o Império Revisitado
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CINCIA POLTICA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIA POLTICA
O IMPRIO REVISITADO
Instabilidade Ministerial, Cmara dos
Deputados e Poder Moderador (1840-1889)
Srgio Eduardo Ferraz
Tese Apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Cincia Poltica do Departamento
de Cincia Poltica da Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Humanas da Universidade de
So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em
Cincia Poltica
Orientador. Prof. Dr. Paolo Ricci
So Paulo
2012
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memria de Bencio Ferraz e de Joo Boiadeiro, que
conheciam as histrias daquele tempo
e para Manuela e Pedrinho, que, provavelmente, vo se
interessar por outras histrias
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AGRADECIMENTOS
Em certo sentido, sabido, escrever um trabalho de finalizao de doutorado
tarefa solitria. Mas, de modo mais amplo, essa daquelas tarefas que fazemos, na
verdade, na companhia de muitas pessoas, ainda que boa parte delas nem desconfie
dessa cumplicidade. De fato, da escolha de um tema de pesquisa at o fechamento do
texto to grande o nmero de influncias, apoios e inspiraes que parece vo tentar
enumer-las. Restrinjo-me, assim, aqui a mencionar apenas aquelas pessoas mais
prximas que, de algum modo, participaram dessa empreitada e a quem sou
sinceramente agradecido: Joo, Tereza, Carlinhos, ngela, Lula, Pedrinho, Manu, os
amigos de So Paulo e de Pernambuco, a turma do CEBB (Centro de Estudos Budistas
Bodisatva) e os meus professores da Universidade de So Paulo (USP). Entre estes
ltimos, destaco o professor Paolo Ricci, exemplo de orientador atento, solidrio e
rigoroso, a quem devo muito pela interlocuo frtil e amigvel que mantivemos, e o
professor Fernando Limongi, o qual, alm de responsvel pela disciplina que me
animou a enveredar pelo assunto desta tese, foi, durante todo o percurso da elaborao
do trabalho, um interlocutor generoso e sempre pronto a oferecer crticas e sugestes
extremamente teis. Beneficiei-me, e muito, dos vrios cursos que fiz no Departamento
de Cincia Poltica (DCP) nesses quatro anos de doutorado, pelo que sou grato aos
professores Adrian Lavalle, Ccero Arajo, Andr Singer, lvaro de Vita, Matthew
Taylor, Maria Hermnia Tavares de Almeida e Eunice Ostrensky. Na banca de
qualificao, aprendi muito com as observaes e crticas da professora Mirian
Dolhnikoff, a quem tambm agradeo. Dois outros professores do nosso Departamento,
que no esto mais conosco, foram referncias constantes para mim enquanto imaginava
e redigia este trabalho. Por vrias vezes, indaguei aos meus botes o que eles achariam
ou diriam de determinada opo realizada na pesquisa ou mesmo o que sugeririam
quanto a esse ou aquele tpico. Noutras ocasies, e foram vrias, quase senti
concretamente o prazer que seria conversar com eles sobre os assuntos que me
envolveram nesses ltimos anos. Refiro-me a Gildo Maral Brando e Eduardo
Kugelmas, exemplos de intelectuais e seres humanos. memria de ambos que
dedico tambm esse trabalho.
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4
RESUMO
Este trabalho tem por propsito central investigar as razes da
instabilidade ministerial no Segundo Reinado (1840-1889), bem como o
papel desempenhado, na produo desse fenmeno, pelas relaes entre o
governo e a Cmara dos Deputados. A partir do exame de todos os
episdios de substituio de gabinetes no perodo histrico mencionado,
elabora-se uma classificao das razes de retirada dos ministrios, com
foco na eventual atuao poltica da Coroa e da Cmara dos Deputados
nesses eventos.
Ao contrrio do que supe a literatura convencional, que salienta o
papel autnomo da Coroa na substituio dos governos, o trabalho constata
que conflitos, efetivos ou potenciais, entre gabinetes e o Poder Legislativo,
em especial a Cmara, foram os principais fatores associados rotatividade
governamental no Segundo Reinado. Explora-se, a partir da, a hiptese de
que a introduo de regras eleitorais distritalizadas, no sistema poltico
da poca, a partir da dcada de 1850, em substituio ao regime prvio de
listas, ao alterar os incentivos a que estavam submetidos os principais
agentes polticos imperiais, desempenhou um papel central na gerao
daqueles conflitos, concorrendo, assim, para explicar o fenmeno da
instabilidade governamental inicialmente referido.
Palavras-chave: instabilidade ministerial; Imprio; Segundo Reinado;
relaes executivo-legislativo; regras eleitorais.
E-mail: [email protected]
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ABSTRACT
The main purpose of this work is to investigate the reasons of
the ministerial instability in the Second Empire (1840-1889) as well as the
role played in the production of this phenomenon by the relations between
the Government and the House of Representatives. From the studies of all
episodes of cabinet replacements during the historical period mentioned, a
classification of the reasons that motivated its withdrawals were elaborated,
focusing on the eventual political action of the Crown and the House of
Representatives in these events.
To the contrary of what is believed by conventional literature, which
highlights the independent role of the Crown in the substitution of the
governments, this text notices that real or potential conflicts between the
cabinets and the Legislative Power, in special the House, were the
main factors associated with government turnover during the Second
Empire. It explores, from there, the hypothesis that the introduction of
district electoral rules in the political system of that time, starting from
the 1850s, in substitution of the former regime of slates (chapas),
changing the incentives which the main imperial political agents were
submitted, played a leading role in those conflicts, contributing thus to
explain the instability mentioned before.
Key words: ministerial instability ; Empire ; Second Reign; execute-
legislative relations ; electoral rules
E-mail: [email protected]
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SUMRIO
Captulo 1. Introduo Pesquisa: Eixos do Trabalho, Hipteses e Principais
Concluses ...............................................................................................................12
1.1 O Primeiro Eixo: A Instabilidade Ministerial.................................................12
1.2 O Segundo Eixo: As Relaes entre os Gabinetes e a Cmara dos Deputados.14
1.3 Plano de Exposio do Trabalho....................................................................17
Captulo 2. Classificao das Razes de Retirada dos Gabinetes do Imprio e o
Contexto Poltico-Institucional do Segundo Reinado.............................................21
2.1 Avaliaes Gerais do Perodo........................................................................22
2.2 De 1822 a 1850: Sntese das Perspectivas Dominantes sobre a Evoluo do
Estado Brasileiro em suas Trs Primeiras Dcadas....................................................27
2.3 As Instituies Polticas do Segundo Reinado................................................36
2.4 Delimitando o Primeiro Eixo do Trabalho: o Estudo das Substituies
Ministeriais como Via para Ampliar a Compreenso da Dinmica Poltica Imperial..41
2.5 Estudo Sistemtico das Substituies de Gabinetes: Classificao e
Quantificao das Causas de Retirada Ministerial entre 1840 e 1889..........................49
2.5.1 Retiradas por Interferncia Exclusiva da Cmara dos Deputados (Categoria
3).................................................................................................................................56
2.5.2 Retiradas por Interferncia Exclusiva da Coroa (Categoria 2)......................61
2.5.3 Retiradas por Interferncia da Coroa e da Cmara (Categoria 1)................65
2.5.4 Retiradas em que No se Registram Interferncias da Coroa nem da Cmara
(Categoria 4)...............................................................................................................65
2.5.5 Vinculao Partidria e Retiradas por Presso Parlamentar, Isolada ou em
Conjuno com o Trono (Categorias 3 e 1)................................................................66
2.5.6 Alternncias Partidrias e Dissolues da Cmara dos Deputados..............67
2.6 Breve Recapitulao dos Resultados...............................................................75
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7
Captulo 3. As Razes de Retirada dos Gabinetes do Imprio no Segundo
Reinado (1840-1889)..................................................................................................77
3.1 Anlise dos Episdios de Substituio Ministerial (1840-1889).......................78
3.1.1 Os Primeiros Tempos (1840-1848): Palacianos, Regressistas e Liberais
(Do 1 ao 8 Gabinete)................................................................................................79
3.1.2 O Retorno Saquarema (1848-1853): Do 9 ao 11 Gabinete........................108
3.1.3 A Conciliao como Incorporao e Ruptura (1853-1857): 12 e 13
Gabinetes...................................................................................................................114
3.1.4 A Ps-Conciliao (1857-1861): Olinda-Sousa Franco (14 Gabinete),
Abaet-Torres-Homem (15 Gabinete) e ngelo Ferraz (16 Gabinete).....................118
3.1.5 O Interregno Caxias e a Liga Progressista (1861-1868): Do 17 ao 23
Gabinete...................................................................................................................126
3.1.6 Poltica, Guerra e a Agenda de Reformas Sociais: o Gabinete Itabora e seus
Limites (24 Gabinete, 1868-1870).............................................................................150
3.1.7 Os Conservadores de So Cristovo: Pimenta Bueno, Rio Branco e Caxias
(1870-1878, do 25 ao 27 Gabinete)........................................................................157
3.1.8 O Segundo Quinqunio Liberal: do 28 ao 34 Gabinete (1878-1885)...171
3.1.9 Os ltimos Gabinetes Conservadores do Imprio: Cotegipe e Joo Alfredo
(35 e 36 Gabinetes, 1885-1889)..............................................................................198
3.1.10 O Gabinete Ouro Preto e o Golpe de 15 de Novembro...............................204
Captulo 4. Padres Explicativos da Instabilidade Ministerial no Imprio: a
Cmara dos Deputados, a Legislao Eleitoral e a Lgica da Competio Poltica
...................................................................................................................................212
4.1 Vises Gerais da Cmara dos Deputados no Segundo Reinado....................214
4.2 A Cmara e os Interesses Provinciais............................................................216
4.3 A Cmara e o Oramento..............................................................................227
4.4 A Legislao Eleitoral e as Eleies..............................................................229
4.4.1 Sumrio da Legislao Eleitoral do Imprio..............................................229
4.4.2 As Eleies: Avaliaes Gerais...................................................................232
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8
4.4.3 Consequncias Polticas das Regras Eleitorais do Imprio: Eleies
Primrias e Secundrias. A Luta para Fazer o Eleitorado. O Deputado................235
4.4.4 As Chapas Oficiais nas Eleies Pr-Lei dos Crculos.................................240
4.5 A Transio das Listas para os Crculos: Incentivos, Lgica da Competio
Poltica e Repercusses Gerais..................................................................................250
4.6 As Legislaturas Ps-Crculos: Caractersticas Gerais e Relaes com os
Gabinetes...................................................................................................................258
Captulo 5. Padres Explicativos da Instabilidade Ministerial no Imprio:
Legislao Eleitoral, Tempo Mdio de Mandato, Retiradas por Presso
Parlamentar e o Estudo Comparado de Duas Legislaturas (1853-1856/1857-
1860)...........................................................................................................................268
5.1 Legislao Eleitoral e Tempo Mdio de Permanncia no Poder de Gabinetes.269
5.2 Associao entre Regras Eleitorais Distritais e Razes de Retirada de
Gabinetes...................................................................................................................274
5.3 A Tramitao do Oramento: a Etapa da Discusso dos Artigos Aditivos...277
5.4 A Tramitao dos Artigos Aditivos ao Oramento entre 1853 e 1856 (9
Legislatura) e entre 1857 e 1860 (10 Legislatura)......................................................286
5.4.1 1853...........................................................................................................286
5.4.2 1854............................................................................................................290
5.4.3 1855............................................................................................................293
5.4.4 1856............................................................................................................297
5.4.5 1857............................................................................................................301
5.4.6 1858............................................................................................................315
5.4.7 1859............................................................................................................322
5.4.8 1860............................................................................................................325
5.4.9 Breve Sntese Comparativa da Tramitao Oramentria na 9 e 10
Legislaturas................................................................................................................332
Captulo 6. A Ttulo de Concluses Finais........................................................336
Anexo..................................................................................................................340
Fontes..................................................................................................................345
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9
Bibliografia..........................................................................................................346
RELAO DE QUADROS
1.1, 2.1 e 3.1 Classificao 2x2 das Razes de Substituio Ministerial em Termos
de Atuao da Coroa e da Cmara dos Deputados: Estrutura de Possibilidades
2.2 Gabinetes do Imprio do Segundo Reinado e Suas Razes de Retirada
1840/1889
2.3 Distribuio dos Gabinetes por Razes de Retirada: Nmeros Totais e
Percentuais
2.4 Gabinetes que se Retiram por Interferncia Exclusiva da Cmara (Categoria 3)
Modalidades de Conflito
2.5 Gabinetes que se Retiram por Interferncia Exclusiva da Cmara (Categoria 3)
Perodo, Vinculao Partidria e Composio da Legislatura Correlata
2.6 Proporo de Gabinetes de Cada Partido ou Agrupamento que se Retiram por
Conflito, Efetivo ou Antecipado, com o Legislativo (Categoria 3)
2.7 Gabinetes que se Retiram por Interferncia Exclusiva da Coroa (Categoria 2)
Modalidades de Atuao do Trono
2.8 Gabinetes que se Retiram por Interferncia Exclusiva da Coroa (Categoria 2)
Vinculao Partidria e Perodo do Mandato
2.9 Gabinetes que se Retiram por Interferncia da Coroa e da Cmara (Categoria 1)
Vinculao Partidria e Perodo do Mandato
2.10 Gabinetes que se Retiram sem Interferncia da Coroa nem da Cmara
(Categoria 4) - Vinculao Partidria e Perodo do Mandato
2.11 Proporo de Gabinetes de Cada Partido ou Agrupamento que se Retiram por
Conflito, Efetivo ou Antecipado, com o Legislativo Ampliado (Categorias 1 e 3)
2.12 Alternncias Partidrias no Segundo Reinado (1840/1889); Informao sobre
Subsequente Dissoluo da Cmara
2.13 Legislaturas da Cmara dos Deputados, Dissolues e suas Razes
1840/1889
3.2 Classificao 2x2 das Razes de Substituio Ministerial em Termos de Atuao
da Coroa e da Cmara dos Deputados: Resultados.
3.3 Classificao 2x2 das Razes de Substituio Ministerial em Termos de Atuao
da Coroa e da Cmara dos Deputados: Resultados em Termos Relativos e Percentuais
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5.1 Tempo de Permanncia Mdia no Poder dos Gabinetes e Regra Eleitoral
1840/1889
5.2 Tempo de Permanncia Mdia no Poder dos Gabinetes e Regra Eleitoral
(Dicotomizada) 1840/1889
5.3 Tempo de Permanncia Mdia no Poder dos Gabinetes e Regra Eleitoral
(Tricotomizada ou em trs Categorias) 1840/1889
5.4 Tempo de Permanncia Mdia no Poder dos Gabinetes e Regra Eleitoral (Com
Ajuste para a 2 Lei dos Crculos, excluindo os Gabinetes Rio Branco e Caxias, 26 e
27 Gabinetes) 1840/1889
5.5 Tempo de Permanncia Mdia no Poder dos Gabinetes e Regra Eleitoral
(Dicotomizada, incorporando o ajuste do Quadro 5.4) 1840/1889
5.6 Razes de Retirada dos Gabinetes e Regra Eleitoral
5.7 Resumo do Quadro 5.6 Dicotomizando Sistemas de Listas e Sistemas
Distritais
5.8 Artigos Aditivos Apresentados em 1853: Ordem, Contedo, Proponente e
Domnio
5.9 Artigos Aditivos Apresentados em 1853: Taxas de Aprovao por Domnio e
ndice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG)
5.10 Artigos Aditivos Apresentados em 1854: Ordem, Contedo, Proponente e
Domnio
5.11 Artigos Aditivos Apresentados em 1854: Taxas de Aprovao por Domnio e
ndice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG)
5.12 Artigos Aditivos Apresentados em 1855: Ordem, Contedo, Proponente e
Domnio
5.13 Artigos Aditivos Apresentados em 1855: Taxas de Aprovao por Domnio e
ndice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG)
5.14 Artigos Aditivos Apresentados em 1856: Ordem, Contedo, Proponente e
Domnio
5.15 Artigos Aditivos Apresentados em 1856: Taxas de Aprovao por Domnio e
ndice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG)
5.16 Artigos Aditivos Apresentados em 1857: Ordem, Contedo, Proponente e
Domnio
5.17 Artigos Aditivos Apresentados em 1857: Taxas de Aprovao por Domnio e
ndice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG)
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5.18 Artigos Aditivos Apresentados em 1857: Taxas de Aprovao por Domnio e
ndice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG) aps a 3 Discusso
5.19 Taxas de Aprovao em % (Emendas Aprovadas/Total de Emendas) e ndice
de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG) em Cinco Deliberaes da Cmara na
Tramitao Oramentria em 1858
5.20 Artigos Aditivos Apresentados em 1860: Ordem, Contedo, Proponente e
Domnio
5.21 Artigos Aditivos Apresentados em 1860: Taxas de Aprovao por Domnio e
ndice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG)
5.22 ndice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG) na 9 Legislatura
(1853-1856), por Sesses e Mdia Geral
5.23 ndice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG) na 10 Legislatura
(1857-1860), por Sesses e Mdia Geral
5.24 ndice Mdio de Desempenho Legislativo do Gabinete por Legislatura
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12
Captulo 1. Introduo Pesquisa: Eixos do Trabalho, Hipteses e
Principais Concluses
O presente trabalho trata da poltica imperial do Segundo Reinado (1840-1889),
buscando contribuir para a melhor compreenso de seu funcionamento, em termos de
sua dinmica institucional.
Neste captulo inicial, apresenta-se o perfil geral da investigao empreendida,
destacando, primordialmente, seus objetos, hipteses e principais concluses
alcanadas.
Os problemas especficos ou objetos sobre os quais o trabalho se concentra, e para
os quais prope e testa hipteses explicativas, podem ser sintetizados em termos de dois
eixos articulados, os quais versam, respectivamente, sobre a instabilidade
governamental no Segundo Reinado e a natureza das relaes entre o gabinete e a
Cmara dos Deputados nesse perodo. As duas prximas sees cuidam,
sequencialmente, de cada um desses eixos. A ltima seo deste captulo apresenta a
estrutura dos captulos atravs dos quais se organiza a apresentao da tese.
1.1 O Primeiro Eixo: A Instabilidade Ministerial
O primeiro eixo toma por objeto central de interesse a questo dos fatores
associados instabilidade ministerial no Segundo Reinado. Nesse intervalo histrico
(1840-1889), de cerca de cinquenta anos, revezaram-se, frente do Executivo, 37
gabinetes, constatando-se uma permanncia mdia no poder de pouco mais de um ano
para cada uma das formaes governamentais. No propsito de entender essa
considervel rotatividade de governos, estudou-se cada um dos casos de afastamento,
indagando a pesquisa, essencialmente, a respeito das razes de retirada de todas as
composies ministeriais formadas entre 1840 e 1889.
Essa investigao dos motivos subjacentes demisso de cada um dos gabinetes do
perodo permitiu a classificao dessas razes em termos de quatro categorias-padro,
apresentadas na matriz de possibilidades 2x2 sintetizada no Quadro 1.1 abaixo. O
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13
critrio classificatrio que articula as categorias apresentadas toma por base a presena
ou ausncia de interveno da Coroa e/ou da Cmara dos Deputados na substituio de
ministrio.
Quadro 1.1 Classificao 2x2 das Razes de Substituio Ministerial em Termos de Atuao da Coroa e da Cmara dos Deputados: Estrutura de Possibilidades.
As principais concluses a que chegou a pesquisa divergem, em termos
substantivos, das vises e avaliaes convencionais sobre a dinmica poltica imperial
entre 1840 e 1889.
Desse modo, em contraste com as perspectivas dominantes, que enfatizam o papel
da Coroa no controle do processo poltico e na conformao da instabilidade
governamental do Segundo Reinado, os resultados alcanados pela investigao
evidenciam que conflitos, efetivos ou potenciais, entre o Executivo e o Legislativo, em
especial a Cmara dos Deputados, foram o motivo mais frequente associado queda
de gabinetes no perodo (categoria 3, quadro 1.1), respondendo por mais da metade
dos episdios de retirada examinados. Dentre o conjunto das substituies ministeriais,
mesmo os casos envolvendo alternncia partidria - quando, com especial nfase, os
estudiosos salientam o papel do juzo independente da Coroa - revelam, em sua maior
parte, na gnese das razes atreladas demisso dessas gestes, a existncia de
conflitos prvios entre gabinetes e Legislativo.
As investigaes realizadas sugerem tambm, em maior acordo com as fontes e com
a literatura acadmica, que os gabinetes do Segundo Reinado, para permanecer no
poder, sempre dependeram da dupla delegao da Cmara e da Coroa. Nesse sentido,
mais de 85% das experincias de governo do perodo terminaram por conta da perda de
sustentao junto a uma e/ou outra dessas duas ncoras do sistema poltico. O que
permanecia, entretanto, obscurecido nessa seara, at aqui, era a centralidade do papel
especfico da Cmara nessa matria, dimenso ressaltada por essa pesquisa.
Interferncia da Coroa, Interferncia da Cmara
(Categoria 1)
Interferncia da Coroa, No Interferncia da Cmara
(Categoria 2)
No Interferncia da Coroa, Interferncia da
Cmara (Categoria 3)
No Interferncia da Coroa, No Interferncia da
Cmara (Categoria 4)
-
14
Esse padro de recorrente conflito entre a Cmara e os gabinetes fornece a matria
do segundo eixo de preocupao do trabalho.
1.2 O Segundo Eixo: As Relaes entre os Gabinetes e a Cmara dos Deputados
O segundo eixo do presente trabalho investiga, por conseguinte, o mais frequente
dos padres associados instabilidade ministerial, a saber, as relaes, de reiterada
tenso, entre os gabinetes e a Cmara de Deputados. Trata-se, aqui, de indagar acerca
das razes explicativas desse recorrente confronto.
A estratgia de pesquisa utilizada, nesse segundo eixo, intenta aprofundar o exame
das relaes entre Executivo e Cmara no Imprio a partir de uma perspectiva neo-
institucionalista - comum em muitas abordagens contemporneas da Cincia Poltica,
mas ainda pouco explorada no que tange ao estudo da poltica imperial no Brasil.
Parte-se, nesse sentido, da noo, presente na literatura pertinente, de que as
relaes entre Executivo e Legislativo ou, de um modo mais geral, o prprio
desempenho dos governos, em termos de sua estabilidade e capacidade de efetivar suas
polticas e programas, dependem de trs variveis-chave: o formato do sistema de
governo, a legislao eleitoral e a forma de organizao interna dos trabalhos
legislativos 1.
luz da perspectiva neo-institucionalista mencionada acima, considera-se que, no
sistema poltico vigente no Segundo Reinado (1840-1889), as trs variveis-chave para
o desempenho do governo atuaram como vetores centrfugos, contribuindo para a
gerao da instabilidade verificada. De uma forma sumria, isso se dava porque o
sistema de governo implicava dependncia dupla do gabinete, frente Coroa e s
maiorias legislativas. Por sua vez, as regras do trabalho legislativo exigiam do gabinete,
para a aprovao de suas polticas mais centrais, a reiterada arregimentao de
1 Da imensa literatura neo-institucionalista, podem ser mencionados trabalhos clssicos como Mayhew
(1974), Fiorina (1989), Cain, Ferejohn e Fiorina (1987), Krehbiel (1991), Cox e McCubbins (1993) e
Shugart e Carey (1992). Para uma sinttica discusso do institucionalismo enquanto mtodo, ver
Diermeier e Krehbiel (2003). Exposies crticas das principais contribuies neo-institucionalistas aos
estudos legislativos e ao exame das performances dos regimes democrticos, acompanhadas por propostas
que buscam inovar essa abordagem, podem ser encontradas em Limongi (2002; 2003).
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15
maiorias, sem que estivessem disponveis muitos atalhos centralizadores 2; e,
finalmente, por fora de que, dos 49 anos estudados, em 28 o sistema eleitoral obedeceu
a regras distritais (Primeira e Segunda Lei dos Crculos e Lei Saraiva), contra
apenas 21 em que se regeu pelo sistema de listas (Decreto de 1824, Instrues de 1842,
Lei de 1846 e Lei do Tero) 3.
Das trs variveis assinaladas, tanto o sistema de governo como a organizao
interna dos trabalhos legislativos da Cmara foram, entre 1840 e 1889, grosso modo,
invariantes 4, tendo-se alterado, por outro lado, com bastante freqncia, as regras
eleitorais que presidiam escolha dos deputados, as quais transitaram, essencialmente,
de um sistema de listas, vigente entre 1840 e 1856, para um regime distritalizado,
adotado desde 1856 at o final da monarquia, salvo o breve perodo (1876-1881) em
que vigorou a chamada Lei do Tero.
A hiptese central deste segundo eixo do trabalho que essa transio das listas
para o distrito fornece a chave para a compreenso da natureza das relaes entre
os gabinetes e a Cmara dos Deputados no Segundo Reinado, estando na raiz do
incremento do conflito entre Executivo e Legislativo, o principal dos fatores associados,
como se viu acima, instabilidade governamental do perodo 5.
2 Essa forma descentralizada do funcionamento interno da Cmara ser demonstrada, de modo mais
detalhado, no captulo 5 do presente trabalho, quando do exame e da discusso especfica sobre a
tramitao do oramento no Imprio.
3 O Segundo Reinado foi regido, sucessivamente, por sete diferentes legislaes eleitorais. Em que pese
essa variedade, pode-se, para os fins desta pesquisa, como ser explicado no texto, simplesmente
dicotomiz-las em termos de sistemas de listas provinciais e sistemas distritalizados.
4 A Constituio do Imprio, de 1824, objeto de exame especfico no captulo 2 do texto, s sofreu uma
emenda constitucional, na dcada de 1830 (Ato Adicional), e as regras condicionantes do funcionamento
da Cmara dos Deputados cristalizadas nos seus Regimentos Internos, objeto de ateno do captulo 5 desta tese permaneceram, com poucas alteraes, generosas quanto distribuio de direitos parlamentares durante todo o Segundo Reinado.
5 Levando em considerao que as recorrentes reformas eleitorais do Segundo Reinado tinham, entre seus
propsitos centrais, a abertura de espao parlamentar para as minorias, isto , outras foras polticas que
no aquelas atreladas diretamente ao governo (Carvalho, 2006: 397-8), possvel argumentar que, em
ltima anlise, parte da instabilidade dos gabinetes no Imprio foi, em certa medida, um custo,
provavelmente no antecipado, da deciso, tomada pela Coroa e pelo marqus de Paran nos anos 1850, e
jamais revertida por completo, de incorporar ao processo poltico os liberais, farroupilhas e praieiros, bem
como outros dissidentes, derrotados militarmente em 1842, 1845 e 1849, respectivamente, pelas foras do
governo central sediado no Rio de Janeiro.
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16
Especificamente, sustenta-se que a troca das listas pelos distritos concorreu para
desmontar uma das principais ncoras centrpetas do sistema poltico, com amplas
repercusses na poltica imperial at aqui no devidamente exploradas pela literatura
especializada no perodo.
De um modo mais geral, argumenta-se, nessa parte da tese, que a mudana nas
regras eleitorais afetou a lgica da competio poltica e alterou as estruturas de
incentivos com as quais se defrontavam os principais agentes polticos imperiais, com
consequncias relevantes para o funcionamento interno da Cmara dos Deputados e
suas relaes com o Executivo e, em ltima anlise, para o prprio fenmeno da
instabilidade governamental no perodo examinado pela pesquisa.
Nessa linha, mostra-se, no presente trabalho, que a introduo das regras distritais
propiciou uma maior autonomia s bases do sistema (eleitorado de 2 grau e chefias
locais), permitindo a eleio de representantes menos dependentes em face das elites
provinciais e nacionais, isto , frente s direes partidrias, o que dificultou, em um
contexto de processo decisrio legislativo relativamente descentralizado, o controle da
Cmara pelos gabinetes, intensificou as relaes conflituosas entre os poderes
Executivo e Legislativo, e conduziu a impasses que, frequentemente, redundaram na
retiradas de gabinetes por presso parlamentar.
Em resumo, a introduo das regras distritais, e sua prevalncia temporal no
perodo, so, do ponto de vista deste trabalho, fatores cruciais para a compreenso do
conflito entre a Cmara e os ministrios e, por extenso, para o prprio entendimento
da instabilidade governamental entre 1840 e 1889.
Vrias evidncias, diretas e indiretas, so arroladas para sustentar o argumento
apresentado nesse segundo eixo da pesquisa, destacando-se:
- a forte convergncia das fontes e da literatura especializada em enfatizar, na linha
aqui sugerida, as consequncias da mudana de regime eleitoral, sem conect-las, no
entanto, ao fenmeno geral da instabilidade governamental do Segundo Reinado;
- o menor mandato mdio dos gabinetes que governaram frente a legislaturas
distritalizadas quando comparado ao tempo de exerccio dos ministrios que se
relacionaram com Cmaras escolhidas mediante o sistema de listas;
-
17
- a associao entre a queda de gabinetes por presso do Legislativo 6 e a vigncia
de regras eleitorais distritalizadas;
- A diferena substantiva das relaes entre gabinetes e Cmara na 9 e 10
legislaturas, a primeira eleita sob a gide das listas e a segunda sob a regra dos
crculos (distritos), verificando-se enfraquecimento notvel, na passagem de uma
para outra legislatura, quanto capacidade do Executivo de fazer aprovar sua agenda
7.
1.3 Plano de Exposio do Trabalho
Alm deste primeiro captulo, onde se apresenta uma viso geral da tese, o trabalho
est estruturado em mais cinco partes. Nesse sentido, os captulos 2 e 3 exploram o
primeiro eixo da pesquisa o problema da instabilidade governamental no Segundo
Reinado -, cabendo aos captulos 4 e 5 desdobrar o segundo eixo investigativo,
relacionado aos efeitos da introduo das regras distritais sobre as relaes entre
ministrios e a Cmara dos Deputados. Um ltimo, e curto, captulo (6), a ttulo de
concluses ou consideraes finais, apenas alinhava os diferentes pontos de chegada
deste estudo, j adiantados no transcurso da exposio.
Assim, o captulo 2, aps contextualizar, do ponto de vista histrico e institucional,
o arranjo poltico do Segundo Reinado, intervalo de tempo de interesse do texto, e de
justificar a escolha da temtica, apresenta e discute a classificao das razes de retirada
dos 37 gabinetes parlamentares, existentes entre 1840 e 1889, em termos das categorias
extradas da matriz de possibilidades apresentada acima (quadro 1.1). Ao apresentar e
quantificar os principais padres associados s retiradas auxiliando, desse modo, a
compreenso da instabilidade ministerial verificada -, o captulo contrape as
concluses alcanadas e as vises correntes sobre o assunto, salientando suas diferenas
e o fato de que os resultados aqui sustentados afastam-se de perspectivas enraizadas na
literatura especializada.
6 Isto , as substituies enquadradas na categoria 3 do quadro 1.1, acima.
7 Foi, exatamente, na transio entre a 9 e 10 legislaturas, na segunda metade da dcada de 1850, que, no
Segundo Reinado, abandonou-se o sistema de listas (ou chapas) em favor da regra dos crculos para a eleio da Cmara dos Deputados. A corroborao mais definitiva da hiptese sustentada no segundo eixo
desta pesquisa depender, naturalmente, do exame sistemtico de um maior nmero de legislaturas
imperiais, o que se afigura como uma promissora agenda de trabalho diante dos resultados aqui
apresentados.
-
18
O captulo 3 apresenta, de modo pormenorizado, a discusso de cada uma das 37
dissolues ministeriais que tiveram lugar no Segundo Reinado. Sempre partindo de
uma contextualizao mnima do contexto poltico em que governou cada gabinete, o
captulo centra seu foco na explorao a partir de fontes e da literatura pertinente
dos fatores que conduziram respectiva retirada, com ateno especial ao eventual
papel desempenhado, em cada processo, pela Coroa e/ou pelo Legislativo. O captulo 3,
por conseguinte, fornece o lastro emprico da classificao apresentada das razes de
retirada dos ministrios imperiais, concluindo a apresentao do primeiro eixo do
presente trabalho.
Consoante assinalado, os captulos 4 e 5 desenvolvem o segundo eixo da pesquisa
concernente s relaes gabinete-Legislativo no Segundo Reinado e ao efeito sobre elas
da introduo, a partir da dcada de 1850, do regime eleitoral distrital para fins de
preenchimento das cadeiras da Cmara dos Deputados.
Nessa linha, o captulo 4 examina e discute a literatura relativa Cmara dos
Deputados imperial a partir de vrios ngulos (importncia da casa, presena de
interesses provinciais, prerrogativas oramentrias, etc) e, em seguida, trata da
legislao eleitoral, das eleies e, em especial, das consequncias dos diferentes
formatos eleitorais adotados, ao longo da monarquia, sobre a dinmica do sistema
poltico.
Empresta-se nfase especial transio do regime de listas (chapas) para o voto
distritalizado, de modo a sugerir a substantiva alterao efetuada, nessa passagem, em
termos da estrutura de incentivos com a qual se defrontavam os principais agentes
polticos imperiais, assinalando, particularmente, suas importantes repercusses sobre
os traos macro-estruturais do sistema poltico do Segundo Reinado, aspecto ainda no
devidamente explorado nem estudado com sistematicidade pelos especialistas do
perodo. Mostra-se, por fim, ainda no captulo 4, que narrativas e estudos variados sobre
o Imprio transmitem avaliao das legislaturas posteriores introduo da regra
distrital consonante com a perspectiva aqui sugerida, em termos da fragilizao das
bases de sustentao dos ministrios incumbentes, ainda que esses mesmos textos no
relacionem o ponto com o fenmeno mais geral da instabilidade ministerial.
O captulo 5, por seu turno, tem por meta central arrolar e discutir as principais
concluses extradas pela pesquisa a partir do estudo sistemtico dos anais
-
19
parlamentares entre 1853 e 1860, as quais oferecem sustentao hiptese utilizada no
segundo eixo desta tese.
Inicialmente, o captulo apresenta dois outros conjuntos de informaes empricas
que acenam, igualmente, para um vnculo entre a introduo dos crculos e a maior
dificuldade dos governos de angariar suporte legislativo, a saber, a associao entre
regras distritalizadas e menor mandato temporal dos ministrios (i) e entre o regime
eleitoral mencionado e episdios de retiradas de gabinetes associadas a conflitos,
efetivos ou potenciais, frente ao Parlamento e, em especial, Cmara (ii).
Vistas essas informaes iniciais que sugerem a existncia da relao postulada
entre regra eleitoral distrital e o conflito ministrios-Cmaras, volta-se o captulo 5
para o seu foco principal, centrado no exame e na comparao sistemtica entre a 9
(1853-6) e a 10 (1857-60) legislaturas, a primeira eleita sob a gide das listas, a
segunda mediante a primeira Lei dos Crculos.
Mediante o estudo da tramitao oramentria em todas as sesses legislativas das
duas cmaras, evidencia-se a diferena no comportamento parlamentar e no grau de
apoio auferido pelos gabinetes em face da cada uma das legislaturas. Em termos
sintticos, conclui-se que o comportamento disciplinado do plenrio frente s
prioridades estipuladas pelo governo, verificado no perodo 1853-6, no se repete no
perodo seguinte (1857-60), quando se verificam importantes revezes para os gabinetes
incumbentes.
Adicionando uma dimenso quantitativa discusso qualitativa da tramitao
oramentria, os achados e concluses da tese, nesse captulo 5, so sintetizados atravs
de um ndice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG), o qual mensura a
capacidade dos ministrios imperiais de conseguir apoio para suas prioridades junto ao
plenrio da Cmara dos Deputados. Atravs do referido indicador, mostra-se que o
desempenho dos gabinetes na 9 legislatura (listas ou chapas), em circunstncias
semelhantes, extradas das deliberaes sobre matria oramentria, substantivamente
superior quele verificado na 10 legislatura (crculos).
Finalmente, um breve captulo final (6) alinhava as concluses deste trabalho.
-
20
Parte 1. A Instabilidade Ministerial no Segundo Reinado
-
21
Captulo 2. Classificao das Razes de Retirada dos Gabinetes do
Imprio e o Contexto Poltico-Institucional do Segundo Reinado (1840-
1889)
Este captulo apresenta e discute, em detalhes, a classificao sistemtica das
razes de afastamento dos 37 gabinetes existentes entre 1840 e 1889. A classificao,
conforme j avanado, realizada em funo das categorias extradas da matriz 2x2 de
possibilidades introduzida no captulo 1 desta pesquisa. Busca-se, por essa via,
contribuir para a compreenso dos principais motivos polticos subjacentes
instabilidade das formaes ministeriais no Segundo Reinado 8.
Como prembulo a essa tarefa, as primeiras sees desta parte do trabalho (sees
2.1, 2.2 e 2.3) contextualizam, em termos histricos e institucionais, o sistema poltico
vigente no Segundo Reinado, introduzindo, igualmente, as principais perspectivas
dominantes na literatura especializada sobre o perodo.
Esse procedimento permite justificar a escolha da instabilidade ministerial como
objeto de interesse da pesquisa (seo 2.4), delineando a importncia do tema, no bojo
dos estudos polticos e historiogrficos relativos poltica imperial, e indicando a
relativa ausncia de classificaes sistemticas e empiricamente informadas sobre o
assunto.
Sobremodo, o mapeamento inicial das principais posies, na historiografia e nas
cincias sociais, sobre a dinmica de funcionamento da poltica imperial, possibilita
que, ao longo da apresentao e quantificao das categorias que sintetizam as razes
das retiradas ministeriais - responsveis, portanto, pela instabilidade governamental do
perodo -, seja realizada uma contraposio entre as concluses alcanadas pela
pesquisa e as vises hoje dominantes sobre a matria (seo 2.5).
Como se ver ao longo do texto, essas concluses, lastreadas nas evidncias
sistematizadas neste e no prximo captulo, afastam-se substantivamente de importantes
perspectivas e postulaes dominantes e enraizadas na literatura. Em especial, as
8 Cada episdio de substituio de governo ser objeto de anlise mais detalhada no captulo 3 desta tese.
-
22
concluses alcanadas evidenciam a importncia das instituies representativas, em
especial a Cmara dos Deputados, na dinmica poltica do Segundo Reinado, mostrando
seu papel central na maior parte dos episdios de substituio ministerial do perodo. Os
prprios casos de alternncia partidria, nos quais o juzo poltico da Coroa, no uso das
prerrogativas do Poder Moderador, adquiria importncia especial, apontam, quando
examinados mais detidamente, em grande proporo, para contextos onde conflitos na
relao gabinete-Legislativo desempenharam papel relevante.
2.1 Avaliaes Gerais do Perodo.
luz das interpretaes sustentadas por importantes estudiosos do sistema poltico
do Segundo Reinado (1840-1889), um mecanismo institucional teria sido crucial para o
seu funcionamento estvel, a saber, a atuao da Coroa atravs do exerccio das
competncias e prerrogativas associadas ao Poder Moderador (Buarque de Holanda,
1985; Faoro, 2001; Iglsias, 2004; Barman, 1988; Needell, 2006; 2009).
Para Srgio Buarque de Holanda, autor de uma das obras mais importantes sobre o
perodo, seria inquestionvel a centralidade do Poder Moderador - entendido como
poder pessoal, conquanto autorizado constitucionalmente, do titular da Coroa - na
determinao da dinmica poltica imperial. A atuao da Coroa teria abarcado, para
esse autor, tanto a deciso final sobre a conduo e o contedo das polticas de governo
como a prpria escolha dos gabinetes ministeriais (1985: 19; 22) 9.
Francisco Iglsias, outro importante historiador do Imprio, no s categrico em
sustentar que Pedro II reinou, governou e administrou (2004: 113), mas tambm
assinala que o prprio arcabouo das instituies representativas parlamentares foi,
9 Dois exemplos entre inmeras passagens que exprimem essa viso: Que era sua em geral a deciso
ltima em todos os negcios pblicos, ainda quando suas no fossem as iniciativas, parece acima de
qualquer dvida. A ambio de fazer com que, ao final, os seus prprios alvitres prevalecessem, s era
contrabalanada pelos escrpulos de quem no quer parecer que a tem. (...). Depois da maioridade,
mormente depois que Pedro II pde reinar livre de tutelas, o nico recurso que lhe restava para amenizar
melindres partidrios, tirava-o do fato de ser pessoalmente mais inclinado a cordura do que a afoitezas.
Munido desse recurso, no se esquivou de livremente escolher seus ministrios a seu gosto, interpretando
risca o estipulado na constituio (1985: 19; 22).
-
23
durante as quase cinco dcadas do Segundo Reinado, essencialmente formal, no sentido
de que jamais se concretizou enquanto forma efetiva de governo (2004: 113-4) 10
.
Raymundo Faoro, no clssico Os Donos do Poder, segue a mesma linha, ao afirmar
que o governo pessoal do imperador era realidade reconhecida por todos os
contemporneos (2001: 413) 11
. Nesse sentido, o exerccio do comando pela Coroa,
atravs das prerrogativas do Moderador, se manifestava atravs da livre escolha do
partido que subia ao poder, na entrega a este dos meios de fazer a maioria legislativa e
na prpria seleo dos polticos que iriam titularizar as posies mais importantes
(2001: 406) 12
. Para Faoro, as funes da Cmara dos Deputados eram claramente
secundrias no arranjo vigente, sobretudo quando comparadas fora de que gozavam
sob a gide e o beneplcito da Coroa as instituies vitalcias, o Senado e o Conselho
de Estado (2001: 396) 13
.
10
Discutiu-se muito, no plano terico ou prtico, se o rei reina e no governa, ou se reina, governa e administra. A verdade que D. Pedro II no s reinou e governou, mas administrou. (...). O to referido
parlamentarismo imperial apenas fora de expresso. A poltica aproximou-se, por vezes, desse modelo,
mas no o realizou, que ele no estava nem no esprito nem na letra das leis nacionais, era impossvel com
a precariedade eleitoral, com as constantes dissidncias dos partidos inconsistentes, pela falta de programas e estruturao, pouco mais que simples ajuntamento de pessoas -, com as mudanas contnuas
e os atributos do poder imperial(Iglsias, 2004: 113-4).
11 A labareda das disputas e das contradies deixa de p, verde e altiva, a verdade de que o Poder
Moderador governa e administra. Ningum (...) nega a realidade. (Faoro, 2001: 413).
12 A est um rei que reina e governa, entregue ao gabinete a prtica de atos secundrios. (...) o chefe do
Conselho ser da sua confiana o imperador criar, em torno do cetro, os seus estadistas, ministeriais ao seu talante, mantidos alguns cardeais no ostracismo eterno. Ele suscita o partido ao governo, arrancando-o
da oposio; ele d ao partido assim elevado a maioria parlamentar, por meio da entrega provisria dos
meios compressivos que articulam as eleies (Faoro, 2001: 406). A passagem do autor de Os Donos do Poder evoca nitidamente trecho clebre do discurso do Sorites, pronunciado pelo senador Nabuco de
Arajo, em 1868, o qual, na viso dominante sobre a poltica imperial, retrataria perfeio o modo de
formao de governos e maiorias no perodo: O Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministrios; esta pessoa faz a eleio, porque h de faz-la; esta eleio faz a maioria. Eis a
est o sistema representativo de nosso pas!(Nabuco, 1949, vol. III: 110).
13 (...). A presena da Cmara dos Deputados reduz-se a uma funo, a de expressar ao gabinete a
confiana ou a desconfiana, sujeita, neste caso, dissoluo. Fora da o imperador tudo pode (Faoro, 2001: 406). Os rgos vitalcios, teoricamente apolticos, na verdade de contedo conservador, comandam o jogo, sob a presidncia vigilante do imperador, mal encoberto no biombo transparente (Faoro, 2001: 396).
-
24
Jeffrey Needell (2006: 6; 200; 2009: 62-3), brasilianista especializado no Brasil do
sculo XIX, assinala que o transcurso do Segundo Reinado assiste ao progressivo
alargamento do papel e do impacto da ao do Imperador no sistema poltico imperial.
Para esse autor, por volta da dcada de 1860, a Coroa deixara para trs uma atitude
predominantemente de superviso e correo, frente aos governos, para evoluir rumo a
uma discreta mas firme conduo de algumas das principais diretrizes e polticas
sustentadas pelos ministrios com conseqncias tanto para a ordem social como para
desenvolvimento das instituies representativas (positivas, para as primeiras,
negativas, para as segundas, na interpretao do historiador mencionado) 14
.
Mais recentemente, em reflexo sobre aspectos ligados ao tema, Fernando Limongi
(2011: 2-4) chama a ateno acerca da avaliao normativa positiva, sustentada por
parte dos estudiosos e pela historiografia dominante, a respeito do exerccio efetivo das
prerrogativas do Moderador por Pedro II. Esse uso prudente e adequado, por parte da
Coroa, das amplas prerrogativas a ela conferidas pela Constituio do Imprio (CI) teria
sido a base sobre a qual foi possvel a estruturao de um sistema poltico estvel e
capaz de comportar, durante quase 50 anos, a alternncia pacfica dos liberais e
conservadores no poder. Esse julgamento sobre o perodo se reveste, segundo tais
vises, de solidez adicional mediante a comparao usual feita do Segundo Imprio com
as pocas precedentes (o Primeiro Reinado e a Regncia) e as posteriores (a Repblica
Velha) - a primeira marcada por violncia e revolues, que, no limite, puseram em
xeque a prpria integridade territorial do pas nascente; a segunda, pela supresso total
das oposies, com o aprofundamento do contedo oligrquico do sistema poltico e a
reduo do j precrio grau de contestao poltica tolerado pelo arranjo de poder
(2011: 4).
Essa observao aponta, com acerto, para esquemas explicativos que se
consolidaram e, com o tempo, ampliaram sua abrangncia ao alcanar tambm grande
parte dos estudos sociolgicos e de cincia poltica dedicados ao assunto. Ilustrao
disso vem a ser o contraponto, reiterado por vasta literatura nas cincias sociais, entre o
14
Roderick Barman, outro brasilianista com importantes contribuies ao estudo da poltica imperial,
converge na mesma direo de Needell, quanto centralidade do monarca, apenas antecipando o
protagonismo de Pedro II para o incio da dcada de 1850: a essa altura, consoante esse historiador, o
imperador j desfrutava de completo controle sobre o sistema poltico do Segundo Reinado (1988: 238).
-
25
Imprio e a Repblica Velha, em termos justamente dos respectivos arranjos
institucionais estratgicos sobre os quais assentaram seus funcionamentos, o qual
retoma, com maiores ou menores qualificaes, as interpretaes da historiografia
convencional 15
. Enquanto a experincia monrquica, como se assinalou, assentaria
essencialmente seu funcionamento no Poder Moderador, a nossa primeira experincia
republicana (1889-1930) teria sido caracterizada pela Poltica dos Governadores -
pacto mediante o qual teria se estabelecido um modus vivendi entre o executivo
presidencialista e as unidades estaduais emergentes, fortalecidas com o novo regime
federalista.
Esses esquemas explicativos costumam colocar o acento analtico, sobremodo, nas
diferenas entre as duas experincias e embutem, consoante anotado acima, uma clara
avaliao axiolgica: o Imprio teria tido a marca da centralizao e da atuao do
Poder Moderador, responsvel por uma arbitragem estrutural exercida sobre o sistema
poltico, a qual teria sido essencial ao prprio funcionamento bipartidrio do perodo,
sendo condio do conflito regulado (Carvalho, 2006: 406; Buarque de Holanda,
1985: 72; Barman, 1988: 227) 16
. Nesse sentido, o Poder Moderador seria o rbitro que,
ao desaparecer com a Repblica, teria liberado o sistema poltico para convergir em
direo ao equilbrio da ordem oligrquica, necessariamente local e regional - dada a
estrutura social concentradora de renda e riqueza dos ncleos agrrio-exportadores,
fundados na grande propriedade, a extenso territorial do pas e o federalismo
15
Em texto produzido nos anos 1970, Cardoso, escrevendo sobre os primeiros e turbulentos anos da
Repblica, assinala: (...) no plano efetivo da constituio no escrita, desde o governo provisrio, a questo fundamental que se colocava era a de saber quem substituiria, de fato, como fora organizada, o
Poder Moderador, ou seja, como se definiriam as regras do novo establishment (1985: 38). Lessa, escrevendo j no limiar dos anos 1990, afirma que a Poltica dos Governadores, pactuada na Repblica, significou, no marco do novo sistema, um equivalente funcional do Poder Moderador (1988: 111). A viso de equivalncia est presente tambm na contribuio recente de Ana Luiza Backes (2006: 206-7).
16 Em sua ausncia, (...) ou o conflito seria extralegal ou seria suprimido atravs de arranjos de
dominao como o que se desenvolveu na Repblica Velha atravs dos partidos nicos estaduais (Carvalho, 2006: 406). O lado positivo [da ao do Poder Moderador no sistema poltico imperial] estava na possibilidade de se revezarem no poder os agrupamentos partidrios, sob o comando de uma
entidade que se presumia estranha a eles. Sem a rotao, dificilmente se poderia evitar que um desses
agrupamentos, elevado ao governo, nele se entrincheirasse e afinal se perpetuasse (Buarque de Holanda, 1985: 72). O sistema parlamentar de governo (...) teria se tornado uma iluso no fosse a existncia do Poder Moderador. Uma vez que eleies no podiam remover do poder um partido, recaa sobre o
Imperador a responsabilidade de fazer o sistema poltico funcionar. S ele podia, grosso modo, equilibrar
os partidos, promovendo sua alternncia no poder. O monarca situava-se acima das disputas,
[constituindo-se em] rbitro supremo do poder e smbolo da legalidade (Barman, 1988: 227).
-
26
introduzido em 1889. A Poltica dos Governadores, costurada na presidncia Campos
Sales (1898-1902), seria o atestado maior dessa realidade, um reconhecimento oficial
das bases reais do poder no pas (Backes, 2006: 33), emergindo a descentralizao e o
regionalismo de partidos nicos estaduais - suprimidas as oposies, no limite, pela
fora - como as marcas emblemticas da experincia republicana em seu perodo inicial.
Centralizao, com base na Coroa, e descentralizao, assentada nos estados,
seriam, assim, as marcas caractersticas respectivas do Imprio e da Repblica,
materializando a fonte ltima dos mecanismos gerais responsveis pelo equilbrio
institucional de cada um dos regimes 17. Como assinala Limongi (2011: 4), o contraste
no podia ser maior entre um regime de rotao partidria pacfica e outro fundado na
violncia das oligarquias locais.
Esse panorama geral das avaliaes do Imprio e de seu funcionamento
institucional - contraposto este, inclusive, aos arranjos que o antecederam e sucederam
- sugere, com vigor, a importncia emprestada, pelos especialistas, atuao da
Coroa, revestida das prerrogativas do Poder Moderador, para o equilbrio do sistema
poltico. Destaca-se, tambm, de algumas das vises assinaladas, uma visvel
secundarizao do papel da Cmara dos Deputados, do gabinete e das prprias
instituies representativas em geral, na dinmica poltica da poca. Por outro lado,
ganham relevncia as instituies vitalcias, o Senado e o Conselho de Estado, atuando
em articulao com o monarca, o qual, nas vises apresentadas, detinha pleno controle
do regime.
Cabe, agora, no propsito de fornecer uma contextualizao institucional adequada
do perodo, expor com um pouco mais de mincia os elementos centrais do sistema
poltico imperial, em especial aquele vigente entre 1840 e 1889, intervalo de interesse
do trabalho. Antes, porm, de proceder-se descrio mais detalhada das principais
instituies do Segundo Reinado, cumpre rever, a partir da historiografia pertinente, o
processo histrico atravs do qual se desenvolveu o arranjo institucional em foco, o que
equivale a descrever, em suas linhas mais gerais, as principais perspectivas a respeito da
formao do Estado brasileiro nas suas primeiras dcadas de existncia independente.
17
Exceo ao tratamento dicotmico dos dois perodos vem a ser, na literatura recente, Dolhnikoff (2005
a: 18; 295-9) e, antes, Pereira de Castro (2004: 599).
-
27
Esses dois procedimentos, como se ver, preparam o terreno para que o observador
capte outras dinmicas institucionais em curso no perodo. Essas outras dinmicas
tornam o cenrio poltico at aqui esboado mais complexo e nuanado, sugerindo os
limites e insuficincias das avaliaes gerais acima alinhadas e estimulando as
indagaes diante das quais se estrutura a presente pesquisa. a essa preparao de
terreno que se dedicam as duas prximas sees do captulo.
2.2 De 1822 a 1850: Sntese das Perspectivas Dominantes sobre a Evoluo do
Estado Brasileiro em suas 3 Primeiras Dcadas
As quase trs dcadas, grosso modo, que separam a independncia, em 1822, do
final dos anos 1840, foram um perodo turbulento e complexo. Nesse intervalo, vrios
projetos de poder, delineados com maior ou menor nitidez e associados a variadas
alternativas de desenho territorial, se enfrentaram na tentativa de moldar o formato
poltico do espao, ocupado pelas ex-possesses portuguesas na Amrica - marcado por
vasta extenso e fraca integrao scio-econmica -, que emergia para a possibilidade
de existncia poltica autnoma aps sculos de status colonial.
Tratou-se, na expresso de Bolvar Lamounier, referindo-se s primeiras dcadas
posteriores separao de Portugal, de um momento hobbesiano, no sentido do que o
que estava em jogo naquele perodo era o problema (...) da criao do consenso, ou da
pactuao de uma comunidade poltica (2005: 26), em um contexto de alta incerteza e
de elevada tenso, no qual variados interesses, centrados nas diferentes regies da ex-
colnia, se contrapuseram, inclusive belicamente, sem que uma soluo natural se
afigurasse de pronto.
Em geral, ao tratar da poca em questo, parcela importante da narrativa
historiogrfica faz referncia, de modo um tanto anacrnico, a um centro desde logo
identificado com a Corte no Rio de Janeiro em luta contra separatismos de carter
regional, apontando para um cenrio marcado por conflitos que perpassaram, em
diferentes nveis de intensidade, todo o Primeiro Reinado (1822-31) e o intervalo das
Regncias (1831-40). A rigor, esses enfrentamentos somente alcanariam sua soluo
definitiva na forma da estabilizao de um Estado monrquico unitrio, com
considervel grau de concentrao de poderes poltico-administrativos no Rio,
consoante boa parte dos estudiosos nos ltimos anos da dcada de 1840, com as
-
28
sucessivas derrotas de insurreies armadas em So Paulo e Minas (1842), no Sul
(1845) e em Pernambuco (1848/9) 18
.
No entanto, como registra Evaldo Cabral de Mello, mencionando o trabalho do
historiador norte-americano Roderick Barman, a criao do Estado unitrio no Brasil
no foi um destino manifesto (2004: 11) 19: vrias outras solues apareceram como
possveis no decorrer da conjuntura referida, algumas das quais teriam implicado a
formao de vrios Estados nacionais no antigo espao portugus das Amricas 20
, uma
vez que a prpria noo de unidade territorial aparecia, na tica dos contemporneos
queles acontecimentos, mais como um projeto de maior ou menor importncia, a
depender de grupos especficos do que como uma realidade objetiva 21.
Por tudo isso, talvez seja mais adequado entender o perodo em questo enquanto
uma teia, progressivamente emergente, compreensiva de complexos e variados esforos
18
O perodo regencial foi um dos mais agitados da histria poltica do pas e tambm um dos mais importantes. Naqueles anos, esteve em jogo a unidade territorial do Brasil, e o centro do debate poltico
foi dominado pelos temas da centralizao ou descentralizao do poder, do grau de autonomia das
provncias e da organizao das Foras Armadas. (...).Nem tudo se decidiu na poca regencial. Podemos
mesmo prolongar a periodizao por dez anos e dizer que s por volta de 1850 a Monarquia centralizada
se consolidou, quando as ltimas rebelies provinciais cessaram. (Fausto, 2006: 161)
19 Cabral de Mello refere-se ao livro Brazil. The Forging of a Nation, 1798-1852, de Roderick Barman,
publicado pela Stanford University Press, em 1988. Fazendo referncia, por seu turno, a esforos
contemporneos da historiografia de criticar e superar limitaes postas, entre outras coisas, por vises
permeadas por anacronismo, Vilma Peres Costa refere-se s perspectivas que concebem a nacionalidade e
o Estado brasileiro como mosaico, sublinhando simultaneamente a sua feio compsita e seu carter de artefato, de coisa operosamente construda (2005: 114). Tal perspectiva, que teve no recentemente falecido professor Istvn Jancs um dos seus maiores cultores, tem a vantagem de permitir pensar o processo de emancipao poltica ao arrepio da viso tradicional (a partir do Rio de Janeiro e de sua
irradiao), mas tambm suplantar o horizonte que conforma seu oposto (o estudo das manifestaes
regionais de um fenmeno pensado como unvoco) (2005: 114, nota 146, 115). Um trabalho pioneiro que antecipa essa linha de reflexo, e inspira estudos posteriores, vem a ser o ensaio A Herana Colonial - sua Desagregao, de Srgio Buarque de Holanda (1982).
20 O triunfo do federalismo ou a criao de vrios Estados regionais, no de um Imprio unitrio, teria
provavelmente ocorrido, caso trs momentos decisivos no houvessem infletido o curso dos
acontecimentos: a transmigrao da dinastia bragantina para o Rio; a determinao da Corte fluminense
de preservar a posio hegemnica recm-adquirida; e a incapacidade do Congresso de Lisboa em lidar
com a questo brasileira (Cabral de Mello, 2004: 12).
21 Como observava Horace Say [diplomara francs que viveu no Brasil entre 1815 e 1825], ao tempo da
independncia, o Brasil era apenas a designao genrica das possesses portuguesas na Amrica do Sul, no existindo por assim dizer unidade brasileira. Da a preferncia da lngua inglesa pelo plural the Brazils (Cabral de Mello, 2004: 18). Buarque de Holanda, no trabalho pioneiro citado na nota 19 acima, tambm menciona, tendo-a por exata, a passagem assinalada de Horace Say, destacando, assim, a
dinmica centrfuga caracterstica do espao colonial, a qual, s ceder ao domnio do Estado-nao, a passo lento, j bem adiantado o sculo XIX (1985: 15-6).
-
29
de state-building em que um dos projetos em curso centrado no espao fluminense,
vinculado ao prspero caf do Vale do Paraba e organizado, politicamente, em torno do
que vir a ser o Partido Conservador a partir dos anos 1840 - ganha a dianteira sobre
alternativas e legitima-se, a partir de certo momento (essencialmente, no transcurso da
dcada de 40 do sculo XIX), enquanto centro, procedendo, como parte de sua
prpria consolidao, reorganizao e normalizao da vida poltica do territrio
(Mattos, 1987: 105-9; 129-32; Barman, 1988: 6-7) 22
.
O grau de centralizao emergente desse processo em termos de distribuio de
poder poltico entre o Rio de Janeiro e as demais regies da antiga Amrica lusitana
foi substancial, para grande parte dos estudiosos, envolvendo um desequilbrio a favor
do governo geral, em detrimento das elites vinculadas aos demais espaos 23
. Mais
recentemente, esse grau de centralizao tem sido, ele prprio, objeto de controvrsias,
apontando-se, no interior do arranjo institucional cristalizado no Imprio, um cunho
federativo mais largo do que o postulado habitualmente na literatura especializada 24
.
22
Privilegiando, para pensar o processo histrico de construo do Estado brasileiro, uma perspectiva
mais centrada na ideia da criao/mosaico do que nas noes de legado/continuidade, escreve Vilma
Peres Costa (2005: 118): A ideia de que a Monarquia americana no um legado, mas uma reinveno um seguro ponto de partida nesse aspecto. Ela nos permite evitar alguns equvocos importantes, como o
de deduzir o formato do estado brasileiro a que se chegou ao final dos anos 40 do sculo XIX da aparente
continuidade institucional que foi peculiar ao processo poltico de nossa Independncia. Mirando-nos no
caminho que tem sido trilhado pela reflexo sobre a nao, preciso que possamos ver o processo de
separao de Portugal e a construo do Estado brasileiro (...) como processos que, embora articulados,
no se reduzem um ao outro. A dinmica extrativa inerente ao Estado no pode ser dada, tampouco pode
ser herdada. Ela se repe em intensa sinergia com a ordem econmica e com a vida social, gerando
conflitos e provocando o enfrentamento, no cenrio interno e externo, de mltiplas alternativas de
desenho territorial e organizao poltica. De um ponto de vista mais concreto e especfico, a questo dos motivos que conduziram manuteno da unidade territorial da antiga Amrica lusitana parece
envolver variadas razes, constituindo uma trama complexa na avaliao dos estudiosos. Fausto (2006:
183-5) salienta duas hipteses gerais que teriam atuado em favor daquela unidade e que, ao seu juzo, no
seriam excludentes: a existncia de uma elite homognea do ponto de vista social, educacional e
profissional, distribuda pela ex-colnia, e a questo da escravido no contexto internacional da poca,
onde a poderosa Inglaterra assumia posio de aberta hostilidade contra a manuteno do regime servil,
inibindo aventuras autonomistas de regies isoladas, sobremodo tendo em vista a extraterritorialidade do
mercado de mo de obra s reproduzvel mediante o recurso ao trfico negreiro. As duas hipteses se
associam, respectivamente, aos nomes dos historiadores Jos Murilo de Carvalho e Lus Felipe de
Alencastro. Mais recentemente, Dolhnikoff (2005 a; 2005 b) argumentou que o contedo federalista
embutido no arranjo institucional imperial foi no apenas mais amplo do que o admitido
convencionalmente, mas, tambm, elemento decisivo para a incorporao das elites provinciais ao
sistema poltico, sendo esse ltimo processo fundamental na viabilizao da unidade territorial sob a hegemonia do governo do Rio de Janeiro (2005 a: 14).
23 Nesse sentido, ver estudos clssicos como Buarque de Holanda (1982: 9-39), Silva Dias (1986: 160-
84), Mattos (1987: 105-6; 130-2, notas 84 a 86; 155-62) e Carvalho (2005: 155-88; 2006: 143-68; 255-7)
bem como a contribuio de brasilianistas como Barman (1988: 212-3).
24 Ilustrativos desse ponto de vista so os trabalhos referidos acima de Dolhnikoff (2005 a; 2005 b).
Tambm nessa direo, de modo pioneiro, aponta Pereira de Castro (2004: 599).
-
30
Em 1824 foi promulgada a Constituio Imperial (CI), de cunho concentrador e
centralizador, pela supremacia de que dotava a Coroa frente aos outros poderes e pela
atribuio praticamente exclusiva ao governo geral das competncias e prerrogativas
poltico-administrativas em prejuzo das demais circunscries regionais 25
. Depois
disso, ocorreram, no interior do disputado processo de construo estatal em curso, do
ponto de vista poltico-institucional mais concreto, dois movimentos decisivos, durante
os anos 1830 e 1840, que marcariam a face de todo o Segundo Reinado, a saber, as
reformas descentralizantes, entre 1832 e 1834, executadas pelas elites polticas que mais
tarde se identificariam com o Partido Liberal, e as reaes a essas iniciativas,
sustentadas pelos grupos que formariam o Partido Conservador, reconcentradoras do
poder poltico e administrativo - conhecidas na literatura por Regresso. Essas ltimas
terminaram por se impor - mas no sem choques, inclusive armados, e concesses s
provncias - durante o transcurso da dcada de 40, e moldaram, como assinalado, a face
institucional e poltica do Estado nascente. Por outro lado, o iderio liberal, por todo o
Imprio, ficaria vinculado, com mais ou menos nfase, ao programa descentralizador
mencionado (Fausto, 2006: 162-4; 171; 175-6; Alonso, 2002: 68-9) 26
.
As reformas descentralizantes, do incio dos anos 1830, concederam maiores
poderes e competncias exclusivas s unidades do Imprio as provncias mediante o
fortalecimento de seus legislativos, de sua mquina administrativa e de seu aparato
judicirio e policial local, em que pese a manuteno da nomeao dos presidentes
provinciais pelo Rio de Janeiro (os vice-presidentes, no entanto, passavam a ser
indicados pelas provncias). A instituio do jri e do habeas-corpus, tambm
contemplados pelas reformas, sinalizaram preocupao com liberdades e garantias
individuais. Ao mesmo tempo, as iniciativas em foco suprimiram a vigncia do Poder
Moderador, durante a Regncia, e decretaram a extino do Conselho de Estado.
Finalmente, no mbito dessas medidas tambm se inclui a criao da Guarda Nacional,
milcia a ser formada por notveis locais, a quem se entregava grande parte da
responsabilidade pela manuteno da ordem pblica. O somatrio disso tudo indicava,
25
A Carta de 1824, em seus aspectos de interesse para o trabalho, ser objeto de exame na prxima seo.
26 Do ponto de vista do institucionalismo histrico, pode-se dizer que as dcadas em questo constituram
uma tpica critical juncture, cujos resultados, de carter contingente diante de alternativas esboadas no perodo, vo, depois de consolidados, travar ou descartar, mediante mecanismos de auto-reforo, caminhos diversos e conformar a trajetria caracterstica do Segundo Reinado em termos poltico-
institucionais. Sobre a noo de critical juncture e conceitos correlatos, ver Thelen (1999; 2003).
-
31
nitidamente, um fortalecimento poltico das elites locais frente Coroa (Uricoechea,
1978: 110).
Parte dessas medidas, contudo, foi revogada ou modificada por legislao do incio
dos anos 1840 em especial, a Lei de Interpretao do Ato Adicional e a Reforma do
Cdigo de Processo Criminal -, diminuindo-se as prerrogativas das Assemblias
Provinciais e centralizando-se a maior parte do aparato judicirio e administrativo,
inclusive policial, cujos postos passariam desde ento a ser preenchidos diretamente
pela Corte (Needell, 2006: 100; Carvalho, 2005: 167-70; 2006: 143-68; 255-7; Barman,
1988: 212-3; Uricoechea, 1978: 111). Do mesmo modo, as principais posies de
comando da Guarda Nacional passaram a depender do gabinete e foi restabelecido o
Conselho de Estado. Por fim, o incio do Segundo Reinado, em 1840, com a decretao
antecipada da maioridade de Pedro II, restaurou a vigncia do Poder Moderador (Faoro,
2001: 380-6) 27
. O resultado desse processo de centralizao poltica e administrativa
foi, naturalmente, desequilibrar a balana do controle poltico em favor do governo
geral isto , da Corte, no Rio em detrimento das provncias. Como acentua Barman
(1988: 213), os recursos de represso e patronagem, disponibilizados aos gabinetes por
essas medidas, alcanando o preenchimento de postos e posies de poder e prestgio
nos mais distantes rinces do Imprio, no tinham precedentes na histria poltica do
pas.
Deve-se ter, entretanto, certa cautela na interpretao dos resultados finais
centralizadores, do ponto de vista poltico-administrativo, das disputas polticas
assinaladas, de modo a que no se faa uma idia exagerada e distorcida do efetivo
alcance e da natureza exata da ao estatal imperial sobretudo a emanada da Corte - a
partir da segunda metade do sculo XIX. Em outras palavras, essa centralizao deve
27
A centralizao era poltica e administrativa. Pelo lado poltico, manifestava-se no Poder Moderador, que podia nomear e demitir livremente seus ministros; no senado vitalcio; na nomeao dos presidentes
de provncia pelo governo central. Pelo lado administrativo, toda a justia fora centralizada nas mos do
ministro da Justia. Este ministro nomeava e demitia, diretamente ou por meios indiretos, desde o
ministro do Supremo Tribunal de Justia at o guarda da priso, em todo o territrio nacional. O juiz de
paz eleito, poderoso durante a Regncia, perdera boa parte de suas funes em favor dos delegados de
polcia nomeados pelo ministro do Imprio. Cabia ainda ao ministro da Justia nomear todos os
comandantes e oficiais da Guarda Nacional, principal rgo de manuteno da ordem pblica. Alm de
nomear os presidentes de provncia, o ministro do Imprio nomeava ainda os bispos e procos e os
delegados de polcia que, por sua vez, indicavam os inspetores de quarteiro (Carvalho, 2005: 169). Um organograma amplo da organizao administrativa centralizada do Imprio que perduraria aps o
Regresso abrangente de suas burocracias judiciria, policial, militar e extrativa-fiscal, com indicao detalhada das cadeias de subordinao fornecido por Jos Murilo de Carvalho (2006: 153).
-
32
ser lida luz de alguns elementos contextuais fundamentais, entre os quais se ressaltam
o tipo de burocracia administrativa que efetivamente se estruturou no Segundo Reinado
e as condicionantes sociais e territoriais do regime nascente - marcadas pela
preeminncia da grande propriedade privada escravista, sob a gide da qual se
estruturavam relaes sociais de dependncia e dominao, e pela vastido de um pas
de dimenses continentais. Por outro lado, crucial tambm entender o Regresso
mais como uma etapa adicional do ajuste entre centro e provncias, em termos da
distribuio de poder poltico, do que como um esmagamento das ltimas pelo Rio de
Janeiro.
No que tange ao aparelho burocrtico, essencial ter em mente que a grande
maioria dos postos no se organizava em termos de um servio pblico profissional,
baseado em regras e normas impessoais, competncias bem definidas, hierarquia
administrativa, sujeio a cadeias claras de comando, remunerao assalariada,
distino entre o agente e o cargo, etc. Ao contrrio, a burocracia imperial foi uma
burocracia de notveis, ou seja, uma burocracia patrimonial, em que as elites privadas
locais desempenhavam, muitas vezes sem remunerao, funes pblicas (Carvalho,
2006: 145-68). Afaste-se, pois, da mente a figura arquetpica do servidor pblico,
associado s burocracias profissionalizadas modernas, e tenha-se claro que eram os
prprios poderosos locais, ou figuras de sua indicao, que exerciam funes-chave
como a de juiz de paz, delegado e subdelegado de polcia, juiz municipal, oficial da
Guarda Nacional, promotor de justia, coletor de renda, etc (Carvalho, 2006: 156-9).
Esse fato teve, naturalmente, largas conseqncias prticas, significando que o Estado
imperial s logrou exercer efetivamente ao de governo quando estabeleceu relaes
de cooperao com os grupos privados dominantes, reconhecendo os limites ao poder
estatal e ao prprio contedo idealmente pblico de sua ao postos pelas estruturas
privadas de mando e hierarquia 28
. Adicionalmente, a natureza da ordem administrativa
criada embutia, estruturalmente, elementos de irracionalidade, quando julgados de um
ponto de vista puramente racional-legal, para utilizar os termos weberianos clssicos, os
28
O limitado alcance de ao das administraes imperiais no escapou a contemporneos como o
visconde do Uruguai, para quem a organizao administrativa imperial uma cabea enorme em um corpo entanguido (2002: 205). Sobre o mesmo ponto, escreveu o importante poltico conservador: A ao administrativa fortificada somente no centro, inteiramente discricionria, sem conselho, e sem
auxiliares prprios e naturais nos diferentes pontos de extensas provncias, mal pode fazer chegar at a a
sua ao eficaz. So elas corpos cuja circulao no chega s suas extremidades (2002: 217).
-
33
quais se mostravam, por exemplo, na baixa diferenciao das funes - causa de
crnicos conflitos de jurisdio entre os agentes burocrticos (Uricoechea, 1978: 112-3;
Carvalho, 2006: 158-9) 29
.
Nesse sentido, parece acertada a posio de Jos Murilo de Carvalho (2006: 158)
quando, luz dos elementos acima salientados, interpreta o Regresso conservador da
dcada de 1840 como significando, essencialmente, a entronizao do governo central
enquanto rbitro entre os interesses locais sobretudo, entre as pretenses dos mais
poderosos (2006: 158) e no (...) simplesmente o esmagamento do poder local,
como clamavam os liberais. Um dos preos, talvez o principal, a ser pago pelo Estado
foi diagnosticado pelo mesmo autor: a privatizao, pelo menos parcial, do prprio
contedo do poder exercido em nome do Estado: [Com o Regresso] o governo trazia
para a esfera pblica a administrao do conflito privado mas ao preo de manter
privado o contedo do poder. (...). O governo se afirmava pelo reconhecimento de
limites estreitos ao poder do Estado (Carvalho, 2006: 159) 30.
Adicionalmente, ainda no que concerne interpretao dos resultados finais do
processo de centralizao discutido, crucial registrar que nenhuma das medidas
regressistas, em que pese o inegvel fortalecimento do governo do Rio, suprimiu a
diviso de competncias, inscrita no plano constitucional desde 1834, entre a Corte e as
provncias, preservando-se, assim, para essas ltimas, espaos exclusivos de atuao
29
Qualquer que tivesse sido o grau de centralizao do governo durante todos esses perodos, em momento nenhum foi o estado capaz de governar efetivamente sem fazer acordos com grupos privados
para contar com a sua cooperao. O governo central estava agudamente consciente dos limites frgeis de
sua autoridade e da ordem legal que tinha conseguido instituir. Muito embora as bases patrimoniais da
administrao local tivessem permitido ao estado a organizao de uma ao de governo com alguma
continuidade, isto , uma ordem administrativa, essas mesmas bases comprometiam virtualmente uma
execuo expedita e racional das decises do estado. Um governo vivel, em outras palavras, dependia do
reconhecimento por parte do estado das demandas e interesses locais, que s podiam ser ignoradas a sua
conta e risco (...). O estado e seus representantes estavam, assim, bastante conscientes da impossibilidade
de governar isoladamente, sem angariar servios litrgicos de grupos privados. (Uricoechea, 1978: 112). No mesmo sentido, escreve Carvalho (2006: 158): A incapacidade do Estado brasileiro em chegar periferia bem ilustrada pelos compromissos que se via forado a fazer com os poderes locais. No Brasil,
como nos exemplos histricos descritos por Weber, o patrimonialismo combinava-se com tipos de
administrao chamados litrgicos. Na ausncia de suficiente capacidade controladora prpria, os
governos recorriam ao servio gratuito de indivduos ou grupos, em geral proprietrios rurais, em troca da
confirmao ou concesso de privilgios.
30Emprestando maior nfase abertura de um espao de negociao entre Estado e chefes polticos locais,
escreve, sobre o tpico, Mnica Dantas (2009: 45, nota 15): Se a centralizao das nomeaes significava maior poder Corte, tambm trazia para o jogo poltico institucional potentados que de outro
modo continuariam adscritos s suas brigas faccionais para-institucionais. Assim, ampliar o escopo do
Estado representava estender os braos do governo, mas paralelamente implicava a constituio de um
campo privilegiado de negociao.
-
34
nos domnios tributrio, legislativo e coercitivo, atravs de seus prprios corpos
parlamentares as Assemblias Provinciais. Na mesma linha, a participao provincial
no arranjo decisrio central, mediante suas representaes Cmara dos Deputados,
igualmente continuou garantida aps a edio das medidas do incio dos anos 1840, no
se pondo, assim, em risco a canalizao da atuao das lideranas provinciais para o
interior do aparato institucional oficial, sobremodo no plano parlamentar nacional, o
qual oferecia um espao de negociao vital para o acerto de suas diferenas recprocas
e das suas tenses com a Corte (Dolhnikoff, 2005 a: 14; 2005 b: 81-2) 31
.
Na mesma direo de enfatizar a abertura de condutos entre o centro e a periferia
no sistema poltico brasileiro imperial vai a percepo, enfatizada por Bolvar
Lamounier, de que, em meio s oscilaes descentralizantes e centralizantes do perodo
em foco, nunca se cogitou de abolir o princpio representativo (2005: 28). Ainda que
subordinado ao peso das instituies vitalcias (Alonso, 2002: 70-1, nota 20),
emblemticas do centralismo patrimonialista imperial (Lamounier, 2005: 28) 32, o
elemento representativo encarnado na Cmara dos Deputados e nos legislativos
provinciais e municipais aparecia como um dos vetores necessrios prpria tarefa de
organizao da autoridade ou de state-building ento em andamento (Lamounier, 2005:
52), enxertando no sistema um contedo informacional imprescindvel ao incio da
institucionalizao eficaz de um arranjo de poder 33
. Desse modo, pode-se acrescentar, a
representao permitiu ao governo central a identificao de parceiros locais adequados
em termos de uma economia dos meios de violncia - aos esforos de pactuao e
cooperao sublinhados acima.
31
Alencastro, em texto dos anos 1980, j assinalava, incidentalmente, o papel central do Parlamento,
desde a Independncia, conquanto purgado da influncia popular, como espao de conciliao e
negociao entre as diversas oligarquias regionais (1987: 69).
32 Instituies essas corporificadas no Conselho de Estado, recriado, no Senado no temporrio, no Poder
Moderador, reativado com a Maioridade (1840), e na prpria estrutura geral centralizada delineada acima.
33 A esse respeito so esclarecedoras as seguintes passagens de Lamounier (2005: 52 e 25,
respectivamente): (...) organizar a autoridade no era tarefa que se pudesse cumprir margem do sistema representativo, ou dele prescindindo, mas sim por meio dele, em conjuno com o princpio monrquico. Sem ele [isto , sem o mecanismo representativo] e, em consequncia, sem cmaras eletivas, o poder central ver-se-ia forado a recorrer a nomeaes, de forma indiscriminada, e a assumir sozinho a
responsabilidade pela entrega do controle de localidades e regies a indivduos ou faces
especificamente designados. Tal delegao de poder, praticada com demasiada frequncia, estimularia
pequenas guerras civis e frustraria precisamente o objetivo principal: evitar a beligerncia generalizada.
-
35
O arranjo institucional cristalizado a partir dos anos 1840 teve tambm e esse um
ponto fundamental - importncia crucial para a consolidao e nacionalizao do
sistema partidrio imperial, como sublinham, de modo arguto e convincente, Needell
(2006) e Barman (1988), dando molde mais preciso a uma evoluo j capturada,
dcadas atrs, em suas linhas mais amplas, por Raymundo Faoro (2001: 423). Para
esses autores, as medidas do Regresso anotadas em particular, a Lei de 03.12.1841
(Lei de Reforma do Cdigo de Processo Criminal) criaram uma nova estrutura de
incentivos hbeis a tornar imperativa, em um curto espao de tempo, do ponto de vista
das elites locais, municipais e provinciais, a construo de vnculos com os partidos
originariamente formados em torno das disputas da Corte. Para isso teria sido essencial
a transferncia para o governo central, concretizada pela norma legal mencionada, do
controle sobre cargos estratgicos de poder e prestgio nas localidades e provncias.
Nos termos de Needell, [a partir da vigncia da] Lei de 03.12.1841 (...) aquelas
oligarquias rurais locais que ainda no tinham escolhido, a partir de razes ideolgicas,
um dos dois partidos da Corte tiveram que faz-lo simplesmente para defender a si
prprias. Sem um vnculo com um dos dois partidos, lideranas locais no tinham meios
para demandar, nem razes para esperar, que as nomeaes do lugar dependentes da
Coroa favorecessem os seus interesses, a expensas dos adversrios. Questes
ideolgicas, para algumas dessas famlias, tinham pouca importncia; lealdade
partidria, no entanto, veio a tornar-se uma questo de vida ou morte. Durante o
transcurso da dcada de 1840, as chefias nacionais dos saquaremas e luzias no Rio
buscaram chegar at essas famlias e assegurar o seu apoio; em troca, oferecia-se
patronagem (nomeaes e proteo) (2006: 124-5).
Barman, por seu turno, sem deixar de enfatizar o carter centralizador das medidas
do Regresso (1988: 212-3), no se furta a assinalar que os interesses das elites locais e
provinciais foram contemplados no arranjo emergente e canalizados para o interior das
instituies polticas consolidadas na transio entre os anos 1840 e 1850. Na sua
perspectiva, convergente com a de Needell, o veculo privilegiado para essa articulao
- entre os crculos dominantes na Corte e as elites regionais/locais - foi o sistema
partidrio, mediante o qual se assegurava, a um s tempo, o controle do processo
poltico pelas direes partidrias situadas no Rio e a partilha dos seus frutos em
-
36
termos essencialmente de patronagem - com os aliados nas diferentes localidades do
Imprio (Barman, 1988: 217-8; 226) 34
.
Em sntese, em torno de 1850, com maior ou menor grau de centralizao poltico-
administrativa, mas, sem dvida, com condutos institucionais articulando a Corte e as
provncias, desenhava-se - aps quase trs dcadas de turbulncia, compreensivas,
inclusive, de choques armados a cristalizao de uma ordem poltica relativamente
eficaz abrangente de todo o territrio da antiga Amrica Portuguesa (Bethell e Carvalho,
1985: 767-8; Barman, 1988: 235; Carvalho, 2006: 256-7; Fausto, 2006: 161). As
caractersticas especficas desse arranjo poltico-institucional, focando em especial o
sistema de governo, so o objeto da prxima seo do texto.
2.3 As Insti