade", "natureza ecultura", "realidade e representao". De encontro a essasdicotomias e atravessado pelo pensamento melansio, RoyWagner, em artigo de 1974 ("Are there social groups in theNew Guinea Highlands?"), introduz a noo de socialidade,em que o plano relacional ganha proeminncia. Largamenteincorporada e desenvolvida por sua interlocutora e tambmmelanesista Marilyn Strathern, socialidade corresponderia matriz relacional de que se constitui a vida das pessoas, asquais a um s tempo existem atravs de suas relaes e asrenovam. Nessa perspectiva, as relaes sociais so

    intrnsecas existncia humana, no se podendo, portanto,conceber pessoas como entidades circunscritas.

    J na antropologia calibrada por entidades e categorias,argumenta Strathern (1996), sociedade corresponde a umaabstrao reificada, concebida como a soma de interaesindividuais ou como uma entidade que regula a conduta dos

    indivduos. E, assim como a sociedade constri a ordem derelaes entre seus membros, a individualidade destes tomada como logicamente anterior. Indivduos aparecemento como o fenmeno primrio da vida e relaes comosecundrias.

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    Alm do acento no relacional em detrimento do substantivo,Wagner e Strathern convergem na abordagem do outro comouma experincia de pensamento, em que so concomitanteso aprendizado e a inveno, e mais: em que esto implicados

    aprendizado/inveno do outro e aprendizado/inveno de si.Enquanto a chamada corrente ps-moderna da disciplinaesteve voltada para a desconstruo do objetivismo,apontando o carter ficcional das etnografias e a assimetriade poder entre o sujeito do conhecimento e seus objetos, aantropologia tal como pensada por Wagner e Strathern, entreoutros, toma a "inveno etnogrfica" como um ponto departida e no de chegada (ou beco sem sada). Como

    experincia de pensamento, a construo do outro noprescinde da existncia efetiva do outro, tampouco prescindeda (re)construo de si. A experincia mediada pelopensamento (e seus parmetros culturais), e este atualizado pela experincia.

    Mediao e criatividade

    O modelo construdo por Roy Wagner emA inveno daCultura inicia explorando essa temtica por meio dasimplicaes do contato com diferentes modos de vida nainveno da Cultura e das culturas - estas entendidas comomanifestaes singulares daquela, tomada como fenmenohumano. preciso experenciar outras formas sociais para

    que o prprio modo de vida precipite como algo construdo eparticular, perdendo o estatuto de dado e universal. Taloperao constitui por excelncia o mote da antropologia,sendo a Cultura seu principal idioma.

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    A peculiaridade da disciplina reside na ausncia deexterioridade possvel em relao ao objeto de estudo. Ao sepropor estudar o homem tanto em sua singularidade("Cultura") como em sua diversidade ("culturas"), o

    antroplogo no pode desvencilhar-se da perspectiva singularde sua prpria cultura. A proposta intelectual de Roy Wagner,em vista da inexistncia de uma posio analticatranscendental, combina o que chamou de objetividaderelativa com relatividade cultural. Esta ltima situa oobservador em posio de eqidade com os observados, jque ambos pertencem a uma cultura; enquanto aquela atentapara a mediao de sua prpria cultura na compreenso de

    uma outra. Assim, a experincia da alteridade s adquiresentido nos termos da prpria cultura, mas o desafio doantroplogo relativizar sua prpria cultura por meio daformulao concreta de outra. Como enfatiza Wagner, preciso ultrapassar as fronteiras das prprias convenes einvestir a imaginao no mundo da experincia.

    Esse investimento ocorre sobretudo no trabalho de campo,

    uma vez que a experincia etnogrfica impe resistncia scategorias analticas do antroplogo. Ele vai se tornando oponto articular entre duas culturas e, medida que ambasvo sendo objetificadas (ganhando contornos), a inveno deuma concomitante reinveno de outra. Quanto maisfamiliar o estranho se torna, mais e mais estranho o familiarparecer ao observador. E esse estranhamento que fazprecipitar a cultura, dando-lhe visibilidade. A dupla

    experincia de inventar culturas para os outros e, porcontraste, uma cultura para si, desdobra-se na inveno daCultura como advento universal do fenmeno humano.

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    Ao objetificar aquilo a que estamos nos ajustando comoCultura, a antropologia procede de modo anlogo ao xam ouao psicanalista, que exorcizam ansiedades do pacienteobjetificando sua fonte. No caso dos antroplogos, aponta o

    autor, convertemos a discrepncia em entidade. O riscodessa empreitada predicar a cultura, circunscrevendo ordem do Ser (em que o significado reificado em umconjunto de crenas, dogmas ou certezas) o que da ordemdo Devir. E aqui Wagner atenta para as armadilhas de umaantropologia que recusa a universalidade da mediao e quenega a criatividade como operao inerente da vida social. Anica sada possvel empreender uma incessante

    metaforizaro da vida em cultura. Interromper o processoinventivo em cristalizaes folclricas e classificatrias converter a Cultura em "museu de cera", numa sorte deexpropriao da vida. Pelo que chama de uma antropologiareversa, Wagner prope a vinculao necessria da invenoda cultura com o aprendizado de como as culturas inventam asi mesmas, numa experincia aberta para a criatividademtua, em que a "cultura" em que vivemos contra-exemplificada pelas "culturas" que criamos, e vice-versa.

    E aqui talvez caiba destacar a convergncia desseprocedimento com o recurso metodolgico predominante naobra de Marilyn Strathern, para quem a leitura deA invenoda Cultura foi "como uma porta se abrindo" (1999a). A autoradesenvolve suas anlises por meio da confrontao explcitade diferentes modos de pensamento, conectando-os em sua

    diferena. Via de regra, o discurso euroamericano [3] contra-exemplificado pelo modelo melansio - ou, tal comoformulado por Gell (1999), o Sistema M: uma Melansiamediada por Marilyn -, e vice-versa. Em The gender of the gift(1988), a crtica feminista tambm opera como um contra-discurso, introduzindo parcialidade nas certezas da

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    antropologia. Portanto, assim como a experincia daalteridade na etnografia faz precipitar a Cultura - que nodeve ser convertida em museu de cera, mas aprendida comoincessante inveno de si a partir de convenes particulares

    -, a confrontao de categorias analticas pode precipit-lascomo categorias nativas, questionando os pressupostos dadisciplina. Ou, como Wagner prope em sua antropologiareversa, reconhecendo nas categorias nativas o estatuto decategorias analticas. E sua abordagem dos cargo cults umexerccio nesse sentido.

    A carga da cultura e a cultura da carga

    O desafio de uma antropologia reversa que a objetificaodecorrente do choque de alteridade, que para ns (e aqui oautor se refere ao modo de pensamento predominante noOcidente) ganha os contornos de "cultura", no procede damesma maneira em outras populaes. No contexto da

    expanso europia no sculo XIX, muitos povos tribaisprocuraram dar conta do choque imposto pelo contextocolonial por meio dos cargo cults, em que manufaturaseuropias eram cultuadas como objetos sagrados eassociadas a movimentos milenaristas. Na sntese deWagner, cargo correspondia ento ao enigmtico eatormentador fenmeno dos bens materiais ocidentais e suasprofundas implicaes para o pensamento nativo.

    Na paisagem melansia, riquezas materiais - como porcos ouconchas - consistem em "indicadores" de pessoas, no sendoacumuladas e sim dispersadas. Sua propriedade vale nopelo direito de posse, mas pela possibilidade de estabelecer

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    trocas, que encarna o significado central das relaeshumanas para essas populaes. E aqui mais uma vezMarilyn Strathern pode ser invocada por ter desenvolvidoesse modelo (1988; 1999b) de objetificao. Em poucas

    linhas, na Melansia as relaes so cifradas por aparncias,que funcionam como signos-veculo (porcos, humanos,artefatos etc.) de um sistema de convenes cuja esttica genderizada. Assim como itens de riqueza objetificamrelaes ao dar-lhes a forma de coisa, tambm o fazem naforma de pessoas, na medida em que definem posies pelasquais pessoas se percebem umas s outras: perspectivas.Por esses itens de riqueza, pessoas so separadas de outras

    (mes dos filhos, doadores de receptores), e assim relaesso criadas, pelas quais as pessoas se definem frente aoutras, e tm efeito umas sobre as outras. Na troca depresentes, pessoas trocam perspectivas, no apenas comoconhecimento de suas posies relativas, mas como partesdo outro que cada um incorpora.

    No contexto dos cargo cults, as manufaturas europias

    (Kago) tinham significado equivalente s riquezas melansiasmais tradicionais, s que o que estava sendo objetificado eraa relao de rendio e assimetria com o Ocidentecolonizador. Como destaca Wagner, o acesso ao cargo, aassociao promovida pelo compartilhamento de um cargo eas condies milenares necessrias para a chegada do cargoque lhe revestem de significado.

    Em contrapartida ao modelo melansio, Wagner sintetiza oconceito ocidental de cultura como a acumulao de grandesidias e feitos no campo da cincia, da arte e da tecnologia.Como produzimos "coisas", nossa nfase na preservaode coisas, produtos e tcnicas. A Cultura concebida como a

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    soma dessas coisas: ns as mantemos e deixamos aspessoas irem. Nossos livros, museus e demais instituiesesto repletos desse tipo de Cultura. Assim, vemos as cargasdos nativos, suas tcnicas e artefatos, as colocamos no

    museu e as chamamos "cultura". De modo anlogo, elesolham nossa cultura e a chamam de "carga", j que a riquezamaterial para os melansios a objetificao da vida e dasrelaes humanas.

    Kago seria ento um correspondente da palavra cultura,ambos constituindo termos de mediao entre povosdiferentes. Mas como o fazem em direes opostas, acabamresultando um na metaforizao do outro. Assim, culturaestende o significado da tcnica e do artefato para opensamento humano e as relaes, enquanto kago estendeas relaes e trocas humanas para a manufatura.Conseqentemente, para aqueles imersos na cultura dacarga (matriz de pensamento predominante no chamadoOcidente), inacessvel o significado de que se revestem asmanufaturas europias para aqueles que as apreendem

    como a carga da cultura, o que serve de pretexto parajustificar a empresa colonial e ou missionria, literalizando osignificado de cargo como apenas bens materiais (ou seja, a"cultura" em sentido restrito) e assim justificando sua atuao

    junto aos carentes, empobrecidos e desespiritualizados"primitivos". Nesse sentido, Wagner define o homem comoxam de seus significados, apontando para as possibilidadesde manipulao de um conceito no trnsito entre mundos. E

    a est o diferencial que a antropologia potencialmente tem,no reduzindo a alteridade a uma tipologia social, masreconhecendo diferentes estilos de criatividade, quecorrespondem a diferentes modos de entendimento.

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    Inveno e conveno

    Tais estilos de criatividade advm do compartilhamento deuma base relacional constituda por contextos convencionaisarticulados pelo trfego de smbolos que os compem. Acada ato de comunicao essa combinao de contextos atualizada, de modo que cada expresso configura um ato deinveno. A vida social opera assim por meio da dialticaentre conveno e inveno, sendo os significados criadosuns a partir dos outros e uns atravs dos outros, em que a

    reiterao incorre em transformao, e esta precisa implicarreiterao para ser significativa.

    Na articulao de dois contextos, inerente a todo ato criativo,o carter convencionalizado de um deles necessariamentemascarado, sendo percebido como algo da ordem do dado,do inato, da realidade, enfim, como algo que preexiste conveno e que Wagner chama de contexto implcito.

    preciso restringir o campo de conscincia a respeito daarbitrariedade do simblico para que a ao humana sejamotivada, acionando o que o autor identifica como contextocontrolador, ou simplesmente controle, e que constitui ocampo de agncia consciente e intencional do ator.

    A conveno est assim a servio de estabelecer distinescoletivas entre o inato e o reino da ao humana. A inveno,por sua vez, tem o efeito de diferenciar atos e eventos doconvencional, combinando contextos dspares. A invenoportanto muda as coisas, e a conveno operacionaliza essasmudanas em um mundo reconhecvel. Essa base relacionalpode ser entendida, no vocabulrio de Wagner, como

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    socialidade, mas pode tambm ser identificada comolinguagem, ideologia, cosmologia e uma srie de outrasconfiguraes que os antroplogos, ironiza o autor, sedeliciam em chamar de "sistemas".

    O equacionamento do que inato e do que construdo podese dar por meio de dois modos de simbolizao: umcoletivizante, associado ao chamado Ocidente moderno, eoutro diferenciante, que predomina em povos tribais,camponeses e religiosos. Em linhas gerais, o modocoletivizante seria aquele em que o ator age motivado paracumprir as expectativas coletivas da conveno, segundouma imagem compartilhada do moral e do social. Oscontextos no-convencionalizados, o que entendido comofatos e motivaes naturais, so vistos como parte de umfundo de realidade sobre o qual se constroem asrepresentaes. Por sua vez, no modo diferenciante a aoocorre motivada pela individuao em relao coletividade,cujas convenes so tomadas como dadas e inatas. portanto o contexto no-convencionalizado que serve como

    controle, em contraste com o modo coletivizante, em que asconvenes so tidas como reino da ao humana.

    Assim, abordagens coletivizantes ou racionalistas enfatizam aintegrao e o elemento de similaridade contra um fundo dediferenas. J abordagens diferenciantes buscam aindividuao por meio de uma lgica social dialtica sobre um

    fundo de similaridade. O autor se vale do casamento comoexemplo para contrastar ambos modos de simbolizao. Naclasse mdia americana, em que prevalece o modocoletivizante, a idia de indivduos (com temperamento epulses sexuais "inatas") contra-inventada (concebida comoda ordem do dado) e o esforo dos atores ocorre no sentido

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    de converter uma interao entre indivduos em umcasamento, que um ideal de vida estabelecido pelaconveno. J entre povos tribais, em que predomina o mododiferenciante, o casamento tomado como da ordem do

    dado, portanto contra-inventado, e o esforo dos atores para diferenciar, por exemplo, o masculino do feminino,possibilitando o casamento como relao entre indivduos.

    Mudanas na vida e mudanas de vida

    Nas populaes cujo modo de simbolizao primordialmente diferenciante, a dialtica entre inveno econveno explicitada na prpria dinmica social, uma vezque as sociedades se inventam por meio de uma alternnciacriativa entre conjuntos bsicos. O complexo de relaes queengloba a atividade ordinria, e que identificado com asmotivaes do "eu", encontra-se numa relao contraditria ecriativa com o conjunto de relaes que corresponde

    atividade "ritual", motivada pelos poderes e seresantropomrficos que criam a vida e o modo de ser do homem.H ento uma dialtica entre o homem e o mundo, bem comoentre todas coisas, que no exemplo melansio se expressapor meio das oposies de papeis femininos e masculinos.Desse modo, atos coletivizantes da vida cerimonial criam asidentidades e papeis diferenciantes da existncia ordinria, eestes, conectados em sua diferena, criam coletividade e

    comunidade. A sociedade assim continuamente inventadapela diferenciao de cada conjunto de oposio, criando oeu e a sociedade por meio da alternncia entre oposiesrelacionais contrastantes.

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    J nas sociedades coletivizantes, a dialtica mediada poruma lgica linear e causal. A compreenso do mundo buscanegar ou amenizar seus aspectos contraditrios. Acompetio um dos exemplos do autor de como a

    diferenciao e a contradio so racionalizadas esistematizadas como meio para um fim nico e monoltico:uma vida melhor, um governo mais democrtico etc. Adialtica no cessa de operar, mas mascarada nasobjetificaes coletivizantes usadas para medi-la.

    Nessa direo, Wagner se detm em refletir sobre o papel dapropaganda, do jornalismo e da indstria do entretenimentona vida das populaes urbanas modernas. Particularmenteno caso da propaganda, a fonte de seu poder est em dotar atecnologia - "produtos especiais com atributos muitoespeciais" - de significado. A propaganda interpreta osprodutos, criando para as pessoas uma vida que os inclui.Seu sucesso depende da habilidade em objetificarconvincentemente desejos e uma vida nos produtos. Talmecanismo anlogo magia entre povos tribais, que

    tambm revestem a atividade produtiva de sentido por meiode outras objetificaes. A propaganda inventa a vida em ummundo de "magia" tecnolgica, em que maravilhas feitas pelohomem fazem da rotina um milagre contnuo, de modoanlogo aos Daribi, povo melansio que vive em um mundomgico em que seres humanos podem adquirir a efetividadede uma ave de rapina na roa ou fazer chover.

    Contudo, pondera Wagner, como aqui a conveno serve decontrole (ou seja, vista como da ordem do construdo),vivemos os efeitos perversos da auto-criao e auto-motivao, em que as contradies precisam ser resolvidaspor solues coletivizantes com um senso de urgncia cada

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    vez maior. A sociedade desafiada por suas prpriascriaes: os fatos irredutveis da histria e da cincia, asdemandas urgentes das minorias tnicas e regionais, e todasas crises que se desenvolvem a partir das diferenas de

    pontos de vista em ltima instncia tm o efeito dedesconvencionalizar nossos controles coletivizantes. Assim,elenca o autor, tentando integrar e satisfazer minorias tnicase regionais, as criamos; tentando explicar e universalizarfatos e eventos, fragmentamos nossas teorias e categorias;aplicando teorias universais ao estudo das culturas,inventamos essas culturas como individualidades irredutveise inviolveis. Cada fracasso motiva um esforo coletivizante

    ainda maior. Em contraste com a maior estabilidade desociedades em que a dialtica opera mudanas na vida, nomodelo ocidental moderno torna-se imperioso umaincessante mudana de vida.

    O ocidental e o incidental

    Wagner aponta a distino entre Natureza e Cultura comomecanismo central de nossa socialidade. O que chama deideologia da cultura ocidental baseada na existncia deuma ordem fenomnica e inata chamada "Natureza" que secontrape instncia artificial e aperfeiovel que chamamos"Cultura". Todas as maneiras com que lidamos com o mundofenomnico respeitam a primazia e o carter inato da

    Natureza e das foras naturais. Isso confere um grande poderqueles que se ocupam em determinar como a Natureza em todas as suas formas "inatas". Assim, explicita Wagner,homens da cincia e da medicina (que interpretam a naturezadentro e entorno de ns), profissionais do entretenimento(que interpretam emoes e reaes supostamente inatas),

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    publicitrios (que interpretam impulsos e necessidades) ejornalistas (que interpretam eventos e dimensionam suaimportncia) exercem o papel de rbitros da Cultura. [4]

    O pressuposto de que nossa Cultura, por meio da cincia eda tecnologia, opera medindo, prevendo e utilizando ummundo de elementos naturais, mascara o fato de que ocriamos. Como nossa conveno estabelece que essamedio, previso e utilizao parte do artifcio humano,precipitamos o mundo fenomnico como parte do inato e doinevitvel. Assim, ironiza o autor, a cincia coloca o "sistema"na Natureza para depois se orgulhar de descobri-lo nela.Criamos a Natureza e depois nos empenhamos em contarhistrias de como ela nos criou.

    Entre os fenmenos supostamente naturais, Wagner destacao tempo como nosso principal produto. Ele s ganhaexistncia por meio de distines convencionais comocalendrios, horrios, cronogramas, expectativas sazonais e

    outros dispositivos que possibilitam medir, prever e precipitaro tempo, para que ento possamos nos surpreender com ele.Dessa maneira, como "fazemos" convenoconscientemente, temos que ser e sofrer as exigncias dainveno, sua anttese dialtica. Precipitamos o aspectoincidental e inventivo das coisas como nosso grande mistriomotivante.

    Imprever a vida

    Entre os povos que tomam invenes como o tempo, ocrescimento ou a mudana como parte de seu fazer

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    intencional, algo anlogo nossa Cultura precipitado, masno o concebem como Cultura, como artifcio, e sim como ouniverso. Para essas populaes, o convencional - gramtica,relaes de parentescos e todas as demais regras sociais -

    corresponde a uma distino dada e motivante entre o inato eo artificial que parte da essncia imanente de todas ascoisas, sendo seus contornos acessveis apenas aosvisionrios e xams.

    Assim como os chamados ocidentais criam o mundoincidental enquanto tentam reiteradamente prediz-lo,racionaliz-lo e orden-lo, os povos tribais, religiosos ecamponeses criam seu universo de conveno inata tentandomud-lo, reajust-lo e agir sobre ele. Esse universo deconveno no um cdigo para ser seguido - como a nossaCultura - e sim uma base para a improvisao inventiva.Assim, na bela expresso do autor, essa forma de agnciapode ser descrita como uma aventura contnua em imprever omundo. E ela que motiva seus feitos e itinerrios, e nonutrio ou sobrevivncia, como diria uma certa antropologia

    ecolgica. Do mesmo modo, prossegue Wagner, a apatia quepode se encontrar em algumas escolas de misso, ou emcampos de refugiados, ou em aldeias ditas "aculturadas", noso sintomas de ausncia de "Cultura", mas de sua anttese:a magia, a inveno e ousadia que faz cultura, precipitandosuas regularidades ao tentar, sempre de modo incompleto, seindividuar em relao a elas.

    E aqui podemos acrescentar iniciativas de "resgate" ou"valorizao" cultural, cada vez mais recorrentes em polticaspblicas ou protagonizadas por ONGs, em que o investimento feito na preservao ou resgate de costumes, artefatos outcnicas, desconsiderando muitas vezes que tais populaes

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    esto sendo privadas de dar curso aos modos de vida ouestilos de criatividade que resultaram nesses produtos. Nodizer de Marcio Goldman, o que est faltando ali no propriamente Cultura, mas a vida.

    A reinveno da antropologia

    Como a antropologia parte de nossa auto-inveno, quandousamos controles coletivizantes no estudo de outros povos,tendemos a inventar esquemas conceituais anlogos aos daCultura, como "regras", "gramticas", "tecnologias",reconhecendo a representaes de uma realidade nica,universal e natural. Ao objetificar outras culturas por meio danossa realidade, convertemos suas prprias objetificaesem uma iluso subjetiva, um mundo de "meros smbolos",possveis metforas da realidade, como procede Lvi-Straussao projet-las como uma "cincia do concreto", destacaWagner.

    E aqui mais uma vez Marilyn Strathern se mostrainterlocutora privilegiada de Roy Wagner ao recusar umaviso social transcendente ou a coexistncia deinterpretaes suplementares. Longe de pressupor um fundouniversal de realidade sobre o qual se assenta uma gamainfinita de representaes, Strathern (2005) prope um fazerantropolgico por meio de conexes parciais, que poderia sersintetizado como um sistema de conexes heterogneasenquanto heterogneas. Nesse proceder, interpretaes econtra-interpretaes produzem a pluralidade no por adio,mas por diviso e transformao, estando conectadas na suadiferena. Para tanto, Strathern toma de emprstimo de Dona

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    Haraway (1985; 1988) a esttica do cyborg: assim como umbrao mecnico enxertado num corpo humano, por exemplo,o antroplogo deve experimentar um fosso epistmico noqual um outro modo de pensamento enxertado, resultando

    numa conexo de matrias heterogneas, que noconfiguram uma unidade, mas tampouco resultam em dois. essa matemtica que no opera por nmeros inteiros queStrathern prope para a anlise antropolgica.

    Estendendo o Sistema WM [5] para o universo amerndio,tambm podemos tomar de emprstimo de Viveiros de Castro(1986:25-6) a esttica dos selvagens na reinveno daantropologia. Em contraste com a identidade talhada nomrmore dos euroamericanos, ali a verdade nmade e aalma existe sob o signo da inconstncia, em que o outro no um espelho para o eu, mas um destino.

    Bibliografia Citada

    GELL, Alfred.

    1999. "Strathernograms: or the Semiotics of MixedMetaphors". In: The art of anthropology. Essays anddiagrams. London/New Brunswick: The Athlone Press.

    HARAWAY, Donna.

    1988. "Situated knowledges: the science question in feminismand the privilege of parcial perspective". Feminist studies 14:575-99.

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    1985. "A manifesto for cyborgs: science, technology andsocialist feminism in the 1980s". Socialist review80: 65-107.

    LATOUR, Bruno.1991. Jamais fomos modernos. Ensaios de antropologiasimtrica. So Paulo: 34 Editora.

    STRATHERN, Marilyn.

    2005 [1991].Partial Connections. Lanham: AltaMira Press.

    1999a. "Entrevista. No Limite de uma Certa Linguagem".

    Mana. Estudos de Antropologia Social5 (2):157-175, 1999.1999b.Property, substance and effect. Antropological essayson persons and things. London and New Brunswick: TheAthlone Press.

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    1986.Arawet:os deuses canibais. Rio de Janeiro: Zahar.

    WAGNER, Roy.

    2006.A inveno da Cultura. So Paulo: Cosac & Naify.Traduo: Marcela Coelho de Souza [no prelo].

    1981. The invention of culture. Chicago and London: TheUniversity of Chicago Press.

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    1974. "Are there social groups in the New GuineaHighlands?". In: LEAF, M.J. (ed.). Frontiers of anthropology:an introduction to anthropological thinking. New York : D. VanNostrand Company.

    NOTAS

    [1] Ao centrar foco em The invention of Culture, de RoyWagner, por vezes pontuando-o com idias presentes naobra de Marilyn Strathern, este trabalho constitui um esforode sntese de parte do contedo do curso "Simetria,Reflexividade e Reversibilidade na Antropologia

    Contempornea", ministrado por Mrcio Goldman noPrograma de Ps-Graduao em Antropologia Social daUSP, durante o primeiro semestre de 2006.

    [2] Expresso cunhada por Eduardo Viveiros de Castro eMrcio Goldman, antroplogos moderadores da pgina"Abaet" [1], cujo repertrio de idias e autores (entre osquais Roy Wagner, Marilyn Strathern, Bruno Latour, IsabelleStengers, Gilles Deleuze, Felix Guatarri, Jeanne Fravet-

    Saada, Gabriel Tarde etc.) vem sendo construdo e articuladopor meio de textos de autoria coletiva ou abertos a inserese/ou comentrios dos participantes da pgina. Um curso deps-graduao no Museu Nacional intitulado "AntropologiaPs-Social" foi ministrado por ambos em 2006, cuja versosintetizada corresponde ao curso ministradoconcomitantemente por Goldman no PPGAS/USP.

    [3] Tal discurso, enfatiza a autora, no se refere a um povo

    especificamente, mas a modos dominantes de pensamentono Ocidente (1999: 270).

    [4] Impossvel no mencionar aqui a convergncia com o queBruno Latour (1994) chamou de Constituio Moderna, cujaengrenagem se moveria por meio de um mecanismo depurificao, separando o que seria parte do domnio cultural e

    http://abaete.wikia.com/wiki/P%C3%A1gina_principalhttp://abaete.wikia.com/wiki/P%C3%A1gina_principal
  • 8/9/2019 O homem como xam de seus significados

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    o que seria parte do domnio da natureza. Mas, ao faz-lo,promoveria a concomitante produo de hbridos denatureza/sociedade, que vm se proliferando de modo cadavez mais acelerado nos ltimos anos. Nesse sentido, o autor

    aponta 1989 como divisor de guas na Constituio Moderna,ano em que no s caiu o muro de Berlim, mas quandocomeou a ruir o muro que supostamente separava anatureza e a sociedade. Nessa data, questes relativas aoaquecimento global e outros desdobramentos ecolgicos daproduo industrial em grande escala entraram na pauta defruns internacionais, dificultando o projeto de purificao epondo em cheque o edifcio moderno.

    [5] De Wagner e Marilyn.