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O IMAGINÁRIO DE ÁFRICA NA CARTOGRAFIA DE GUILHERME BLAEU Maurício Waldman 1 No imaginário europeu, a Ásia constituía um espaço povoado por estranhos próximos. Contudo, a África - e em especial a África Negra - era um domínio da estranheza absoluta, um espaço escondido detrás de um tórrido deserto e sobre o qual as informações sempre foram fragmentárias e distorcidas. Durante muito tempo, o continente só foi conhecido através de relatos que povoaram seu interior de gigantes, de homens-macacos, ogros canibais e mulheres-pássaros. Também durante muito tempo figuraram nos mapas da África nomes de povos como os opistodáctilos (de dedos revirados), sem língua e sem nariz ( apud PAULME, 1977:7). Esta identidade tenebrosa da África refletiu-se num repertório de topônimos cuja imprecisão é emblemática da “falta de substância” do continente no pensamento europeu. Denominações como Ethyopia, Lybia, Cafraria, Sudan e Barbaria, raramente repetindo a extensão ou mesmo a posição no mapa, surgem quase que a gosto da imaginação. A estas fabulações, soma-se pouco honorável listagem de seres aberrantes, monstros antropóides, antropófagos, ictiófagos e bestas, que transitaram pela geografia do continente durante séculos. Tais estigmas transparecem no regime de anexação simbólica imposto à África pelos mapas ocidentais, legitimando uma integração desigual do que foi julgado como um pólo de antinomias nada condizentes com a civilização. Com base neste pano de fundo, analisar a produção cartográfica sobre o continente pode ganhar conotações muito sugestivas. Analisaremos neste texto o famoso mapa da África - o primeiro a apresentar com grande precisão os contornos do continente - elaborado por Guilherme Blaeu (1571-1638), grande cartógrafo batavo. Filho de negociante, Blaeu cresceu em ambiente cercado de relatos sobre países distantes. Estudou matemática e foi aluno do astrônomo Tycho Brahe. Em 1633 tornou-se cartógrafo da Companhia das Índias Ocidentais, cargo de enorme prestígio. Sua perícia na cartografia não era menor do que seu pendor artístico, revelado em mapas finamente trabalhados. Mas, o que nos importa são os dados do imaginário presentes nesta obra de Blaeu. Por exemplo, seu mapa da África acata a Europa como referência para a direção Norte, dado etnocêntrico pois esta orientação também é simbolicamente considerada superior. O contorno do continente, quase perfeito, revela décadas de expedições marítimas, ênfase típica do mercantilismo. Na franja superior do mapa figuram o que os europeus entendiam como principais centros urbanos: Tanger, Ceuta, Alger, Tunis, Alexandria, Alcacer, Canárias, Moçambique e o Forte de El Mina. O fato de estas cidades serem portos revela que na segunda metade do Século XVI a Europa mantinha soberania costeira, raramente ultrapassando os muros das fortalezas. Mas, é flagrante que destas nove ilustrações, seis se referem à África do Norte, área conhecida pelos europeus desde a Antiguidade Clássica. A África Negra está representada apenas por dois centros, Moçambique e El Mina, ambos feitorias de comércio e de tráfico negreiro. Note-se que embora historicamente a África Negra possua vida urbana milenar, nenhuma das suas urbes foi representada. As cidades destacadas são aquelas que drenam as riquezas do interior e as exportam. Nos mares, vemos criaturas exóticas ou fantasiosas: peixes voadores, baleias e serpentes marinhas. No continente, aparecem exemplares da megafauna e animais tropicais: elefantes, camelos, avestruzes, leões, 1 Doutor em Geografia (USP, 2006), Pós Doutor em Geociências (UNICAMP, 2011) e Pós-Doutorando em Relações Internacionais (USP). Pesquisador-Bolsista da FAPESP. Colaborador do Centro de Estudos Africanos da USP (CEA-USP). Autor de Memória D’África - A temática africana em sala de aula (Cortez Editora, 2007). E-mail: www.mw.pro.br . 1

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O IMAGINÁRIO DE ÁFRICA NA CARTOGRAFIA DE GUILHERME BLAEU

Maurício Waldman1

No imaginário europeu, a Ásia constituía um espaço povoado por estranhos próximos. Contudo, a África - e em especial a África Negra - era um domínio da estranheza absoluta, um espaço escondido detrás de um tórrido deserto e sobre o qual as informações sempre foram fragmentárias e distorcidas.

Durante muito tempo, o continente só foi conhecido através de relatos que povoaram seu interior de gigantes, de homens-macacos, ogros canibais e mulheres-pássaros. Também durante muito tempo figuraram nos mapas da África nomes de povos como os opistodáctilos (de dedos revirados), sem língua e sem nariz (apud PAULME, 1977:7).

Esta identidade tenebrosa da África refletiu-se num repertório de topônimos cuja imprecisão é emblemática da “falta de substância” do continente no pensamento europeu. Denominações como Ethyopia, Lybia, Cafraria, Sudan e Barbaria, raramente repetindo a extensão ou mesmo a posição no mapa, surgem quase que a gosto da imaginação. A estas fabulações, soma-se pouco honorável listagem de seres aberrantes, monstros antropóides, antropófagos, ictiófagos e bestas, que transitaram pela geografia do continente durante séculos.

Tais estigmas transparecem no regime de anexação simbólica imposto à África pelos mapas ocidentais, legitimando uma integração desigual do que foi julgado como um pólo de antinomias nada condizentes com a civilização. Com base neste pano de fundo, analisar a produção cartográfica sobre o continente pode ganhar conotações muito sugestivas.

Analisaremos neste texto o famoso mapa da África - o primeiro a apresentar com grande precisão os contornos do continente - elaborado por Guilherme Blaeu (1571-1638), grande cartógrafo batavo. Filho de negociante, Blaeu cresceu em ambiente cercado de relatos sobre países distantes. Estudou matemática e foi aluno do astrônomo Tycho Brahe. Em 1633 tornou-se cartógrafo da Companhia das Índias Ocidentais, cargo de enorme prestígio. Sua perícia na cartografia não era menor do que seu pendor artístico, revelado em mapas finamente trabalhados.

Mas, o que nos importa são os dados do imaginário presentes nesta obra de Blaeu. Por exemplo, seu mapa da África acata a Europa como referência para a direção Norte, dado etnocêntrico pois esta orientação também é simbolicamente considerada superior. O contorno do continente, quase perfeito, revela décadas de expedições marítimas, ênfase típica do mercantilismo. Na franja superior do mapa figuram o que os europeus entendiam como principais centros urbanos: Tanger, Ceuta, Alger, Tunis, Alexandria, Alcacer, Canárias, Moçambique e o Forte de El Mina. O fato de estas cidades serem portos revela que na segunda metade do Século XVI a Europa mantinha soberania costeira, raramente ultrapassando os muros das fortalezas.

Mas, é flagrante que destas nove ilustrações, seis se referem à África do Norte, área conhecida pelos europeus desde a Antiguidade Clássica. A África Negra está representada apenas por dois centros, Moçambique e El Mina, ambos feitorias de comércio e de tráfico negreiro. Note-se que embora historicamente a África Negra possua vida urbana milenar, nenhuma das suas urbes foi representada. As cidades destacadas são aquelas que drenam as riquezas do interior e as exportam.

Nos mares, vemos criaturas exóticas ou fantasiosas: peixes voadores, baleias e serpentes marinhas. No continente, aparecem exemplares da megafauna e animais tropicais: elefantes, camelos, avestruzes, leões,

1 Doutor em Geografia (USP, 2006), Pós Doutor em Geociências (UNICAMP, 2011) e Pós-Doutorando em Relações Internacionais (USP). Pesquisador-Bolsista da FAPESP. Colaborador do Centro de Estudos Africanos da USP (CEA-USP). Autor de Memória D’África - A temática africana em sala de aula (Cortez Editora, 2007). E-mail: www.mw.pro.br.

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macacos e crocodilos, não exatamente plotados nos seus verdadeiros habitat. Os navios, que evidenciam o domínio dos mares, são todos europeus. Mais ainda, numa concessão nacionalista, ostentam a bandeira dos Países Baixos.

Mapa da África de Guilherme Blaeu (1644)

O espaço continental interno revela ausência de informações precisas. Repete-se a noção ptolomaica indicando as nascentes do Nilo em dois lagos inexistentes, Zaire e Zaflan, no que hoje é a África Austral. O oceano Atlântico aparece como “Oceano Etíope”, reunindo boa parte dos seres marinhos míticos desenhados no mapa.

Mas, estranhamente não há registro de vida humana no vasto hinterland. É como se a humanidade não existisse na África. O único homem representado é um cameleiro, quase certamente um mercador árabe, o que nos remete ao Magreb. Complementando a exterioridade da África, os bordos dos mapas mostram povos africanos da Costa (Atlântico) e Contracosta (Índico).

É notável como as ilustrações, de norte para sul, reforçam estereotipias que observam o sul como território da barbárie. Na medida em que seguimos para o sul, os grupos adotam a nudez e comem serpentes, uma alegoria típica sobre a selvageria dos negros. Quanto mais meridionais, os povos representados também perdem os adereços de poder e simultaneamente, são mais escuros. Isto apesar da melanina na África não obedecer a qualquer critério latitudinal.

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Portanto, na eterna recordação de que o mapa não constitui exclusivamente uma imagem técnica, a peça cartográfica de Blaeu sugere o reclamo da visão crítica. Algo que nos recorda a importância da dimensão do olhar na percepção dos conceitos e, dos preconceitos.

BIBLIOGRAFIA

ANJOS, Rafael Sanzio. A Utilização dos Recursos da Cartografia Conduzida para Uma África Desmistificada. São Paulo: Humanidades, n° 22. 1989;

BRETON, Roland. Geografia das Civilizações. São Paulo: Editora Ática. 1990;

OLIVEIRA, Cêurio de. Dicionário Cartográfico. Rio de Janeiro: Fundação IBGE. 1983;

PAULME, Denise. As Civilizações Africanas. Lisboa: Publicações Europa-América. 1977;

WALDMAN, Maurício. Imaginário, Espaço e Discriminação Racial. Geousp nº 14. São Paulo: Depto de Geografia USP. 2003;

_________. et SERRANO, C. Memória D'África - A Temática Africana em Sala de Aula. São Paulo: Cortez Editora. 2007.

MAURÍCIO WALDMAN - INFORMAÇÕES PORMENORIZADAS

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PARA CITAR OU REPRODUZIR ESTE TEXTO, ACATAR A REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA QUE SEGUE:

WALDMAN, Maurício. O Imaginário de África na Cartografia de Guilherme Blaeu. Texto disponibilizado pela home-page do Geocarto - Website de Geografia e Cartografia. São Paulo (SP): Departamento de Geografia da FFLCH da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). 2010.

PUBLICAÇÃO DO MESMO AUTOR RELACIONADA COM O TEMA

MEMÓRIA D’ÁFRICA - TEMÁTICA AFRICANA EM SALA DE AULA, CORTEZ EDITORA, 2007Saiba mais: http://www.cortezeditora.com.br/DetalheProduto.aspx?ProdutoId=d4235ab0-d7b3-e011-955f-842b2b1656e4