O Homem Que Antecipou a Sua Morte

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I. 

O primeiro dia de Junho  

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Para a maioria das pessoas nessa cidade, o primeiro dia de Junho é um diadiferente, dedicado à alegria e diversão. Os pais mais presentes e aqueles quepor algum motivo não conseguem passar grande tempo ao lado de seus filhos,fazem desse dia uma ocasião memorável para passar algum tempo com osmesmos. Neste dia, nessa cidade em concreto, os parques estavam lotados,

crianças desfilavam pelas ruas acompanhadas por algum adulto que assegurava numa das mãos pois a outra carregava sempre balões, algodão doce,ou brinquedo qualquer.

O primeiro dia de Junho era estimado por todas as crianças naquela localidadepois durante o mesmo, era inevitável o reverendo tratamento que recebiam. Acidade estava agitada, era feriado nacional, os moradores estavam felizes, todosestavam felizes – ou pelo menos quase todos.

Dentro do meu escritório totalmente escuro, eu, calmamente passava o primeirodia de Junho. Era assim em todos os anos. Todos os anos, no primeiro dia deJunho, acordava cedo, entrava para o escritório e lá passava boa parte do dia,com as luzes apagadas e as portas e janelas fechadas, e por volta das dezhoras da noite saía por cerca de uma hora para um mesmo local infalivelmente,e sempre muito bem vestido. Esse ano não foi diferente. Estava a olhar para olado de fora a partir da janela do escritório entre as persianas, quando vi algunsdos meus vizinhos com faces ornamentadas de um sorriso radiante, brincandocom os seus filhos, alegres, aparentemente sem problemas nenhum na vida.Aquela imagem me trouxe uma recordação de quando tinha cinco anos… 

**Num dia ensolarado, meu pai, brincava comigo no jardim de um parque públicolocalizado próximo à uma floresta, e ambos apreciávamos a companhia um dooutro. Estávamos a jogar a bola quando ele decidiu se afastar por pouco tempopara comprar algodão doce. Enquanto esperava, com a minha bola vermelha namão, surge atrás de mim uma criança com idade aproximada à minha e merouba a bola, pondo-se em corrida logo em seguida. Enraivecido, e para nãoficar sem a bola, não hesitei e comecei a correr atrás daquele desconhecidopequeno insurrecto. Ao que parece, nem ele sabia para onde estava a fugir, pois

corria para frente rindo dos meus gritos  – e de mim que o perseguiadesesperado. Quando demos por nós, exaustos, estávamos dentro da enormefloresta, perdidos.

- Devolve a minha bola- Só queria brincar contigo. Você é muito sério. Toma.

Logo a seguir, enquanto eu recebia a bola, ouvimos um ruído queagoniantemente ia se tornando mais intenso. Assustados, começamos a gritarcom desespero evidente sem saber o que fazer. Era uma cobra de quase um

metro e meio com olhar mortífero e com a língua de fora. Seu corpo brilhante e

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com desenhos amarelos rastejava pelo chão em nossa direcção que agoraestávamos aos prantos imóveis. Quando a mesma se encontrava à distânciabem próxima, essa ergueu a cabeça e soltou um ruído assustador queanunciava o seu próximo golpe. Antes que tivesse tempo de atacar, a mesmaviu seu pescoço ser cortado por uma catana que veio voando em sua direcção,

sabe-se lá de onde. Entreolhamo-nos por alguns segundos e a seguir olhamospara a serpente se contorcendo no chão, sem cabeça e a catana ao lado,banhada por um líquido gosmento e aparentemente pegajoso. O meu paiapareceu do nada, a perguntar se estava tudo bem connosco.

 – Pai! Pai! – Gritei correndo em sua direcção com lágrimas nos olhos enquanto ooutro rapaz estava boquiaberto, com o corpo a tremer, supostamente sem sabero que fazer – Tu atiraste aquela catana para matar a cobra? Tu és o maior!

 – Sim filho! Fui eu.  – De seguida me abraçou forte  – O que fazes aqui? Esta

floresta é perigosa.

 – Juro que não tive culpa. A culpa foi dele… – Apontei para o vazio. O pequenoladrão já tinha desaparecido dali. De repente, confesso que senti uma enormeraiva e jurei para mim mesmo nunca sequer sorrir caso por algum azar na minhavida, voltasse a encontrar aquele rapaz maluco. Não tinha duvidas nenhumasque o odiava, e que o odiaria até o meu último segundo de vida.

**De repente voltei ao meu presente quando ouvi alguém bater a porta do meu

escritório. Eu tinha a certeza absoluta que não esperava alguém. Era assimtodos os anos, no primeiro dia de Junho: a minha secretária recebia ordens paradesviar todos os telefonemas, ninguém era autorizado a entrar em casa, e todosos meus amigos sabiam que nesse dia não atendia ninguém. Quem seria então,se até os guardas tinham ordem para não deixar que quem quer que fosse, meperturbasse? Logo a seguir, ouvi a voz dos guardas, do outro lado da porta adizer:

 – Senhor, com todo o respeito que temos por si, não nos obrigue a lhe tirar daquicom violência. Só estamos a cumprir ordens.

 – Ordens? – Perguntou uma voz que não reconheci à primeira. – Já que gostamtanto de ordens, obedeçam essa: – Vão se lixar. Eu vou entrar nesse escritório.

Logo em seguida, ouviu-se um ruído estaladiço que durou apenas um segundo,sucedido pelo som da queda de um corpo ao chão.Confuso e curioso, saí da janela, caminhei até a porta para saber o que sepassava, a destranquei e a abri. Quando o fiz, vi dois dos meus seguranças eum homem corpulento deitado no chão, imóvel.

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  – Sim, como por exemplo limpar as calças que àquela altura estavam molhadas,de tanto medo que tinhas.

E o resto do dia foi assim, tivemos uma longa conversa sobre o nosso passado.

Ronaldo era o menino insurrecto ao qual tinha prometido odiar para o resto daminha vida. Parece que não temos tanto poder sobre o nosso destino às vezes.

Chamo-me Carlos Artur, filho de uma humilde família que desde novo meensinou o valor da boa educação e da importância do amor na vida. Cresci comos meus pais numa comunidade muito pobre e, depois que a minha famíliafinalmente começou a enriquecer, mudamo-nos dessa comunidade para agrande cidade, onde o meu pai montou a sua pequena empresa, que hoje é umadas maiores do país, com filiais em oito países espalhados pelo mundo.Quarenta e três, é o número de velas que provavelmente apagaria nesse ano e

enfim, quem sabe possa viver um pouco mais que o meu pai, que infelizmentefaleceu com quarenta e quatro, no auge da sua carreira profissional. Depois dasua morte, além da instrução que recebia dele  – pois já previa que eu seria oseu sucessor  – recebi uma instrução bem mais sólida numa Universidadeconceituada fora do país, para assumir o controle da empresa. Modéstia à parte,o meu reinado na empresa trouxe mais dinamismo. A empresa produziu mais, oque implica que lucrou mais. Meu pai nunca engoliu a possibilidade de estenderfiliais pelo país afora, pois apesar de os lucros serem grandes, ele não gostavada sensação de ter que controlar um empreendimento distante de si ou dedeixar nas mãos de estranhos. Eu o fiz.

Não sou alto nem baixo, meus olhos são castanhos, numa tonalidade muitoescura, minha pele é muito bem tratada e evidencia que a velhice não meapanhará tão cedo. Não fumo, não bebo, não uso drogas. Pele clara, abdómenbem definido era o que me incluía nos interesses do mundo feminino.Normalmente as mulheres com quem saio, elogiam o meu porte físico, charme,carisma e habilidade com palavras, e eu me orgulho disso pois era exactamenteo que era o meu pai enquanto vivia e tinha idade aproximada à minha. Sou umhomem extremamente rico, popular por causa da empresa e vivo numa mansão

sozinho. Tenho os melhores carros, posso comprar o que quiser e bem entendersempre, mas com o meu pai aprendi a não deixar o dinheiro me dominar demaneira alguma. Portanto, mantenho-me humilde, religioso e todos os mesesfaço uma doação de cinquenta mil dólares que se destina à diferentesinstituições de caridade. Ronaldo é o amigo que eu mais confio. Está sempre domeu lado, não me bajula, é totalmente diferente de mim e além disso, se opõe àmim de qualquer forma quando de alguma forma estou errado. Ele é o Director-Geral da minha empresa. Confiei-lhe tal cargo porque sei que merece.

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 Nunca cheguei a me casar, mas já há aproximadamente três anos que venhovivendo um romance intenso com Trina De Albuquerque, uma deslumbrante

 jovem de 23 anos que apesar de ser bem mais nova que eu, sabe o que quer davida, não se importa com o que eu possuo e me apoia sempre que possível.

Trina é doce, meiga e de uma família muito humilde também. Loira, cabeloslongos e suaves, pele macia, corpo esguio mas sensual. Suas feições sãodivinas, seus lábios rosados, pequenos e atraentes, olhos azuis e um andar deanjo. Conhecemo-nos em Paris, durante o festival de Cannes, a minha empresaera uma das maiores patrocinadoras e portanto eu lá fui para a representar etambém para encontrar com amigos meus realizadores e actores, que já não viahá muito tempo por causa dos filmes que haviam vindo a gravar ultimamente.

**Lembro-me ainda que estava, durante um dos dias do festival, a conversar com

André Mendes – realizador brasileiro – quando ele começou a falar sobre o seufilme que por acaso tinha uma história muito interessante mas que com maiorpatrocínio ele conseguiria fazer algo maior e melhor. Confesso que estava apensar na possibilidade de aceitar, mas quando ele me apresentou Trina comoactriz principal, senti-me eufórico e me ofereci a patrocinar o filme. O que maisgostei nela é que ela não usava sua beleza para seduzir homens, elasimplesmente era ela mesma. Misteriosa, calma, com um sorriso lindo. Àprincípio nos tratamos muito formalmente e não pude ver nela algum interessepor mim que não fosse profissional. Era a primeira mulher que aparentementeresistiu ao meu charme. Convidei-a para jantar três vezes. Na primeira ela

aceitou e mostrou ser uma mulher de família, super-educada e discreta. Asegunda vez, rejeitou, justificando que tinha compromissos importantespreviamente agendados mas que poderia ficar para outra ocasião. Eu queriadesistir mas não conseguia. Convidei uma terceira vez e ela aceitou. Nesse dia,ela não apareceu. Saí frustrado do restaurante depois de ter esperado uma horapor ela e à caminho de casa vi alguém me fazendo sinal para parar. Era umamulher, ao lado de um carro. Só podia ser obra do destino. Era Trina,desesperada, dizendo que o seu carro avariou à caminho do restaurante e o seumóvel ficara sem bateria. Disse-lhe que a minha casa se localizava a algunsquarteirões não muito distantes dali e lhe ofereci uma boleia até lá. Chegando lá,

os empregados se encarregaram de preparar um banho para ela, visto que setinha sujado tentando arranjar o carro. Após o banho, foi improvisado um jantarem minha residência mesmo, comemos, conversamos, tentei beijar-lhe e ela nãoaceitou. Sentiu-se ofendida e queria ir embora. Eu pedi imensas de desculpas edisse que era tarde para ela sair sozinha. Ela insistiu e eu mandei o meumotorista lhe levar para casa, sem outra opção. No dia seguinte mandei florespara a casa dela e ela não deu nenhum sinal. Foi duro ter de suportar aquilo. Eupodia sair com mulheres mais fáceis e mais maduras que aquela criança, masnão a conseguia tirar da cabeça. Um dia, convidei-lhe para caminhar no parquee ela aceitou. Durante a caminhada, ela me confessou que apreciava coisasmais simples assim, e que com os jantares em restaurantes caros que eu

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tentava a proporcionar, só me afastava mais dela pois sentia que o seu meionão era estar encurralada em etiquetas mas sim ar livre e planos bem maissimples.

Desde então, passei a optar por convites mais simples e ela aceitava sempre.

Fizemos piqueniques em parques, fomos assistir jogos de futebol sentando-nosnas bancadas do povo  – quando eu podia arranjar bilhetes até sentado ao ladodo treinador de uma das equipas se quisesse  – visitamos zoológicos, fizemospasseios de bicicleta e muitas outras coisas simples mas divertidas. Com opassar do tempo, fomos nos tornando mais chegados e eu fazia questão deassistir a todas as filmagens do filme de André Mendes no qual ela era a actrizprincipal. O inesperado aconteceu no dia da quinquagésima sétima gravação,em que ela, no seu papel de Elisa, chorava por ter sido abandonada pelonamorado. Parecia real, ela era uma óptima actriz, conseguia passar a emoçãopretendida aos espectadores. Esse filme seria um sucesso. Depois da gravação,

ela que normalmente ia directamente para o camarim, dessa vez veio em minhadirecção, me abraçou forte e sussurrou no meu ouvido: “Leva -me para qualquerlugar”. Aquilo espantou-me, mas era o que eu mais esperava. Não havia sombrade dúvidas, que eu estava realmente apaixonado. Até já me tinha conformado.Saímos dali e fomos para a praia, sentamo-nos na areia e começamos a olharpara a lua. Parece que nossas almas instantaneamente se conectaram, ambosolhamos para os olhos um do outro, e nos beijamos. A nossa história de amorcomeçou ali.

**

Eram nove horas da noite e Ronaldo tinha adormecido no divã, a roncar quenem um porco. Saí calmamente do escritório, vesti o meu sobretudo preto e saíde casa. Do lado de fora, a ventania se fazia sentir sem grande intensidade e océu estava escuro e limpo. Entrei no BMW 528i dourado e acelerei fundo rumoao meu destino. Depois de alguns tantos quilómetros percorridos, eis que atinjoo meu destino: O cemitério. Entrei com uma única flor na mão e caminhei pelocaminho que bem conhecia, que me levava ao túmulo do meu pai. Chegando lá,pousei a flor e fiquei a reflectir sobre o nosso passado durante cerca de umahora, antes de voltar para a minha residência.

A maior parte das pessoas que me conhece de verdade sabe o motivo para eudetestar tanto o primeiro dia de Junho. Esse foi um dia que já fez muito sentidoquando era mais pequeno. Este, que já foi o dia que me fazia sentir criança deverdade, passou a ser o dia que me tirou a infância, com a morte do meu paidiante dos meus olhos. O meu pai morreu de alguma doença qualquer quenunca cheguei a saber. As notícias dos jornais, na altura da morte, davam comocausa da morte, um cancro. Meu pai foi o último dos seus irmãos a morrer.Nunca os pude conhecer. Morreram todos muito jovens, por razões pelas quaisnunca cheguei a me interessar.

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 Ronaldo é meu amigo desde tenra idade, por isso, assim que assumi o controleda empresa, a primeira coisa que fiz, foi lhe dar poder, pois sempre estiveconvicto que nele posso confiar cegamente, mais do que qualquer outra pessoa.Sempre foi um profissional excelente, sabendo sempre distinguir a nossa

amizade do trabalho, sempre competente e nunca me deu razões de queixa.Desta vez, me tinha dado uma ideia esplêndida. Sugeriu que eu pedisse Trinaem casamento e que a levasse para Portugal para a apresentar à minha mãe.Estava tudo preparadíssimo e ela parecia Eufórica para a conhecer, suaprovável futura sogra. Eu também estava excitado com aquela viagem queestava prestes a acontecer. Era sempre um prazer voltar a ver a minha mãe.Dentro de dois dias, eu e Trina estaríamos a viajar para Portugal.

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II. 

As Férias mais sombrias  

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O segundo dia de Junho era sempre um tédio, pois tudo o que ficou pendente eacumulado no dia anterior, me invadia inevitavelmente. O dia estava horrível,com milhares de tarefas para cumprir, e parecia que as horas nunca mais seesgotavam. Ainda assim, durante aquele dia horrível de trabalho, marquei umaaudiência com Ronaldo e lhe pedi que na minha ausência, tomasse conta de

tudo. Falei-lhe do contracto multimilionário que a nossa empresa estava prestesa assinar com uma empresa Japonesa  – contracto esse que valeria milhões dedólares só pela assinatura, e um incremento de cerca de 25% nos actuais lucrosda empresa, que já não eram poucos  – e que o incumbia de tamanharesponsabilidade, pois só nele podia confiar. A princípio ele ficou apreensivo,mas depois se mostrou lisonjeado pela confiança que depositava nele e até meabraçou forte, me chamando de irmão, logo em seguida.

O resto do dia foi calmo, jantei com Trina em minha casa e acabamos deitados

na minha enorme cama de casal, abraçados e a fazer planos para a viagem quese avizinhava. Naquele instante falamos de muita coisa, inclusive dos nossosmedos. Eu amava Trina pois ela era uma mulher diferente e forte, via sempre olado positivo nas coisas e conseguia sempre recuperar de acontecimentos que aabalavam com uma naturalidade impressionante. Quando mais nova, elapertenceu a um orfanato, segundo ela, e lá foi muitíssimo bem tratada, apesardas poucas condições que aquele lugar possuía. Quando foi adoptada, aoscatorze anos, pela sua humilde actual família, ela prometeu que ajudaria oorfanato sempre que pudesse. Daí, tornou-se actriz e, sempre que podia,visitava o orfanato e oferecia algum dinheiro para eles. Quando passei a saber

dessa história, numa das vezes em que saímos juntos, decidi que além dasinstituições de caridade que aleatoriamente escolhia para doar dinheiro,obrigatoriamente mandava sempre muito dinheiro para aquela instituiçãotambém, e segundo ela, nunca soube o que fazer para me agradecer por tanto.Simplesmente disse que o fiz porque a amava.

O dia da viagem não demorou muito a chegar. Horas antes da viagem, Ronaldofoi me buscar em casa, com o seu enorme Escalade  preto personalizado com

 jantes pretas. Ele era bem maior que eu, com um porte físico mesmo enorme.Sua barriga era bastante saliente, suas pernas, braços e mãos eram muito

grandes. Lábios grossos, pele escura, calvo, voz grossa, esse era o meu“grande” Ronaldo. Era por possuir aquele porte físico que nunca me sentiameaçado quando com ele caminhava na rua quando mais novo.

Após termos pousado todas as minhas malas no carro, fomos buscar Trina, queestava deslumbrante. Vestia uma camisa azul com colarinho, aperta com carcelade botões, peitilho arredondado e ligeiramente franzido, com manga compridacom punho e botões, bermudas de cor branca com pequenas rachas laterais nabase, usava óculos de sol e

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calçava sandálias azuis que realçavam os seus lindos pés pequenos. Beijeiassim que a vi, e a ajudei a colocar as malas no carro de Ronaldo, antes desairmos dali, rumo ao aeroporto.

No caminho, Ronaldo disse:

 – Já reservei tudo, vocês serão muito bem recebidos. Haverá um motorista lá àvossa disposição 24/24 que vai vos levar para onde quiserem. Desfrutem daviagem ao máximo possível e não tenham pressa de voltar.

 – Obrigado mano. És mesmo grande. – Retruquei enquanto acariciava as mãosde Trina.

 – Sim, sim, já sei que sou grande. Trata bem da Trina, e manda um abraço do

meu tamanho para a tua mãe. Diz à ela que quando puder, eu vou para lá lhevisitar.

Fizemos tudo como devia ser, fizemos o check-in e esperamos até à hora dovoo. A minha empresa tinha um avião particular à minha disposição, massempre gostei de preservar o meu lado de cidadão comum. Os nossos bilhetesde passagem eram para a primeira classe, onde fomos muito bem recebidos  – ereconhecidos pela posição que ocupávamos na sociedade. A viagem prometiaser longa. Segurei a mão de Trina, ela sorriu para mim, eu retribuí o sorriso e abeijei suavemente. O avião descolou.

**Há cinco anos, depois de Trina ter participado num filme, em que tinha o papelde uma adolescente meiga e que amava a natureza, muita gente  – incluindorealizadores e simples amantes de filmes  – ficou de olhos nela, pois sabiarepresentar perfeitamente o seu papel, tinha uma beleza inquestionável e umcarisma bastante interessante. Uma dessas pessoas que esteve de olhos nela,era um rapaz rico que pagou um bilhete muitíssimo caro para sentar ao seu ladodurante um festival de cinema que ocorria em Roma. Ele confessou-lhe que o

seu desejo era a conhecer e que tinha viajado até Roma para tal, uma vez queleu na internet que ela lá estaria. Trina tinha dezoito anos, e portanto, achouaquilo estranho, mas também gostou da ideia de ser famosa e reconhecida atéaquele ponto. Na mesma noite, aceitou conhecer o rapaz, que era um ou doisanos mais velho que ela, só que depois se aborreceu facilmente com ele, poisfalava muito e mais do que devia, enquanto ela só estava a tentar prestar aatenção ao que as pessoas no palco diziam. Ele foi tão chato e falador, que elanem conseguiu ouvir quando a nomearam “Actriz Revelação”. Teve de serchamada duas vezes, e só na segunda ouviu. Desde então, decidiu se afastardaquele rapaz o máximo possível, mas era irritante pois ele mandava milhares

de e-mails que ela não respondia, procurava sempre ir aos mesmos eventossociais que ela participava e enfim, havia se tornado extremamente obcecado e

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chato. Num certo dia, após uma entrevista dela num programa de televisão, elefez um escândalo. Aproveitou-se do facto de o seu pai ser dono da cadeiatelevisiva, entrou inesperadamente no estúdio enquanto o programa decorria aovivo e se declarou para ela, pedindo-lhe em casamento logo em seguida. Trinaficou irritada com aquilo e saiu do programa muito alterada sem nem dizer nada.

Do lado de fora, subiu no seu carro enquanto algum pessoal da produção iaatrás de si pedindo calma, desculpas, e prometendo que a situação já estariaresolvida. Ela não deu ouvidos, colocou o sinto de segurança, e saiu daquelelugar numa velocidade impressionante. Para o seu total desconforto, eis que derepente aparece atrás de si, um carro inquestionavelmente mais rápido que oseu, se aproximando a medida que o tempo passava. Era um Ferrari amarelo.Segundo ela, a princípio pensou que fosse mais um desses homens que nãopode ver alguém a andar em alta velocidade na estrada que já quer algumdesafio para ver quem é mais rápido. Ela simplesmente ignorou. O Ferrari se

aproximava e soava a buzina a medida que o fazia. A buzina era irritante paraela, principalmente naquele estado de espírito em que se encontrava. Encostouo seu carro mais à direita da faixa de rodagem e reduziu um bocado avelocidade, para ver se o condutor do Ferrari passava de uma vez por todas e adeixava em paz. Engano seu. Para o seu azar, o condutor do Ferrari era o jovemrico que invadiu o programa de televisão para se declarar. Ela abriu o vidro doseu lado e pediu que lhe deixasse em paz e ele retrucou que não a deixaria poisela era tudo que ele queria.

Infelizmente ele passou de “apaixonado” para “psicopata” e logo começou a

encostar o seu carro ao dela, obrigando-lhe a encostar cada vez mais da parededa auto-estrada. Ela aumentou a velocidade mas era inútil pois o carro dele eraindubitavelmente mais rápido que o seu, e portanto, não se cansava de seaproximar. O pânico começou quando ele tirou uma arma do carro e num tomautoritário gritou para ela e ordenou que parasse o carro para explicar o quesentia por ela, soltando uma palavra nada bonita a seguir para lhe descrever.Irritada, ela pisa fundo no travão quando ele estava decidido a lançar o seu carrocontra o seu. Foi rápido. Ela travou o carro, o que fez com que o acto homicidado rapaz, fosse só suicida. Apenas ele foi contra a parede com força e talvezfosse a velocidade que facilitou a capotagem do carro, ali mesmo. Em total

estado de choque, ela parou o carro ali mesmo, colocou um triângulo à algunsmetros de distância, e ficou sentada com as mãos na cabeça aos prantos atéque alguém a fosse socorrer. O rapaz morreu, a polícia a interrogou, ela foi dadacomo inocente e teve de fazer uma terapia de um ano com um psicanalista pararecuperar do trauma.

**

Longas horas de voo se passaram e lá estávamos nós, no aeroporto de Lisboa,a carregar as nossas bagagens pelo chão liso do aeroporto até termos sidoidentificados por um homem de fato que prontamente nos fez sinal assim quenos viu. Ele apresentou-se como o motorista que Ronaldo

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tinha mandado para nos apanhar. Gostei do homem. Não vi nada de suspeitonele, e além disso era educado.

Hospedamo-nos num hotel de cinco estrelas chamado “Pestana Palace”, muitobem escolhido por Ronaldo, pois tinha um ambiente mesmo agradável, desde o

saguão ao último infinitésimo de porção daquele lugar. A suite era extremamenteconfortável, e após ter ligado para a minha mãe a avisar que já me encontravaem Lisboa, eu e Trina entrelaçamo-nos na enorme cama do hotel, dissipando assaudades que nos dominavam e gozando ao máximo daquelas férias quecertamente mudariam o rumo de nossas vidas.

No dia seguinte, vestidos à maneira, fomos com o motorista até à casa da minhamãe. Pelo caminho pudemos reparar a beleza da cidade, as pessoas bonitasque circulavam pelas ruas, as estradas largas e as paisagens que às vezes sepunham a aparecer sem timidez alguma, revelando sua beleza e originalidade.

Chegamos finalmente à mansão onde vivia a minha mãe, uma residênciaenorme com um vasto gramado verde vivo, com flores de diversas cores eárvores de diversos tamanhos. Depois de passar o portão principal, o carrosubia devagar pelo caminho asfaltado, que levava até ao topo do lote, onde seencontrava a residência. Vimos uma dúzia de trabalhadores alegrestrabalhando, uns regando o jardim, outras jovens devidamente uniformizadassaindo da residência carregando toalhas brancas na mão, entre outrosexecutando outras diversas tarefas. Na porta de madeira que dava acesso àresidência, estava a senhora idosa (mas em forma) de sessenta e nove anos deidade  – Eulália Artur  – minha mãe, com um vestido comprido azul de alças,

calçava as famosas “sabrinas”, tinha óculos escuros e um enorme chapéu nacabeça sofisticadamente feito à palha, nos esperando com um sorriso radianteno rosto. O carro finalmente parou, eu fui o primeiro a descer para abrir a portapara Trina, que desceu sem cerimónias e com um igual lindo sorriso no rosto.Sem hesitar, peguei na sua mão e a levei até minha mãe. Apresentei-lhes epareceram ter tido uma óptima primeira impressão uma da outra, o que também

 já era previsível, visto que as duas eram mulheres fantásticas, ao meu ver. Deium forte abraço à minha mãe e confessei que estava com imensas saudades.Fomos convidados a entrar, onde nos esperava uma farta mesa para o almoço.A casa era muito agradável. Cheirava a incenso, tinha imensas janelas, de

maneira que se sentia em proximidade com a natureza lá fora, o chão era demadeira castanha e em algumas partes da casa havia carpete sobre o mesmo.Antes da refeição, minha mãe levou Trina para a cozinha, pois estavaempolgada para mostrar tudo e falar sobre coisas de mulheres. Comecei a sentiruma ligeira dor de cabeça mas não liguei muito. Não devia ser grande coisa.

Durante o almoço, falamos de muita coisa e até experimentamos uma receitatradicional que minha mãe fez questão que comêssemos. Foi

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esplêndida. Amei. Disse à minha mãe que eu estava com planos de casar comTrina e ela se mostrou muito entusiasmada com a ideia. De repente, o meutelemóvel começou a tocar, era da empresa e eu decidi não atender. Quandotocou pela segunda vez, Trina disse que não se incomodaria se eu atendesse,pois podia ser importante, e a minha mãe amou aquela atitude dela. Decidi

atender.

Quando anoiteceu, voltamos para o hotel e prometemos à minha mãe voltarpara a sua casa. Já na suite, enquanto me preparava para tomar banho, Trinadisse que notou que estava estranho e perguntou o que se passava.

 – Lembras do telefonema que recebi hoje da empresa? Era do Rómulo, o chefeadministrativo. Ele me disse que foi desviado um milhão de dólares da empresamas eles conseguiram fazer o rastreamento.

 – E descobriram para onde foi?

 – Sim. Para onde menos esperava. Para a conta do Ronaldo. Não acredito queele me possa ter traído assim. Ele nunca precisou me roubar.

 – Calma, Carlos – Retrucou ela me acariciando  – Não entres em pânico agora.Se calhar pode ter havido algum erro. Alguma armadilha ou qualquer coisa queprejudique Ronaldo. Não deves colocar a vossa amizade em risco desse jeito.Se calhar devias tentar ouvir o que ele tem a dizer sobre isso e só depois julgar.

 – Tens razão. Vou ligar para ele amanhã cedo. – Afirmei, mais calmo, embora ador de cabeça se tivesse intensificado.

A noite demorou a passar e finalmente quando os primeiros raios de sol sefizeram presentes, eu me levantei calmamente da cama pois Trina ainda dormiaque nem um anjo, caminhei até à pequena varanda e liguei para Ronaldo.Chamou muitas vezes e ninguém atendeu. Tentei uma segunda vez e aconteceua mesma coisa, até deixei uma mensagem de voz pedindo que ele me ligasseassim que pudesse. Impaciente, tentei uma terceira vez e dessa vez era a vozda mulher da companhia telefónica dizendo que aquele número estava

desligado. Não sabia mais o que fazer, queria muito acreditar no Ronaldo, masas evidências tendiam a me levar pensar o contrário. Confuso, me sentei napoltrona da suite e fiquei muito pensativo, dando a possibilidade de inúmerospensamentos passarem pela minha mente numa velocidade incrível. Sem meaperceber da sua presença, senti a mão de Trina na minha cabeça e a sua vozperguntando porquê que tinha acordado tão cedo, uma vez que estávamos deférias. Ela estava ali, sensual e coberta apenas pelo roupão amarelo que nemestava apertado.

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 – Tentei ligar para o Ronaldo – Fiz uma breve pausa para olhar bem o seu rosto – E ele não atendeu.

 – De novo, amor?  – Mostrou-se um bocado incomodada mas era aprimeira vez que me tinha chamado de amor  – Hoje não é o dia do contracto

com a empresa japonesa? Se calhar ele deve estar a se preparar para areunião.

 – Tens razão. – E de facto tinha.

 – Levanta-te. Vamos sair e conhecer a cidade e depois jantar em casa da tuamãe. Amei ter-lhe conhecido.

Fiquei feliz. Aquele parecia mesmo ser um dia que prometia surpresas muitoagradáveis. Preparamo-nos, tomamos o pequeno-almoço e logo a seguir

desfrutamos o resto do dia em diversas actividades. Visitamos o famosoColombo , gostamos do que vimos, Trina ficou deslumbrada com oOceanário de Lisboa , tiramos muitas fotos no Castelo de São Jorge  e no Aqueduto das Águas Livres, terminando o nosso passeio pela Torre de Belém,ao pôr-do-sol. Depois do longo e exausto dia de passeio, decidimos voltar para ohotel, para trocar de roupa e ir à casa da minha mãe.

Após o meu banho, estava a tomar café na suite do hotel enquanto esperavaTrina acabar de se preparar quando recebi um telefonema de Rómulo, mais uma

vez. Achei estranho. Atendi.

 – Rómulo, dê-me boas notícias. – Gostaria, senhor. Gostaria imenso mas as coisas não estão no seu melhor poraqui.  – Retrucou ele com um ar aparentemente preocupadíssimo, como se mequisesse dizer algo.

 – O que aconteceu? – Perguntei tenso.

 – Esse é o problema, não aconteceu nada. Ronaldo não apareceu a tempo e os

homens do Japão saíram daqui irritadíssimos, cancelaram o contracto com aempresa e ainda tive de ouvir uma ofensa dita por um japonês, em portuguêstotalmente deficiente. Ninguém merece. O senhor precisa voltar pois as coisasestão a sair do controle. Ronaldo não está bem.

 – Obrigado Rómulo. Quero que sejas os meus olhos e ouvidos naquelaempresa. Saberei te recompensar por isso.

Logo a seguir, tentei novamente ligar para Ronaldo e ele não atendia. Fiquei

irritado e deixei cair a chávena de café. Trina finalmente apareceu

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pronta e me deu um abraço. Ela me pediu que por algum instante tentasseesquecer o trabalho, por ela, e que nós viajamos para nos divertir.

 – Mas Trina. Esse problema é urgente.

 – E eu não?  – Perguntou ela num tom elevado  – Você me trouxe aqui paraacompanhar o teu stress por causa do serviço?

 – Por favor Trina, deixa-te disso. – Falei-lhe furioso e num tom mais elevado queo dela – Não consegues ver o que está a se passar? O meu melhor amigo estáa me apunhalar pelas costas, com o meu dinheiro e afundar a minha empresa.Queres que eu fique calmo?

 – A tua mãe está a nossa espera… – Esta foi a última frase da noite que eu ouvida boca dela, para além dos soluços que ela teve para tentar conter o choro.

O resto da noite foi estranho. Ela não me dirigia a palavra mas falava lindamentecom a minha mãe. Eu estava naquela mesa pensativo e nada mais parecia fazersentido. Tinha raiva de tudo. Anunciei às duas que havia uma emergência pararesolver, portanto marquei uma viagem com bastante urgência para a manhã dodia seguinte. Trina detestou a ideia e se viu logo pela expressão facial dela.Minha mãe disse ter ficado triste porque estava mesmo a gostar da nossaestadia em Lisboa, perto de si, mas eu prometi que voltaríamos assim que asituação na empresa estivesse resolvida por completo. De repente, a dor decabeça se intensificou, tentei ignorar mas alguns segundos depois estava

desmaiado no chão sem conseguir me mexer, embora estivesse com os olhosabertos. Pude ver minha mãe entrar em pânico e Trina chorar de desespero agritar por ajuda.

Fui socorrido por um dos empregados da casa e finalmente pude melhorardepois de algum tempo. Fui deitado no sofá com algumas almofadas debaixodos meus pés esticados, enquanto Trina passava sua mão pela minha cabeça.

 – Eu estou bem.

 – Não, não estás! – Retrucou a minha mãe. – 

Já te disse que sim, estou bem.

 – Pára! Pára! Pára! Pára com isso  – Começou a gritar histericamente a minhamãe, e eu e Trina não entendemos. Ela começou a chorar  – Filho, o teu pai teveos mesmos sintomas antes de morrer, eu insisti que ele não estava bem, e comose fosse um dejavu, ele respondeu exactamente da mesma forma comorespondeste agora. Viste o que aconteceu? Perdi-o

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porque ele não procurou se tratar por achar que estava tudo bem. Ele tinhaexactamente a tua idade. E o mesmo aconteceu com o irmão dele. Morreu coma mesma idade.

 – Achas que isso pode ser alguma doença hereditária?  – Interferiu Trina

assustadíssima.

 – Não sei filha, mas aconselho a procurar o médico de família com extremaurgência assim que vocês voltarem para lá para resolver os problemas daempresa.  – Disse a minha mãe me passando um cartão de visita em seguida.Dr. Júnior André. – Eu te aconselho a procurar por essepois ele já estudou alguns casos da família e além disso um outro médicoqualquer poderia deixar vazar a informação e te comprometer.

Assenti preocupado e logo que recebi o cartão, o coloquei no bolso da minha

camisa. Ficamos mais cerca de trinta minutos na companhia da minha mãe, edepois decidimos ir embora porque viajaríamos cedo. Trina de facto é uma

  jovem excepcional, diferente das outras. Ela é sincera, transparente, expressasempre as suas emoções e não tem medo de dizer o que pensa. Era a únicacoisa que me motivava a não perder a cabeça enquanto tudo aquilo acontecia.Pedi-lhe desculpas por ter sido tão rude com ela no quarto do hotel e elarespondeu que entendia aquilo, e que me amava muito. Ao caminho de casa,numa das avenidas da cidade de Lisboa às onze horas da noite, paramos diantede um semáforo que tinha a luz vermelha acesa. Ao nosso lado, pararam maisdois carros e deles desceram homens carregando martelos grandes e uns com

pequenos revólveres na mão. Vinham em nossa direcção. Trina pegou firme naminha mão e começou a ficar assustada. Um deles deu uma martelada no vidode trás, exactamente do lado de Trina e ela entrou em pânico, soltando gritos. Ovidro não partiu. Imediatamente, dei ordens ao motorista para nos tirar daquelelugar e ele obedeceu prontamente acelerando à todo gás entrando no primeirocruzamento à nossa frente, para evitar que fôssemos atingidos por balas. Ochiado dos pneus eram resultado das curvas apertadas que ele fazia entreaquelas ruas àquela hora da noite para despistar. O velocímetro atingia osoitenta quilómetros por hora e às vezes reduzia nas curvas. A cidade passavapor nós em vultos e os nossos corações pareciam bombas prestes a explodir.

Finalmente chegamos ao hotel. Pedi que ele estacionasse o carro bem longedali depois de descermos, para não atrair atenções inesperadas. Subimos oelevador do hotel e logo que entramos na suite, Trina começou a chorar igual auma criança. O pior é que ela tinha razão, a culpa era toda minha. Ela nãomerecia passar aquilo por minha causa. Só consegui lhe garantir que tudo iriaficar bem e que ela já não se precisava preocupar. Ela me fez lembrar do traumaque ganhou ao ser perseguida pelo seu fã psicopata. Ela passou toda a noiteagarrada à mim na cama. No dia seguinte, fomos ao aeroporto, e voltamos deonde viemos.

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III. 

Huntington  

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A primeira coisa que fiz ao chegar à casa foi tirar o cartão de visita do médicoque a minha mãe recomendara. Li-o antes de ligar: “Dr. Júlio  André ”. Chamoualgumas vezes e uma voz sólida, porém velha atendeu do  outro lado da linha.

 – Dr. Júlio André…

 – Boa tarde Doutor. O senhor talvez não me conheça, o meu nome éCarlos Artur…

 – Conheço-te perfeitamente. Teu pai foi meu paciente e me falava muitode ti nas consultas que fazia comigo.  – Tossiu duas vezes e prosseguiu  – Na

verdade, estava mesmo a espera que me ligasses, mais cedo ou mais tarde.

 – Como assim? A minha mãe falou consigo? – Perguntei desconfiado.

 – Não. Porque eu tinha a certeza que ela te daria o meu número assim que… –  Fez uma breve pausa e mudou o tom de voz, para um mais aterrorizante  – Você

 já começou a sentir as dores de cabeça?

Demorei para responder porque nada daquilo fazia sentido. Ele perguntou seainda estava em linha e eu, assustado respondi que sim. Ele voltou a perguntar

se já tinha começado a sentir as dores de cabeça e eu respondi que era melhorfalarmos pessoalmente. Ele assentiu e marcou o encontro para as primeirashoras da manhã do dia seguinte, pois eu devia estar exausto. Eu concordei edisse que não iria faltar ao encontro. Desliguei o telemóvel e comecei a terligeiras dores de cabeça. Mas o que se estava a passar comigo?

Adormeci na minha cama e só voltei a acordar três horas depois com o toque domeu telemóvel que se encontrava na cabeceira. Era Rómulo. Atendi.

 – Soube que o senhor já se encontra aqui novamente. Como correu a viagem?

 – Correu muito bem, Rómulo. Obrigado pela preocupação. Tens algumanovidade?

 – Tenho sim, senhor. – Respondeu ele aflito – O Sr. Ronaldo viajou com o aviãoda empresa para Portugal, ontem à noite.

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Tive de me conter enquanto falava com Rómulo ao telemóvel e prometi passarna empresa no dia seguinte.

Quando desliguei o telemóvel, fiquei irritadíssimo e pus-me a gritar e a partircoisas no quarto. Parti perfumes, candeeiros, atirei a estante de livros para o

chão. Parecia um louco, não conseguia conter a minha raiva. Queria acordardaquele pesadelo o mais rápido possível. Terminei uma garrafa de whisky emcerca de dez à quinze minutos e acabei atirado ao chão, totalmente desgraçado.

A manhã seguinte chegou fria, e prometia fortes acontecimentos. Quandoacordei, estava deitado no chão, com uma garrafa de whisky vazia do meu ladoesquerdo, uma imensidão de coisas espalhadas no chão, entre elas, os meuslivros preferidos. Levantei-me com uma dor de cabeça insuportável, sem melembrar de quase nada do que havia acontecido no dia anterior, apenaspequenos flashes de memória ainda se faziam sentir. Tentei caminhar até a

casa de banho arrastando os meus pés pelo chão, me apoiando no que podia eevitando pisar em algum dos cacos escondidos no chão. Demorei paraconseguir alcançar a porta da casa de banho porque ainda não conseguiacontrolar bem o meu corpo. Quando abri a mesma caí no chão por falta deequilíbrio. Deitado no chão, arrastei-me pacientemente até a banheira e fiz umenorme esforço para abrir a água e deixá-la jorrar. Voltei a me deitar no chão, dealívio. Agora só faltava conseguir entrar para a banheira.

Eu estava com uma aparência miserável. Meus olhos estavam inchados, meucabelo despenteado e a minha cabeça às marteladas de tanta dor. Tomei um

banho de sacrifício e me vesti de maneira bem simples. Vesti uma camisetaverde escura de mangas compridas, calças  jeans pretas e ténis pretos também,e ordenei que o motorista me levasse até ao consultório do doutor Júlio.

Era uma rua estreita, com apenas um sentido. Pouca gente passava por ali.Olhei novamente para o cartão e vi o número do consultório. Caminhei até aporta correcta e bati duas vezes. Esperei durante alguns segundos e eis que umsenhor idoso abriu a porta.

Era um homem de baixa estatura, totalmente magro, com uma cabeça grande,

pele enrugada, corpo curvado para frente com óculos enormes na cara, vestindocalças caqui brancas e uma camisa velha de cor verde já a desgastar. Suaimagem era assustadora. Parecia na casa dos oitenta e cinco. Ele levou a suamão fria com dedos finos e compridos à minha face e disse:

 – És mesmo filho do Artur. Quanta honra. Entre por favor.

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Entrei sem cerimónias, e passando pelo corredor estreito, fui dirigido até umquarto com pouca iluminação, cercado de estantes de livros, uma escrivaninhavelha com alguns livros por cima, um estetoscópio, um candeeiro, algumasfolhas de papel, um copo que continha variadas canetas, uma chávena de caféquente, algumas radiografias de um crânio qualquer e um par de óculos de

leitura por cima delas. A sala cheirava a medicamento, cheiro que para ele deviaser o paraíso e para mim era nauseabundo. O chão de madeira soltava ruídos àmedida que se pisava nele e as paredes cremes pareciam gastas. Haviam aindaespalhadas no chão, algumas caixas empilhadas, como se estivesse a fazermudanças, ou talvez armazenando livros que não couberam nas estantes dedois metros. Havia um divã no meio do quarto e uma pequena poltrona de couro

 já descascada do lado. Convidou-me a deitar no divã e após hesitar um bocado,o fiz. Ele sentou na poltrona ao lado do divã e começamos a conversar. Ao meioda conversa eu perguntei o que tinha, e ele disse que precisava extrair sanguepara um pequeno teste. Deixei-o fazer e trinta minutos depois, impaciente, voltei

a perguntar o que eu tinha. Ele sentou-se na poltrona e falou com olharpenetrante e firmeza na voz:

 – As suspeitas se confirmaram. Você tem a doença de Huntington. 

 – Nunca ouvi falar…

 – É muito normal. Essa doença é muito rara e normalmente afecta pessoas nameia-idade. Você confirmou há pouco tempo que tem tido sintomas como doresde cabeça, perda de memória, ataques de agressividade, movimentos

involuntários e coisas assim.

 – E então? Não pode ser outra coisa?

 – O problema está aí. Os exames dizem que não podem ser outra coisa. Énecessário que saiba que esta é uma doença degenerativa e hereditária que écausada pela falha de uma substância chamada huntingtina , quetem uma certa irregularidade na distribuição em pessoas portadoras destasíndrome, e em consequência acaba por prejudicar o tecido estriado, que selocaliza no córtex cerebral, e vai se espalhando pela região periférica do

cérebro, comprometendo muitas funções motoras psíquicas.

 – Com todo o respeito, doutor… Fale português. – Disse impaciente e meio quedesesperado.

 – Deixa-me ver se esclareço dessa vez. Você tem uma doença que lhe faz ter ossintomas que tem tido recentemente, conforme me confirmou. Essa doença émuito rara e atinge pessoas da sua faixa etária, provocando certos distúrbios noseu cérebro.

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 – Como apanhei essa doença? – Perguntei chateado.

 – É muito simples. Você apanhou por ser filho do seu pai.

Ele respirou fundo, levantou-se, caminhou lentamente pelo chão que gemia com

ruídos à medida que um pé exercia força sobre ele, até a sua mesa, e de látrouxe duas folhas com algumas fotografias de homens e o nome “ARTUR”escrito em ponto grande e letras maiúsculas. Prosseguiu o seu discurso:

 – Este é um quadro com o lado masculino da família do teu pai. Este senhoraqui no princípio  – Apontou para um homem careca  – Ele foi seu tataravó,morreu com quarenta e três anos, mas teve um filho. Este daqui de nomeBenjamin Artur  – Apontou para outro com um bigode pontiagudo  – é o filho aque referia, foi seu bisavó e morreu com quarenta e três anos. Aqui mais embaixo, filho de Benjamin, Lourenço Artur, seu avô, morreu com quarenta e três

anos e teve três filhos. Estes dois,  – Apontou para um homem com umaexpressão engraçada e outro mais sério – Luís Artur e Emanuel Artur, seus tios,que morreram ambos com quarenta e três anos. Quase a terminar, temos oterceiro filho, o mais novo de todos, Romeu Artur, seu pai  – Apontou para umafoto do meu pai, com um sorriso radiante exibindo a boa disposição que todos osdias o pertencia – que infelizmente também morreu aos quarenta e três anos.  – Fez uma breve pausa para respirar fundo e tomar café.  – Seu pai teve um filho,esse filho é você. Você fará quarenta e três anos esse ano, você é homem dafamília Artur. Sabes o que isso significa?

 – Que esse é o meu último ano de vida?  – Perguntei com lágrimas nos olhos,não me conformando com a ideia.

 – Lamento imenso… – Disse ele muito seriamente.

 – Mas, tem de haver alguma solução. Eu tenho muito dinheiro. Eu possopagar todos os tratamentos necessários para melhorar. Que hospital você mereceita para ter um atendimento digno para melhorar a minha situação?  – Disparava perguntas incansavelmente com lágrimas no rosto.

 – Infelizmente o único hospital que lhe posso indicar é o mundo. Tenta visitá-lo eexplorá-lo bem. Aproveita esse dinheiro para isso.

 – Como assim? O que estás por aí a dizer? Como assim o mundo? – Perguntei já com vontade de lhe atingir com um murro na face pela friezae calma que ele apresentava naquele momento que para mim era tãoavassalador.

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 – A doença de Huntington… – Ele parou, franziu a testa, como se estivesse commedo da minha reacção após as suas próximas e cortantes palavras  – Não temcura.

Naquele mesmo instante, grande parte do meu mundo desabou. Não me

lembrava de ter chorado tanto desde a morte do meu pai, quando mais novo. Derepente comecei a me sentir ansioso e não entendia porquê, comecei a ver omeu corpo tremer e minha respiração se tornar cada vez mais tensa. Despedi-me do doutor, dei-lhe algum dinheiro e saí dali totalmente fora de mim. Subi nomeu carro e ordenei que o motorista me levasse até à empresa.

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IV. 

“V” de Vingança 

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Quando entrei pela porta principal da empresa, todos olhavam para mim deforma diferente, eu não entendia exactamente porquê. Subi o elevador até aodécimo segundo piso, o único que tinha apenas um escritório: o meu. Para sechegar até ao décimo segundo, era necessário que a pessoa pedisseautorização prévia, e se fosse concedida, ela podia entrar no único elevador

reservado para o meu piso. Uma vez dentro do elevador, era necessário queessa pessoa colocasse o olho direito no leitor altamente sofisticado, enquantoera filmado pelas duas câmaras dentro do elevador. Uma que vez esseprotocolo de aproximadamente dez segundos estivesse confirmado, o elevadorsubia, caso a minha secretária autorizasse.

Quando o elevador atingiu o décimo segundo piso, a porta se abriu e eu saí dali.O ar como sempre era fresco, ao invés de parede, foi instalada uma cobertura deum vidro monolítico de isolamento térmico de grande espessura, cujo tamanho ia

do chão ao tecto, o que dava a incrível e igualmente propositada sensação de seestar a trabalhar “no céu”  ou ainda “nas  nuvens”. De lá, era perfeitamente visívelo resto da cidade.Azulejos castanhos e perfeitamente polidos eram o chão que se pisava naquelecompartimento, com muito luxo. Haviam ainda algumas estátuas como a dopensador, a escultura com a cabeça do grande filósofo Sócrates, entre algunsquadros famosíssimos completamente originais decorando as paredes.

A minha secretária levantou-se da mesa e disse que lamentava, mas nãoentendi porquê. Entrei para a minha sala e havia lá dentro cerca de vinte e cinco

homens, sendo alguns deles directores, vice-directores ou assistentes daempresa, entre alguns accionistas da mesma. Parei e encarei-os. Eles olharampara mim, Rómulo estava no meio deles e ao seu lado estava Trina, totalmentevestida de preto. Hesitei, ninguém falava nada, até logo em seguida ela nãoconseguir se conter e vir em minha direcção para me abraçar, chorando.

 – O que se passa aqui, Trina?

 – Amor, você precisa ter calma. A notícia vai te deixar chocado. Eu preciso queantes de mais nada você lembre que eu estou aqui e estou pronta para o que

der e vier. – Trina tentava escolher as palavras, talvez por não saber como dizeralgo mesmo trágico que tivesse acontecido com a empresa.

 – Trina, deixa de me dar voltas. O que se passa afinal?  – Comecei a perder apaciência.

 – Ronaldo foi visto visitar a tua mãe ontem de madrugada.  – InterrompeuRómulo. Começou a se aproximar de mim com calma. Pegou no meu ombro eprosseguiu: – Ela foi encontrada morta hoje de manhã, e segundo

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os guardas, mais ninguém a visitou ou foi detectado a entrar na casa depois deRonaldo.

Outra parte do meu mundo desabou mesmo ali naquele instante. O que maisfaltava acontecer? O que fiz eu para merecer tanta traição por parte de

Ronaldo? Caí ajoelhado no chão, e como uma criança voltei a chorar. Nada emminha vida fazia sentido. Não podia aturar mais sofrimento. Só me restava Trina,a mulher que nunca me abandonou. Ela pegou na minha mãe e pediu que nosdeixassem a sós naquele escritório. Quando todos saíram, apreensivos, elaajoelhou-se como eu e me abraçou.

**Depois de termos sido salvos pelo meu pai naquela floresta, eu e Ronaldo nãonos voltamos a ver tão cedo. A minha mãe, além de executiva, na altura,também fazia trabalhos com instituições de ajuda humanitária. Ela sempre foi

muito paciente e sempre amou crianças. Por vezes, alguns dos meninos queencontrava na rua, levava para a nossa casa para almoçar ou jantar connosco.Ela os incentivava a se manterem afastados das drogas e os ensinava muitacoisa como costura, reciclagem, desenho, pintura, tocar instrumentos, cantar eescrever. Era sempre muito divertido pois eu também aprendia, e dali elesganhavam mais vontade de viver e de praticar o seu lado artístico. Como issotudo era na altura em que o meu pai começou a trabalhar na empresa a qualhoje presido, ele já não ficava lá com as crianças com tanta frequência comoantes.

Num certo dia, ele me levou para pescar. Quando voltamos, ao anoitecer,encontrei minha mãe preocupadíssima. Ela disse que havia encontrado ummenino muito doente e que ela não podia fazer nada senão ajudar. A princípioaquilo não tinha nada de estranho, mas quando fui ver o estado da criança é queme espantei de verdade. A criança em questão era o mesmo menino gordo depele escura que outrora me roubara a bola das mãos e me conduzirainvoluntariamente até à floresta, de onde fomos salvos de uma serpente pelomeu pai. Era o mesmo rapaz que prometi odiar para sempre, o mesmo rapazque se tornou meu irmão adoptivo, – embora não legalmente –, o mesmo rapazque se tornou meu melhor amigo, e também, o mesmo rapaz que me estava

agora a apunhalar aos poucos e que matou a mulher que o devolveu a vida.Ronaldo.**

Chorei durante duas horas depois de saber a causa da morte da minha mãe. Elafoi afogada enquanto tomava banho e, segundo as autoridades, haviamevidências no seu corpo de que foi pressionada no pescoço por alguém muitoforte, durante o afogamento. Decidi que ela devia ser enterrada aqui, no paísonde ela nasceu e vivemos boa parte de nossas vidas. Decidi tambémproclamar guerra por vingança contra Ronaldo. Era uma questão de honra.

Liguei para um dos responsáveis dos aviões da empresa e me foi informado queo avião da empresa que Ronaldo havia

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usado para ir para Portugal, saiu esta manhã de lá, e que à essa altura já deviaestar a chegar.

 – Quero que vocês mandem cinco seguranças até ao aeroporto num carrogrande, levem aquele homem bem longe e dêem a maior surra que conseguirem

dar. Só não o matem… Ainda – Agora soava frio e cruel, ao telefone.

Trina, insatisfeita com a minha atitude disse:

 – O que é isso agora? Vais te vingar? Isso está correcto?

 – Trina! As coisas já não são como antes. – Bati na mesa com muita força – Eletem de pagar pelo que está a fazer.

 – E é dessa forma?  – Perguntou ela confusa.  – Sinceramente, já não estou a

reconhecer o homem maduro com quem iria me casar.

 – Eu sei que tu és uma mulher muito bondosa então não vais perceber o que… – Parei para processar a frase de Trina. Engoli a seco e perguntei  – Iria casar?

 – Sim, iria. Mas agora já não porque estás a te revelar um belo monstro comessas atitudes. – Disse ela irritada – Eu sei que não é fácil, mas fazendo justiçacom as próprias mãos, não estarás a melhorar nem um pouco o teu estado deespírito. Eu cansei. Queria muito casar com o homem bom que eu conheci em ti.

Vou-me embora. Os meus pêsames.

Ela pegou na sua pequena carteira preta e começou a atravessar o meuescritório até à porta principal. Eu gritei:

 – Trina!

Ela parou e olhou para mim. Eu continuei:

 – Se calhar é melhor assim. – A minha voz estava trémula – Sabes onde fui hoje

de manhã? Para o médico que a minha mãe indicou. Eu tenho uma doençachamada Huntington. O que significa que logo depois de eu fazer quarenta enove anos, ou melhor, a minha morte está agendada para o próximo mês.

Vi o seu rosto se empalidecer. Ela parecia não saber o que fazer. Seus olhoscomeçaram a deixar escorrer lágrimas. Olhávamos um para o outro e ninguémse movia, até que ela resolveu sair da sala em passo acelerado, com a mão naboca para que o seu choro fosse mudo. Parecia que aos poucos estava aaprender a chorar menos e ser mais frio. Sequer me prontifiquei a correr atrásdela. Era melhor assim.

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 Como venho a saber mais tarde, Ronaldo foi brutalmente espancado e deixadoao relento pelos meus seguranças. Àquela altura ele devia estar a experimentarfisicamente, o sabor da dor que sinto por dentro. Como já nada fazia sentido, saída empresa e fui até a minha casa, e durante muitas horas fiquei no escritório,

como no primeiro dia de Junho. Pensei em tudo e nada, tive algumasrecordações, e tive também algumas falhas na memória, que só serviram paraconfirmar o efeito que a doença causava em mim. Antes de definitivamentematar Ronaldo, eu teria de lhe fazer experimentar o sabor de ser torturado, tinhade lhe fazer conhecer os cantos do inferno enquanto ainda vivia pois Deus seencarregaria de lhe mandar para lá depois que eu lhe matasse com as minhaspróprias mãos.

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V. 

O Começo do fim  

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 Quando eram onze horas na noite sombria, saí de casa e fui para um lugar ondenunca antes havia estado: Uma discoteca.

O ambiente lá dentro era muito estranho, haviam luzes por todos os cantos, mal

se via as pessoas e o som estava muitíssimo alto. Aquele lugar cheirava à muitacoisa. Cheirava a tabaco, álcool e cheiros que nunca antes tinha sentido.Mulheres dançavam com homens, mulheres dançavam com mulheres, mulheresbeijavam homens, mulheres beijavam mulheres. Mulheres bebiam, homensbebiam. Mulheres e homens dançavam em varões num pequeno palco semi-nuse recebiam dinheiro por quem naquela altura apreciava suas danças. Eu estavaali parado a observar tudo aquilo acontecer diante de mim. Um ambiente quecertamente não me pertencia, mas ignorei esse pensamento. Antes mesmo quepudesse dar um passo, surgiram do meu lado, um par de moças esbeltaspegando no meu corpo. Uma delas era de baixa estatura, com grandes seios e

pernas grossas, cabelo curto e cacheado acastanhado, vestindo um vestidoapertadíssimo e muito curto que realçava perfeitamente a sua fisionomiaaltamente sedutora. A outra era mais alta e morena. O seu sotaque adenunciava: era brasileira. Tinha olhos verdes e um longo cabelo. O abdómenmusculado era visto por causa do tamanho da blusa que ela vestia. Suas ancaseram visíveis sem grande esforço e usava um salto muito alto. Elas meconvidaram para dançar.

Passamos a noite dançando, bebi muito. Experimentei os mais variados tipos de

bebida e, quando já estava exausto, as levei para a minha mansão para nosdivertirmos um bocado mais. Chegando lá, elas não acreditaram no tamanho daminha casa. Levei-as para o meu quarto e lá ficamos os três até amanhecer.

Quando chegou a manhã, elas já se tinham vestido e disseram-me que tiveramuma noite animadíssima comigo e que certamente devíamos repetir. Fiquei comos números delas e lhes dei muito dinheiro. Não lembro de quanto era, mas seique era mais de dois mil dólares.

Dentro de um dia, chegaria o corpo da minha mãe para ser enterrado aqui logo

pela manhã. Pedi que me arranjassem um maço de cigarro dos melhores quehavia, e assim foi. Algumas horas depois, o meu motorista me entregou duascaixas grandes de Cohiba Behike , supostamente o charuto mais caro do mundo.Experimentei a sensação e amei o que senti. Passei o resto do dia a fumar e,quando chegou à noite, saí novamente. Desta vez, visitei o casino mais caro dacidade. Lá só costumavam ir grandes homens, homens conhecidos nasociedade. O casino tinha uma vigilância muito rígida e compacta. Já começavaa ganhar aparência de miserável. Não cortava a barba, meus olhos estavamsempre vermelhos  – sem contar com as olheiras  – e os meus dentesamarelados. Sempre tive

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  jeito para cartas, sempre fui muito sortudo. Mas parece que naquele lugar eunão era o único. Lá encontrei grandes homens da sociedade, dentre eles,actores, ministros e executivos bem sucedidos, todos um bando de viciados.

Juntei-me à eles numa mesa gigante e apostamos. O jogo durou muito tempo e

infelizmente não consegui ganhar nada. Enunciando tudo o que perdi apenasnaquele dia diria: os meus quinze carros, doze bilhões de dólares e os doisaviões da empresa. Fiquei irritado mas eles encorajaram-me a voltar quandoquisesse pois nem todos os dias eram dias de sorte, mas que se eu quisesse,podia sempre reaver o que perdi, jogando para ganhar. E esse espírito memotivou a voltar mais e mais vezes.

No dia seguinte, no funeral da minha mãe, cheguei totalmente bêbado, masassisti toda a cerimónia. Quando acordei, estava deitado em minha cama e

Rómulo andava de um lado para o outro histérico. A dor de cabeça parecia queme iria matar em algum segundo. A doença estava decidida a me eliminar.

 – Que fazes por aí, Rómulo? Virou meu guarda-costas?

 – Graças a Deus acordaste! – Exclamou ele aparentemente aliviado – Eu vim teprevenir de um escândalo.

 – Que escândalo?  – Perguntei tentando me recompor.  – Do que estás por aí afalar?

 – A imprensa está toda lá fora. – Disse ele com os seus característicos ataquesde histeria exagerada. – A polícia também.

Saí da cama, mas estava sem forças, e antes que eu pudesse cair, Rómulo  – sempre prestativo  – foi ágil ao me segurar. Pedi que me acompanhasse até à

 janela do meu quarto, e ele assim o fez me carregando no ombro. Olhei para a janela e vi uma multidão enorme do lado de fora da minha casa. Alguém no meioda multidão reparou que eu estava na janela e gritou. Em menos de doissegundos eram máquinas fotográficas a serem disparadas ao mesmo tempo.

Deixei-me cair ao chão para desaparecer da visibilidade deles. Estava caído nochão, levei às mãos ao rosto e perguntei o que se passava. Rómulo respondeu:

 – O senhor fez o maior escândalo ontem no funeral de sua mãe.  – Fez umapausa para roer as unhas e prosseguiu  – O senhor disse palavras horríveis. Aimprensa gravou, mas não se preocupe que nós acordamos que eles nuncairiam passar aquelas imagens à lugar algum. Tratei de tudo.

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 – Como posso ter feito isso? E não me lembrar de nada?

 – Depois o senhor ficou agressivo.  – Falava num tom assustado, que erairritante, parecia uma criança – O senhor me agrediu aqui – E mostrou oseu olho esquerdo ligeiramente roxo – E o mais surpreendente, o senhor ganhou

uma raiva inimaginável, que inclusive conseguiu derrubar Ronaldo, queapareceu lá todo inchado. Não sei de onde vinha.

 – Pelo menos uma coisa boa o meu inconsciente fez.  – Exclamei com raiva deRonaldo  – Rómulo, peço imensas desculpas. Não sei o que se passa comigo.Estou a perder o controle dos meus actos.

 – Não se preocupe, Carlos. Nunca irei esquecer de tudo aquilo que já fizeste pormim.  – Disse ele  – É o mínimo que posso fazer por ti. Mas há ainda algo quenão te disse.

 – O que foi? Lutei também com o Homem-aranha, o Batman e o Joker?  – Disseeu tentando manter o humor num momento como aquele.

 – Talvez teria sido menos doloroso.  – Disse ele com uma seriedadeassustadora. – Foste para um casino e perdeste esta casa.

Aquela notícia me atingiu como um banho nas águas do pólo norte. Foi friademais para o meu sistema nervoso. Comecei a ficar desesperado. Aquilo nãopodia estar a acontecer comigo. Onde é que estava Deus quando eu mais

precisei? Ele foi capaz de me abandonar, logo ele a quem eu sempre confiei. Eleme pregou uma partida enorme, arruinou a minha vida. Agora já não acreditonele. Para mim nunca existiu.

Agora, eu tinha apenas mais cinco meses para sair daquela casa, e menos deum mês para viver. Os dias a seguir passaram numa agonia tremenda edesgosto pela vida. Deixei de ir à igreja porque para mim, aquilo já não faziasentido algum.

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VI. 

Contagem regressiva para Morrer  

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No primeiro dia de Julho, estava deitado no meu quarto, com a habitual dor decabeça, olhando para as paredes do mesmo, imaginando que teria de deixaraquilo tudo que o meu pai começou a construir e eu inteligentemente soubecontinuar a fazer crescer.

É preciso ter muito azar para num ano só ser traído pelo melhor amigo, perder amãe e a mulher que nos fez conhecer o que é amar de verdade. À isso oshumanos chamam destino. Mas o que fiz eu para ser apunhalado dessa forma?Sempre fui bom, sempre fui caridoso, sempre fui à igreja e sempre acreditei emDeus, excepto até a altura em que ele simplesmente me abandonou.

Agora estava ali, deitado, um dia antes da minha morte. Já nem testamentoposso escrever porque simplesmente perdi tudo o que algum dia tinha emabundância, simplesmente por ter escolhido mal o meu melhor amigo. Se eupudesse fazer diferente… Bem, não sei se faria, porque Ronaldo sempre esteve

nas ocasiões mais importantes da minha vida, por isso nem sei afirmar comcerteza se estou com tanta raiva dele. Acho que era capaz de o perdoar, mas sóse pudesse entender o que lhe fez me trair. Vida injusta.

Ali estava, há apenas um dia antes do meu aniversário e morte. Deve serengraçado, perder a vida no mesmo dia em que a ganhamos. Chego aconclusão que devia ser assim com todos, assim como eu, todos saberiam asdatas de suas mortes, só seria estranho pelo facto de comemorar cadaaniversário com medo de que aquele fosse o ano da morte, mas por outro lado,

a festa seria maior quando se descobrisse que não foi daquela vez que a mortebateu a porta.

Será que todos são assim? Será que todos, antes de morrer, têm essesmomentos filosóficos? Pensar na morte, formular suposições, dar uma de sábio,ver luzes, falar com anjos, jogar cara e coroa para saber se vai para o céu oupara o inferno, fazer um balanço de todas as acções passadas, reflectir sobre sefoi uma boa ou má pessoa durante o seu tempo de vida… Será? Será que omeu pai e aqueles homens todos da minha família sabiam dessa doença antesde morrer? Será que cada um, excepto o meu avô, só fez um filho por causa

disso? Para não causar sofrimento à muita gente, se calhar? Agora se calharisso faça sentido.

Só queria poder morrer ao lado da mulher que eu amo. Tudo bem que nãodesejo que ela me veja morrer porque sei que iria sofrer, e até porquê ela é

 jovem e tem ainda muitos anos pela frente, mas pelo menos se pudesse morrersabendo que ela me pertencia quando finalmente parti… Já seria um grandealívio para mim. Talvez teria doído menos.

Tudo o que me resta agora são lembranças, maior parte delas de bons

momentos, momentos vividos ao lado de pessoas especiais, momentos de

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aprendizagem, momentos de paz, momentos de alegria, momentos deconquista, momentos de glória, momentos de fé, momentos de amizade,momentos de coragem, momentos de experiências positivas, momentos desorrisos, momentos de felicidade, momentos de descobertas, momentos deamor, e acima de tudo, momentos de vida.

Às vinte e três horas e cinquenta e dois minutos, sentei-me na poltrona do meuescritório, com um copo de vinho pousado sobre a mesa, um charuto caro namão, barba feita, vestindo o melhor terno e gravata que alguma vez haviacomprado. Em dez minutos eu tinha a certeza que faria quarenta e nove anos  – a idade da morte – só não sabia com que pontualidade chegaria a mesma.

Se for para ser como aconteceu com o resto dos meus familiares, ela nãopassará do dia do aniversário, então, pode chegar a qualquer momento, podetardar mas não falhar. Dia um de Julho, vinte e três horas e cinquenta e nove

minutos, acompanhava com os olhos a trajectória do ponteiro de segundos docaríssimo Rolex  que se encontrava no meu pulso esquerdo. Em termos desegundos, bem, faltavam agora… 

Dez… Nove… Oito… Sete… Seis… Cinco… 

Quatro… Três… Dois… Um… 

A porta do meu escritório abriu com uma agressividade enorme quando faltavaaquele segundo único. Para o meu espanto, era Ronaldo, com uma caixa dechocolates na mão dizendo:

 – Feliz aniversário… 

Meu corpo enrijeceu. Meus músculos se contraíram. Era mais provável eu ternaquele momento, uma raiva incalculável daquele homem grande, massimplesmente não consegui.

Ele fazia isso em todos os anos. Sempre, sem falha, ele costumava abrir a portaseja lá de onde eu estivesse, quando o ponteiro apontasse o primeiro segundodo meu dia de aniversário. Era impressionante a sua pontualidade, e dessa veznão foi diferente. Queria matá-lo, queria lhe falar coisas que estavam entaladasna minha garganta, queria que ele sofresse… Sim, antes queria, mas agora não

conseguia querer, só queria

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abraçá-lo e lhe chamar de irmão. Comecei a chorar ainda imóvel, a olhar paraele, e a sua cara estava inchada, eu sabia que era por culpa minha, mas sabiaque ele merecia… Quando eu estava com raiva. Agora não. Sentia pena por ele ter que ter passado por aquilo, por minha causa. Elecomeçou a se aproximar de mim, com o olho direito inchado, um corte no lábio e

tiras de ligadura envolvendo o enorme braço esquerdo. Ele mancava em minhadirecção com um sorriso no rosto e a caixa de chocolates na mão, como semprefazia. Levantei-me, hesitei, era como se eu não me estivesse a controlar. A partenegativa da minha consciência gritava para que eu não tivesse misericórdia,mas a parte positiva da consciência é que agia, me orientava a me levantar e,pelo menos no meu último dia de vida, fazer o que eu realmente queria: dar umabraço à Ronaldo.

Venci aquela pressão, e sem mais pensar em nada, corri e o abracei,começando a jorrar lágrimas logo em seguida. A seguir, enquanto o abraçava,

retirei do meu bolso um revólver, me distanciei alguns centímetros dele numápice, e sem hesitar, apertei o gatilho em direcção ao seu peito. Não tinha erro,fui ágil. O dia dois não estava reservado só para mim. Começamos juntos,teríamos de acabar juntos. Mas ele mais cedo.

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VII 

A luz no último dia  

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Estava tudo previsto. Desta vez era certeiro. Dedo no gatilho, som ensurdecedorsair, trajectória da bala… Bem… Esta foi para cima. Na altura em que eu aperteino gatilho, Ronaldo, meio que já prevendo a minha acção, pegou na minha mãoe me fez disparar a bala do revólver para cima da minha cabeça, no tecto,acertando o enorme candeeiro que não demorou a cair em minha direcção.

Aconteceu tudo tão rápido que eu já sentia o mesmo cair por cima da minhacabeça e me matar de uma vez por todas, mas naquela mesma fracção desegundos em que tudo estava a acontecer ao mesmo tempo, ele se atirou paracima de mim, não evitando que o candeeiro caísse sobre as suas costas. Comose já não bastassem os ferimentos que o tinha causado propositadamente,agora estava ali ele, novamente ferido, mas dessa vez por tentar me salvar.

Eu estava por baixo daquele homem corpulento que estava imóvel, masrespirando. Achei que ele tivesse desmaiado.

 – Estás bem? – Perguntou ele.

 – Porquê que estás a fazer isto?  – Perguntei, fazendo o inútil esforço de tentarretirar aquele homem corpulento de cima de mim.

 – Não saio de cima de ti até não falar contigo sobre o que se está a passar aqui. – Disse ele com tom autoritário  – O que foi? Perdeu a cabeça de vez? Quehistória é essa de perder tudo no casino?

 – O que foi agora? – Gritei ainda tentando sair debaixo dele  – Já não basta tudo

o que você fez comigo? Já não basta ter morto a minha mãe?

De repente ele, se levantou um bocado e me deu uma chapada dolorosa naface.

 – Nunca mais te atrevas a dizer isso – Disse ele noutro tom de voz – Achas queteria a discrepância para fazer isso?

 – Depois de tudo o que fizeste comigo, não duvido nem um pouco. Sai de cima!

 – Depois de tudo o que fiz?  – Perguntou ele surpreso e exercendo mais força. – Tudo o que fiz foi te proteger.

 – Belo discurso  – Disse eu em tom irónico  – Me proteger de quê?  – 

Da Trina, e de toda a sua gang.

Aquelas palavras cortantes me fizeram parar de tentar reagir. Não entendiacomo ele teve coragem de dizer algo como aquilo da única mulher a quem ameide verdade, depois de minha mãe. Tentei agarrar o

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revólver ainda no chão mas ele apertou-me com mais força até eu gritar e deuum jeito de o afastar ainda mais de mim. Disse que eu tinha de o ouvir.

 – A Trina… Ela sabe de tudo. – Disse ele despejando tudo o que tinha na mentecom uma respiração bastante tensa.  – Ela está por trás de tudo o que está a

acontecer contigo. Eles são uma máfia. Eu descobri tudo.

 – Que porcaria é esta agora?  – Perguntei irritado.  – É essa a forma queencontraste para limpar o teu cadastro? Você mesmo me aconselhou a casarcom ela. A não ser que sejam os dois da mesma máfia.

 – Cala-te!  – Disse ele irritado, começando a elevar o tom de voz em seguidacom uma agressividade assustadora – A Trina não é quem vocêpensa que é. Eu te aconselhei a casar porque até naquela altura eu tinha acerteza que ela era uma boa pessoa. Ela planejou tudo desde o início. Ela sabia

de tudo, dos teus passos. Foi tudo programado.

 – O quê? Que provas tens?

 – Tudo começou quando eu reencontrei um velho amigo meu.  – Falava maiscalmo, agora  – Ele me disse que agora estava a trabalhar numa empresa deserviços de inteligência e durante a conversa eu lhe falei de ti. Disse o quãoespecial és para mim e a única foto tua que eu carregava, era a que tu tinhas aolado de Trina. Assim que ele viu Trina ficou assustado e perguntou quem eraaquela mulher. Eu respondi que era a tua futura esposa e ele disse que se eu te

amava, teria de impedir que isto acontecesse e lhe ajudar a pará-la. Não entendimas ele explicou. Ele explicou que Trina trabalha para uma máfia e que tupodias estar a ser usado para eles terem o poder que desejam. Desde então,conversamos e eu fui juntando todos os factos que vocês passaram juntos. Têmtodos, uma conexão. Não achas coincidência, ela estar parada exactamente naestrada de volta para a tua casa no vosso primeiro jantar quando ela devia estara ir para o restaurante?

Comecei a ficar pensativo, embora não querendo deglutir aquela informação eele finalmente me soltou.

 – E a tua ida à Portugal?  – Perguntei  – Não é uma coincidência teres ido àPortugal depois de sairmos dali, não responder os meus telefonemas e aindapor cima não comparecer à uma das reuniões mais importantes da empresa? Eute confiei.

 – Eu fui para Portugal, mas era para te alertar. Eu não fui sozinho. Levei o meuamigo comigo.

 – Alertar de quê?

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 – Trina tinha tudo planejado, homem.  – Disse ele impacientemente tentandoencaixar aquilo na minha cabeça  – Eu descobri que a empresa japonesa erauma farsa. Tu estarias a confirmar a passagem dos teus bens para essa máfia.O advogado da empresa também pertence à essa máfia, pois ele devia ter lido ocontracto. Na verdade leu, mas como sabe que o confias, não irias meter olho

clínico num contracto com mais de vinte páginas de cláusulas, regalias e coisasassim. – Voltou a alterar o tom de voz – Eu li, eu vi. Você estaria a passar todosos seus bens para Trina.

 – Mas… – Disse eu com as mãos na cabeça  – Eu entrei em contacto com elespara regularizar a situação, pedi desculpas e… – Fiz uma pausa fechando osmeus olhos, engoli a seco e prossegui  – …assinei. 

Ronaldo soltou um grito de raiva por não ter conseguido chegar a tempo. Ainda

assim prosseguiu, mas desta vez, mais paciente:

 – A propósito, que história é essa de não atender os teus telefonemas? Nuncarecebi nenhum desde que foste para Portugal, e além disso eu é que tentei ligarpara ti, mas sempre esteve desligado, embora soubesse que sempre usasroaming . Por isso pensei que ela fez algo de mal contigo e fui atrás de ti. Defacto visitei a tua mãe, falei com ela e ela me contou que você não passou bem,me falou da doença e me disse que te deu o número do doutor Júnior André…  

 – Júlio…

 – Júnior… – Insistiu ele.

 – Já disse que é Júlio. A minha mãe me deu o cartão dele.  – Com o rosto suado,afastei-me dele e fui até à uma das gavetas da escrivaninha e tirei o cartão devisita com o nome “Júlio André” e o mostrei.

Logo em seguida, ele retirou um cartão que alegou que lhe foi dado tambémpela minha mãe, para o caso de eu não querer ligar. No cartão estava inscrito onome “Júnior André”. 

 – Vamos ligar para ele. – Decidi.

 – Espera. Há mais uma coisa que o meu amigo me alertou.  – Disse eleantes que eu digitasse qualquer número. – Você disse que tentou ligar para mime ninguém atendia, quando por outro lado, eu tentava ligar para ti e davadesligado. Não achas isso estranho? Deixa-me ver teu telemóvel.

Entreguei-lhe o telemóvel sem saber mais o que fazer. Tudo de repente passoua tomar uma trajectória diferente. Observei-o apertar nas teclas do mesmo com

agilidade, até que se viu no seu rosto a surpresa com

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relação a algo que tivesse encontrado no que procurava. Perguntei o que era eele respondeu:

 – O meu amigo Taylor tinha toda a razão. É muito simples esse golpe. Trinaandava contigo, o que lhe permitia pegar no teu telemóvel quando quisesse. Ela

simplesmente alterou o meu número no teu telemóvel, de maneira que tu passesa ligar para um número que certamente os pertence, o qual nunca atendem. Tués um homem cheio de coisas na cabeça, portanto, não tens o meu númerodecorado. Logo, só recorres à lista telefónica e digitas o meu número.

 – E porquê você não consegue ligar para o meu? – Perguntei tentando entendertodas as partes desse quebra-cabeças.

 – Muito simples. Porque você não tem o teu cartão sim  aí dentro do teutelemóvel, mas sim um que eles devem ter trocado.  – Disse ele convicto do que

dizia. – Você recebeu telefonemas enquanto viajava? De quem?

 – Sim, recebi  – Respondi prontamente – O Rómulo ligou para mim, e… – Pareipara pensar, e vi que ele foi a única pessoa que ligou para mimdurante a minha estadia em Portugal – Só ele… 

 – O Rómulo faz parte dessa máfia. Ele é um espião dentro da empresa.

Sentei-me para tentar processar todas aquelas informações que penetravam omeu cérebro. Não entendia porquê que aquilo tudo resolveu se desvendar

apenas no dia da minha morte.

 – Quando eu comecei a desconfiar disso, realmente desviei o dinheiro para umaconta em meu nome, para te proteger. – Tirou do bolso um cheque – Dois biliõesde dólares. Dá para sobreviveres. O meu amigo mostrou-me uma investigaçãoque estava a ser feita e viu-se que o suposto fã psicopata que você disse queTrina teve, de facto existiu, mas não com esse papel. Ele nunca assediou Trinacomo ela te disse. Ela te contou que ele invadiu o canal televisivo, por acasoalguma vez viste imagens ou ouviste falar nesse escândalo? Foi tudo inventado.Escândalos como estes seriam motivo de manchetes de jornal por longos dias.

A imprensa não deixaria passar um furo destes, ainda mais num programa aovivo.

 – Quem era ele? – Perguntei sem acção, respirando fundo agora.

 – Alguém da mesma agência em que trabalha o meu amigo, que descobriu aexistência dessa máfia e tinha prometido contar à polícia. Ela o matou na auto-estrada e como boa actriz que é, fez questão de fazer com que tudo parecesseacidente.

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Ficamos ali algumas horas a conversar sobre aquilo tudo e, depois de não maisaguentar, eu disse que precisava descansar e que era melhor nos encontramosàs onze horas da manhã, caso ainda estivesse vivo. Pedi-lhe imensas desculpaspelo que fiz e dolorosamente contei que o tinha mandado agredir. Ele pareceunem se importar com aquilo. Apenas pediu que me cuidasse.

Só consegui dormir por uma hora. O tempo parecia não passar.

Chegou a manhã do meu último dia de vida. Vesti-me de maneira bem simples,e às sete horas da manhã, apanhei um táxi até à minha empresa e subi até aodécimo segundo piso. Quando lá cheguei, a minha secretária estavaassustadíssima. Disse que fora demitida por Trina e que ela estava à minhaespera dentro da sala. Furioso e cheio de coragem, caminhei à passosacelerados e abri a porta do escritório que sempre me pertenceu. Lá dentro,estava Trina e alguns homens ao seu lado direito e esquerdo.

 – Trina! Eu já sei de tudo, desgraçada.

 – Tudo mesmo? – Perguntou ela – Acho que ainda não sabes de tudo, querido,mas eu faço questão de te explicar com toda a calma do mundo. Antes de maisnada, diga olá à minha irmandade. Os homens que pertencem à Organização.

Reparei bem nos homens e fiquei espantado com aquela máfia. Lá estava:Rómulo, Dr. Júlio André  – O doutor que visitei  –, o advogado da empresa, umdos meus empregados da mansão, um jovem magro e baixo que eu não

conhecia e André Mendes  – O meu amigo realizador de filmes. Não podiaacreditar naquilo que estava diante de mim. Ela tomou a palavra:

 – Cada um destes homens teve um papel importantíssimo nessa história.  – Apontou para o primeiro homem e prosseguiu  – Rómulo, tratou de te ligar parate informar tudo aquilo que queríamos que soubesses para incriminar Ronaldo. – A seguir apontou para o velho – Dr. Júlio André, ou melhor Anastácio Raimundo,fez-te um enorme favor a identificar a tua doença. Se calhar devias saber queele é o meu pai biológico.  – Apontou para outro  – Este, você conhece bem. Oseu advogado preferido. Ele tratou que você fosse enganado com aquele

contracto enorme.  – Continuou apresentando  – André Mendes. Esse vocêconhece bem. A nossa agência para gravar o novo filme nunca existiu. Vocêsimplesmente fazia depósitos que nunca teriam retornos, e fazíamos questão decom o teu dinheiro, pagar os actores que faziam o papel de produção enquantoias assistir as filmagens do filme. Que excitante.

 – Eu vou morrer hoje. – Disse eu com raiva daquilo tudo – Quero morrer a sabero que aconteceu comigo, e como vocês fizeram isso.

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 – Vai ser um prazer – Disse Trina confiante – Todos os nossos encontros foramplaneados. Soubemos que irias para França no festival de Cannes e entãofomos apresentados propositadamente. Eu me fiz de difícil igualmentepropositadamente. O meu carro nunca avariou no dia em que jantamos em tuacasa, foi tudo farsa. Nunca existiu o fã psicopata e já agora desculpa pela morte

da tua mãe… Era necessária. Soubemos que o azarado do teu irmão negro foiagora de manhã procurar o verdadeiro doutor. O mais provável é que sejaincriminado pela morte que preparamos para o doutor. A instituição de caridadeonde supostamente fui criada, nunca existiu. Você depositava dinheiro para nós.Obrigada desde já. Tem mais… O casino é de nossa conta, ou seja, tudo o quevocê perdeu nas apostas, perdeu para nós, não se preocupe, está em boasmãos, assim como esta empresa. Ela é minha agora, portanto, aproveite bem oseu último dia de vida. Os guardas farão a gentileza.

Logo a seguir, entraram na sala cinco homens robustos e me carregaram

agressivamente para fora da empresa. Era uma humilhação autêntica. Todos osindivíduos que outrora me respeitavam e encaravam como seu líder, me viamagora ser escorraçado na empresa que eu ajudei a fazer crescer. Alguns dosfuncionários mais fiéis encaravam aquilo com um olhar de tristeza nos olhos,outros tentavam impedir aquela violência toda pedindo aos seguranças quetivessem piedade. Eles tinham pena de mim. Tudo o que um dia fui comoempresário, se estava a desvairar naquele instante. O respeito e o poder quealgum dia conquistara, naquele instante não me podiam salvar. Eles já nãofaziam parte da minha vida no presente, apenas das lembranças do passado.

Eles deviam ter previsto que eu os procuraria porque assim que fui empurradopara fora da empresa, haviam jornalistas à espera, com inúmeras máquinasfotográficas e de filmar, jovens com distintivos de variadas cadeias televisivasnacionais e internacionais carregavam microfones na mão para reportar oacontecimento. – Sabe-se lá quais eram as manchetes do rodapé nos canais detelevisão. Era inevitável ser filmado. Todos estavam de olhos postos em mim,enquanto aqueles homens brutalmente me empurravam diante do meu próprioimpério. Fui atirado para o chão, mais propriamente num poça de água suja quese havia formado próximo à empresa. A minha face, e boa parte da minha roupaestavam inundadas de água suja. Enquanto tentava limpar a minha face e

igualmente tentar me levantar, a imensidão de jornalistas começou a vir atrás demim para reportar de perto aquilo e fazer perguntas sobre o que se estava apassar. Quando me apercebi daquilo, m levantei com enorme esforço e comeceia correr incansavelmente para um destino que nem eu mesmo conhecia. Sóqueria fugir, queria desaparecer. Onde estava a minha morte quando eu maisprecisei dela? Estava atrasada. Pus-me a correr dentro de uma estreitapassagem, pulei um muro alto, subindo primeiro no contentor de lixo que seencontrava junto à parede e

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logo a seguir pulei, abandonando-os ali exaustos atrás de mim com os seusmateriais e a sua curiosidade pertinente.

Parecia um desgraçado. Na verdade, estava um verdadeiro desgraçado. Já nãotinha nada. Àquela altura, conforme Trina havia dito, Ronaldo devia estar a ser

incriminado pela morte do doutor Júnior. Que injustiça. Tudo por minha causa.Se calhar, não mereça mesmo viver, uma vez que todos os que se relacionamcomigo estavam a morrer ou a me trair. Nenhum ser humano na face da terra,por mais males que tenha feito durante a sua vida, merece isso tudo. Cansei deviver. Já que a morte não chega, eu vou buscá-la… Vou antecipá-la. Caminheialguns tantos quilómetros com os pés dormentes sobre as diferentes ruasdaquela cidade, sendo reconhecido em alguns pontos, uma vez que a notícia jáhavia sido rapidamente difundida pela televisão. Ignorei os comentários, osolhares indisfarçados, os risos direccionados e a existência de qualquer serhumano na face da terra. Só precisava morrer. Talvez mais ninguém pudesse

sofrer por minha causa.

Dirigi-me até uma auto-estrada e surpreendentemente consegui ficar num dosextremos do sentido para quem estava a sair da cidade. Só mais uma pessoaprecisava sofrer um bocado: a pessoa que me iria matar. Sentei-me na paredeque protegia a auto-estrada observando os carros passar em velocidadesincríveis. Precisava ser de uma vez só. A auto-estrada se situava em cima deum enorme rio que se situava à imensos pés de distância. Ele era temido pelassuas violentíssimas correntezas. Até barcos raramente passavam por aquelaparte do rio. Mas não. Não era aquela morte que precisava ainda. De olhos

postos na estrada, avistei dois carros velozes se aproximando como seestivessem a competir e algo dentro de mim me disse que aquele era omomento cero para morrer. Não hesitei, me levantei e corri para o meio daestrada, indo agora contra os carros que vinham em alta velocidade. Alguém sóprecisava me atropelar. Nada mais. Comecei a correr de olhos fechados e ouviao ruído dos carros cada vez mais se aproximando e as suas buzinas soandohistericamente. Corria porque tinha de encontrar a minha morte.

Tudo o que tentei fazer, deu em insucesso, encontrei motoristas bastanteatentos, todos os que me viam correr na estrada desviavam os seus carros

embora estivessem em alta velocidade. Ninguém teve o descuido de meatropelar. Aquilo irritou-me. Ajoelhei no meio da estrada e os carros quecomeçaram a vir a seguir começavam a fazer paragens bruscas por minhacausa. Alguns carros bateram noutros por causa das paragens bruscas, masninguém conseguiu bater em mim. Quando dei por mim, três agentes da políciaestavam a vir em minha direcção para saber o que se passava. Olhei para eles,olhei para o outro lado da ponte. Só tinha de escolher para onde queria ir: Para acadeia ou buscar a minha morte. Preferi o mais fácil. Levantei-me e pus-me acorrer feito um louco. A maior parte das pessoas começou a gritarhistericamente já prevendo o

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meu próximo passo. Eu estava a correr em direcção à parede que limitavaaquela estrada. Intensifiquei a minha corrida quando ouvi os polícias ordenandoque eu parasse senão disparavam e simplesmente me lembro que saltei, trepeia parede em dois segundos e me atirei de lá… Se a morte não ia até mim… Eufui à ela.

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VIII 

Huntington?!?  

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Tocavam sinos gigantes. Já me estava a habituar com aquela vida. Os sinosgigantes significavam que tínhamos todos de ir ao encontro do Pai. Todos nós,não importava o que estivéssemos a fazer, ao som dos sinos tínhamos de ir tercom Pai, que nos aguardava para ser adorado. Eu e os outros, vestíamosimpecáveis roupas brancas… Éramos anjos de verdade. Fazíamos o bem,

vivíamos a justiça, partilhávamos, recebíamos ensinamentos do Mestre,vivíamos em paz. A paz que todo o homem vivo desejaria.

Enquanto caminhava para o encontro do Pai, juntamente com os outros, todosdiferentes,  – uns loiros, outros morenos, brancos, negros, albinos, do oriente,ocidente, altos, baixos, magros, robustos, sem a mínima descriminação – penseino facto de que tudo o que eu conquistei enquanto “vivia” já não fazia sentido“aqui” onde me encontrava. 

O último cheque de dois biliões de dólares que carregava no meu bolso, já não

existia, e também “aqui” ninguém precisa dele. O respeito, prestígio, poder quelá tinha, “aqui” não existe. “Aqui” não sou líder, sou discípulo. “Aqui” não sousuperior, mas sim aluno, educando. “Aqui” só há um Mestre, “aqui” sempreexistiu apenas um Mestre. Fui aceite de braços abertos, mesmo depois de terblasfemado agressivamente e culpado ao Mestre de me ter abandonado quandomais precisei. Fui fraco na fé, Ele não me abandonou, eu o fiz. Ainda assim Elefoi bom comigo, Ele me perdoou e me deu a oportunidade de estar ali. Agora sóO agradecia por tudo o que Ele fizera por mim.

Ao som dos sinos, todos nós, “anjos”, caminhávamos para o encontro do  

Pai, que nos aguardava para ser louvado.

**Depois de me ter lançado para o rio, minha mente apagou. Quando abri osolhos, estava cercado de seres com vestes brancas olhando para mim.Perguntei quem eram eles e eles me responderam que eram anjos e o Paiordenara que me fossem buscar. Parece que finalmente aquilo era a vida depoisda morte. E realmente era, mas não como muitos devem estar a pensar. Eu nãomorri. Surpreendentemente, fui arrastado pela correnteza algumas vezes e fuiparar numa região muito distante da cidade. Fui levado até uma espécie de

aldeia com um grande templo e algumas cabanas ao redor do mesmo. Aqueleera um lugar divino. Parecia uma representação do que a bíblia falava sobre o  jardim do Éden. Lá residiam homens bons, que recrutavam homens para ostornar bons, os instruíam com a palavra divina, os induziam a evangelizar, osensinavam a viver em paz, partilha, e acima de tudo comunhão com o Pai.

Confessei os meus pecados aos pastores idosos que lá se encontravam e elesdisseram que eu podia recomeçar. Podia começar uma nova vida. Um ritual norio simbolizou o meu baptismo, e agora eu era outro homem. Todos os meses,eram seleccionados cinquenta homens e mulheres para ir à cidade levar à

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palavra santa para diversos lugares. Normalmente íamos para hospitais, prisões,parques e igrejas, num período de uma semana. Funcionávamos comomissionários e dormíamos na rua. Desprezávamos tudo o que era bem material,vivíamos como epicuristas. A beleza exterior de nada nos importava.

Certo dia, quando finalmente acharam que estava preparado para tal, fui um doscinquenta escolhidos para evangelizar em uma unidade presidiária. Por obra dodestino, eu calhei numa cela especial. Dentro daquela cela, se encontravaRonaldo, que foi preso injustamente pela morte de minha mãe e do Dr. JúniorAndré. O nosso encontro mudou muita coisa. Ele havia conseguido provassuficientes para afirmar a sua inocência e garantiu-me que em dias seria o seu

  julgamento. Eu fiquei feliz por ele e contei tudo o que se passou comigo. Eletambém achou que eu tivesse morrido no rio. Logo a seguir, eu manifestei aminha preocupação com o facto de já se terem passado cinco meses e eu aindanão ter morrido. Contei-lhe também que deixara de sentir as dores de cabeça da

doença e os movimentos involuntários. Ele disse que tinha algo para me contar.

 – Eu ameacei Trina logo depois de você ter se atirado para o rio. Estava frustrado com tudo o que ela te fez passar. Estava prestes a matá-la quando ela confessou tudo. Um dos teus empregados tinha a missão de te drogar. A droga que eles colocavam nas tuas refeições diárias, te dava aquelas dores de cabeça. A seringa que foi usada pelo pai de Trina para te tirar sangue, serviu para te injectar outra substância, que te fazia sair do estado sóbrio. Você nunca fez o escândalo no funeral da tua mãe, você nunca agrediu Rómulo, a televisão nunca filmou nada porque não houve nada. Você, inclusive, mesmo drogado,

falou as palavras mais sinceras que podias dizer num momento como aquele.Eu vi de longe, porque fui barrado por eles para que não assistisse ao funeral.  – Ele parou por algum tempo para recuperar o fôlego, e prosseguiu. – O Dr. Júnior André deixou uma carta por cima da mesa quando o encontrei morto.  

 – Explicava sobre a minha doença? Eu investiguei e ela existe mesmo.

 – Sim, ela existe e eles não mentiram quando disseram que aqueles membros todos da tua família tiveram e morreram daquela forma, aos quarenta e nove anos.

 – E porquê ainda não morri?  – Perguntei preocupado.

 – Bem… – Ele começou mas hesitou.

 – Fala, pelo amor de Deus!  – Alterei um bocado o tom de voz, atraindo a atenção dos guardas e outros presidiários.

 – Carlos… – Começou ele hesitando mais uma vez. – A dona Eulália, sempre foi uma boa mãe, mas ela nunca pôde gerar filhos.

 – Não estou a perceber. – Comecei a gritar  – Fala logo de uma vez! 

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  – Você foi adoptado, tal como eu. – Disse ele de uma vez por todas. – O Doutor Júnior escreveu aquilo na carta. Portanto, ainda te restam anos de vida.  

Lembro que aquela notícia mudou o rumo de toda a minha vida. Eu chorei. Fui

tratado como um filho biológico, daquilo nunca poderia esquecer. Continuamos oresto da semana naquela missão evangélica e pude ver Ronaldo muito maisvezes. Podia simplesmente tentar lutar para reaver o que perdi, mas do queadiantaria? Iria estar a lutar pelo material, quando eu tinha o suficiente noespiritual. Tinha a certeza de que Deus faria a sua própria justiça. E fez. Trina eo resto do grupo foi preso porque finalmente Taylor, o amigo de Ronaldo,conseguiu os incriminar e fazê-los pagar pelos seus crimes, na prisão, provandoassim a inocência de Ronaldo.

**

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IX. 

Para terminar… 

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“Ao som dos sinos subíamos a enorme escada que dava ao templo sagrado.Aquele era o nosso paraíso. Todos nós vestidos de branco, ajoelhamo-nos eadoramos à Deus durante quatro horas. Aprendi a viver de novo. Orei porRonaldo, pois ele agora tinha sido liberto e teria de começar a sua vidanovamente, presidindo a empresa. Já me tinha habituado com o “céu”. 

Independentemente dos factos que algum dia te depares, nunca desistas deviver. A vida pode muitas das vezes parecer dura demais para suportar, masnunca desistas dela. Deus nunca te dá pesos maiores do que podes suportar.Se acreditas Nele, não ache que Ele te abandonou quando algo te corre mal.Lembra-te que alguma vez Ele foi bom para contigo.

A doença de Huntington existe, e é muitíssimo rara. Ainda assim, não cabe aoshomens prever o dia de sua morte, mas de viver a sua vida ao máximo possível.

Eu antecipei a minha morte, mas renasci, noutra dimensão, noutro estado deespírito.

Com muita estima, escrevo esta história, com desejo que algum dia, algumhomem possa encontrar e poder compartilhar com o resto do mundo,traduzindo-a em diferentes línguas e fazer dela uma lição de vida.Aqui termina a tinta da minha caneta, a história da minha vida e… O meu legadocomo ser humano.” 

Carlos Artur  

FIM 

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Cláudio Fernando Kiala nasceu em Luanda aos 26 de Julho de1992. Filho de Kiala Pierre e Luzolo Ameriança. Começou aescrever desde tenra idade mas só aos 18 anos, no dia 03 deSetembro de 2010 teve a honra de publicar pela UNIÃO DOS

ESCRITORES ANGOLANOS a sua primeira obra literáriaintitulada PERDIDOS NA ESCURIDÃO, apadrinhada pelo

conceituado escritor Manuel Rui Monteiro. Cláudio Kiala, sob opseudónimo CFKAPPA, é artista de música RAP (com uma obra

discográfica publicada), além de estudante Universitário a

residir nos Estados Unidos de América. 

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