O Homem Que Era Quinta-Feira - G. K. Chesterton

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O Homem que Era Quinta-feira – ‘O Homem que era Quinta-Feira’ é, a um só tempo, uma sátira aos revoltosos escoceses e uma caricatura das conspirações políticas. O autor conseguiu ver e retratar, com maestria, o humor e o absurdo sempre presentes nas disputas políticas.

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  • O HOMEM QUE ERA QUINTA-FEIRA

  • Ttulo original: The Man Who Was Thursday (1908)

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    ALTHEIA EDITORESEscritrio na Rua do Sculo, n. 13

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    Traduo:Domingos Arouca (1943)

    Reviso:Jos Joo Leiria

    Capa:Hugo Neves

    Verso eBook:E-DITAR.COM

    Livros Digitais | Produo e Marketing

    ISBN: 978-989-622-564-3

    Setembro de 2013

    mailto:[email protected]://www.aletheia.pthttp://www.e-ditar.com
  • CAPTULO I

    OS DOIS POETAS DE SAFFRON PARK

    O arrabalde de Saffron Park, rubro e esfarrapado como uma nuvem ao pr do Sol, ficava apoente de Londres. Todo de tijolo vermelho, construdo sem plano, tinha um perfil fantstico.Fora o grande rasgo de um construtor especulativo, besuntado de arte, que atribua s suasconstrues, umas vezes, o estilo isabelino, outras vezes o do tempo da rainha Ana,parecendo confundir as duas soberanas. Nunca ali se produzira verdadeiramente arte, masconsideravamno, e com alguma justia, uma colnia artstica. As suas pretenses a centrointelectual seriam talvez um pouco vagas, mas ningum poderia negar que era um stioagradvel.

    Quem via pela primeira vez as suas estranhas casas vermelhas no podia deixar de pensarque as pessoas que l se acomodavam deviam ser um pouco fora do comum. E quando travavaconhecimento com ela no ficava desiludido.

    O local no era desagradvel, era mesmo perfeito, desde que no se encarasse como umadecepo, mas sim como um sonho.

    Os habitantes no seriam artistas; o conjunto, no entanto, era artstico. Aquele rapaz, delonga cabeleira cor de cenoura e rosto impudente, talvez no fosse um poeta, mas era decertoum poema. E esse velho respeitvel, de barba branca e desleixada, e chapu tambm branco edesleixado esse venervel charlato no seria, na verdade, um filsofo, mas pelo menosprovocava filosofia. E aquele cientista, careca como um ovo e de pescoo de ave, comprido enu, no tinha direito algum aos seus ares cientficos: nunca descobrira nada em biologia; masque ser poderia descobrir mais singular do que ele prprio?

    S havia uma maneira justa de encarar tudo aquilo: era no o considerar como oficina deartistas, mas sim como uma obra de arte, acabada e frgil. Quem se embebia na sua atmosferasocial sentia-se logo em plena comdia.

    Ao cair da noite, quando os extravagantes telhados se recortavam escuros no crepsculo etoda aquela louca aldeia parecia to isolada como uma nuvem deriva, experimentava-semais a atraco da irrealidade; principalmente nas muitas noites de festejos locais, quando osjardinzinhos estavam profusamente iluminados e as grandes lanternas chinesas brilhavamsuspensas de minsculas rvores, parecendo frutos selvagens e monstruosos; e muito emparticular numa clebre noite, ainda vagamente lembrada no stio, da qual o poeta ruivo foi oheri. Mas nem por sombras tinha sido a nica de que ele fora o heri. Em muitas outrasnoites, quem passasse pelo jardinzinho das traseiras de sua casa poderia ouvi-lo, em voz altae didctica, ditando a lei aos homens e especialmente s mulheres. A atitude destas, em taiscasos, era deveras um dos paradoxos do stio. A maior parte pertencia espcie vulgarmentechamada de emancipadas, que protesta contra a supremacia masculina. No entanto, essas

  • mulheres modernas lisonjeavam um homem como qualquer outra mulher o no faria ouviam-no enquanto ele falava. E Lucian Gregory, o poeta ruivo, merecia, na verdade, ser ouvido;ainda que fosse s para depois nos rirmos. Defendia a velha teoria da indisciplina da arte e daarte da indisciplina, com tal frescura e audcia que, de momento, agradava. O seu aspectoextravagante, na verdade cultivado por ele o mais possvel, ajudava-o muito. Tinha o cabelovermelho-escuro apartado ao meio, como uma mulher, caindo em vaporosos caracis, devirgem pr-rafaelita. Porm, desta anglica moldura projectava-se inesperadamente um rostolargo e brutal, de queixo espetado e com ar de desprezo gaiato. Este conjunto excitava eamarfanhava os nervos daquela populao de neurticos. Parecia uma blasfmia viva, umcruzamento de anjo com chimpanz.

    Aquela noite, se no for l relembrada por mais nada, s-lo- pelo estranho pr do Sol.Parecia o fim do Mundo. Todo o cu estava coberto de uma plumagem quase palpvel e dir-se-ia que essas penas nos roavam a cara. Na maior parte eram cinzentas, com os maisestranhos tons de violeta e de malva, de cor-de-rosa e de verde-plido; mas para ocidente oconjunto tornava-se indescritvel, transparente e vivo, e as ltimas penas incandescentesescondiam o Sol como coisa preciosa. Tudo aquilo estava perto de mais da terra parasignificar outra coisa que no fosse um segredo violento; o prprio firmamento parecia ser umsegredo, e exprimia aquela esplndida pequenez que a essncia do bairrismo. At o cuparecia pequeno.

    Algumas pessoas lembrar-se-o, quanto mais no seja por causa do cu opressivo, outrasporm record-la-o por ter coincidido com o aparecimento do segundo poeta de SaffronPark.

    O revolucionrio da cabeleira vermelha reinara sem rival por muito tempo, mas a suahegemonia terminou subitamente naquela noite. O novo poeta, que se apresentou com o nomede Gabriel Syme, era um mortal, com ar muito tmido, de barba loira pontiaguda e cabeloamarelo-claro. Mas depressa se generalizou a impresso de que no era to tmido comoparecia. Evidenciouse logo de entrada por discordar de Gregory, o poeta estabelecido, acercade toda a natureza da poesia. Dizia que ele, Syme, era um poeta cumpridor da lei, um poeta daordem, mais ainda, um poeta da respeitabilidade. Por isso todo o Saffron Park o olhou comose tivesse cado nesse instante daquele cu incrvel.

    E de facto o poeta anarquista Lucian Gregory relacionou os dois sucessos. Pode muito bem ser disse no seu tom lrico , pode muito bem ser que, numa tal noite

    de nuvens e cores diablicas, venha terra semelhante portento, um poeta respeitvel. Vocdiz ser um poeta obediente lei, eu digo que uma contradio viva. S me espanta que notenha havido cometa e tremores de terra na noite em que voc apareceu neste jardim.

    O homem dos tmidos olhos azuis e da barba loira, pontiaguda, suportou esta trovoada comcerta submisso solene. Rosamond, irm de Gregory e terceiro elemento do grupo, de tranasruivas como o irmo, mas de face mais doce, riu-se com aquele misto de admirao edesacordo que tinha habitualmente para com o orculo da famlia.

    Gregory resumiu gritando com eloquente bom humor: Um artista um anarquista. As duas palavras equivalem-se. Um anarquista um artista.

    O homem que atira uma bomba artista, porque prefere a tudo um momento culminante. Senteque o brilhar de uma chama e um belo estrondo valem muito mais que os corpos desfiguradosde meros polcia. Um artista desrespeita todos os governos, suprime todas as convenes. Um

  • poeta s na desordem se sente bem. Se no fosse assim, o metropolitano seria a coisa maispotica do Mundo.

    E retorquiu Syme. Tolices! exclamou Gregory, que era muito racional quando outro qualquer tentava

    paradoxos. Por que razo todos os passageiros dos comboios tm um ar triste e cansado, totriste e to cansado? Vou dizer-lhe: porque sabem que o comboio vai direito ao seu destino, porque sabem que chegaro estao para que tomaram bilhete. porque sabem que aestao a seguir a Sloane Square ser Vitria e nenhuma outra seno Vitria. Oh, que alegrialouca! Oh, como brilhariam os seus olhos e como as suas almas voltariam ao Paraso se aprxima estao fosse, inexplicavelmente, Baker Street!

    Quem no poeta voc replicou Syme. Se o que diz dos passageiros for verdade porque so to prosaicos como a sua poesia. Atingir o alvo, eis a coisa rara e estranha; falh-lo reles e vulgar. Achamos pico que um homem atinja com uma seta um pssaro distante.No ser tambm pico atingir uma estao distante com uma mquina? O caos enfadonhoporque nele o comboio podia, de facto, ir parar a qualquer parte, a Baker Street ou a Bagdad.Mas o homem um mgico, e a sua magia est nisto: diz Vitria, e eis que Vitria! Fique-secom os seus livros de mera prosa e poesia, e deixe-me ler, chorando de orgulho, um guia docaminho de ferro. Fique com o seu Byron, que comemora as derrotas do homem, e d-meBradshaw, que comemora as suas vitrias. A mim Bradshaw, digo eu!

    Tem de se ir embora? perguntou Gregory, sarcasticamente. Digo-lhe continuou Syme, com paixo que cada vez que chega um comboio sinto

    como se ele tivesse passado atravs de baterias de sitiantes, e que o homem ganhou umabatalha contra o caos. Voc diz desdenhosamente que quando se deixa Sloane Square se tem dechegar a Vitria. Digo-lhe que se poderiam fazer mil coisas diferentes, e ao chegar tenho asensao de ter escapado por pouco. Quando oio o revisor gritar Vitria!, dou palavra oseu sentido. Para mim o grito de um arauto anunciando a conquista. Para mim de factoVitria, a vitria de Ado.

    Gregory abanou lentamente a cabea e sorriu. Mesmo assim, ns, os poetas, perguntamos sempre: e que a Vitria, afinal? Voc pensa

    que Vitria como a Nova Jerusalm. Ns sabemos que a Nova Jerusalm apenas ser comoVitria. Sim, at nas ruas do cu o poeta estar descontente. O poeta est sempre revoltado.

    Syme comeou a irritar-se. L estamos outra vez! Que h de potico em ser-se revoltado? como se dissesse que

    estar enjoado potico. Adoecer uma revolta. H ocasies em que tanto estar doente comoestar revoltado lgico, mas diabos me levem se percebo porque isso potico. A revolta,em abstracto, revoltante. apenas um vmito.

    Ao ouvir esta palavra to desagradvel, a rapariga franziu a testa, mas Syme estavaentusiasmado de mais para lhe prestar ateno.

    Potico as coisas correrem direitas. Por exemplo, as nossas digestes decorrendosilenciosa e religiosamente certas, eis o fundamento de toda a poesia. Sim, a coisa maispotica, mais potica do que as flores, mais potica do que as estrelas, a coisa mais poticadeste mundo no estar doente.

    Realmente, os exemplos que voc escolhe escarneceu Gregory. Perdo, esqueci-me que tnhamos abolido todas as convenes.

  • Gregory corou. Voc no espera que eu, neste jardim, revolucione a sociedade?Syme fitou-o nos olhos e sorriu suavemente. No, mas acho que se o seu anarquismo fosse sincero era precisamente isso que faria.O grandes olhos de touro de Gregory fuzilaram como os de um leo furioso, e a sua juba

    vermelha, por assim dizer, quase se ergueu. Voc pensa ento disse em tom ameaador que o meu anarquismo no sincero? Perdo! O meu anarquismo ou no sincero? gritou Gregory, de punhos fechados. Oh, meu caro! fez Syme, e afastou-se.Foi surpreendido, mas com agrado, que viu Rosamond Gregory acompanh-lo. Sr. Syme, as pessoas que falam como o senhor e o meu irmo so sinceras no que dizem,

    a maior parte das vezes? sincero no que diz agora?Syme sorriu. E voc? Que quer dizer? perguntou ela muito sria. Minha querida Miss Gregory, h muitas espcies de sinceridade e de hipocrisia. Quando

    lhe passam o saleiro e diz muito obrigada, sincera? No . Quando diz o Mundo redondo, sincera? No, uma verdade, mas voc no a diz com conscincia. Ora, umhomem como o seu irmo por vezes encontra uma coisa em que sincero. Pode ser apenasmeia verdade, um quarto de verdade, um dcimo de verdade, mas acontece-lhe dizer mais doque quer fora de o pretender.

    Ela fitava-o, e sobre a sua face, grave e atenta, baixara a sombra daquela responsabilidadeirreflectida que existe no fundo da mais frvola mulher, o instinto maternal, que velho como oMundo.

    Ento, ele de facto um anarquista? S no sentido que lhe dei, ou se prefere, nessa falta de sentido.Ela carregou o sobrolho e disse abruptamente: Mas no seria capaz de atirar bombas ou fazer coisa que o valha?Syme soltou uma grande gargalhada que pareceu excessiva para a sua figura esguia e

    correcta. No, meu Deus! Isso tem de ser feito anonimamente.Ela prpria sorriu, pensando com prazer ao mesmo tempo no ridculo e na segurana de

    Gregory.Syme foi com ela at um banco, ao canto do jardim, e continuou a despejar as suas

    opinies. Porque era sincero e, apesar dos seus ares superficiais, no fundo um humilde. E sempre o humilde que fala demais, o orgulhoso est constantemente a observar-se. Defendeu arespeitabilidade com violncia e exagero, apaixonouse no elogio do arranjo e do asseio. sua volta havia sempre um cheiro a violetas.

    Ouviu vagamente, por momentos, um harmnio a tocar, em qualquer rua distante, epareceu-lhe que as suas palavras seguiam, audazes, uma msica vinda dos fins do Mundo.

    Esteve a falar e a olhar para a rapariga; julgou, apenas por alguns minutos, que ela oescutava com cara divertida; depois levantou-se, achando que num lugar daqueles os gruposdeviam misturar-se, mas notou com surpresa que o jardim estava deserto. Todos tinham

  • partido h muito, e ele fez o mesmo, dando uma desculpa apressada. Foi-se com a sensao deque bebera champanhe e lhe subira cabea, o que mais tarde no conseguiu explicar.

    A rapariga no tomou parte alguma nos estranhos acontecimentos que se seguiram, notornou mesmo a v-la antes do fim desta histria. E no entanto, inexplicavelmente, elacontinuou a aparecer-lhe, como um motivo musical, atravs de todas as loucas aventuras quese seguiram, e a aurola do seu estranho cabelo perpassava como um trao vermelho nessasescuras e imprecisas cenas nocturnas. Porque o que se seguiu era to incrvel que podia muitobem ter sido um sonho.

    Quando Syme chegou rua, iluminada pelas estrelas, encontrou-a momentaneamentedeserta, mas sentiu (sem saber bem porqu) que aquele silncio tinha vida. Mesmo em frenteda porta estava um candeeiro, cuja luz punha reflexos na folhagem que ali se debrua sobre apaliada. Meio metro atrs do candeeiro estava um vulto, quase to rgido e imvel como ele.Tinha chapu alto e casaco preto; a cara, escondida na sombra, no se distinguia. Apenas umafranja de cabelo, cor de brasa, e tambm qualquer coisa de agressivo na atitude, denunciavamo poeta Gregory. Parecia um espadachim, de arma em punho, espera do adversrio.Cumprimentou um pouco secamente, e Syme correspondeu com mais cortesia.

    Estava sua espera disse Gregory. Pode dar-me duas palavra? Decerto. Sobre o qu? perguntou Syme, um tanto admirado.Gregory apontou com a bengala para o candeeiro, depois para a rvore. Sobre isto e sobre aquilo. Acerca da ordem e acerca da anarquia. Ali est a sua preciosa

    ordem, aquele candeeiro de ferro, feio e estril, e aqui est a anarquia, rica, viva, frtil; eis aanarquia, magnfica, em ouro e verde.

    No entanto retorquiu Syme pacientemente , voc, neste momento, v a rvore porqueo candeeiro a ilumina. Admirar-me-ia muito se conseguisse ver o candeeiro luz da rvore. E depois de fazer uma pausa: Mas no me diga que esteve aqui espera, no escuro, s pararecomear a nossa discusso.

    No! gritou Gregory numa voz que se ouviu em toda a rua. No estou aqui pararecomear a discusso, mas sim para a acabar de uma vez para sempre.

    Fez-se de novo silncio, e Syme, que continuava a no perceber nada do que se passava,esperou, instintivamente, por qualquer coisa de srio.

    Gregory comeou, em voz pausada e com um sorriso desconcertante: Sr. Syme disse , o senhor fez esta noite uma coisa muito extraordinria. Fez o que

    nenhum outro homem tinha, at hoje, conseguido. Deveras? Quer dizer, j houve algum que o conseguiu (se bem me lembro), o capito de um navio

    em Southend. O senhor irritou-me. Lamento muito retorquiu Syme gravemente. Receio que a minha ira e o seu insulto sejam demasiado graves para se poderem apagar

    com desculpas. Nem com um duelo, nem mesmo que eu o matasse. Mas h uma forma deapagar o insulto, e essa que escolho. Vou provar, possivelmente com o sacrifcio da minhavida e da minha honra, que se enganou no que disse.

    Mas que disse eu? Que o meu anarquismo no srio. H graus de seriedade replicou Syme. Nunca duvidei de que fosse absolutamente

  • sincero no sentido de ter pensado que valia a pena dizer o que disse, de ter pensado que umparadoxo pudesse despertar os homens para uma verdade abandonada.

    Gregory fitou-o dolorosamente. E apenas nesse sentido que me julga srio? Pensa que sou um flneur, que por vezes

    diz uma verdade. No me julga srio num sentido mais profundo, mais violento?Syme bateu de rijo com a bengala nas pedras da rua. Srio! gritou. Meu Deus! Ser sria esta rua? Sero srias estas malditas lanternas

    chinesas? Ser sria toda esta bambochata? Chega-se aqui, diz-se uma poro de baboseiras etambm coisas acertadas, mistura, mas eu teria em muito pouca conta quem no tivesse navida nada mais srio do que todo este paleio, alguma coisa mais sria, seja religio ou apenasbebedeira.

    Muito bem disse Gregory, num tom misterioso , vai ver coisa mais sria do quereligio ou bebedeira.

    Syme ficou espera, com o seu ar habitual de complacncia, que Gregory recomeasse. Falou mesmo agora em religio. Na verdade tem alguma? Oh! exclamou Syme, sorrindo abertamente. Ns agora somos todos catlicos. Ento posso pedir-lhe que jure, por quaisquer deuses ou antas da sua religio, que no

    revelar a ningum, e especialmente Polcia, o que lhe vou dizer. Jurar? Se fizer essaterrvel abnegao, se consentir em mortificar a alma com um voto que nunca deveria ter feitoe com o conhecimento daquilo em que nem deveria ter sonhado, prometo-lhe em troca

    Que me promete em troca? Prometo-lhe uma noite muito divertida.Syme tirou subitamente o chapu. A sua oferta demasiado idiota para ser rejeitada. Voc disse que um poeta sempre um

    anarquista. No concordo; mas espero ao menos que seja sempre um desportista. Permita-meagora jurar-lhe aqui como cristo e prometer-lhe, como bom camarada e irmo de arte, queno relatarei Polcia nada, seja o que for. E agora, de que se trata?

    Acho melhor disse Gregory placidamente tomarmos uma carruagem.Soltou dois assobios estridentes e apareceu, aos solavancos, uma carruagem, em que os

    dois entraram silenciosamente. Gregory deu a morada de uma taberna obscura na margem dorio, junto a Chiswick. A carruagem partiu, e aqueles dois entes fantsticos deixaram a suacidade fantstica.

  • CAPTULO II

    O SEGREDO DE GABRIEL SYME

    A carruagem parou defronte de uma cervejaria, muito suja e suspeita. Gregory fez entrarrapidamente o companheiro. Sentaram-se a uma mesa de madeira, cheia de ndoas e com umaperna partida, numa espcie de salo-bar abafado e sombrio. O cubculo era to pequeno eescuro que, do criado que os atendeu, pouco mais se distinguia do que um vulto gordo ebarbado.

    Vai uma ceiazinha? perguntou Gregory amavelmente. O pat de foie-gras no grande coisa aqui, mas aconselho a caa.

    Syme ficou impvido, julgando que o outro gracejava. Respondeu, aceitando o jogo, comindiferena polida.

    Traga-me maionese de lagosta.Com espanto indescritvel, o criado apenas disse: Vem j, e afastou-se, com toda a

    aparncia de a ir buscar. E quanto a bebidas? recomeou Gregory, no mesmo tom de cuidado. Eu j jantei, por

    isso tomo s um crme de menthe. Mas o champanhe da casa de confiana. Comece aomenos por meia garrafa de Pommery.

    Muito obrigado! disse o impvido Syme. Voc muito amvel.Seguiram-se tentativas de conversa, um tanto desorganizadas, que o aparecimento da

    lagosta cortou, como um raio. Syme provou-a, achou-a ptima, e comeou a comeravidamente.

    Perdoe-me que esteja a apreciar a comida com to pouca discrio disse, sorrindo, aGregory. Poucas vezes tenho a sorte de ter sonhos destes. Nunca me aconteceu um pesadelotransformar-se numa lagosta; em regra sucede o contrrio.

    Posso garantir-lhe que no sonha. Pelo contrrio, aproxima-se do momento maissensacional da sua vida. A vem o seu champanhe. Concordo que h uma leve desproporo,digamos assim, entre o interior deste esplndido hotel e o seu exterior, simples e sempretenses. Mas tudo isto representa a nossa modstia, somos os homens mais modestos quealgum dia vieram ao mundo.

    Ns, quem? perguntou Syme, esvaziando a taa de champanhe. muito simples, ns, os anarquistas sinceros, em quem voc no acredita. Oh! Tratam-se bem no que respeita a bebida. De facto, somos srios em tudo disse Gregory e, depois de uma pausa, acrescentou:

    Se daqui a pouco a mesa comear a andar roda, no atribua isso ao gasto que fez dechampanhe, no quero que se julgue mal.

    Pois bem, se no estou bbado, estou doido retorquiu Syme, perfeitamente vontade ,

  • mas espero que, em qualquer dos casos, me saiba portar como um gentleman. Posso fumar? Pois no? disse Gregory, puxando da charuteira. Experimente um dos meus.Syme tirou um, cortou-lhe a ponta com um corta-charutos que trazia na algibeira do colete,

    p-lo na boca, acendeu-o e soprou uma grande fumaa. Abona muito em seu favor o terefectuado todas estas operaes com a mxima compostura, pois, momentos antes de ascomear, a mesa a que estava sentado comeara a girar, primeiro devagar, depoisrapidamente, como numa cena mgica.

    No se preocupe disse Gregory , uma espcie de parafuso. Deveras, uma espcie de parafuso?! comentou Syme calmamente. Que simplicidade!O fumo do charuto, que pairava no quarto em espirais caprichosas, subiu rapidamente,

    como o da chamin de uma fbrica, e ambos, com cadeiras e mesa, mergulharam atravs dosobrado, como se o cho os tivesse engolido. Desceram aos solavancos uma espcie dechamin, com a rapidez de um elevador desarvorado, e chegaram ao fundo com um baquebrusco. Mas quando Gregory abriu uma porta e deixou entrar uma luz vermelha, subterrnea,Syme continuava a fumar, de perna traada, e sem que um cabelo lhe tivesse bulido.

    Gregory conduziu-o atravs de um corredor baixo, ao fundo do qual estava a luz vermelha.Era uma enorme lanterna encarnada, quase to grande como um fogo, suspensa sobre umapequena e pesada porta de ferro, como uma espcie de escotilha, a que Gregory bateu cincovezes. Uma voz pesada, com sotaque estrangeiro, perguntou quem era, ao que ele deu asurpreendente resposta: Mr. Joseph Chamberlain. Os pesados gonzos comearam a mover-se; era, sem dvida, uma senha.

    Para l da porta, o corredor brilhava como se estivesse forrado de ao. Vendo melhor,Syme reparou que o brilho provinha de filas e filas de espingardas e revlveres, arrumados ouensarilhados, muito juntos.

    Peo-lhe que me perdoe todas estas formalidade disse Gregory. Aqui temos de sermuito severos.

    Por favor, no pea desculpa, conheo o seu amor lei e ordem observou Syme; epenetrou no corredor forrado de armas de ao. Ao atravessar aquela brilhante rua de morte,com o seu cabelo louro e comprido e o fraque ajanotado, a sua figura tinha um ar bastanteamaneirado e frgil.

    Percorreram vrios corredores semelhantes e chegaram por fim a uma estranha cmara deao, com paredes curvas, quase esfrica, mas que parecia, com as suas filas de bancos, umanfiteatro cientfico. Neste quarto no havia espingardas nem pistolas, mas pendiam dasparedes objectos ainda mais terrveis e duvidosos, que pareciam bolbos de plantas de ferro ougrandes ovos metlicos. Eram bombas, e o prprio quarto parecia o interior de uma bomba.Syme apagou o charuto de encontro parede e entrou.

    E agora, meu caro Syme pronunciou Gregory, atirando-se expansivamente para umbanco sob a maior das bombas , agora que estamos confortavelmente instalados, vamos falara srio. No h palavras humanas que lhe possam dar uma ideia da razo por que o trouxeaqui. Foi uma dessas emoes perfeitamente arbitrrias, como a de saltarmos de um penhascoou apaixonarmo-nos. Basta dizer que voc foi inconcebivelmente irritante e, faa-se-lhe essajustia, continua a s-lo. Eu era capaz de quebrar vinte juras s pelo prazer de o rebaixar. Amaneira que voc tem de acender um charuto faria um padre trair o segredo da confisso. Poisbem, disse-me que estava convencido de que eu no era um anarquista a srio. Este lugar

  • parece-lhe srio? Parece-me que, com toda a sua alegoria, tem uma moralidade concordou Syme. Mas

    permite-me que lhe faa duas perguntas? No deve recear dar-me informaes porque, se bemme lembro, voc, muito ajuizadamente, extorquiu-me a promessa de nada dizer Polcia, eesteja certo de que a cumprirei. , pois, a mera curiosidade que me leva a fazer estasperguntas. Em primeiro lugar, para que realmente tudo isto? Querem abolir o Governo?

    Queremos abolir Deus! pronunciou Gregory, abrindo uns olhos de fantico. Noqueremos apenas derrubar alguns despotismos e regulamentos policiais; essa espcie deanarquistas existe de facto, mas no passa de um ramo do no conformismo. Ns cavamosmais fundo e queremos faz-lo ir pelos ares mais alto. Negamos todas essas distinesconvencionais entre vcio e virtude, honra e traio, em que os simples rebeldes se baseavam.Os sentimentalistas tolos da Revoluo Francesa falavam nos Direitos do Homem. Nsodiamos o Direito do mesmo modo que o Erro. Acabmos com o Direito e o Erro.

    E espero que tambm com o Direito e o Esquerdo. Fazem-me muita confuso. Falou numa segunda pergunta disse Gregory asperamente. Com todo o prazer recomeou Syme. Em todos os seus actos presentes e no ambiente

    que o circunda, nota-se uma tentativa cientfica de dissimulao. Tive uma tia que morava porcima de uma loja, mas a primeira vez que encontro gente que goste de viver por baixo deuma taberna. Tm uma pesada porta de ferro, que no podem transpor sem a humilhao de seintitularem Mr. Chamberlain, cercam-se de instrumentos de ao que tornam o stio, permita-meo termo, mais imponente do que familiar. Pergunto porque que, depois de todo este trabalhoem se barricarem nas entranhas da terra, voc exibe o seu segredo, falando em anarquismo atoda a mulher tola de Saffron Park?

    Gregory sorriu. A resposta fcil. Disse-lhe que era um anarquista sincero, e voc no acreditou; ora

    eles tambm no. A no ser que os trouxesse a esta sala infernal, no acreditariam.Syme, que fumava pensativo, olhou-o com interesse. Gregory prosseguiu: A histria deste caso talvez o divirta. Quando me tornei anarquista, tentei toda a espcie

    de disfarces respeitveis. Primeiro vesti-me de bispo. Tinha lido, nos nossos panfletosSuperstio, eis o Vampiro e Padres de Rapina, tudo o possvel acerca de bispos. Dessesescritos conclu que eles eram uns velhos estranhos e terrveis que ocultavam humanidadeum segredo cruel. Fui mal informado. Quando pela primeira vez me apresentei num salo comas vestes episcopais e clamei: Humilha-te! Humilha-te, presunosa razo humana!descobriram logo que eu no era bispo. Apanharam-me. Depois, tentei passar por milionrio,mas defendia o capital com tanta inteligncia que qualquer idiota via logo que eu era pobre.Em seguida, experimentei ser major. Ora, eu sou um humanitrio, mas tenho, parece-me,suficiente largueza de esprito para compreender aqueles que, como Nietzsche, admiram aviolncia a louca e orgulhosa guerra da Natureza, e tudo o mais, compreende. Tomei a srioo major, desembainhava a espada e agitava-a constantemente, gritando, distrado, Sangue!,como quem pedia vinho; dizia muitas vezes: Os fracos devem sucumbir, a lei! Pois bem,parece que os majores no fazem nada disto. Apanharam-me de novo. Por fim, desesperado,fui ter com o presidente do Conselho Central Anarquista, que o maior homem da Europa.

    Como se chama? Voc no o conhece. Nisto est a sua grandeza. Csar e Napoleo empregaram todo o seu

  • gnio em se tornarem conhecidos, e conseguiram-no. Ele emprega todo o seu gnio em passardespercebido, e tambm o consegue. Mas basta estar cinco minutos com ele para nosconvencermos de que, nas suas mos, Csar e Napoleo no passariam de duas crianas.

    Calou-se por um momento, e at empalideceu, depois continuou: Um conselho dado por ele sempre to sensacional como um epigrama e no entanto to

    prtico como o Banco de Inglaterra. Eu disse-lhe: Que disfarce me pode ocultar do mundo?Que posso encontrar mais respeitvel do que bispos e majores? Fitou-me, com o seu enormee indecifrvel rosto: Quer um disfarce seguro, no verdade? Uma mscara que o faaparecer inofensivo, um fato sob o qual nunca ningum procuraria uma bomba? Fiz que simcom a cabea. Ergueu subitamente a sua voz de leo: Pois bem, seu idiota, vista-se deanarquista!, gritou, de tal maneira que a casa tremeu. E virou-me as costas largas sem maispalavra. Segui o conselho e nunca me arrependi. Dia e noite pregava sangue e atentadosquelas mulheres, e elas, benza-as Deus, deixavam-me empurrar os carrinhos das crianas.

    Nos grandes olhos azuis de Syme notava-se um certo respeito, e disse: Levou-me certa. de facto um embuste engenhoso. Depois de uma pausa,

    acrescentou: Como chamam a esse vosso tremendo presidente? Em geral, chamamos-lhe Domingo retorquiu Gregory com simplicidade. O Conselho

    Central Anarquista compe-se de sete membros, que tomam os nomes dos dias da semana. Ele Domingo, alguns admiradores chamam-lhe Domingo Sangrento. curioso que voc falassenisso, porque nesta mesma noite em que aqui veio parar (permita-me a expresso), a nossaseco de Londres, que se rene neste quarto, tem de eleger o seu delegado para preencheruma vaga no Conselho. O homem que ultimamente ocupou, com zelo e aplauso geral, o lugarde Quinta-Feira morreu subitamente e, em consequncia disso, convocmos uma reunio paraesta noite a fim de eleger o sucessor.

    Levantou-se e comeou a passear, sorrindo com ar embaraado. Oia, Syme, no sei porqu, sinto que voc como se fosse a minha me, sinto que lhe

    posso fazer todas as confidncias, visto que me prometeu no dizer nada a ningum, e de factovou-lhe confiar uma coisa que no seria capaz de dizer aos anarquistas que dentro de uns dezminutos entraro aqui. claro que haver uma votao, mas no me importo de lhe dizer que oresultado j praticamente conhecido. Baixou os olhos por um momento, com modstia, eprosseguiu: coisa quase assente que eu serei Quinta-Feira.

    As minhas felicitaes, meu caro amigo disse Syme calorosamente. Espera-o umabrilhante carreira.

    Gregory sorriu, enleado, e continuou a passear e a falar rapidamente. Para dizer a verdade, est tudo preparado para me eleger e a cerimnia deve ser o mais

    curta possvel.Syme aproximou-se da mesa e viu que sobre ela se encontravam uma bengala, que depois

    verificou ser das de estoque, um grande revlver Colt, um pacote de sandes e uma formidvelgarrafa de brandy. Junto mesa, sobre uma cadeira, estava uma pesada capa.

    Gregory continuou a falar com grande animao: apenas acabar este simulacro de eleio, depois pego nesta capa e na bengala, meto as

    outras coisas na algibeira, saio por uma porta que existe nesta caverna e que vai dar ao rio,onde j est uma lancha a vapor minha espera, e depois oh, depois, a louca alegria de serQuinta-Feira! e dizendo isto apertava as mos uma na outra.

  • Syme, que se sentara mais uma vez com a sua habitual languidez insolente, ergueu-se comuma hesitao que no lhe era vulgar.

    Porque ser que o acho um tipo bastante fixe? Porque ser, Gregory, que gosto deverasde si? Fez uma pequena pausa e acrescentou, com um ar de curiosidade atrevida. Ser porvoc ser um asno to grande?

    Calou-se de novo, pensativo, e depois exclamou: Diabos levem tudo isto! a situao mais engraada em que me tenho encontrado, e vou

    proceder de acordo com ela. Gregory, antes de aqui entrar fiz-lhe uma promessa, que noquebrarei nem que me torturem. Ser voc capaz de, para minha segurana, me fazer umjuramento semelhante?

    Gregory ficou admirado. Um juramento? Sim confirmou Syme, muito srio. Um juramento. Eu jurei perante Deus no revelar o

    seu segredo Polcia; ser voc capaz de jurar, pela Humanidade, ou l pelas coisas em queacredita, no revelar o meu segredo aos anarquistas?

    O seu segredo? Voc tem um segredo? Tenho, sim. E, aps uma pausa: Jura?Gregory encarou-o por momentos, depois disse abruptamente: Voc por certo me enfeitiou, o caso que sinto uma grande curiosidade por si. Pois

    bem, juro no dizer aos anarquistas nada a seu respeito, mas avie-se, porque eles chegarodentro de momentos.

    Syme levantou-se e enfiou as mos brancas e comprida nas profundas algibeiras dascalas cinzentas. Quase ao mesmo tempo, cinco pancadas na porta exterior anunciaram achegada do primeiro conspirador.

    Pois bem pronunciou Syme vagarosamente , a maneira mais rpida de lhe dizer averdade parece-me que declarar-lhe que o seu expediente de se disfarar de poeta erranteno s conhecido de si ou do seu presidente. H muito que usamos essa manha na ScotlandYard.

    Gregory tentou erguer-se de um salto, mas por trs vezes oscilou. Que diz? perguntou, numa voz que no era humana.Syme pronunciou com simplicidade: Sim, verdade. Sou um agente da Polcia. Mas parece-me que oio os seus amigos

    chegarem. porta murmuraram Mr. Joseph Chamberlain. Repetiu-se duas, trs, trinta vezes, e

    sentia-se a multido de Josephs Chamberlains (a viso solene) a avanar pelo corredor.

  • CAPTULO III

    O HOMEM QUE ERA QUINTA-FEIRA

    Antes que aparecesse porta algum dos recm-chegados, j Gregory se refizera dasurpresa, saltara para junto da mesa, rugindo como um leo, pegara no revlver Colt eapontara-o a Syme.

    Este no pestanejou, mas ergueu a mo, plido e corts. No seja idiota disse, com a dignidade efeminada de um cura. No v que no vale a

    pena, no v que estamos ambos a bordo do mesmo barco, sim, e na verdade muito enjoados?Gregory estava incapaz de falar e de disparar tambm. No v que demos ambos xeque-mate um ao outro? exclamou Syme. Eu no posso

    dizer Polcia que voc anarquista, voc no pode dizer aos anarquistas que eu sou polcia.Eu apenas posso vigi-lo, sabendo quem voc , voc apenas me pode vigiar, sabendo quemeu sou. Resumindo, um duelo singular e intelectual, a minha inteligncia contra a sua. Eu souum agente privado do auxlio da Polcia; voc, meu pobre amigo, um anarquista privado de leie organizao, to necessrias anarquia. H apenas uma diferena, e essa em seu favor: vocno est cercado por polcias curiosos. Eu no o posso denunciar, mas posso denunciar-me.Ver como o farei com elegncia.

    Gregory baixou vagarosamente a pistola, continuando a olhar para Syme como se estefosse um monstro marinho.

    No acredito na imortalidade disse por fim , mas, se depois de tudo isto voc faltasse sua palavra, Deus faria um inferno s para si, onde voc rechinasse para sempre.

    No faltarei minha palavra prometeu Syme severamente. Nem voc faltar sua.Eis os seus amigos.

    A massa dos anarquistas entrou no quarto, pesadamente, com um andar oscilante e um tantoarrastado, mas um homenzinho de culos e barba preta, um homem no gnero do Sr. TimHealy, saiu do grupo e avanou, com uns papis na mo.

    Camarada Gregory disse , suponho que este indivduo um delegado?Gregory, apanhado de surpresa, baixou os olhos e balbuciou o nome de Syme, mas este

    replicou prontamente: Vejo com satisfao que a vossa porta est to bem guardada que difcil encontrar-se

    aqui algum que no seja um delegado.O homenzinho de barba preta ainda mostrava, no entanto, um ricto de certa suspeita. Que ramo representa? perguntou asperamente. No lhe chamarei bem um ramo respondeu Syme a rir , mas sim antes uma raiz. Que quer dizer?Syme continuou com calma:

  • Na verdade, sou um sabatariano. Vim aqui ver se cumprem escrupulosamente as ordensde Domingo.

    O homenzinho deixou cair um dos papis, e pela face de todos perpassou um frmito demedo. Era manifesto que o terrvel presidente, conhecido por Domingo, s vezes enviavaembaixadores extraordinrios a assembleias locais como aquela.

    Bem, camarada disse o homem dos papis, depois de uma pausa , acho que o melhor dar-lhe um lugar na assembleia.

    Se quer o meu conselho de amigo retorquiu Syme, com benevolncia severa , achotambm ser isso o melhor que tem a fazer.

    Quando Gregory viu acabar este perigoso dilogo, com sbita segurana para o seu rival,levantou-se e comeou a passear de um lado para o outro, imerso em pensamentos dolorosos.Estava, de facto, numa situao de complicada diplomacia. Era evidente que Syme, com o seuatrevimento inesperado, se livraria de todos os dilemas meramente acidentais. Pouco sepoderia esperar disso. Ele prprio no podia denunci-lo, em parte por uma questo de honra,em parte porque, se o fizesse e por qualquer razo no o conseguisse destruir, o Syme queescapasse seria um Syme livre de todo o compromisso de segredo, um Syme que se dirigiriasimplesmente esquadra mais prxima. E, no fim de contas, tratava-se apenas da discusso deuma noite e de um detective que a conhecia.

    Nessa noite revelaria o mnimo dos seus planos, deixaria Syme ir e correria o risco.Dirigiu-se para o grupo de anarquistas, que j se estava espalhando pelos bancos. Acho que tempo de comearmos, a lancha a vapor j est espera no rio. Proponho

    que o camarada Buttons assuma a presidncia.Ergueram-se mos, aprovando a proposta, e o homenzinho dos papis tomou a cadeira

    presidencial. Camaradas comeou ele, em tom seco como um tiro de pistola , a nossa reunio de

    hoje importante, se bem que no necessite de ser demorada. Este ncleo tem tido sempre ahonra de eleger Quinta-Feira para o Conselho Central Europeu, e j elegeu muitos emagnficos. Todos lamentam a triste morte do herico obreiro que at semana passadaocupou o posto; os seus servios causa foram, como sabem, notveis. Organizou o grandeatentado dinamitista de Brighton, que, se as circunstncias tivessem sido mais felizes, teriamatado todos os que estavam no cais. Como tambm sabem, a sua morte foi uma prova deabnegao to grande como a sua vida, pois morreu devido sua confiana numa misturahiginica de giz e gua que tomou em substituio do leite, pois considerava esta bebidabrbara, por ser uma crueldade para a vaca. Sempre o revoltou tudo o que fosse crueldade ouque com ela se parecesse. Mas no foi para proclamar as suas virtudes que nos reunimos, esim para realizar uma tarefa mais rdua. difcil apreciar devidamente as suas qualidades,mas mais difcil ainda substitu-las. a vs, camaradas, que esta noite incumbe escolher, deentre os presentes, aquele que ser Quinta-Feira. Se algum camarada sugerir um nome, p-lo-ei votao, seno apenas poderei dizer a mim mesmo que o querido dinamitista arrancado aonosso convvio levou para abismos desconhecidos o ltimo segredo da sua virtude e da suainocncia.

    Houve um murmrio de aprovao, quase imperceptvel, como s vezes sucede na Igreja.Em seguida, um velho robusto, de barba branca, comprida e venervel, talvez o nicoverdadeiro operrio presente, levantou-se e disse:

  • Proponho que seja eleito Quinta-Feira o camarada Gregory e tornou a sentar-se. H algum que no aprove? perguntou o presidente.Um homenzinho de casaco de veludo e barba pontiaguda sugeriu: Antes de pr votao este assunto, peo ao camarada Gregory que faa uma

    declarao.Gregory levantou-se, entre grande rudo de vozes. Tinha a cara to plida que, por

    contraste, a sua estranha cabeleira ruiva parecia quase escarlate, mas sorria e estavaperfeitamente vontade. J se resolvera, e via diante de si, como uma estrada lisa, a poltica aseguir. O melhor jogo seria fazer um discurso brando e ambguo, que desse ao detective aimpresso de que a comunidade anarquista era, no fim de contas, uma coisa muito moderada.Acreditava no seu trabalho literrio, na sua capacidade para sugerir tons apropriados eescolher palavras perfeitas. Pensou que, com cuidado, conseguiria dar, apesar de todos os queo rodeavam, uma ideia subtil e delicadamente falsa da instituio. Syme j pensara que osanarquistas, apesar de toda a sua bravata, estavam a armar aos pssaros. Seria ele capaz de,na hora do perigo, fazer Syme pensar de novo o mesmo?

    Camaradas principiou Gregory, em voz baixa mas penetrante , no tenho necessidadede lhes dizer qual a minha poltica, pois a vossa tambm. A nossa crena tem sidocaluniada, tem sido desfigurada, tem sido completamente confundida e encoberta, mas nuncafoi alterada. Esses que falam do anarquismo e dos seus perigos vo buscar as suasinformaes a toda a parte, excepto a ns, excepto origem. Conhecem os anarquistas atravsde novelas baratas, conhecem os anarquistas atravs de jornais de comerciantes, conhecem osanarquistas atravs do Ally Sloper Hall-Holiday e do Sporting Times. Nunca conheceram osanarquistas atravs dos anarquistas. No tm possibilidades de negar as calnias monumentaisque de uma ponta outra da Europa se amontoaram sobre as nossas cabeas. Quem diz quesomos pragas vivas nunca ouviu a nossa resposta. Sei que a no ouvir esta noite, mesmo queeu grite at fender o tecto. Porque aos perseguidos s permitido reunirem-se debaixo dosolo, como os cristos nas catacumbas. Mas, se eu perguntasse a algum que sempre nostivesse compreendido mal, e que, por um acaso inacreditvel, se encontrasse aqui esta noite:Quando esses cristos se reuniam nas catacumbas, qual era a sua reputao nas ruas quepassavam por cima? Que histrias contavam uns aos outros os Romanos educados acerca dassuas actividades? Suponha ( o que lhe diria), suponha que estamos apenas repetindo esseainda misterioso paradoxo da histria; suponha que parecemos to inocentes como eles,suponha que parecemos to loucos como os cristos porque de facto somos to brandos comoeles.

    As aprovaes que tinham saudado as primeiras frases foram diminuindo de intensidade eas ltimas palavras fizeram-nas acabar de todo. O silncio sbito foi quebrado, em voz defalsete, pelo homem do casaco de veludo.

    Eu no sou brando!Gregory recomeou: O camarada Witherspoon diz que no brando. Como se conhece mal! A sua fala de

    facto extravagante, o aspecto feroz e at, para gostos vulgares, pouco atraente. S um olharamigo, to sensvel e penetrante como o meu, pode ver que no fundo dele existe uma slidabrandura. To fundo que ele no consegue ver. Mas ns somos, repito, como os cristosprimitivos, a diferena que chegmos tarde de mais. Somos simples como eles, vejam o

  • camarada Witherspoon; somos modestos como ele, olhem para mim; somos misericordiosos. Nunca, nunca! gritou Witherspoon, o do casaco de veludo. Digo que somos misericordiosos repetiu Gregory furioso como o eram os cristos

    primitivos, e no entanto isto no evitava que fossem acusados de comer carne humana. Nsno comemos carne humana.

    uma vergonha! gritou Witherspoon. Porque no? O camarada Witherspoon deseja saber continuou Gregory, com ironia febril qual a

    razo por que ningum o come (risos). Pelo menos na nossa sociedade, que o estimasinceramente, que baseada no amor

    Nunca, nunca, abaixo o amor! que baseada no amor insistiu Gregory, rangendo os dentes , no haver

    dificuldade em escolher os fins que, em globo, procuramos atingir, ou que, pelo menos,procurarei atingir se for nomeado para a representar. Soberbamente indiferentes s calniasque nos pintam como assassinos e inimigos da sociedade, procuraremos atingir, com coragemmoral e persuaso intelectual, os ideais eternos da fraternidade e da simplicidade.

    Gregory voltou a sentar-se e passou a mo pela fronte. Fez-se um silncio sbito eembaraoso, mas o presidente levantou-se como um autmato e disse em voz inspida:

    Algum se ope eleio do camarada Gregory?A assembleia parecia vaga e subconscientemente desiludida e o camarada Witherspoon

    mexia-se inquieto na cadeira e murmurava para dentro da barba espessa. A moo teria sidoaprovada, por mera rotina, mas, quando o presidente ia abrir a boca para a propor, Symelevantou-se e disse em voz baixa e calma:

    Oponho-me eu, senhor presidente.O que produz maior efeito em oratria uma sbita mudana de tom, e Gabriel Syme

    percebia sem dvida de oratria. Tendo pronunciado estas primeiras palavras em tommoderado e com simplicidade breve, fez ecoar as seguintes, como se uma das espingardas setivesse disparado.

    Camaradas! gritou, em tom que fez todos levantarem-se das cadeiras. Foi para istoque aqui viemos? Viemos escondidos como ratos, para ouvir um palavreado destes? Podamosouvi-lo a comer bolos numa festa da escola dominical. para evitar que algum oia ocamarada Gregory dizer-nos sejam bons e sero felizes, a melhor poltica ahonestidade, a virtude tem em si a prpria recompensa, que forraram estas paredes comarmas e barram aquela porta com a morte? No h uma palavra no discurso do camaradaGregory que um cura no ouvisse com prazer (apoiado, apoiado). Mas eu no sou um cura(muitas palmas) e no o ouvi com agrado (novos aplausos). O homem que serve para ser umbom cura no serve para ser um Quinta-Feira decidido, tenaz e eficiente (muito bem, muitobem). O camarada Gregory disse-nos, em termos humildes de mais, que no ramos inimigosda sociedade. Mas eu digo que o somos, e tanto pior para a sociedade. Somos seus inimigos,porque a sociedade inimiga da humanidade, a sua mais velha e cruel inimiga (apoiados). Ocamarada Gregory disse-nos tambm, com ar de desculpa, que no somos assassinos. Nissoconcordo com ele. No somos assassinos, somos executores (aplausos).

    Desde que Syme se levantara, Gregory ficou a olhar para ele, parvo de espanto.Aproveitando a pausa, moveu os lbios de cera, para dizer, distinta mas automaticamente esem vida:

  • Seu hipcrita do diabo!Syme, com os seus olhos azuis plidos, fitou direito os terrveis olhos do outro, e disse: O camarada Gregory acusa-me de hipocrisia, mas sabe to bem como eu que estou a

    satisfazer todos os meus compromissos e cumprindo apenas o meu dever. No estou comfalsas falinhas mansas, nem o pretendo. Digo que o camarada Gregory, apesar de todas as suaslouvveis qualidades, no serve para Quinta-Feira e no serve precisamente por ter essasqualidades. No queremos que o Supremo Conselho da Anarquia fique empestado com aestpida misericrdia (apoiado). No tempo para cortesias nem para modstias. Sou contrao camarada Gregory como sou contra todos o Governos da Europa, porque o anarquista que seentrega ao seu ideal esquece tanto a modstia como o orgulho (aplausos). No sou um homem,sou uma causa (aplausos repetidos). Sou contra o camarada Gregory to impessoal ecalmamente como se fosse quele armrio, ali na parede, escolher uma pistola em vez deoutra, e prefiro propor-me a ser eleito do que ter o camarada Gregory e os seus mtodosaucarados no Supremo Conselho.

    A ltima frase foi abafada por uma revoada ensurdecedora de palmas. As caras que, medida que a tirada se ia tornando cada vez mais intransigente, se tornavam mais e maisferozes estavam agora distendidas em sorrisos de expectativa ou fendidas por gritos desatisfao. Quando anunciou que estava pronto a propor-se para o posto de Quinta-Feira,levantou-se um rugido de excitao e assentimento, que se tornou indomvel, e ao mesmotempo Gregory ergueu-se de um salto, espumando da boca, e gritando contra a gritaria.

    Parem, seus loucos malditos! berrou, numa voz que lhe rasgava a garganta. Parem,seus

    Mas, mais alto que os gritos de Gregory, mais alto do que o berreiro que ia no quarto,ouviu-se a voz de Syme, falando ainda em tom de trovo sem piedade:

    No vou para o Conselho rebater a calnia que nos chama assassinos, vou merec-la(grandes e prolongados aplausos). Ao padre que diz que estes homens so inimigos da lei, aogordo parlamentar que diz que so inimigos da ordem e da moral pblicas, responderei: soisfalsos reis mas profetas verdadeiros, vim para vos destruir e para cumprir as vossasprofecias.

    O rumor tinha-se atenuado a pouco e pouco, mas ainda no acabara e j Witherspoon seerguera, com a barba e a cabeleira desgrenhadas, e dissera:

    Proponho, em aditamento, que o camarada Syme seja eleito. Acabem com isto, j lhes disse gritou Gregory, frentico. Acabem, tudoA voz do presidente, em tom frio, cortou-lhe o discurso: Algum aprova o aditamento?Viu-se levantar, lentamente, no ltimo banco, um homem alto, cansado, com olhos

    melanclico e pra americana. J h algum tempo que Gregory estava a berrar, agora houveuma mudana no tom da sua voz mais chocante que qualquer grito.

    Vou acabar com isto! gritou em voz pesada como pedra. Este homem no pode sereleito, um

    Ento disse Syme, sem pestanejar , o qu?Gregory engoliu em seco duas vezes, o sangue refluiu lentamente sua face cadavrica, e

    disse: uma pessoa sem nenhuma experincia do nosso trabalho e sentou-se pesadamente.

  • Antes que acabasse de o fazer, j o homem comprido e esgalgado, o da barba americana,se levantara de novo e repetia com agudo sotaque ianque:

    Aprovo a eleio do camarada Syme. O aditamento ser, conforme o costume, posto primeiro votao. Prope-se o

    camarada Syme.Gregory levantou-se de novo, espumando: Camaradas gritou , eu no sou um louco. Oh! Oh! fez Witherspoon. No sou um louco insistiu Gregory, com uma sinceridade to tremenda que por

    momentos fez vacilar a assistncia , mas vou-lhes dar um conselho, que chamaro louco, sequiserem. No, no um conselho, porque vos no posso dar qualquer justificao para ele, uma ordem. Chamem-lhe uma ordem louca, mas cumpram-na. Batam-me, mas oiam! Matem-me, mas obedeam! No elejam esse homem.

    A verdade, mesmo acorrentada, to terrvel que, por um momento, a tnue e disparatadavitria de Syme oscilou como um vime.

    Ma no se via isso nos seus olhos azuis. Apenas disse: O camarada Gregory ordenaO encanto quebrou-se e um dos anarquistas gritou para Gregory: Quem julga que ? Voc no Domingo.E outro acrescentou em voz mais pesada: Voc nem sequer Quinta-Feira. Camaradas gritou Gregory, com uma voz de mrtir que, no xtase da dor, tivesse

    passado alm dela , tanto me faz que me detestem como tirano ou como escravo. Se noobedecerem minha ordem, aceitem a minha degradao. Ajoelho aos vossos ps e imploro-vos: no elejam esse homem.

    Camarada Gregory disse o presidente, depois de uma pausa dolorosa , isso no digno.

    Pela primeira vez no decorrer destes acontecimentos, houve alguns segundos de silncioautntico. Gregory deixou-se cair na cadeira, prostrado, e o presidente repetiu, como umrelgio a que se tivesse de novo dado corda:

    Prope-se que o camarada Syme seja eleito para o lugar de Quinta-Feira no ConselhoGeral.

    O rumor levantou-se como o mar, os braos ergueram-se como uma floresta e trs minutosdepois Gabriel Syme, do Servio Secreto da Polcia, era eleito para o lugar de Quinta-Feirano Conselho Geral dos Anarquistas Europeus.

    Todos os presentes pareciam sentir a lancha espera no rio, o estoque e o revlver espera na mesa. Assim que a eleio findou e se tornou irrevogvel e que Syme recebeu odocumento que provava a sua nomeao, todos se levantaram e os grupos incendiadosdeslocaram-se e misturaram-se. Syme encontrou-se, no se sabe bem como, face a face comGregory, que ainda o fitava atordoado de raiva. Durante longos minutos mantiveram-se emsilncio.

    Voc um diabo proferiu Gregory por fim. E voc um cavalheiro replicou Syme gravemente. Foi voc que me meteu nesta ratoeira disse Gregory, tremendo da cabea aos ps.

  • No diga tolices. Se vamos a isso, foi voc que me meteu nesta espcie de parlamentodiablico. Foi voc que primeiro me fez jurar. Talvez ambos estejamos a fazer o quepensamos que bem. Mas o que ambos pensamos que bem to diferente que no podemosfazer qualquer concesso um ao outro. Entre ns no h relao possvel seno na morte e nahonra e, dizendo isto, ps aos ombros a grande capa e pegou na bengala que estava em cimada mesa.

    Buttons aproximou-se, apressado, a dizer: O barco est pronto. Faa o favor de me seguir.Com um gesto que revelava o caixeiro, conduziu Syme atravs dum corredor, curto e

    forrado de ferro, e o ainda angustiado Gregory seguiu-os de perto. Ao fundo do corredor haviauma porta, que Buttons abriu com deciso, e ficou subitamente vista o quadro azul e prata dorio iluminado pelo luar, que parecia um cenrio. Junto abertura estava uma lancha a vapor,minscula e escura, que parecia um drago-menino, com um olho vermelho.

    Ao subir para bordo, Gabriel Syme virou-se para o embasbacado Gregory: Voc cumpriu a sua palavra. um homem honrado e eu agradeo-lhe. Cumpriu-a at o

    mais pequeno pormenor. Houve uma coisa em especial que me prometeu logo ao princpiodisto, e que de facto me proporcionou.

    Que quer dizer? gritou o confuso Gregory. Que lhe prometi eu? Uma noite muito divertida respondeu Syme, e fez a continncia militar com a bengala,

    enquanto o barco se afastava.

  • CAPTULO IV

    A HISTRIA DE UM DETECTIVE

    Gabriel Syme no era apenas um detective que pretendia ser poeta, era um poeta que setornara detective. Nem to-pouco era hipcrita o seu dio anarquia. Ele era daqueles quecedo na vida so levados a tomar uma atitude demasiado conservadora por causa da loucuraconfusa da maioria dos revolucionrios. No chegara a ela devido a uma calma tradio: a suarespeitabilidade era espontnea e sbita, uma revolta contra a revolta. Provinha de umafamlia de caturras, na qual os membros mais idosos tinham as ideias mais modernas. Um dosseus tios passeava sempre sem chapu, outro fizera uma tentativa, mal sucedida, de passearcom chapu e sem mais nada. O pai cultivava a arte e a realizao de si prprio, a mededicava-se simplicidade e higiene. Da resultou que a criana, durante os seus primeirosanos, desconheceu qualquer bebida entre os extremos do absinto e do cacau, ambas as quaisdetestava cordialmente. Quanto mais a me pregava uma abstinncia ultrapuritana, mais o paise expandia numa relaxao ultrapag, e pela altura em que a primeira chegara ao ponto deimpor o vegetarianismo, o ltimo chegara quase a defender o canibalismo.

    Gabriel, vendo-se cercado desde a infncia por toda a espcie possvel de revolta, tiveratambm de se revoltar, e seguira o nico caminho livre: o do equilbrio. Mas restava-lhe umadose suficiente do sangue daqueles fanticos para tornar o seu protesto em prol do sensocomum demasiado feroz para ser sensato. O seu dio anarquia moderna fora tambmcoroado por um acidente. Aconteceu que ia a passar na rua no momento em que se deu umatentado dinamitista. Por momentos ficara cego e surdo e, quando o fumo se dissipou, vira asjanelas partidas e o rostos a sangrar.

    Depois deste incidente, continuou a sua vida do costume sossegado, corts, bastanteamvel , mas havia um sector do seu crebro que no regulava bem. No encarava osanarquistas como a maior parte de ns o fazemos, como um punhado de indivduos mrbidos,que aliam a ignorncia ao intelectualismo. Encarava-os como um perigo enorme e impiedoso,como uma invaso chinesa.

    Despejava continuamente nos jornais, e nos seus cestos dos papis, uma srie de contos,versos e artigos violentos precavendo os homens contra este novo dilvio de negaobarbrica. No parecia, porm, que se aproximasse do inimigo, nem to-pouco de um modo devida. Quando passeava ao longo do cais do Tamisa, mordendo amargamente um charuto baratoe meditando sobre o avano da Anarquia, no havia anarquista de bomba na algibeira quefosse mais selvagem ou mais solitrio do que ele. De facto, imaginava sempre o Governo s edesesperado, encurralado num beco sem sada. E era demasiado quixotesco para se importarcom ele se assim no fosse.

    Passeava um dia no cais, sob um pr do Sol vermelho-escuro. O rio vermelho reflectia o

  • cu vermelho, e ambos reflectiam a sua ira. Na realidade, o cu estava to escuro e a luz norio relativamente to brilhante, que a gua quase parecia uma chama mais viva que o pr doSol que nela se espelhava. Parecia uma torrente de fogo a serpentear sob as vastas cavernasde um pas subterrneo.

    Syme, naquele tempo, andava mal vestido. Usava um chapu alto fora de moda, andavaembrulhado num sobretudo preto e roto, ainda mais fora de moda, e aquele vesturio dava-lheum aspecto de cnico de romance de Dickens ou Bulwer Lytton. A barba e o cabelo amareladotambm andavam mais hirsutos e despenteados do que quando, muito mais tarde e j aparadose penteados, apareceram nos jardins de Saffron Park. Pendia-lhe dos dentes cerrados umcharuto negro, esguio e comprido, comprado no Soho por dois pence, e no conjunto passavapor um espcime muito satisfatrio dos anarquistas a quem votara guerra santa. Foi talvez porisso que um polcia se dirigiu a ele e lhe deu as boas-tardes.

    Syme, numa das suas crises de temor mrbido pela arte da humanidade, pareceu picadopela simples solidez do automtico guarda, um mero vulto azulado no crepsculo.

    Com que ento boa tarde? disse rispidamente. Vocs seriam capazes de chamar boa-tarde ao fim do mundo. Olhe para aquele pr do Sol vermelho de sangue e para o riosangrento! Mesmo que se tratasse de facto de sangue humano, voc continuaria na calma, procura de um pobre inocente vagabundo a quem pudesse mandar circular. Vocs, os polcias,so cruis para os pobres, mas, se no fosse a vossa calma, talvez me sentisse capaz de atessa crueldade perdoar.

    Se somos calmos porque temos a calma da resistncia organizada. H? proferiu Syme, boquiaberto. O soldado tem de ser calmo no mais aceso da batalha. A compostura do exrcito a ira

    da nao. Valha-me Deus, as Board Schools! Isto que a educao laica? No respondeu tristemente o polcia. Nunca tive nenhuma dessas regalias, as Board

    Schools ainda no existiam no meu tempo. Receio que a educao que recebi fosse muitogrosseira e antiquada.

    Onde a recebeu? Oh, em Harrow.As simpatias de classe que, apesar de todas as suas falsidades, so, em tantos homens,

    dos sentimentos mais reais manifestaram-se em Syme antes que ele as pudesse refrear. Mas, meu Deus, homem! Voc nunca devia ser polcia.O guarda suspirou e abanou a cabea. Bem sei disse solenemente , bem sei que no sou digno. Mas porque se alistou na Polcia? inquiriu Syme, com curiosidade malcriada. Pela mesma razo por que voc a insultou. Descobri que no servio havia um lugar

    especial para aqueles cujos receios pela humanidade se relacionavam mais com as aberraesdo intelecto cientfico do que com as erupes, normais e desculpveis, se bem queexcessivas, da vontade humana. Espero que me faa compreender.

    Se pergunta se se exprime com clareza, suponho que assim . Mas agora, se quer dizerque se faz compreender, isso nunca. Como explica que um homem como voc esteja, decapacete azul na cabea, a falar de filosofia junto s margens do Tamisa?

    evidente que no ouviu falar nos mais recentes mtodos do nosso sistema policial, e

  • no me admiro, pois no os revelamos s classes educadas, pois nelas se encontram a maiorparte dos nossos inimigos. Mas parece-me que voc atravessa o estado de espritoapropriado. Creio que est quase a unir-se a ns.

    Unir-me a quem? Vou-lhe dizer respondeu o polcia com lentido. A situao a seguinte: testa de

    uma das nossas reparties est um dos mais clebres detectives europeus, que h muito daopinio de que uma conspirao puramente intelectual brevemente ameaar a prpriaexistncia da civilizao. Est certo de que os mundos artsticos e cientficos se uniramsilenciosamente numa cruzada contra a famlia e contra o Estado. Em vista disto, formou umcorpo especial de polcias, que so simultaneamente filsofos, e seu dever observar o inciodesta conspirao, no s no sentido criminal, como tambm no controverso. Eu prprio soudemocrtico e concebo perfeitamente o que vale o homem vulgar em assuntos de valor ouvirtude vulgares. Mas bvio que no seria conveniente empregar polcias vulgares numainvestigao que tambm uma caada heresia.

    Nos olhos de Syme brilhava curiosidade simpatizante. Que fazem ento? O trabalho do polcia filsofo ao mesmo tempo mais audacioso e mais subtil que o do

    polcia vulgar. Este vai aos tascos prender ladres, ns vamos aos chs de artistas descobrirpessimistas. O detective vulgar descobre, por uma agenda ou por um dirio, que se cometeuum crime. Ns, num livro de sonetos, descobrimos que se vai cometer um crime. Temos dedescobrir a origem desses horrveis pensamentos que empurram os homens para o fanatismo eo crime intelectual. Chegmos mesmo a tempo de evitar o atentado de Hartlepool e isso deve-se exclusivamente ao facto de o nosso Sr. Wilks (um rapazinho muito esperto) tercompreendido perfeitamente um poema.

    Quer dizer que de facto h assim hoje tanta relao entre o crime e o intelecto? Voc no bastante democrtico, mas tinha razo quando h pouco dizia que o nosso

    tratamento normal do criminoso pobre um tanto brutal. Confesso-lhe que muitas veze meaborreo com o meu ofcio, quando vejo que ele uma guerra perptua ao ignorante e aodesesperado. Mas este nosso novo movimento um caso muito diferente. Ns negamos apresunosa concepo inglesa de que os criminosos perigosos so os sem educao.Lembramo-nos dos imperadores romanos, dos prncipes envenenadores do Renascimento, edizemos que o criminoso mais perigoso o educado. Dizemos que, presentemente, ocriminoso mais perigoso o filsofo moderno, sem o mnimo respeito pela lei. Comparadoscom ele, os gatunos e os bgamos so indivduos essencialmente morais, e eu estou de alma ecorao com eles. Aceitam a ideia essencial acerca do homem, mas buscam-na erradamente.Os ladres respeitam a propriedade, apenas desejam que ela se torne sua, a fim de a poderemrespeitar melhor. Mas os filsofos detestam a propriedade na sua essncia, querem destruir aprpria ideia de possesso pessoal. Os bgamos respeitam o casamento, caso contrrio no sesujeitariam formalidade, altamente cerimoniosa e at ritual, da bigamia. Mas os filsofosdesprezam o casamento por ser casamento. Os assassinos respeitam a vida humana, somentedesejam atingir neles prprios uma maior plenitude dela pelo sacrifcio do que lhes pareceserem vidas inferiores. Mas os filsofos odeiam a vida em si, tanto a prpria como a dosoutros.

    Syme bateu as mos.

  • Que verdade isso ! Sentia-o desde a minha adolescncia, mas nunca fui capaz de oexprimir bem. O criminoso vulgar um homem mau, mas ao menos , se assim se pode dizer,um homem condicionalmente bom. Segundo ele, se um nico e determinado obstculo fosseremovido, digamos um tio rico, estaria pronto a aceitar o mundo tal qual ele e a louvar aDeus. um reformador, mas no um anarquista, quer limpar o edifcio mas no destru-lo. Ofilsofo maldoso no deseja alterar as coisas, mas sim aniquil-las. Em verdade, o mundomoderno conservou todas as partes do trabalho policial que so de facto opressivas eignominiosas: a perseguio dos pobres, a espionagem dos infortunados, e abandonou a suaobra mais digna, o castigo de poderosos traidores contra o Estado e de poderosos heresiarcascontra a Igreja. Os modernos dizem que no devemos punir os herticos. A minha nicadvida se teremos o direito de punir mais algum.

    Mas isto absurdo! gritou o polcia, apertando as mos uma na outra, com umaexcitao invulgar em pessoa do seu fsico e uniforme. Mas isto intolervel! No sei o quefaz, mas est decerto a desperdiar a sua vida. Voc deve ir, voc vai alistar-se no nossocorpo especial contra a anarquia. Os seus exrcitos esto nas nossas fronteiras, o seu golpeest pronto a ser vibrado. Um momento mais e pode perder a glria de trabalhar connosco,talvez a glria de morrer com os ltimos heris do mundo.

    de facto uma oportunidade que se no deve perder concordou Syme , mas eu aindano percebi bem. Sei to bem como qualquer outro que o mundo moderno est cheio dehomenzinhos sem lei e de movimentozinhos loucos, mas, sendo todos bestiais, tm em geral omrito de estar em desacordo uns com os outros. Em que se baseia para dizer que elesconduzem um exrcito ou preparam um golpe? O que esta anarquia?

    No a confunda com essas ocasionais erupes dinamitistas, vindas da Rssia e daIrlanda, que so na realidade erupes de homens oprimidos, se bem que enganados. Isto umvasto movimento filosfico composto de dois anis, um exterior, outro interior. Pode atchamar aos do anel exterior os laicos e aos do interior os sacerdotes. Eu prefiro dizer que oanel exterior a seco inocente, e que o anel interior a seco supremamente culpada. Oanel exterior, a grande massa dos adeptos, apenas de anarquistas, isto , homens que cremter sido a felicidade humana destruda por regras e frmulas. Crem que todos os males queprovm dos crimes humanos resultam do sistema que lhes chamou crimes. No acreditam queo crime criou o castigo, mas sim que o castigo criou o crime. Crem que um homem podeseduzir sete mulheres e conservar-se to inocente como as flores primaveris, que se umhomem roubar uma carteira se sentir naturalmente, refinadamente bom. So estes que euchamo a seco inocente.

    Oh! exclamou Syme. Naturalmente, portanto, essa gente fala dos bons tempos que ho-de vir, do paraso

    futuro, da humanidade liberta das grilhetas do vcio e da virtude, e assim por diante. Etambm assim falam os homens do crculo interior, os sacerdotes sagrados. Tambm s massasque aplaudem eles falam da felicidade futura e do gnero humano por fim libertado. Mas nassuas bocas e o polcia baixou a voz estas frases felizes tm um significado medonho. Elesno tm iluses, so demasiado intelectuais para pensar que neste mundo o homem se possalibertar completamente do pecado original e da luta pela vida. O que eles querem a morte.Quando falam no gnero humano por fim livre, querem dizer com isso que a humanidade sesuicidar. Quando falam em paraso sem certo nem errado, querem dizer o tmulo. Tm

  • apenas dois objectivos: primeiro, destruir a humanidade; depois, destrurem-se a si prprios. por isso que lanam bombas em vez de disparar pistolas. A inocente arraia-mida ficadesapontada porque a bomba no matou o rei, mas os grandes sacerdotes ficam contentesporque matou algum.

    Como me posso alistar no vosso grupo? perguntou Syme, entusiasmado. Sei de certeza que neste momento h uma vaga, e tenho a honra de merecer uma certa

    confiana do chefe em que lhe falei. Voc devia ir v-lo, ou antes, porque no devo dizer v-lo, nunca ningum o v, devia falar-lhe.

    Pelo telefone? perguntou Syme, interessado. No, ele tem a mania de estar sempre num quarto escuro como breu. Diz que lhe torna as

    ideias mais luminosas. Venha da.Syme, um tanto deslumbrado e muito excitado, deixou-se levar at uma porta lateral da

    comprida fila de edifcios da Scotland Yard. Antes que soubesse o que fazia, j tinha passadopelas mos de quatro guardas intermedirios e fora introduzido num quarto, cuja escuridoabrupta o alarmou tanto como um jacto de luz. No era como a escurido normal, na qual sepodem distinguir vagamente as coisas, era como se tivesse cegado subitamente.

    Voc o novo recruta? perguntou uma voz grossa.Por um instinto inexplicvel, pois no se distinguia nada na escurido, Syme compreendeu

    duas coisas: primeiro, que era a voz de um homem de grande estatura; segundo, que essehomem estava de costas para ele.

    Voc o novo recruta? repetiu o chefe invisvel, que parecia j estar ao corrente doque se passava. Muito bem, est alistado.

    Syme, completamente aturdido, lutou debilmente contra esta frase irrevogvel: No tenho experincia nenhuma comeou. Ningum tem experincia da batalha do Armagedo disse o outro. Mas, de facto, no sirvo Tem boa vontade, e isso chega ops o desconhecido. Na verdade, no sei de profisso na qual a boa vontade seja a prova final de admisso. Sei eu: a profisso de mrtir. Estou a conden-lo morte. Bom dia.E foi assim que, quando Gabriel Syme, de chapu alto e sobretudo, ambos velhos e

    coados, viu de novo a luz rubra da tarde, era j membro do Novo Corpo de Detectives,destinado a frustrar a grande conspirao.

    Seguindo os conselhos do seu amigo polcia (que profissionalmente tinha tendncia para oarranjo), aparou o cabelo e a barba, comprou um chapu novo, vestiu-se com um elegante fatode Vero, azul-cinzento-claro, ps uma flor amarela plida na botoeira, em resumo,transformou-se naquele indivduo janota e um tanto insuportvel que Gregory encontrara nosjardinzinhos de Saffron Park. Antes de abandonar as instalaes da Polcia, o seu amigo dera-lhe um pequeno carto azul, no qual estavam escritos A ltima Cruzada e um nmero, e queera a marca da sua autoridade oficial. P-lo cautelosamente na algibeira de cima do colete,acendeu um cigarro, e partiu a descobrir e combater o inimigo em todos os sales de Londres.At onde a sua aventura o levou j ns vimos. Numa noite de Fevereiro, por volta da uma emeia, estava a subir o Tamisa numa pequena lancha, armado com uma bengala-estoque e umrevlver, e era o legtimo Quinta-Feira do Conselho Central dos Anarquistas.

    Quando Syme embarcou, teve a sensao singular de entrar para algo de completamente

  • novo, no apenas no horizonte de uma nova terra, mas mesmo no horizonte de um novoplaneta. Isto devia-se principalmente deciso, louca e no entanto firme, que tomara naquelanoite, e tambm em parte completa mudana do tempo e do cu desde que, cerca de duashoras antes, entrara na pequena taberna. Todos os traos da plumagem vibrante do nublado prdo Sol haviam sido varridos, e no cu nu brilhava apenas a Lua. Esta estava to cheia ebrilhante que (por um paradoxo que muitas vezes se observa) parecia um Sol mais fraco.Dava, no a sensao de um luar brilhante, mas sim a da luz plida do dia.

    Sobre toda a paisagem brilhava uma descolorao luminosa e artificial, semelhante aocrepsculo desastroso de que Milton fala como sendo irradiado pelo Sol em eclipse. Foi porisso que Syme regressou facilmente sua ideia primitiva de estar de facto num planetadiferente e mais vazio, que girava em volta de uma estrela mais triste. Mas quanto mais sentiaesta desolao cintilante na terra iluminada pelo luar, mais a sua loucura cavalheirescabrilhava como um grande fogo na noite. At as coisas vulgares que levava consigo, a comida,o brandy e a pistola carregada, tomavam precisamente aquela poesia concreta e material queuma criana sente quando leva uma espingarda em passeio ou um bolo para a cama. O estoquee o frasco de brandy, se bem que em si fossem apenas os instrumentos de conspiradoresmrbidos, tornavam-se as expresses do seu prprio e mais sadio romance. O estoque quasese transformou na espada da cavalaria e o brandy no vinho do Graal. Porque at as maisdesumanizadas fantasias modernas dependem de qualquer figura simples e antiga; as aventuraspodem ser loucas, mas o aventureiro tem de estar no seu juzo. Sem So Jorge, o drago nemsequer grotesco seria. Por isso era apenas a presena de um ser realmente humano que tornavaimaginria esta paisagem inumana. Para o crebro exagerador de Syme, as casas brilhantes efrias e os terraos junto ao Tamisa pareciam to vazios como as montanhas da Lua. Mas atesta s potica porque h um homem na Lua.

    A lancha era manobrada por dois homens, e deslocava-se com dificuldade e lentamente. Oluar claro que iluminava Chiswick desaparecera quando passaram Battersea, e ao chegaremdebaixo do vulto enorme de Westminster comeava a romper o dia. Este despontava como oquebrar de grandes barras de chumbo, mostrando laivos de prata, e aquela brilhava como fogobranco, quando a lancha, mudando de rumo, virou para um grande cais de acostagem, bastantepara l de Charing Cross.

    Quando Syme olhou para as grandes pedras das docas, pareceram-lhe tambm escuras egigantescas. Projectavam-se, imensas e negras, no enorme e claro nascer do dia. Tinha asensao de que desembarcava nos degraus colossais de um palcio egpcio, e na verdade aimagem ajustava-se ao seu estado de esprito, porque, na sua ideia, subia ao ataque dos tronosslidos de horrendos reis pagos. Saltou do barco para um degrau escorregadio, e ficou firme,com o seu vulto escuro e esguio a destacar-se da enorme cantaria. Os dois tripulantes dalancha afastaram-na e viraram-na rio acima. No tinham pronunciado uma s palavra.

  • CAPTULO V

    O FESTIM DO MEDO

    A princpio, a grande escadaria de pedra pareceu a Syme to deserta como uma pirmide,mas antes de chegar ao topo viu um homem encostado ao parapeito do cais, a olhar para ooutro lado do rio. O seu aspecto era perfeitamente normal, de chapu alto de seda, fraque aorigor da moda e flor vermelha na lapela. Manteve-se imvel enquanto Syme se aproximavapasso a passo, at chegar suficientemente perto para distinguir, apesar de a luz da madrugadaser fraca e plida, uma cara comprida, descorada e intelectual, terminando num pequeno tufotriangular de barba escura, enquanto o resto do rosto estava rapado. Este tufo de cabelo quaseparecia um esquecimento, pois o resto da cara era do tipo que fica mais bem barbeado bemcinzelada, asctica e, a seu modo, nobre.

    Syme aproximou-se cada vez mais, reparando em tudo isto, e o vulto continuou imvel.Logo de incio, um instinto dissera a Syme que era este o homem com quem devia

    encontrar-se. Depois, vendo que ele no fazia nenhum sinal, conclura que no. Agora voltara-lhe de novo a certeza de que o homem tinha qualquer coisa de comum com a sua loucaaventura. Porque, vendo um estranho aproximar-se, mantinha-se numa imobilidade que no eranatural. Estava to parado como um boneco de cera e irritava do mesmo modo. Syme olhou etornou a olhar para a cara plida, digna e delicada que continuava a fitar indiferente a outramargem. Em seguida tirou do bolso o certificado passado por Buttons, atestando a sua eleio,e p-lo na frente daquela cara triste e bela. O homem ento sorriu, e o seu sorriso foi umchoque, porque era todo para um lado, subindo na face direita e descendo na esquerda.

    Racionalmente, no havia motivo para se ficar assustado com isso. Muita gente tem estetique nervoso de sorrir torcido, e em alguns at atraente. Mas nas circunstncias em queSyme se encontrava, a madrugada escura, a sua perigosssima misso e a ascenso das grandespedras a escorrerem gua, era caso para se enervar. Ali estavam um rio silencioso e umindivduo tambm silencioso, cujo rosto chegava a ser clssico. E a coroar o pesadelo aquelesorriso torcido.

    O espasmo foi instantneo e a cara do homem voltou imediatamente sua melancoliaharmnica. Sem dar explicaes, ou fazer perguntas, dirigiu-se a Syme como a um velhocolega.

    Se formos at Leicester Square, chegaremos mesmo a tempo para o pequeno-almoo.Domingo insiste sempre em almoar cedo. Voc dormiu?

    No. Nem eu continuou o homem com naturalidade. Vou ver se me deito depois do almoo.Falava com amabilidade cordial, mas num tom completamente morto, que contrastava com

    o fanatismo do rosto. Quase parecia que, para ele, todas as palavras amigas eram

  • convenincias inertes; e que a sua vida se resumia ao dio. Depois de uma pausa, falou denovo:

    claro que o secretrio da delegao lhe disse tudo o necessrio. Mas h uma coisa quenunca se pode dizer, e que a ltima ideia do presidente, porque as ideias nascem nele comoplantas numa floresta tropical. Caso no saiba, acho melhor dizer-lhe que ele agora insiste, atlimites inconcebveis, na ideia de nos ocultarmos mostrando-nos bem. A princpio, claro,reunamo-nos numa cela subterrnea, como faz a vossa delegao. Depois, Domingo fez-nosalugar um quarto particular num restaurante. Disse que se no parecesse que nos escondamosningum nos procuraria. Bem sei que ele um homem nico sobre a Terra, mas s vezes chegoa pensar que o seu crebro colossal est a enlouquecer com a idade. Agora tomamos opequeno-almoo numa varanda, uma varanda que, imagine, deita para Leicester Square.

    E que dizem as outras pessoas? O que dizem simplicssimo. Que somos um grupo de cavalheiros joviais a brincar aos

    anarquistas. Parece-me uma ideia muito inteligente. Inteligente! Diabos levem o atrevimento! Inteligente! gritou o outro, com voz

    estridente, que foi to desconcertante e discordante como o seu sorriso torcido. Voc, depoisde ter visto Domingo um segundo, deixar de lhe chamar inteligente.

    Com isto emergiram de uma rua estreita e viram Leicester Square banhada pelo Solmatutino. Suponho que nunca se saber por que razo esta praa parece to estrangeira e, emcertos aspectos, to continental. Ser o ambiente estrangeiro que atrai os estrangeiros, ousero eles que lhe do esse ambiente? Naquela manh o seu aspecto era particularmentebrilhante e lmpido. O conjunto da praa, das folhas iluminadas pelo Sol, da esttua e daslinhas mouriscas do Alhambra, parecia uma rplica de uma praa francesa ou mesmoespanhola. E este efeito aumentou em Syme a sensao que, sob vrias formas, tivera em todaaquela aventura, a sensao etrea de se ter transviado num mundo novo. Na realidade, desderapaz que fora muitas vezes a Leicester Square comprar charutos ordinrios. Mas ao dobrar aesquina, quando viu as rvores e as cpulas mouriscas, quase ia jurar que estava numa cidadeestrangeira, na Place de qualquer coisa.

    Num dos cantos da praa projectava-se a esquina de um hotel luxuoso, mas sossegado,cujo corpo principal pertencia a uma rua que passava por trs. Na parede havia uma enormejanela, provavelmente a de um grande caf e, exteriormente a ela, quase se podia dizersuspensa sobre a praa, uma varanda, circundada por formidvel balaustrada, de tamanhosuficiente para conter uma mesa de jantar. De facto estava l uma ou, para ser mais exacto,uma mesa de almoo, e roda dela, estiraados ao sol e bem em evidncia da rua, um grupode indivduos barulhentos e faladores, trajando todos ltima moda, de coletes brancos eflores caras na lapela. Alguns dos seus ditos quase se ouviam do outro lado da praa. Ento osevero secretrio exibiu o seu sorriso estranho e Syme compreendeu que aquela almoaradaanimada era o conclave secreto dos Dinamitistas Europeus.

    Syme continuou a observ-los, e foi ento que viu uma coisa em que ainda no reparara.Pode dizer-se que no a vira porque era grande de mais para ser vista. No extremo maisprximo da varanda, tapando uma grande parte da perspectiva, estavam as costas dum homemque parecia uma montanha. Quando Syme o viu pela primeira vez teve a sensao de que avaranda no aguentaria aquele peso. A vastido do homem no estava apenas em ser

  • descomunalmente alto e incrivelmente gordo: as suas propores originais tinham sidodelineadas em grande escala, como as de uma esttua destinada a ser colossal. A cabea,coroada por cabelos brancos, dir-se-ia, vista de trs, maior do que devia ser uma cabea. Asorelhas que dela emergiam pareciam maiores que orelhas humanas. Estava proporcionada emgrande escala, e esta sensao de tamanho era to fantstica que, quando Syme o viu, toda asoutras figuras diminuram subitamente e tornaram-se ans. Ainda ali estavam sentados comoantes, com os seus fraques e as suas flores, mas parecia que o homenzarro convidara cincocrianas a tomar ch.

    Quando Syme e o seu guia se aproximaram da porta lateral do hotel, veio ao encontrodeles um criado que sorria de tal forma que se lhe viam todos os dentes.

    Os cavalheiros esto l em cima. Conversam e riem do que dizem. Falam em atirarbombas ao rei. E afastou-se rapidamente, com o guardanapo sob o brao, muito satisfeito coma estranha frivolidade dos cavalheiros l de cima. Os dois homens subiram a escada emsilncio. Syme nunca pensara em perguntar se o homem monstruoso, que quase enchia eesmagava a varanda, era o grande presidente, que os outros todos tanto temiam: sabia queassim era, adquirira instantnea e inexplicavelmente essa certeza. Na realidade, Syme era umdesses indivduos cujo grau de receptividade a todas as influncias psicolgicas chega a serligeiramente perigoso para a estabilidade mental. Absolutamente destitudo de medo, quandose tratava de perigos fsicos, era demasiado sensvel aproximao do mal espiritual. J porduas vezes naquela noite pequenas coisas sem significao o tinham sobressaltado e dado asensao de se aproximar cada vez mais do quartel-general do Inferno, sensao essa que setornou esmagadora ao aproximar-se do grande presidente.

    A forma que ela tomou foi a de um capricho infantil e, no entanto, odioso. Enquantoatravessava o salo interior, em direco varanda, a cara de Domingo tornava-se cada vezmaior, e de tal maneira que o assaltou o temor de que, ao chegar junto dela, fosse to grandeque no pudesse olh-la sem gritar. Lembrou-se de que, em criana, no podia olhar para a mcara de Mmnon, no Museu Britnico, por esta ser um rosto demasiado grande.

    Fazendo um esforo mais corajoso do que o necessrio para se lanar a um abismo,dirigiu-se a uma cadeira vazia e sentou-se. Os outros acolheram-no com piadas bem-humoradas, como se o conhecessem h muito. Acalmou-se ao ver que usavam casacosconvencionais e ao observar a cafeteira, slida e brilhante. Depois tornou a olhar paraDomingo. O rosto era enorme, mas no entanto humanamente suportvel.

    Na presena do presidente, toda aquela sociedade parecia trivial, no havia nada nelesque primeira vista atrasse a ateno, excepto que, por capricho do chefe, vestiam todos comrespeitabilidade festiva, o que dava ao repasto o ar de um banquete de casamento. Havia noentanto um que se distinguia mesmo numa observao superficial. Aquele, pelo menos, era umbombista vulgar. verdade que usava o colarinho branco e alto e a gravata de cetim, ouniforme da ocasio, mas do colarinho emergia uma cabea absolutamente intratvel einconfundvel, um matagal desconcertante de barba e cabelos castanhos, que quase lheobscurecia os olhos, como um co-de-gua. Estes espreitavam sob o emaranhado, e eram unsolhos tristes de servo russo. O efeito desta figura no era to terrvel como a do presidente,mas tinha todo o ar diablico que pode provir do completamente grotesco. Se daquelecolarinho surgisse subitamente a cabea de um co ou de um gato, o contraste no seria maisdisparatado.

  • Chamava-se, segundo parecia, Gogol, era polaco e naquele crculo de dias desempenhavao lugar de Tera-Feira. A sua alma e as suas palavras eram incuravelmente trgicas, no eracapaz de se forar a representar o papel prspero e frvolo que o presidente Domingo deleexigia. Quando Syme entrou, estava o presidente, com o desprezo audaz da desconfianapblica que era sua poltica, a troar de Gogol pela sua falta de jeito para fingir dotesmundanos.

    O nosso amigo Tera-Feira disse o presidente, com voz profunda, a um tempo calma evolumosa o nosso amigo Tera-Feira parece no atingir a ideia. Veste-se como os elegantesmas aparentemente tem uma grandeza de alma tal que no lhe permite portar-se como eles.Insiste nos seus modos de conspirador de palco. Se um cavalheiro de fraque e chapu altopassear em Londres, ningum conclui que um anarquista, mas se andar de gatas possvelque atraia a ateno. isso que o nosso irmo Gogol faz, anda de gatas com tal diplomaciainexaustiva que j chegou ao ponto de ter dificuldade em andar direito.

    No presto para disfarces rosnou Gogol, casmurro, com uma forte pronnciaestrangeira. No me envergonho da causa.

    Envergonha-se, sim, meu rapaz, e a causa envergonha-se de si disse, com bonomia, opresidente. Voc esconde tanto como qualquer outro: a questo que no o sabe fazer,porque um grande asno! Voc pretende combinar dois mtodos antagnicos. Quando um donode casa encontra um homem debaixo da cama, provavelmente far uma pausa para tomar notado acontecimento, mas, se o homem usar chapu alto, concordar comigo, meu caro Tera-Feira, que natural nunca mais se esquecer do facto. Ora, quando voc foi encontrado debaixoda cama do almirante Biffin

    No sirvo para me esconder ops Tera-Feira, sombrio e corando. Muito bem, meu rapaz, muito bem disse o presidente, com entusiasmo , voc no

    serve para nada.Enquanto continuava esta torrente de conversa, Syme ia observando melhor os homens que

    o rodeavam. Ao faz-lo, sentiu voltar-lhe gradualmente a sensao de algo espiritualmenteestranho.

    Pensara de incio que eram todos de estatura e configurao normais, com evidenteexcepo do cabeludo Gogol, mas, observando-os melhor, comeou a notar algures em cadaum deles um pormenor diablico, exactamente como no homem que o esperara junto ao rio.Aquele riso torcido, que subitamente desfigurava o rosto do seu primitivo guia, era tpico emtodos eles. Cada um tinha em si qualquer coisa, que se apercebia talvez ao dcimo ou aovigsimo olhar, que no era normal e mal parecia humana. Apenas conseguia imaginar umametfora: eram homens elegantes e de presena a que um espelho falso e curvo dava um jeitoadicional.

    S os exemplos individuais podem exprimir essa excentricidade semidisfarada. Ocicerone original de Syme usava o ttulo de Segunda-Feira, desempenhava o cargo desecretrio do Conselho, e o seu sorriso torcido era, exceptuando o horrvel e alegre riso dopresidente, aquilo que mais terror inspirava. Ma agora, que Syme o podia observar com maisespao e luz, notou outros tpicos. O rosto era to emaciado que parecia gasto pela doena e,no entanto, de qualquer maneira, a prpria angstia dos olhos escuros negava isto. No eramal fsico que o apoquentava: notava-se-lhe nos olhos tortura intelectual, como se cadapensamento fosse uma dor.

  • Era um representante tpico da tribo, cada um subtil e diferentemente esquisito. Junto a elesentava-se Tera-Feira, o Gogol de cabea emaranhada, cuja loucura era evidentemente maior.Seguia-se-lhe Quarta-Feira, um tal marqus de Saint Eustache, uma figura bastantecaracterstica. primeira observao no se lhe notava nada de estranho, excepto que era onico quela mesa que usava os fatos elegantes como se de facto fossem dele. Tinha umabarba negra francesa, cortada em quadrado, e um fraque preto ingls, cortado ainda mais emquadrado. Mas Syme, sensvel a essas coisas, achou que o acompanhava uma atmosferaopulenta que sufocava. Lembrava, sem razo, os cheiros anestesiantes e as lmpadas mortiasdos poemas mais tenebrosos de Byron e de Poe. Simultaneamente, tinha-se a sensao de eleestar vestido, no de cores mais claras, mas de estofos mais macios: o seu negro parecia maisrico e quente que os tons escuros em redor, como se fosse composto de cor mais densa. O seucasaco preto parecia que o era apenas por ser de prpura demasiado compacta, a sua barbanegra parecia que o era apenas por ser de um azul muito carregado. E, na sombra e no cerradoda barba, via-se a boca vermelha, sensual e desdenhosa. Seria tudo menos francs, talvezjudeu, talvez algo de mais fundo no corao do Oriente. Nos azulejos persas, brilhantementecoloridos, e em quadros que representam tiranos a caar, vem-se daqueles olhos emamndoa, daquelas barbas negro-azuladas, daqueles cruis lbios vermelhos.

    Seguia-se Syme, e depois um homem muito velho, o professor De Worms, que aindaocupava o posto de Sexta-Feira, apesar de a todo o momento se esperar a sua morte, o quedeixaria o lugar vago. Excepto intelectualmente, estava no ltimo estado de decadncia senil.O rosto era to cinzento como a comprida barba, a testa levantada e com as rugas finais dodesespero. Em nenhum outro, nem mesmo em Gogol, o aspecto jovem dado pelo traje produziaum contraste mais aflitivo, porque a flor vermelha da lapela tinha por fundo um rosto cor dechumbo e o todo um efeito hediondo, como se alguns janotas embriagados tivessem vestido umcadver com os seus fatos. Quando se levantava ou sentava, o que fazia com grande custo eperigo, exprimia algo de pior que simples fraqueza, algo ligado ao horror de toda aquela cenae que no se podia definir. No era apenas decrepitude, era podrido. Outra fantasia odiosapassou pelo crebro vacilante de Syme: no foi capaz de se coibir de pensar que se o homemmexesse um brao ou uma perna eles cairiam.

    Mesmo na ponta sentava-se o indivduo chamado Sbado, o mais simples e maisdesconcertante de todos. Era um homem baixo, atarracado, de cara rapada, escura e quadrada,um mdico que dava pelo nome de Bull. Possua aquela combinao do savoir-faire com agrosseria bem-vestida que no invulgar nos jovens mdicos. Usava os fatos elegantes commais confiana do que -vontade, e o que usava mais de tudo era um sorriso permanente. Nohavia nele nada de extraordinrio, excepto os culos escuros, quase opacos. Seria apenas umcrescendo do capricho nervoso em que estava Syme, mas aqueles discos negros pareceram-lhehorrveis, lembraram-lhe vagamente histrias medonhas de moedas que se punham nas rbitasdos mortos, estava sempre a ver os culos escuros e o esgar cego. Se o professor moribundo,ou mesmo o plido secretrio, os usassem, estariam a calhar, mas naquele homem mais joveme mais robusto pareciam apenas um enigma. Assim, no se podia decifrar aquela cara, no sepodia dizer o que significavam o seu sorriso ou a sua seriedade. Em parte por isto, em parteporque tinha uma virilidade normal, que faltava nos outros, pareceu a Syme que talvez fosse opior daqueles homens maus pensou mesmo que aqueles olhos se escondiam por seremhorrveis de mais para se verem.

  • CAPTULO VI