O homem de cabeça de papelão - João do Rio

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  • 7/29/2019 O homem de cabea de papelo - Joo do Rio

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    O homem de cabea de papeloJoo do Rio

    No Pas que chamavam de Sol, apesar de chover, s vezes, semanas inteiras, viviaum homem de nome Antenor. No era prncipe. Nem deputado. Nem rico. Nemjornalista. Absolutamente sem importncia social.

    O Pas do Sol, como em geral todos os pases lendrios, era o mais comum, omenos surpreendente em idias e prticas. Os habitantes afluam todos para acapital, composta de praas, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugarese todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. Demodo que estes eram mendigos e parasitas, nicos meios de vida semconcorrncia, isso mesmo com muitas restries quanto ao parasitismo. Os prdiosda capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dosproprietrios, nos subrbios no passavam de um andar sem que por isso no

    enriquecessem os proprietrios tambm. Havia milhares de automveis disparadapelas artrias matando gente para matar o tempo,cabarets fatigados,jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausncia de conservadores, a Bolsa, oGoverno, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade defantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretenses daAmrica. E o povo que a habitava julgava-se, alm de inteligente, possuidor deimenso bom senso. Bom senso! Se no fosse a capital do Pas do Sol, a cidade seriaa capital do Bom Senso!

    Precisamente por isso, Antenor, apesar de no ter importncia alguma, era exceomal vista. Esse rapaz, filho de boa famlia (to boa que at tinha sentimentos),agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidados.

    Desde menino, a sua respeitvel progenitora descobriu-lhe um defeito horrvel:Antenor s dizia a verdade. No a sua verdade, a verdade til, mas a verdadeverdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providncias. Foi-lheimpossvel. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeitode andar, na expresso com que se dirigia aos outros. Enquanto usara cales, osamigos da famlia consideravam-no umenfant terrible, porque no Pas do Sol todosfalavam francs com convico, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenortornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por contaprpria. Assim, a famlia via chegar Antenor como a prpria revoluo; os mestresindignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigosodiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.

    Uma s coisa descobriu a me de Antenor para no ser forada a mand-loembora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrrio. Eraescandalosamente, incompreensivelmente bom. Alis, s para ela, para os olhosmaternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos ecorria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doidofurioso. No s para as vtimas da sua bondade como para a esclarecidainteligncia dos delegados de polcia a quem teve de explicar a sua caridade.

    Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de umjovem solar, isto : ser bacharel e depois empregado pblico nacionalista, deixando atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da famlia emnome dos princpios organizaram vrios meetingscomo aqueles que se fazem na

    inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a facaserve para cortar o que nosso para ns e o que dos outros tambm para ns.

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    Antenor, diante da evidncia, negou-se.

    Oua! bradava o tio. Bacharel o princpio de tudo. No estude. Pouco importa!Mas seja bacharel! Bacharel voc tem tudo nas mos. Ao lado de um poltico-chefe,sabendo lisonjear, a ascenso: deputado, ministro.

    Mas no quero ser nada disso.

    Ento quer ser vagabundo?

    Quero trabalhar.

    Vem dar na mesma coisa. Vagabundo um sujeito a quem faltam trs coisas:dinheiro, prestgio e posio. Desde que voc no as tem, mesmo trabalhando vagabundo.

    Eu no acho.

    pior. um tipo sem bom senso. bolchevique. Depois, trabalhar para osoutros uma iluso. Voc est inteiramente doido.

    Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar.Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar.Acedendo ao pedido da respeitvel senhora que era me de Antenor, Antenorpasseou a sua m cabea por vrias casas de comrcio, vrias empresasindustriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavamembora Antenor? Ele no tinha exigncias, era honesto como a gua, trabalhador,sincero, verdadeiro, cheio de idias. At alegre qualidade rarssima no pas ondeo sol, a cerveja e a inveja faziam batalhes de biliosos tristes. Mas companheiros epatres prevenidos, se a princpio declinavam hostilidades, dentro em pouco no o

    aturavam. Quando um companheiro no atura o outro, intriga-o. Quando umpatro no atura o empregado, despede-o. a norma do Pas do Sol. Com Antenordepois de despedido, companheiros e patres ainda por cima tomavam-lhe birra.Por que? to difcil saber a verdadeira razo por que um homem no suportaoutro homem!

    Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:

    doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do servio eacaba no sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...

    O patro do ltimo estabelecimento de que sara o rapaz respondeu me deAntenor:

    A perigosa mania de seu filho por em prtica idias que julga prprias.

    Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?

    No. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seufilho fosse guia, quem manda na minha casa sou eu.

    No Pas do Sol o comrcio uma maonaria. Antenor, com fama de perigoso,insuportvel, desobediente, no pde em breve obter emprego algum. Os patresque mais tinham lucrado com as suas idias eram os que mais falavam. Oscompanheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia

    a triste experincia do erro econmico no trabalho sem a norma, a praxe, noconvvio social compreendia o desastre da verdade. No o toleravam. Era-lhe

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    impossvel ter amigos, por muito tempo, porque esses s o eram enquanto. no otinham explorado.

    Antenor ria. Antenor tinha sade. Todas aquelas desditas eram para elebrincadeira. Estava convencido de estar com a razo, de vencer. Mas, a razo sua,sem interesse chocava-se razo dos outros ou com interesses ou presa

    sugesto dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via.Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miservel?Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A dignssima sua progenitoradesculpava-o ainda.

    doido, mas bom.

    Os parentes, porm, no o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comrcio, aindstria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colgio, de ondefoi expulso pelo diretor; estivera numa fbrica de tecidos, forado a retirar-se pelosoperrios e pelos patres; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Emtodas as profisses vira os crculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros

    homens, o dio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisadiversa.

    Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal...

    da tua m cabea, meu filho.

    Qual?

    A tua cabea no regula.

    Quem sabe?

    Antenor comeava a pensar na sua m cabea, quando o seu corao apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antnia, filha da nova lavadeira de sua me.Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antnia. Todos viram nissomais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, aresposta de Maria Antnia foi condicional.

    S caso se o senhor tomar juzo.

    Mas que chama voc juzo?

    Ser como os mais.

    Ento voc gosta de mim?

    E por isso que s caso depois.

    Como tomar juzo? Como regular a cabea? O amor leva aos maiores desatinos.Antenor pensava em arranjar a m cabea, estava convencido.

    Nessas disposies, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quandoos seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismosdelicados de preciso". Achou graa e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.

    Traz algum relgio?

    Trago a minha cabea.

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    Ah! Desarranjada?

    Dizem-no, pelo menos.

    Em todo o caso, h tempo?

    Desde que nasci.

    Talvez impreviso na montagem das peas. No lhe posso dizer nada semobservao de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeas como os relgiospara regular bem...

    Antenor atalhou:

    E o senhor fica com a minha cabea?

    Se a deixar.

    Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo que eu no posso andar sem cabea...

    Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelo.

    Regula?

    de papelo! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o nmero de suacabea, enfiou a de papelo, e saiu para a rua.

    Dois meses depois, Antenor tinha uma poro de amigos, jogava o pquer com oMinistro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijo bichado

    para os exrcitos aliados. A respeitvel me de Antenor via-o mentir, fazer mal,trapacear e ostentar tudo o que no era. Os parentes, porem, estimavam-no, e oscompanheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.

    Antenor no pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava,adulava, falsificava. Maria Antnia tremia de contentamento vendo Antenor com

    juzo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o nodesmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posio, eram de opinio da primeiraMaria. Ele s tinha de escolher. No centro operrio, a sua fama crescia, querido dospatres burgueses e dos operrios irmos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleitodeputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da Repblica a quematacou logo, pois para a futura eleio o presidente seria outro. A sua ascenso spodia ser comparada dos bales. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra.Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.

    Passaram-se assim anos. Todos os chefes polticos do Pas do Sol estavam nadificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente danorma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Ento Antenor passeava deautomvel pelas ruas centrais, para tomar pulso opinio, quando os seus olhosderam na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memria.

    Bolas! E eu que esqueci! A minha cabea est ali h tempo... Que acharia orelojoeiro? capaz de t-la vendido para o interior. No posso ficar toda vida comuma cabea de papelo!

    Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.

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    H tempos deixei aqui uma cabea.

    No precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausncia, desde queia desmontar a sua cabea.

    Ah! fez Antenor.

    Tem-se dado bem com a de papelo? Assim...

    As cabeas de papelo no so ms de todo. Fabricaes por sries. Vendem-semuito.

    Mas a minha cabea?

    Vou busc-la.

    Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.

    Consertou-a?

    No.

    Ento, desarranjo grande?

    O homem recuou.

    Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual,como perfeio, como acabamento, como preciso. Nenhuma cabea regular nomundo melhor do que a sua. a placa sensvel do tempo, das idias, o equilbriode todas as vibraes. O senhor no tem uma cabea qualquer. Tem uma cabea

    de exposio, uma cabea de gnio, hors-concours.Antenor ia entregar a cabea de papelo. Mas conteve-se.

    Faa o obsquio de embrulh-la.

    No a coloca?

    No.

    V.EX. faz bem. Quem possui uma cabea assim no a usa todos os dias.Fatalmente d na vista.

    Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.

    Diga-me c. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvezprejudique.

    Qual! V.EX. ter a primeira cabea.

    Antenor ficou seco.

    Pode ser que V., profissionalmente, tenha razo. Mas, para mim, a verdade ados outros, que sempre a julgaram desarranjada e no regulando bem. Cabeas erelgios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu

    continuo com a de papelo.

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    E, em vez de viver no Pas do Sol um rapaz chamado Antenor, que no conseguiaser nada tendo a cabea mais admirvel um dos elementos mais ilustres do Pasdo Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabea de papelo.

    Joo do Riofoi o pseudnimo mais constante de Joo Paulo Emlio Coelho Barreto,escritor e jornalista carioca, que tambm usou como disfarce os nomes deGodofredo de Alencar, Jos Antnio Jos, Joe, Claude, etc., nada ou quase nadaescrevendo e publicando sob o seu prprio nome. Foi redator de jornaisimportantes, como "O Pas" e "Gazeta de Notcias", fundando depois um dirio quedirigiu at o dia de sua morte, "A Ptria". Contista romancista, autor teatral(condio em que exerceu a presidncia da Sociedade Brasileira de AutoresTeatrais, tradutor de Oscar Wilde, foi membro da Academia Brasileira de Letras,eleito na vaga de Guimares Passos. Entre outros livros deixou "Dentro da Noite","A Mulher e os Espelhos", "Crnicas e Frases de Godofredo de Alencar", "A AlmaEncantadora das Ruas", "Vida Vertiginosa", "Os Dias Passam", "As religies no Rio"e "Rosrio da Iluso", que contm como primeiro conto a admirvel stira "Ohomem da cabea de papelo". Nascido no Rio de Janeiro a 05 de agosto de 1881,

    faleceu repentinamente na mesma cidade a 23 de junho de 1921.O texto acima foi extrado do livro "Antologia de Humorismo e Stira", organizada

    por R. Magalhes Jnior, Editora Civilizao Brasileira Rio de Janeiro, 1957, pg.196.