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377 Revista UNIVERSUM . Nº 15 . 2000 . Universidad de Talca O ICUF 1 COMO UMA REDE DE INTELECTUAIS Dina Lida Kinoshita (*) Enquanto os judeus que viviam na Europa ocidental adquiriram sua cidadania depois da Revolução Francesa, quando surgiram os Estados nacional-liberais, as grandes massas judaicas que viviam na Pale, região em que era autorizada a moradia de judeus no Império Czarista, continuavam sob o tacão da autocracia feudal. Em sua maioria, viviam nos pequenos “shtetl”, rodeados por populações hostis onde o Império utilizava-os como «bodes expiatórios», tentando culpá-los pelos problemas sócio-econômicos e étnicos que grassavam no país. Pertenciam às camadas miseráveis de pequenos artesãos: alfaiates, marceneiros, padeiros, sapateiros e pequenos co- merciantes. Com exceção de Kharkov, São Petersburg, Moscou, Vilna, Varsóvia, Lodz, e Bialystok, o padrão de trabalho ainda era artesanal 2 . De toda maneira, na última década do século XIX, houve um grande desenvolvimento capitalista na Rússia, e em conseqüência, dobrou o número de operários fabris. Aliado a este fato, há uma grande ascensão das lutas sociais e no limiar do século XX, os cárceres encontravam- se repletos por milhares de revolucionários, ansiosos por liquidar o despotismo rei- nante. Os judeus, como população essencialmente urbana, estavam envolvidos neste movimento. (*) Professora Doutora da USP. Membro do Conselho da Cátedra de Educação pela Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância – Instituto de Estudos Avançados, Universidade São Paulo, Brasil. 1 Iídicher Cultur Farband (Associação Cultural Judaica) 2 Le Pain de la Misère, Ed. Maspero, Paris.

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Revista UNIVERSUM . Nº 15 . 2000 . Universidad de Talca

O ICUF1 COMO UMA REDE DE INTELECTUAIS

Dina Lida Kinoshita (*)

Enquanto os judeus que viviam na Europa ocidental adquiriram sua cidadaniadepois da Revolução Francesa, quando surgiram os Estados nacional-liberais, asgrandes massas judaicas que viviam na Pale, região em que era autorizada a moradiade judeus no Império Czarista, continuavam sob o tacão da autocracia feudal. Emsua maioria, viviam nos pequenos “shtetl”, rodeados por populações hostis onde oImpério utilizava-os como «bodes expiatórios», tentando culpá-los pelos problemassócio-econômicos e étnicos que grassavam no país. Pertenciam às camadas miseráveisde pequenos artesãos: alfaiates, marceneiros, padeiros, sapateiros e pequenos co-merciantes. Com exceção de Kharkov, São Petersburg, Moscou, Vilna, Varsóvia, Lodz,e Bialystok, o padrão de trabalho ainda era artesanal2. De toda maneira, na últimadécada do século XIX, houve um grande desenvolvimento capitalista na Rússia, eem conseqüência, dobrou o número de operários fabris. Aliado a este fato, há umagrande ascensão das lutas sociais e no limiar do século XX, os cárceres encontravam-se repletos por milhares de revolucionários, ansiosos por liquidar o despotismo rei-nante. Os judeus, como população essencialmente urbana, estavam envolvidos nestemovimento.

(*) Professora Doutora da USP. Membro do Conselho da Cátedra de Educação pela Paz, Direitos Humanos, Democracia eTolerância – Instituto de Estudos Avançados, Universidade São Paulo, Brasil.

1 Iídicher Cultur Farband (Associação Cultural Judaica)

2 Le Pain de la Misère, Ed. Maspero, Paris.

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Foi neste caldo de cultura, que se desenvolveu o movimento sionista fundadopor Theodor Hertzl no Império Áustro-Húngaro, e surgiu o movimento bundista3

no Império Czarista que acabam de completar há pouco, um século. São ambos filhoslegítimos do Iluminismo e da Revolução Francesa. O primeiro é uma manifestaçãotardia da aspiração pela cidadania em sua versão liberal, na tradição girondina, emque prevalecem os direitos de primeira geração, ou os direitos civis, a questão de-mocrática e a questão do Estado-Nação. O segundo, na tradição jacobina, em suaversão marxista, privilegia os direitos de segunda geração, isto é, os direitos sociais,conquistados e definidos através das lutas dos trabalhadores desde o século XIX.Talvez pela manifestação tardia do sionismo que se dá num momento de grandeascensão de lutas sociais, acabe ocorrendo toda uma gama de hibridismos entre asduas vertentes, com correntes que vão desde a extrema esquerda até a extrema direita.É muito difícil acomodar numa lógica binária que perdura durante toda a Era dosExtremos, como Eric Hobsbawm define o “breve século XX”4, personalidades comoBorochov, que afirma o desejo de construir o socialismo num lar nacional judeu, eJabotinski5, que tem concepções fascistas de nacionalismo judaico. Entre ambos hátoda uma gradação de tons e semi-tons que o Holocausto e a Guerra Fria acabaramalinhando, de forma artificial.

Enquanto o judeu da Europa Ocidental, a partir da Revolução Francesa, naqualidade de cidadão, foi adquirindo a cultura, hábitos e costumes e a língua dopaís em que nasceu, ou vivia, manifestando seu judaísmo através de sua fé, os queviviam sob o império czarista eram cidadãos de segunda classe, que tinham seusdireitos civis, políticos e sócio-econômicos restritos na medida em que não lhes erapermitido possuir terras, exercer determinadas profissões, movimentar-se por todoo território do império ou viver em certas cidades ou regiões e ao longo do tempovigia ora o “numerus clausus” ora o “numerus nulus” quanto à matrícula escolar.Esses fatos acabam gerando um comportamento étnico muito particular, com hábi-tos e costumes próprios, mas sobretudo uma cultura específica que se expressa ini-cialmente num jargão do alto alemão que acaba adquirindo o status de uma línguaculta, o iídiche, com uma literatura pujante, falada pelas grandes massas judaicas doimpério6. Por outra parte, apesar da pouca ou nenhuma educação formal, entre aparcela destas comunidades, vinculada aos círculos socialistas, surge um novo tipode intelectual, dentro da “...tradição marxista que levou os movimentos políticosfundados nos trabalhadores a dar ênfase particular ao desenvolvimento da teoria,

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3 O BUND (Aliança) é um movimento socialista judaico que surge no fim do século XIX, um dos grupos fundado-res do Partido Social-Democrata Operário da Rússia, Polônia e Lituânia.

4 Hobsbawm, E., A Era dos Extremos, Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1995.

5 Hobsbawm, E., A Era dos Extremos, págs 119 e 172, Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1995.

6 Guinsburg, J., Aventuras de uma Língua Errante, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1996.

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considerado indispensável para orientar uma prática transformadora darealidade...”7.

O terror que imperava no Império Czarista atingia duplamente os judeus: comoopositores ao regime e como judeus. Aliado à difícil situação sócio-econômica, e aospogroms cada vez mais freqüentes, grandes levas de imigrantes passaram a dirigir-se inicialmente aos EUA e à Palestina.

Ao final da Primeira Guerra Mundial, após a Revolução Bolcheviqueconstituíram-se diversos novos Estados, originados do colapso dos antigos impériosczarista, austro-húngaro e otomano, como Polônia, Lituânia, Hungria, Romênia,Checoslováquia, etc. Com exceção dessa última, a estrutura de poder nestes paísesera profundamente reacionária, funcionando como uma espécie de “cordão sanitário”para que “a praga bolchevista não se propagasse” e a política de perseguição àsminorias étnicas, em particular aos judeus, persistia. Por outra parte, poucos diasapós a tomada do Palácio de Inverno pelos bolcheviques, ocorreu no ImpérioBritânico, a Declaração de Balfour, que prometia um lar nacional judeu na Palestina,dividindo a esquerda judaica. Apesar disso, parcelas significativas da juventudejudaica mostravam simpatia pela nova sociedade que estava sendo construída naURSS. Uma parte destas massas tornara-se comunista ou socialista porque vislum-brara aí um caminho possível para a aquisição da cidadania embora pretendessepreservar prioritariamente sua cultura e tradição. Outros entenderam que a questãojudaica não poder-se-ia resolver de forma particular, que fazia parte da solução dosproblemas universais. Se a difícil situação econômica e a perseguição é condiçãogeral para os judeus do Leste Europeu, os judeus de esquerda em todas as suasvertentes, são duplamente perseguidos. Embora a história dos judeus de esquerdahoje seja escamoteada e pertença à história dos silenciados e vencidos, suaimportância pode ser conferida pela importância do BUND na formação do PartidoOperário Social Democrata da Rússia, Polônia e Lituânia, bem como em obrasliterárias como A Família Muskat8 e outras de Isaac Bashevich Singer, nas memóriasde velhos militantes como Hersch Smoliar9 ou em livros como Le YiddishlandRevolutionaire10.

Com o estabelecimento das “quotas” por nacionalidade nos EUA, nos anos 20, ea política britânica de conter a ida de judeus para a Palestina, a partir dos anos 30,pelo menos parte do fluxo migratório muda de rumo, dirigindo-se para outros paí-ses, entre os quais, Argentina, Uruguai e Brasil. Embora já houvesse judeus de origem

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7 Freire, R. Carta convite enviada a intelectuais brasileiros por ocasião da criação da Fundação Astrojildo Pereira,março de 2000.

8 Singer, I.B., A Família Moskat, Livraria Francisco Alves Ed., Rio de Janeiro, 1982

9 Smoliar, H., Oif der Letzter Pozitzie, mit di Letzter Hofnung, Ed. I. L. Peretz, Tel Aviv, 1982.

10 Brossat, Alain e Klingberg, Sylvia, Le Yiddishland Revolutionnaire, Balland, 1983.

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askenazita na região desde o fim do século XIX11, a primeira grande corrente fixou-se, entre 1890 e 1910, nas colônias do Barão Hirsch no Rio Grande do Sul e no norteda Argentina. Se havia interesse do Barão de ocupar as regiões onde havia recémconstruído as ferrovias, certamente a escalada do terror czarista após a frustradarevolução de 1905, a difícil situação econômica com a derrota na Guerra Russo–Japonesa e o pogrom de Kishinev devem ter influenciado a decisão dos primeirosgrupos de colonos que chegaram da Bessarábia.

Este fluxo de migração de judeus do Leste Europeu para a América do Sul,sobretudo para a Argentina mas também para o Uruguai e o Brasil, adquiriu maiorexpressão a partir dos anos 20. É uma imigração pós “pogroms” ocorridos durante aGuerra Civil, nas regiões do Império Czarista onde a Revolução de Outubro fracassou,especialmente, na Polônia e Lituânia. A ascensão de Hitler ao poder na Alemanha,intensificou este fluxo. Esta emigração se dá em primeiro lugar por fatoreseconômicos, mas muitos fogem das ditaduras fascistas da Polônia, Hungria eRomênia não só devido à ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, mas tambémporque são militantes ou simpatizantes comunistas ou do Bund.

Enquanto alguns preferiram inserir-se nas lutas gerais dos povos da AméricaLatina, a maioria, ao chegar a terras de língua, hábitos e costumes estranhos, reproduzos seus modos de organização dos países de origem.

No Uruguai, país de maior estabilidade democrática, com maior tradição delutas socialistas e conquistas sociais mais avançadas, os judeus de esquerda, nacondição de operários organizados, se integraram a um país de imigrantes, semgrandes problemas.

Na Argentina, que recebe o maior contingente de imigrantes judeus da AméricaLatina, o processo é mais complexo. Grande parte dos recém chegados exerceram afunção de “cuentenic”, ou mascate, vendedor a prazo . Seria interessante resgatar afunção social destes mascates, porque vendiam mercadorias a um pessoal que pelaprimeira vez na vida tinha acesso ao crédito e por outro lado, em suas andanças,estes mascates observavam as condições miseráveis em que vivia o povo, o queajudava em sua conscientização política. Mas havia uma inserção operária expressiva,sobretudo nos sindicatos dos alfaiates, marceneiros, gráficos, onde inclusive haviabibliotecas e publicações em iídiche. Embora não tenham inserção entre os portuáriose ferroviários, categorias muito fortes na época, trabalhavam na indústria metalúr-gica. E já em 1918, a partir de uma greve nos Talleres Vassena, a Legião Patriótica,grupo argentino de direita fascista, organizara um verdadeiro pogrom em toda Bue-nos Aires. E neste mesmo ano, quando Rodolfo Ghioldi e Penelón fundaram o Parti-do Comunista Argentino, muitos judeus haviam feito sua adesão, e à moda russa epolonesa, criou-se uma IEVSEKCIA (Ievreiska Sekcia ou Seção Judaica), junto aoComitê Central. O responsável por esta seção, era o operário gráfico, Menachem

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11 Veltman, H., A História dos Judeus em São Paulo, Ed. Instituto Arnaldo Niskier, Rio de Janeiro, 1994.

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Roizen. O peso da esquerda na comunidade era importante.No Brasil, grande parte dos recém chegados também exerceu a função de mascate,

sob outro nome, “klienteltchik” e não, “cuentenic” e havia pouca inserção operária.Embora de menor expressão, a importância dos judeus de esquerda no Brasil podeser inferida através de obras como Estratégias da Ilusão12 que dedica todo um capí-tulo à construção do aparelho repressivo no Brasil, a partir do começo do século atéos anos 30, com a instituição do Estado Novo através da Constituição de 1937, maisconhecida como a “polaca”. Há trechos em que menciona especificamente a políticado governo brasileiro com relação aos imigrantes judeus vindos das regiões do antigoimpério czarista e de suas possíveis simpatias com a Revolução de Outubro. A gran-de quantidade de fichas de comunistas judeus no Arquivo do DOPS, certamenteuma percentagem muito maior que a de judeus no país, também é testemunha destefato. Não se pode esquecer que nos fins dos anos 20 e até meados dos anos 30 aInternacional Comunista havia dedicado uma atenção especial ao Brasil, na medidaem que Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, líder máximo da Coluna Pres-tes, havia ingressado no PCB e vinha-se preparando o Levante de 35. Há um núme-ro significativo de judeus envolvidos, com figuras de projeção no Movimento Co-munista Internacional como Olga Benário, Guralski, Nute e Liuba Goifman, outrasde projeção no PCB como Noé Gertel, José Gutman, Jacob Wolfenson e muitos mili-tantes de quem se toma conhecimento através dos arquivos policiais. Apesar disso,no Brasil, talvez porque a comunidade fosse muito menor, nunca houve aIEVSEKCIA.

De toda maneira, apesar das diferenças de integração aos respectivos países, omodo de organização da esquerda judaica é muito semelhante. Como já foi mencio-nado, a questão cultural era central na medida em que era considerada indispensávelpara orientar uma prática transformadora da realidade. De modo que, antes dosurgimento da indústria cultural, os círculos comunistas e socialistas eram os gran-des difusores da cultura nas classes populares.

De todo modo, já nos anos 20, os judeus de esquerda se reuniam na BibliotecaScholem Aleichem ( em homenagem ao grande escritor, um dos pais da literaturaem língua iídiche) no Rio de Janeiro13 e haviam fundado o Jugend Club14 (Clube daJuventude) em São Paulo, e há pelo menos um boletim em iídiche, Der Unhoib (OComeço)15, sendo publicado no Rio de Janeiro; em Montevidéu, fundaram o jornalUnzer Fraint (Nosso Companheiro) e em Buenos Aires, o jornal Di Presse (A

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12 Pinheiro, P.S., Estratégias da Ilusão, Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1992.

13 Malamud, S., In Ondenk fun Praça Onze, Ed. Iídiche Presse, Rio de Janeiro, 1981.

14 Entrevista particular com Reinstein, P. e Sendacz, H., 1996.

15 Milgram, A, trabalho apresentado em congresso, “Contribuição à História do Radicalismo Judeu no Brasil”,Universidade de Tel Aviv, Israel, 1998.

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Imprensa), e uma série de instituições que privilegiavam o aprimoramento cultural,do ponto de vista marxista, dos operários e mascates, muitos deles militantes sindicaisou de bairro.

Entretanto seria difícil dividir a esquerda judaica de forma reducionista entre osque militam na “rua judaica” e os que militam pelas grandes causas nacionais einternacionais. O processo é muito mais complexo e as situações se entrelaçam einterpenetram. A cultura da clandestinidade que impera, muitas vezes camufla estefato. É preciso considerar que a maioria dos partidos comunistas foram criados nosanos 20. De forma que muitos dos militantes judeus que chegaram ao Brasil, à Ar-gentina e ao Uruguai nesta década ou antes, ainda eram membros do Bund e outrasorganizações de esquerda judaica, transferindo para a região suas formas e métodosde organização. À medida que se aclimatavam à nova terra, alguns passavam a mi-litar nos PC´s, outros nunca deixaram de atuar da forma que o faziam na EuropaOriental. De forma que as escolas, cozinhas comunitárias, sociedades culturais ebibliotecas talvez tivessem dupla função: a função primeira de solidariedade e difusãode uma cultura progressista e talvez uma fachada legal para as atividades políticasclandestinas. Torna-se muito difícil avaliar estes fatos na medida em que estes velhosmilitantes foram treinados para dar o mínimo de informações e não conseguemdesvencilhar-se desta postura mesmo quando estão dispostos a colaborar. Em entre-vista, uma velha militante, viúva de um deportado do Brasil, que não autorizou apublicação de seu nome, relatou que ela e o marido militavam numa base deferroviários e marinheiros, setor importante para a comunicação do Partido Comu-nista Brasileiro com os outros partidos através da Internacional Comunista e o Soco-rro Vermelho Internacional e com outras organizações do partido em regiões afastadasdo Brasil. Ao mesmo tempo, o casal com outros imigrantes, mantinham toda umainfra-estrutura sócio-cultural voltada aos imigrantes judeus recém chegados. Quandopedi mais detalhes a respeito da relação entre as duas atividades, e da sua relaçãocom Olga Benário e Luiz Carlos Prestes, recusou-se a fazê-lo, alegando que era muitocedo para tratar destes assuntos que ocorreram há mais de 60 anos16.

No caso brasileiro, parte dos comunistas judeus nascidos no Brasil ou quechegaram aqui muito jovens, entre os quais poder-se-ia citar Leôncio Basbaum,Hersch Schechter, Sara Becker (mais tarde Sara de Mello), Felícia Itkis (mais tardeSchechter), os já citados Gertel, Wolfenson e Gutman, abraçavam em primeiro lugar,as lutas gerais do povo brasileiro, já que a comunidade era e continua relativamentepequena e nunca se respirou o “idishkeit” (atmosfera judaica) da Europa central eoriental com muita intensidade.

Por outra parte, se o PC argentino tentou organizar a massa judaica desde oinício, no Brasil, vários membros que já vinham dos círculos socialistas europeus,

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16 Rifka Gutnik faleceu em março de 2000, levando seus segredos.

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como Jacob Frydman, tentaram inserir-se inicialmente nas lutas gerais do povobrasileiro, e só após muitas perseguições e deportações, os que permaneceram nopaís, muitas vezes se organizaram no meio judaico. Na Argentina também pendiasobre a cabeça de estrangeiros a Lei 4144, que previa a deportação por atividadespolíticas, mas apesar da repressão violenta sofrida pelos militantes, foi utilizada muitoparcimoniosamente. Talvez, no Brasil, o Levante de 35 organizado pelo PC emconsonância com a III IC, tenha propiciado um acerto de contas internacional, umavez que os integralistas, que tinham forte simpatia pelas forças do Eixo, participavamdo governo Vargas.

De toda maneira, a violenta repressão que se abate a partir dos anos 30, na épocade Vargas no Brasil e de Uriburu na Argentina, praticamente liquidam essa primeiraonda de entidades da esquerda judaica nos dois países.

Com a ascensão do nazismo, em grande parte pela divisão entre socialistas ecomunistas na Alemanha, inicia-se uma discussão no movimento comunista inter-nacional, que desemboca nas teses de Gyorgi Dimitrov das “frentes populares”. Emjulho de 1935, acaba ocorrendo o VII Congresso da III Internacional, quando a polí-tica de “classe contra classe” foi substituída pela política de “frentes populares”,que reaproxima setores democráticos e socialistas na luta contra o fascismo. Foi nestecontexto que se realizou em Paris, em junho de 1935, o Congresso dos EscritoresAntifascistas, conclamando os intelectuais de todo o mundo a lutar contra o fascis-mo com o lema “Em Defesa da Cultura”. Entre os participantes estavam: HeinrichMann, Henri Barbusse, Máximo Gorki, Romain Rolland, Bernard Shaw, SinclairLewis, André Gide, Selma Lagerloff, Ilya Ehrenburg e outros17. A fração judaica pre-sente ao Congresso dos Escritores Antifascistas, deu início à preparação do Congressorealizado em Paris, no verão de 1937, fundador do Idisher Cultur Farband (ICUF)ou Associação Cultural Judaica. Na convocatória, constava “... nossa frente de luta éparte da batalha geral contra o fascismo, luta que devemos adaptar a nossas condiçõesespecíficas... e quando enumeramos as encarniçadas lutas e conflitos que ocorremem todos os países, e em primeiro lugar na Espanha, entre as forças reacionárias,nazistas e fascistas e as forças radicais, progressistas e autenticamente democráticas– uma luta de vida e morte, defrontamo-nos com o fundo político-social sobre oqual se criou a frente popular, a frente cultural, filha legítima da frente popular.”Os sociais democratas de direita estavam temerosos com o crescimento das frentespopulares. Desde a convocação do congresso, realizada pela executiva da FrenteCultural Judaica da França, começou uma empedernida batalha entre os que eramfavoráveis e contrários a sua realização. “Os reacionários totais e encobertos domundo judaico, farejaram uma rebelião na iniciativa, embora alguns nomes mode-rados e “decentes” tenham assinado a convocatória. Por todos os meios tentou-se

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17 Ehrenburg, I., Memórias, vol 4, A Europa sob o Nazismo, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1966.

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impedir a realização do Congresso da Cultura Judaica, em todos os países ondehouvesse comunidades judaicas askenasitas. O ar estava impregnado de pólvora,que podia estalar a qualquer momento. A tensão atingia seu máximo grau.Concomitantemente ocorriam os combates na Espanha, onde o sangue derramadode seu povo mártir era visível. Enquanto o Pen Club envidava esforços para eludir apolítica e buscava meios para tranqüilizar os espíritos, no Congresso dos Escritoresem Defesa da Cultura, ao contrário, reivindicava-se uma política pronunciadamenteanti fascista. No recinto havia um retrato enorme do poeta Federico Garcia Lorcaassassinado pelos franquistas. A primeira sessão do Congresso ocorreu na Madrisitiada, o que enfatizava o caráter combativo do Congresso. Era visível o temor, oaviso, o alerta, de que se estava às vésperas de uma catástrofe cultural e mundial.Imperava uma mistura de luzes e sombras, de esperança e tristeza, naquele verãoem que se gestava o projeto audaz de convocar os representantes da criatividadejudaica, da cultura judaica de todo o mundo para debater e trocar experiências emdefesa das posições culturais ameaçadas. De todos os rincões afluíam notícias entu-siastas e estimulantes, cheias de fé e esperança, mas havia também desistências eboicotes por parte dos setores retrógrados e reacionários, que se opunham à frentecultural e popular”18. Entre os objetivos declarados no Congresso de fundação doICUF, consta, “Preocupar-se em ampliar, aprofundar, enriquecer a cultura judaicalaica e progressista, estimular seu crescimento visando a justiça social e aliberdade”. Pinie Katz representou 23 entidades judaicas da Argentina e Uruguai, eM. Kopelman, o Brasil. Cabe lembrar que enquanto ocorriam estes fatos, judeusprovenientes da Argentina, do Uruguai e do Brasil estavam lutando nas BrigadasInternacionais 19.

O ICUF teve grande atuação na Argentina mas esteve presente também noUruguai e Brasil. Havia nos estratos populares, fome de cultura. Forjavam-severdadeiros autodidatas eruditos, para os quais nada do que é humano era indife-rente. Possuíam uma presença ativa e militante, adotando uma atitude de entrega àsmelhores aspirações populares. Num caminho de vai e vem, abraçavam todas ascausas condutoras ao enraizamento na nova terra e ao mesmo tempo preservavamos valores político-sociais, humanistas e literários adquiridos em suas terras nataisda Europa Oriental.

A organização do ICUF tinha uma estrutura que consistia de um comitê interna-cional inicialmente sediado em Paris, posteriormente transferido para os EUA, devidoà invasão nazista; os comitês nacionais, nos países onde havia comunidades que seexpressavam na língua iídiche, e uma vasta rede de entidades locais. A cada três

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18 Resumo de um artigo do escritor-historiador judeu-polaco americano, Nachmen Maizl, Revista ICUF, Nº 107,Buenos Aires, junho-julho, 1952.

19 ”In Gang” (Em Marcha), Editado por Pinie Katz, Abril de 1937 e entrevista oral com Rivka Gutnik.

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anos ocorriam os congressos nacionais. Essa estrutura seguia muito de perto, a dasInternacionais Socialista e Comunista, bastante hierarquizada e verticalizada.Certamente não corresponde às redes modernas, onde as novas tecnologias propiciammuito mais horizontalidade. Mas com certeza, havia um grande intercâmbio entreestes setores socialistas e progressistas das diversas comunidades. A II Guerra Mun-dial e o extermínio dos judeus europeus haviam diminuído a importância do ComitêInternacional e os comitês regionais e nacionais adquiriram mais força.

De toda maneira a frente formada em torno do ICUF, é a que se havia constituídonas organizações clandestinas de resistência nos guetos e nos destacamentos partizansdurante a II Guerra Mundial e que perdurou no imediato pós guerra, em que atuavamcomunistas, bundistas e sionistas de esquerda. Basta verificar os nomes e filiaçõespartidárias dos mais destacados comandantes, militares ou intelectuais, da resistênciaantifascista judaica na Europa Oriental: Mordechai Aniliewicz, Josef Kaplan e ArieWilner do Hashomer Hatzair (Jovem Guarda, movimento juvenil da extremaesquerda sionista), Josef Lewartowski e Itzik Vitenberg do Partido ComunistaPolonês, Marek Edelman e Michal Klepfisz do BUND e Dr. Emanuel Ringelblum doLinke Poale Tzion ( Esquerda dos Operários de Tzion).

Cabe aqui ressaltar que o imediato pós guerra constituiu um momento em quepor um lado a comunidade judaica engrossou sua simpatia pela esquerda e poroutro, é um momento de grande unidade do povo judeu. Sionistas e comunistasapoiam a criação do Estado de Israel – se para os primeiros essa criação simboliza arealização de um sonho milenar de volta à “Terra Prometida”, para os segundos,trata-se de um movimento de libertação nacional em que o apoio soviético para umEstado judeu, afetaria os interesses imperialistas numa região altamente estratégicacomo tem sido ao longo deste século, o Oriente Médio. Por outra parte, não se podeignorar que embora houvesse um apoio firme da URSS e das Repúblicas Popularesna ONU à criação do Estado de Israel, e a Checoslováquia tenha fornecido em gran-de medida as armas utilizadas pela Haganá (Organização Militar Judaica na Palesti-na, precursora do exército do Estado de Israel), a atitude dos comunistas sempre foimatizada por um outro sentimento: havia a esperança de um reflorescimento dascomunidades judaicas no Leste Europeu, que seria a experiência socialista, e nãosionista, de solução da “questão judaica”.

Uruguai e Argentina permaneceram países neutros durante a II Guerra Mun-dial de modo que as entidades filiadas ao ICUF seguiram a política da URSS e criaramcomitês antifascistas clamando pela abertura da Segunda Frente. No caso brasileiro,durante o período do Estado Novo e sobretudo durante os anos da II Guerra Mun-dial, com a proibição de atividades de estrangeiros, o ICUF praticamente não tevenenhuma atuação. Entretanto no imediato pós guerra, as entidades vinculadas aomesmo tiveram um grande florescimento e se associaram às congêneres argentinase uruguaias. Como primeira atividade, trabalharam no auxílio imediato aossobreviventes do nazismo que se encontravam sobretudo na Polônia.

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Enquanto ainda se desenrolava a Batalha de Stalingrado, um dos militantes doICUF em São Paulo, Manoel Cossoy, fez uma promessa: se os soviéticos ganhassemtal batalha, no final da guerra doaria uma soma de dinheiro para erigir um monu-mento em memória aos heróis e mártires tombados na guerra. A promessa foicumprida e os judeus simpatizantes do ICUF, reunidos no Clube Cultura e Progresso,decidiram pela construção de um Instituto Cultural ao invés de um monumento,mais conhecido como Folks Hois ou a Casa do Povo. Para sua construção, colaboroua maioria da comunidade em São Paulo, mesmo que fosse com um único tijolo,demonstrando o grande apoio logrado pelos progressistas. Este projeto foiacompanhado pela construção de uma escola, a Scholem Aleichem; um clube infantojuvenil, I. L. Peretz, em homenagem ao grande escritor progressista da língua iídiche.As atividades culturais ainda eram preenchidas por um coral que cantava músicasfolclóricas e revolucionárias em iídiche e por dois grupos de arte dramática, um emiídiche e outro em português, que se apresentavam inicialmente em teatros alugadose posteriormente, no Teatro de Arte Israelita Brasileiro – TAIB, construído no mesmolocal. No Brasil, havia também organizações filiadas ao ICUF: no Rio de Janeiro, aBiblioteca “Scholem Aleichem”, que deu origem à Associação “Scholem Aleichem”,que também tinha seus grupos teatrais e coral e a Escola Israelita Brasileira “ScholemAleichem”; a União Israelita de Belo Horizonte, o Clube de Cultura de Porto Alegre,a Sociedade Cultural Israelita do Paraná, Sociedade Israelita da Bahia, o Clube Canaãde Santos, entre outros. A edição do jornal “Unzer Shtime” (Nossa Voz) e a Colôniade Férias “Kinderland” administrada pela Associação Feminina Israelita Brasileira(AFIB), tinham caráter nacional. Entre 1946 e 1951, a juventude editava a revista “OREFLEXO”, sob a direção de Luiz Israel Febrot.

No Uruguai, devido às características locais, havia grande concentração emMontevidéu, onde todas as atividades ficaram concentradas num verdadeiro palácioda cultura, em homenagem ao grande escritor, filósofo e pedagogo, “ChaimZytlowski”.

Na Argentina, só na grande Buenos Aires, havia dezenas de entidades queconjugavam centros culturais e escolas, entre as quais se destacam os grandescomplexos “Chaim Zytlowski” e a “I.L. Peretz”, na Villa Lynch (um grande centrotêxtil, onde havia muitos operários judeus). Existia o Lar Cultural “Mêndele”, emhomenagem ao fundador da literatura em língua iídiche, o Centro Cultural “DavidBergelson”, e o “Peretz Markish” em homenagem aos grandes escritores soviéticosque se expressavam nesta língua, o Centro Cultural “Sarmiento”, o Centro Cultural“Janusz Korczak” em homenagem ao grande pedagogo que cuidou dos orfanatosdo Gueto de Varsóvia, morrendo com as crianças em Treblinka, o Centro Cultural“Emanuel Ringelblum”, o Centro Cultural “Peretz Hirszbejn”, o Centro Cultural“Ramos Mejía”, o Centro Cultural “I. L. Peretz” de Lanuz e o Clube Esportivo eRecreativo “Scholem Aleichem”, entre outros. Havia organizações culturais filiadasao ICUF em Rosário, Córdova, Mendoza. Estavam organizados nacionalmente, a

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Federação Argentina Israelita de Mulheres, A Federação Juvenil Judaica Argentina,a Colônia de Férias “Zumerland”20.

Um comentário especial merecem o Iídich Folks-Teater (IFT), ou o Teatro Popu-lar Iídiche de Buenos Aires e os grupos teatrais de São Paulo: unindo o ensinamentode I. L. Peretz, “O teatro é escola para adultos”, e o de Romain Rolland, “ O teatrodeve compartilhar o pão do povo, de suas inquietude, de suas esperanças e de suaslutas”, ambos os grupos fizeram ...”do trabalho teatral uma prática deliberada nãosó de arte, como de educação e política, sem renunciar contudo, nos vários momen-tos de sua trajetória e de suas preferências ideológico-estilísticas, à busca daartisticidade, senão da forma, na linguagem dramático cênica”21. O IFT começousua carreira no início dos anos 30, apresentando Di Néguer (Os Negros) de GershonAibinder, Koiln (Carvão) de Galéchnikov e Schrai Khine (Ruge China) de Tretiakov,de caráter engajado e de esquerda. Nos anos seguintes apresentou dezenas de peçasde autores judeus como Peretz, Scholem Aleichem, Goldfaden, David Bergelson,Berger, Hinkelman, Zuckmayer, Kulbak, Lêivik bem como autores consagrados comoMaksim Gorki, Arthur Miller, John Steinbeck, Tchekov, Zola, Bertold Brecht, EugeneO´Neill, Leonid Leonov e também William Shakespeare. Em São Paulo, embora aatividade fosse muito mais modesta, Jacob Rotbaum, diretor do Teatro Estatal Ju-daico da Polônia, esteve por diversas vezes na cidade, dirigindo o Grupo de ArteDramática que encenou clássicos da dramaturgia iídiche como o Dibuk de S. Anski,Sender Blank de Scholem Aleichem ou Os Sonhos de Goldfaden, bem como clássicosda dramaturgia universal como Raízes de William Faulkner. O que há de comumnos dois teatros é a crítica à ordem vigente e o compromisso com a transformaçãoestrutural da sociedade. Se o IFT adquiriu um espaço particular no âmbito teatraljudio-argentino, ambos os grupos tiveram um papel importante no “teatroindependente” das respectivas cidades. Vários atores que adquiriram renome noBrasil iniciaram suas atividades teatrais nos círculos dramáticos do ICIB e foramresponsáveis por posturas democráticas e progressistas na classe teatral brasileira.

Escritores e intelectuais importantes, militantes da cultura iídiche como AronKurtz (presidente do ICUF nos EUA e genro de Scholem Aleichem), os poetas H.Lêivik e Shmerke Kaczerginski, bem como da cultura universal, como Nicolás Guillén,Pablo Neruda, Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles, o cantor Paul Robson, a atrizprincipal do Teatro Estatal Judeu da Polônia e intérprete principal do filme, A PequenaLoja da Rua Principal, Ida Kaminska, Mario Schenberg, intelectual e eminente físicoteórico, entre muitos outros proferiram conferências ou participaram de atividadesartísticas nas entidades filiadas ao ICUF. Marcos Ana, poeta libertado das masmorrasfranquistas nos anos 60 também foi ouvido nesses espaços. Foram homenageados

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20 Entrevista realizada com Fidel Lerner, julho de 2000.

21 Ginsburg, J., Aventuras de uma Língua Errante, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1996.

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em seus natalícios ou em datas fúnebres, Scholem Aleichem, I. L. Peretz, MoisheOlguin, M. Gebirtig, Avrum Raisin, bem como W. Shakespeare, Rubén Dario, Euclidesda Cunha, Albert Einstein, Julio Cortázar, Machado de Assis, Rafael Alberti, entreoutros.

Durante muitos anos, as entidades judaicas filiadas ao ICUF, eram as únicas quecomemoravam o Levante do Gueto de Varsóvia, enquanto os sionistas silenciavamalegando que não havia nada a comemorar, já que os judeus dos guetos foram paraos crematórios como carneiros. Neste evento bem como em uma série decomemorações e manifestações que ocorriam nestas entidades, sempre se enfatizavaa universalidade do feito, sua relação com o presente sem ater-se somente à questãojudaica. A título de ilustração, transcrevemos alguns trechos de convocatórias:

...”Em homenagem aos heróis e mártires que tombaram na luta para a extinçãodo nazismo da face da terra; dos heróis que lutaram nos campos de batalha doLeste e Oeste, do gueto de Varsóvia e dos campos de Pistóia.”22... (1965)

“... Os remanescentes neonazistas, apoiando-se nos setores retrógrados e emgovernos antidemocráticos em diversos países do mundo, pensam em reeditar assuas frustradas aventuras de anos atrás; julgam poder destruir as mais caras con-quistas democráticas e anseiam perseguir as minorias raciais que participam davida das diversas sociedades...” “... mas nós judeus, participantes da luta do povobrasileiro pela democracia, estamos a todo o tempo vigilantes e empreendemostodos os nossos esforços no sentido de impedir o avanço de forças obscurantistasneste momento, em que mais importante torna-se demonstrar que mais amplasforças lutam contra a sobrevivência do nazismo, unindo-nos mais uma vez, aossetores democráticos ...”23 (1967, pós golpe de 64 no Brasil)

“O acima citado, sintetiza o espírito de luta dos combatentes nos Guetos emtodos os lugares sob o domínio nazi e que culminou com o LEVANTE DO GUETODE VARSÓVIA,...

...Não podemos ficar indiferentes ao renascimento do neo-nazismo naAlemanha Ocidental e em outros países. É inquietante a existência e a atuaçãolegal do NPD ( Partido Nacional Democrata) de caráter nitidamente nazista...

Hoje, quando comemoramos o XXV Aniversário do Levante do Gueto deVarsóvia, que tão tragicamente nos lembra a II Guerra Mundial, sentimo-nos in-quietos com os conflitos que surgem e se desenvolvem no mundo. Inquieta e nosrevolta a tragédia do Vietnã, onde diariamente milhares de preciosas vidas de

Dina Lida Kinoshita

22 A título de esclarecimento, a Força Expedicionária Brasileira lutou em Pistóia.

23 Esta convocatória tem uma linguagem muito semelhante à Resolução política do VI Congresso do PCB, reali-zado naquele ano, em que a palavra de ordem era construir uma ampla frente democrática para derrotar a ditadura,em contraposição a outras forças de esquerda que propugnavam a luta armada para derrubar o regime.

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homens, mulheres e crianças são impiedosamente ceifadas e que poderá culmi-nar com o emprego de armas atômicas, e como conseqüência, provocar uma IIIGuerra Mundial, com o perigo de aniquilamento de grande parte da humanidade.Portanto, é nosso dever unirmo-nos a todos os povos amantes da Paz, para clamarcontra o derramamento de sangue humano...

...A Israel cabe criar condições de vida e segurança para o País e aos seuscidadãos, como também achar soluções pacíficas para os problemas de fronteirasou outros, com seus vizinhos Árabes.

No interesse do Estado de Israel e do povo judeu espalhado pelo mundo, nointeresse, felicidade e bem estar de toda a humanidade, é necessário que juntos,todos os povos, empreguem os meios e esforços para que a paz e a liberdade sejampreservadas.” (1968)

Em todas as entidades vinculadas ao ICUF, a questão da paz é recorrente aolongo de todas as décadas, com ênfase especial na obtenção de uma paz negociada ejusta no Oriente Médio, que contemple todos os povos da região. Não por acaso,Pinie Katz foi membro ativo do Conselho Argentino em Defesa da Paz, do mesmomodo que Diament o foi no Uruguai e o Prof. Mário Schenberg, Alberto Castiel e aautora deste artigo o foram ou ainda são no Brasil. Todos os citados foram membros,em diversos momentos, ou são do Comitê Executivo do Conselho Mundial da Paz.

As associações femininas se espelhavam na tradição de Clara Zetkin e RosaLuxemburg, das mulheres combatentes de todos os tempos pela liberdade e os direitoshumanos, desde as operárias de Manhattan em greve pela redução da jornada detrabalho, até Las Madres de la Plazo de Mayo, passando pelas combatentes NiutaTeitelboim do Gueto de Varsóvia e Vita Kempner do Gueto de Vilna.

Devido à legislação educacional argentina e uruguaia, onde o ensino público eraobrigatório e universal, as escolas do ICUF funcionavam como escolascomplementares. Isso tinha uma vantagem, na medida que as crianças desde ocomeço mantinham contato com um universo mais amplo. De modo diverso, noBrasil foi possível criar escolas (as Escolas Israelita Brasileira “Scholem Aleichem”de São Paulo e do Rio de Janeiro) onde todo o ensino era integrado. As duas escolasforam as primeiras escolas de pedagogia moderna, durante muitos anos considera-das como escolas avançadas, servindo de modelo às escolas de aplicação eexperimentais implantadas na rede de ensino público mais tarde. Do ponto de vistada educação judaica, o enfoque era laico, sendo a única escola judaica que ensinavano pós guerra a língua iídiche e não o hebraico. Enquanto os sionistas consideravamo iídiche como a língua dos judeus dos guetos que foram aos crematórios comocarneiros, os “icufistas” afirmavam que em memória aos combatentes e heróis daresistência dos guetos e dos destacamentos de partizans, em memória a toda umacultura progressista criada em íidiche e destruída durante o Holocausto, e com aesperança de um renascimento sócio-cultural das comunidades judaicas nas Demo-

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cracias Populares, decidiram manter o iídiche e não ensinar o hebraico. Mas maisimportante talvez seja o sentimento transmitido aos alunos que pode ser aferidopela afirmação de um ex-aluno ao recordar o Lerer Gordon (Professor Gordon): “OLerer Gordon nos fazia sentir lutadores invencíveis pelas causas da humanidade”24.As colônias de férias funcionavam como um prolongamento das escolas em épocade férias. Além das atividades recreativas, havia uma vasta programação cultural eum aprofundamento da noção de vida coletiva em detrimento do individualismo.

O primeiro jornal progressista fundado por Pinie Katz, foi o Di Presse, em Bue-nos Aires, em 1919. No entanto, com o passar do tempo o jornal acabou sendo con-trolado por setores de direita. Os continuadores progressistas, mais tarde organiza-dos em torno do ICUF argentino, jamais voltaram a ter um jornal, embora publicassema Revista Bimestral do ICUF, boletins e o Kinderwelt (Mundo da Criança), especialpara as crianças e jovens. Em seguida, por volta dos anos 30, surge no Uruguai, oUnzer Fraint (Nosso Companheiro). Em 1946 aparece no Brasil o jornal Unzer Shtime.Cabe aqui mencionar, para que fique registrado para a posteridade, que duranteseus dezoito anos de existência foi dirigido por Hersch Schechter, que não assinavasequer um artigo e cujo nome não constava do expediente por razões de segurançauma vez que o mesmo já havia sido deportado do Brasil duas vezes. Era, no entanto,público e notório que ele era a cabeça e a alma do mesmo, escrevendo os editoriais epraticamente todas as matérias de política internacional. A grande tônica do jornalse referia às questões da paz e quanto à questão judaica, sempre enfatizava,diferentemente dos jornais sionistas, propostas plurais de experiências das comuni-dades judaicas, e também demonstrava grande esperança na reconstrução de umavida sócio-cultural judaica nas Repúblicas Populares e na URSS pós holocausto. Aredação do jornal foi invadida e empastelada logo após o golpe militar perpetradoem 1º de abril de 1964 quando o jornal deixou de ser editado – é difícil prever comoesta proposta evoluíria, se houvesse continuidade. Além disso, havia um esforçomuito grande, no sentido de encorajar os setores progressistas da comunidade judaica,a se integrarem ao povo brasileiro e às suas lutas mais gerais. O jornal jamais teveuma linha isolacionista. Apesar da década de 70 ter sido a época de ouro dos jornaisalternativos no Brasil, que se colocavam claramente contra o regime ditatorial, comoo Pasquim, sucedido pelo Opinião e pelo Movimento, não havia condições de relançaro Unzer Shtime, porque quase ninguém mais lia em íidiche e a Casa do Povo viviapermanentemente vigiada, alguns de seus ativistas e diretores estavam presos noDoi-Codi25, não permitindo grandes atividades. Quanto à orientação, o Unzer Fraintsegue a mesma tônica e também não resistiu ao regime ditatorial uruguaio dos anos 70.

Dina Lida Kinoshita

24 Dr. Felipe Cherep, boletim Comentários, ICUF, Argentina, sem data.

25 Departamento de Ordem Interna, departamento especial formado pelo Serviço Nacional de Informações, Exércitoe Polícia Militar, encarregado da repressão e tortura de presos políticos nos anos 70.

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Assim, esta frente, paralelamente à atividade política, realizava um trabalho nasáreas de educação e cultura. Ao analisar as organizações criadas pelo ICUF na Ar-gentina, Uruguai e Brasil, vem à lembrança o texto de T. Grol a respeito do Bund naPolônia: “Paralelamente à atividade política e sindical, o BUND realizava um trabalhoramificado e multicolorido nas áreas de educação e cultura. Quem de nossa geraçãonão se lembra da maravilhosa rede de escolas populares judaicas, bibliotecas,associações culturais, clubes esportivos, sanatórios infantis, jornais, boletins e revis-tas na Polônia do pré II Guerra Mundial, organizadas pelo BUND?”26 Se o movimentonão adquiriu a mesma pujança é preciso guardar as devidas proporções quanto aotamanho das respectivas comunidades e ao tempo de enraizamento nos vários lugares.

Como vemos, a organização nos diversos países é muito semelhante e houveuma grande colaboração, intercâmbio e solidariedade entre os diversos grupos. Estacolaboração não se dava somente no plano sócio-cultural mas também nasolidariedade a perseguidos políticos. Pode-se citar como exemplo, os casos de HerschSchechter que em sua segunda deportação, ocorrida no fim dos anos 30, e até suavolta após a democratização de 1945, e em seu exílio entre 1964-68 esteve no Uruguaitrabalhando no jornal Unzer Fraint (Nosso Companheiro), ou no caso de AlterKowalski e de Davi Feldman que se fixaram definitivamente no país vizinho erealizaram um trabalho de enlace político-partidário entre as comunidades dos trêspaíses vizinhos da região. Srul Fajbus Roclaw também passou vários anos no Uruguai,enquanto Josef Lipski esteve no Uruguai e Argentina. O casal Samuel Iser e LeikeKogan após uma tentativa frustrada de fixar-se no Brasil para onde chegaram poucosdias após o Levante de 1935, acabaram se fixando na Argentina. Ele foi um doseminentes poetas do ICUF e presidente da seção argentina por longos anos, maisconhecido com o pseudônimo Tzalel Blitz, e ela uma educadora que formou geraçõesna Escola “I. L. Peretz”. Vários dos seus alunos são militantes da esquerda argenti-na, e alguns da direção central do PC argentino como Víctor Kot. Por sua estabilidadedemocrática, que só é rompida na década de 70, o Uruguai sempre funcionou comocentro de solidariedade a refugiados políticos.

Por sua proximidade, o intercâmbio sócio cultural mais intenso, se dava em doiseixos que mantinham intercâmbio de delegações amiúde: o constituído por BuenosAires e Montevidéu, e do mesmo modo entre São Paulo e Rio de Janeiro. Isto nãoquer dizer que não houvesse contato entre todos estes centros, através de umacorrespondência constante, mas o intercâmbio de delegações era mais raro. Aqui épreciso levar em conta a imensidão do Brasil com as entidades espalhadas por boaparte do território. Devido a sucessivos golpes e à destruição da AMIA na Argentinae a um longo período de regime autoritário a partir de 64 no Brasil, não foi possívelconsultar arquivos completos, mas documentações esparsas, complementadas por

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26 Grol, T., Gueshtaltn un perzenlekhkeitn in der iidicher un velt gueshikhte, Paris, 1976.

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entrevistas orais de pessoas idosas, cuja memória começa a falhar. A partir dos da-dos foi possível estabelecer a ocorrência de um congresso regional do ICUF na Ar-gentina nos anos 50, outro, no Uruguai, em 1967, e um terceiro nos anos 90 no Rio deJaneiro, aos quais compareceram delegados de todos os países. Homens como JoséSendacz, Moisés Niskier, M. Glazman, Lejb Ajzenberg, Jacques Gruman, do Brasil,Pinie Katz, Gregorio Lerner, Marc Turkow, Benie Sak, Tzalel Blitz e S. Kaminski, daArgentina, Mario Chiz Dubinsky, do Uruguai, se deslocavam de um centro paraoutro, somando esforços em prol da cultura, da paz, da liberdade e da justiça socialentre os homens. Os artistas também se deslocavam e se apresentavam nas entida-des co-irmãs. O intercâmbio de jovens, que contava com toda a solidariedade dasfamílias que os recebiam, também era freqüente. Por outra parte, estes homens emulheres, mantinham contato com os setores da esquerda de Israel, EUA, França,bem como com a comunidade judaica da República Popular da Polônia e da URSS,e assinavam as respectivas publicações: Der Veg (O Caminho), Morgn Fraihait(Amanhã, a Liberdade), Naie Presse (Nova Imprensa) Folks Shtime (Voz Popular), ea partir de 1961, quando reaparece na URSS, durante o período do degelo, a imprensaiídiche, o Sovietish Heimland (Pátria Soviética). À medida que o custo do transporteaéreo foi ficando mais acessível, os contatos com todos estes centros tornaram-semais amiúdes.

Por outra parte, a simpatia da comunidade judaica pela esquerda no imediatopós-guerra, teve reflexos de algum modo no número e destaque intelectual de quadrosde origem judaica da geração de 45, na direção do PCB. Pode-se citar Salomão Malina,Jacob Gorender, Mário Schenberg, Marcos Chaimovitch, Isaac Scheinvar, MaurícioGrabois, Noé Gertel e Moisés Vinhas entre outros. Num determinado momento, osetor judaico do PCB em São Paulo foi a base mais importante e Eliza KaufmanAbramovich, diretora da Escola Scholem Aleichem, foi a vereadora mais votada e abancada de comunistas majoritária na Câmara dos Vereadores da cidade. Já em1945, na eleição para a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, foi eleitauma bancada expressiva de deputados comunistas, entre eles, Mário Schenberg. Édifícil fazer comparações com eleições anteriores uma vez que de 1930 a 1945 sóhouve uma eleição direta para a Assembléia Nacional Constituinte de 1934, quandopoucos judeus no Brasil puderam votar, por sua condição de estrangeiros ou porquemuitos chegaram após esta data. Entretanto, enquanto na Argentina, os quadros doICUF jamais conseguiram eleger-se, devido à Lei Eleitoral vigente, em que os candi-datos fazem parte de listas partidárias e não há o voto proporcional, mas o de maioriacontra minoria, no Uruguai quadros originários da militância “icufista“ como LeonLev foram eleitos deputados por diversas vezes.

O posterior encolhimento da esquerda judaica, certamente reflete as crises doOriente Médio e das comunidades do Leste Europeu no quadro da Guerra Fria. Oprimeiro momento de crise dá-se no início dos anos cinqüenta devido a uma sériede fatores. Os mais importantes se referem ao fato do Estado de Israel, no contexto

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da Guerra Fria, ter optado pelo mundo ocidental; ao relatório de Khrushev denun-ciando no XX Congresso do PCUS os crimes stalinistas, entre eles o assassinato dosmédicos e escritores judeus soviéticos; e o processo de Slanski e Arthur London naChecoslováquia27. A frente forjada nos anos da guerra e no imediato pós guerrasofreu uma fratura. Retiraram-se das organizações do ICUF, primeiro os sionistasde esquerda e mais tarde outros grupos socialistas. Os sionistas de esquerda, emnível mundial, se alienam das políticas locais e passam a privilegiar uma política defortalecimento e consolidação do Estado de Israel que pretendiam democrático esocialista. Esta política se expressa na prática por um apoio financeiro, cultural euma emigração expressiva para o Estado de Israel, entre 1948 e 1965, principalmen-te de jovens que se dirigem para Bror Khail, Guivat Oz e Gash, conhecidos como oskibutzim de brasileiros e os kibutzim de latino-americanos como o Amir.

Contudo, para entender as mudanças, não se pode deixar de fazer uma reflexãoa respeito da política brasileira no que diz respeito ao antisemitismo. Durante o Es-tado Novo, o governo brasileiro foi muito influenciado pelo integralismo, com gran-des simpatias pelo Eixo (Alemanha, Itália e Japão), e praticou uma política cujoconteúdo tem fortes matizes antisemitas. Nesta conjuntura, um grupo de imigrantesque se sente marginal, acaba ingressando num partido de propostas internacionalistasque também é marginal, clandestino e ilegal como o PCB, embora houvesse umnúmero reduzido de anarquistas e trotskistas, dos quais o mais eminente foi o Prof.Maurício Tragtenberg. Do mesmo modo na Argentina ocorre um sentimentoantisemita bastante forte. Nos anos 30 e 40, a maioria do povo judeu, talvez tenhaoptado pela esquerda, em nível mundial, por falta de opção, raciocínio desenvolvidopor Hobsbawm28. Enquanto na Argentina este sentimento antisemita perdura sobnovas formas até o presente, todos os governos brasileiros pós Segunda GuerraMundial, quer democráticos ou autoritários não tiveram matizes antisemitas comopolítica oficial de Estado. Outro fator que deve ser levado em conta, são as “políticasde substituição de importações” implantadas na Argentina, Brasil e Uruguai quepropiciam às novas gerações de judeus nascidos na região uma ascensão social ecultural. Estas comunidades deixam de sentir-se marginais, e nos momentos dedemocratização tem maior leque partidário para escolha.

Após os golpes militares ocorridos no Brasil e Argentina nos anos 60 ocorreu umesvaziamento do movimento popular em ambos os países de um modo geral. Apesardisso, as associações filiadas ao “ICUF” ainda exerceram uma influência expressivana comunidade até 1967. Muitos dos que não se deixaram abater, mesmo em mo-mentos críticos para os judeus comunistas tais como fim dos anos 40 e começo da

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27 Slanski era Secretário Geral do Partido Comunista Checo e Chefe de Governo e Arthur London membro daexecutiva do Partido. No Começo da década de 50, foram acusados de “cosmopolitismo”, mesma acusação feitaaos escritores judeus soviéticos assassinados. Slanski foi liquidado e London sofrera longos anos de prisão.

28 Hobsbawm, E., Trabalhadores, Ed. Paz e Terra, Petrópolis.

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década de 50, quando do assassinato dos médicos e dos escritores judeus na URSS,tiveram uma atitude diferente em 1967. Quando o Estado de Israel decidiu ocupar aCisjordânia, Gaza, Sinai e o Golan, e foi veementemente condenado pela URSS e porgrande parte dos países da comunidade internacional, poucos dos judeus comunis-tas mantiveram sua serenidade, o emocional falou mais alto, e a maioria apoiouIsrael posteriormente. Foram pouquíssimos os que condenaram a ocupação desde oinício, previram as dificuldades que os israelenses teriam se não desocupassem logoa região e continuaram apoiando a URSS e o Leste Europeu, por seu papel nadescolonização da África e Ásia, por se contrapor à política agressiva do imperialis-mo americano e por entender que era justo criar um Estado Palestino, do mesmomodo que havia sido justo criar o Estado de Israel. Muito poucos tiveram uma visãoprofundamente internacionalista, tendo clareza de que embora os interesses do Es-tado Soviético e os do Movimento Comunista Internacional, nem semprecaminhassem juntos, mas disciplinadamente jamais criticaram a URSS, para nãodar munição ao inimigo imperialista. Neste período, no contexto da lógica bináriada Guerra Fria, Israel tornou-se o principal aliado estratégico dos EUA no OrienteMédio enquanto a URSS e todo o bloco do “socialismo real” rompeu relações com oEstado de Israel e apoiou decididamente a OLP e alguns países árabes. A situaçãopolítica e sócio-cultural das comunidades judaicas do Leste Europeu se deteriorouculminando com um verdadeiro êxodo de velhos quadros comunistas na Polônia,todos cassados e aposentados compulsoriamente. Enquanto isto, os regimes milita-res latino americanos, do mesmo modo que o Estado de Israel, também se alinharamcom os americanos. Embora houvesse manifestações neonazistas nos EUA, os judeuspassaram a ver os norte americanos como seus grandes aliados e amigos, deslocandoo voto para posições mais à direita. Entretanto, perante parte da juventude deesquerda sionista que ingressou nas universidades nos anos sessenta, o modelo deum Estado de Israel democrático e socialista sofrera forte abalo com a ocupação dosterritórios de Gaza, Cisjordânia, Sinai e Golan. Muitos abandonaram a militânciasionista e abraçaram uma militância socialista no Brasil. Entretanto não engrossaramas fileiras dos PC’s. Estes grupos ingressaram preferencialmente em grupos trots-kistas ou nas dissidências armadas. Muitos pagaram com a própria vida por estaopção como Chael Schreier, Gelson Reicher, Iara Iavelberg, Ana Rosa Kucinski, noBrasil. Na Colônia de Férias Zumerland, recentemente foi descerrada uma placa emhomenagens às dezenas de jovens assassinados nos anos 70 e 80, que passaram fériaspelo menos uma vez na vida neste espaço. Ao entrevistar militantes destesgrupamentos, alguns declararam tê-lo feito porque achavam os PC’s muito modera-dos; outros declararam que Israel ainda estava nos seus horizontes apesar do abalo,e não poderiam ingressar em partidos profundamente vinculados à URSS e às De-mocracias Populares que haviam cortado relações com o Estado de Israel, apoiandoirrestritamente os países árabes e a OLP.

Enquanto a Argentina se desindustrializa no último período autoritário, no início

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da década de 70, sob o governo do general Garrastazu Médici, ocorreu uma inflexãono Brasil. O país teve uma acelerada acumulação capitalista no período, passando aser um exportador de manufaturados. Dentro da perspectiva do “Brasil, GrandePotência”, no I Plano Nacional de Desenvolvimento elaborado em 1970, a questãoenergética necessária para o desenvolvimento dos grandes projetos mínero-meta-lúrgicos, petro e cloro-químicos foi considerada prioritária. Como corolário o Esta-do brasileiro decide implementar também o projeto de desenvolvimento da tecnologianuclear, para satisfação daqueles que desde os anos 40 defendiam essa alternativaenergética.

Este programa criou contenciosos com os EUA que não viam com bons olhos talprojeto. Por ocasião da assinatura do acordo Brasil-Alemanha ocidental em 1975, asrelações com os americanos tornaram-se bastante tensas e os aliados, vencedores daII Guerra Mundial, chegaram a desconfiar dos próprios propósitos alemães naocasião. O afastamento do Brasil dos EUA levou à política do “pragmatismoresponsável” caracterizada pelo reconhecimento imediato, junto com Cuba, da Re-pública Popular de Angola proclamada pelo MPLA e por uma abertura para o mun-do árabe, que acabou culminando com a assinatura de uma moção na ONU, denun-ciando o “caráter racista do sionismo”. Pouco a pouco, o “establishment“ dacomunidade judaica foi então se afastando do regime militar brasileiro. Por outrolado, a direita passa a governar o Estado de Israel, e apesar dos acordos de CampDavid com o Egito (1981), houve uma escalada de atrocidades nos territórios ocupa-dos que culminam com o bombardeio dos acampamentos de Sabra e Chatila em1982.

Várias lideranças que anteriormente fizeram parte do arco da esquerda, passarama se dar conta que o apoio irrestrito a Israel foi um erro. Mas em Israel tambémsurgem vozes influentes discordantes. O Movimento Paz Agora adquiriu força egrande visibilidade, acabando, anos depois, por levar à queda o governo de direitaisraelense de Shamir. Entretanto a política de Brezhnev com relação aos chamados«dissidentes», muitos deles judeus, e com relação à comunidade judaica soviéticacomo um todo, dificultou a aproximação entre comunistas e os outros grupos quereivindicavam a paz no Oriente Médio. Levando em consideração que ocomportamento político da comunidade judaica era balizado em grande medidapela guerra fria e seus desdobramentos no Oriente Médio, é importante lembrar queM. Gorbachev, enquanto secretário-geral, tenha declarado anos mais tarde, que apolítica soviética para o Oriente Médio foi excessivamente unilateral.

Embora os protestos contra o bombardeio de Sabra e Chatila tenham chocadosetores muito mais amplos e expressivos da comunidade judaica, os únicos espaçosdisponíveis para abrigá-los foram as entidades filiadas ao ICUF, bastante esvaziadas.Para que se tenha uma idéia do significado deste esvaziamento, tomamos comoexemplo a Casa do Povo em São Paulo: nos anos de seu apogeu, possuía mais de6000 sócios familiares, e em 1982 estes se resumiam a pouco mais de 150. Em se

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levando em conta o crescimento demográfico, estes números são ainda maisimpressionantes.

Mas este processo de retomada de consciência não implica um reflorescimentodas entidades vinculadas ao ICUF, nem uma simpatia renovada pelo PC’s ou pelaesquerda. No plano mais geral, é notório que a «transição democrática» na AméricaLatina ocorre num momento em que o declínio do «socialismo real» já é evidentepara muitos. No que concerne a comunidade judaica, é o momento dedesaparecimento da geração de imigrantes, de mudanças do perfil sócio-econômico,responsáveis pelo deslocamento das atividades sócio-culturais para regiões urba-nas distintas das originais. O mais importante e o menos discutido, talvez se refiraao fato da cultura não isolacionista da esquerda judaica e o encorajamento deintegração às lutas dos povos da região trazer em si o germe da destruição de umacultura trazida da Europa oriental que por sua vez não foi substituída por vínculosmais significativos com setores progressistas israelenses. Essa ruptura se dá por duasrazões: por um lado os israelenses menosprezam a cultura do judeu do Leste Europeu,chegando em alguns momentos à proibição da língua iídiche e de todas as suasmanifestações culturais e por outro, no clima exacerbado da Guerra Fria, os judeuscomunistas ignoram que o Estado de Israel é um fato concreto, com sua pluralidadecultural e política e simplesmente o condenam por completo.

Para se ter uma idéia das mudanças que ocorrem no seio da esquerda judaica, éinteressante citar José Sendacz, que só teve militância junto ao Clube Cultura eProgresso (entidade precursora da Casa do Povo), e posteriormente no Folks Hois ena Escola Scholem Aleichem apesar de ser membro do PCB e amigo pessoal de Pe-dro Pomar, dirigente nacional na época. Em sua casa ocorriam reuniões às quais opróprio Prestes comparecia. Ao examinar os jornais da época, descobre-se que JoséSendacz era um grande poeta e admirador da língua e cultura iídiche progressista,um grande educador, um admirador da experiência de recriar uma comunidadejudaica na Polônia, mas não há uma palavra sobre suas atividades partidárias. Aoler seus inúmeros escritos, encontramos dois que atestam estas mudanças de formaparadigmática. O primeiro é um relatório de viagem a convite do governo da Repú-blica Popular da Polônia no décimo aniversário deste poder instituído, em 1954. Éum relatório cheio de esperanças quanto à construção da nova sociedade num paísdestroçado por duas décadas de governos fascistas e pela guerra onde se dá muitaimportância às possibilidades positivas de reconstrução de uma vida sócio-culturaljudaica. O segundo, é sua última conferência proferida em 1977, que se inicia com aadvertência contida num poema de I. L. Peretz, “Ai do vigia, que adormece em seuposto” em que afirma, “Nós adormecemos, quando mais devíamos estar despertos,quando devíamos estar vigilantes, preocupados; nós calamos, negamos a própriarealidade [...] na URSS. [..] Para nós progressistas é duplamente doloroso, porquenão somente nos calamos, como também estamos nos sentindo co-responsáveis eculpados. Por que ficamos calados quando outros denunciavam a chacina? Por que

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não acreditamos? Nós não podíamos, não queríamos acreditar ser verdade, serpossível isso acontecer num país ao qual ligávamos todas nossas esperanças, todosnossos anseios, todos nossos sonhos.[...] com seus livros aprendíamos a amar oshomens, ansiar por justiça, lutar pelo bem estar da humanidade. [...]Minha fé nasidéias básicas do socialismo, no humanismo, não foi afetada. Minha fé em que nãohá salvação nacional separadamente da justiça social, continua com a mesma forçade sempre. Não vim declarar MEA CULPA como alguns exigiram de mim. Não mesinto um pecador arrependido, como outros gostariam de interpretar. É claro quenem tudo o que eu disse ou escrevi publicamente diria hoje novamente, porém tenhoa consciência tranqüila quanto à minha atividade passada. Eu fui sincero quanto atudo o que disse ou escrevi. Não fui eu quem pecou. Pecaram contra mim. Pecaramcontra o povo judeu, ao qual garantiram igualdade, proteção contra o anti-semitis-mo, possibilidades plenas para desenvolver sua vida nacional e cultural. Pecaramcontra o socialismo, o qual foi deturpado e profanado.”29... Ora, este discurso profe-rido em 1977, repercute na intervenção de Mikhail Gorbachev, publicada no Pravdaem novembro de 1989, em que afirma: ...“Ao considerarmos as grandiosas mudançasprogressistas verificadas em nosso país e no mundo nos últimos 72 anos, em resulta-do da Revolução de Outubro, não podemos deixar de explicar por que surgiram nanova sociedade violações à legalidade socialista, restrições aos direitos democráti-cos dos cidadãos e outros fenômenos negativos.”...30

Outra figura emblemática é a de Salomão Malina. Embora nunca tenha militadono setor judaico, sempre assumiu sua condição de judeu. Com uma longa folha deserviços, que culmina com sua eleição como presidente do PCB em 1986, num perío-do de grandes mudanças no Brasil e no mundo, Malina foi um dos principais diri-gentes responsáveis pela profunda renovação e mudança empreendida pelo parti-do, que desemboca no Partido Popular Socialista (PPS). Em sua apresentação dasteses para o IX Congresso, Malina afirma: “A combinação dinâmica dos problemasexistentes tanto no capitalismo quanto no socialismo tem gerado o que podemoschamar de “crise de civilização”. Por isso mesmo, a coexistência pacífica só pode serexercida através de uma política de cooperação, consenso, união de esforços [... ]está colocada a necessidade de sua renovação do ponto de vista político, teórico eorganizativo. Há que repensar[...] mantendo sua visão internacionalista e alargandoa sua busca para aprender com todas as experiências de luta do movimento operáriono âmbito internacional e com todas as lutas democráticas da sociedade moderna”31.

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29 Arquivo pessoal da viúva de José Sendacz.

30 Gorbatchov, M., O Novo Socialismo, Ed. Novos Rumos, Brasília, 1990.

31 Malina, S., Voz da Unidade, Nº 492, pág 2, São Paulo, 10/05/90.

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Dina Lida Kinoshita

Anos de autoritarismo na América Latina e governos de direita em Israel, sãofatores que fortalecem os setores democráticos das comunidades judaicas. Oesgotamento do modelo do socialismo real e o fim da Guerra Fria caracterizada peloenfrentamento dos blocos político-militares, pela corrida armamentista e o equilíbriofundado na ameaça do terror nuclear são fatores determinantes na dinâmica estraté-gica no Oriente Médio e do papel exercido pelo Estado de Israel de aliado preferen-cial dos EUA. Os setores da esquerda mais ortodoxa que não atentaram para a crisede civilização que estava se prenunciando, e continuaram a sonhar com o“Birobidjan”32 acabaram se marginalizando completamente e ficarão na história mastemo que sejam fontes de pensamentos retrógrados e conservadores no futuro. Poroutro lado, os setores mais realistas e construtivos vem buscando um novo huma-nismo, engajando-se nas lutas ambientais, pela cidadania e pela paz e novos meiosde superar o sistema capitalista injusto e excludente pela via da democracia e daliberdade. Essa posição implica um aprofundamento dessas questões – a democra-cia e a liberdade – em condições sociais e políticas novas. É uma posição que podeabarcar as variadas vias contemporâneas de expressão desse humanismo que seredefine, permitindo identificar e criar formas de luta adequadas às também novasformas de fascismo e autoritarismo que afloram hoje.

32 Região Autônoma Judaica na URSS.