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ALICE JAMIESONCOM CLIFFORD THURLOW

O INFERNO DE ALICE

TRADUZIDO DO INGLÊS POR

ANA NEREU REIS

REVISÃO DA TRADUÇÃO

FRANCISCO VAZQUEZ

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Título original:TODAY I’M ALICE© 2009, Alice Jamieson and Clifford Thurlow

Capa: GGUERRA.NETImagem da capa: Nicole Hill / Getty ImagesPaginação: GSamagaioImpressão e acabamentos: EIGAL

1.ª edição: Março de 2010Depósito legal n.º 305099/10ISBN 978-989-23-0718-3Reservados todos os direitos

Edições ASA II, S.A.Uma editora do Grupo LeyaRua Cidade de Córdova, n.º 22610-038 Alfragide – PortugalTelef.: (+351) 214 272 200Fax: (+351) 214 272 [email protected]

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ÍNDICE

Prólogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

1. Fragmentos de Memória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152. Correr e Passar Fome . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 273. Quatro Rostos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 394. As Vozes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 555. Armadilhas do Tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 716. Primeiro Amor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 857. Liverpool . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 978. Violação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1179. Para Onde Posso Ir? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13510. Divisão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14511. As Crianças . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16112. Revelações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17913. Toque Humano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19314. Shirley . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20915. Manicómio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22316. Regressão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23717. Memórias Corporais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24918. Múltiplos Complexos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26719. Branca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28920. O outro lado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 301

Epílogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 317

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Dedico esta obra a todos os funcionários do Serviço de Urgências,que sempre me trataram com todo o respeito, agiram com

o máximo profissionalismo e nunca me julgaram, de todas as vezesque tive de me submeter aos seus cuidados, vítima de overdoseou automutilação. Dedico-a especialmente a dois enfermeiros,

Dave e Chris, que, junto com outros membros do pessoal, me salvaram literalmente a vida em Janeiro de 2008.

Obrigada por lutarem por mim e me ajudarem a sobreviver.

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Desde então, a hora incerta,Esta agonia retornaE até que deste contoMedonho, dou relação,Sinto cá dentro do peito,A arder, o meu coração1

Rima do Velho MarinheiroSAMUEL TAYLOR COLERIDGE

1 Tradução de Gualter Cunha, Rima do Velho Marinheiro [Lisboa: Relógio D’Água,2001, p. 75]. (N. do E.)

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AGRADECIMENTOS

A minha história foi escrita em conjunto com Clifford Thurlow,que foi pacientemente desenterrando as minhas memórias para cola-borar neste livro. A colaboração para mim foi fácil. Tenho colabo-rado com os meus alter egos quase toda a minha vida.

Muitas pessoas me ajudaram com este livro. Elas sabem quemsão e eu agradeço-lhes do fundo do coração.

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a Alec, meu melhoramigo e minha alma gémea, pelo seu apoio incondicional.

Agradeço igualmente a Iris Gioia, aos meus leais amigos Marie,Lynette, Vicky, Alison, Graham e Jeremy, por acreditarem em mim;à minha psicoterapeuta de Gestalt, Marsha Chase, pelos seus comen-tários sensatos e profissionais ao manuscrito; à psiquiatra Dra. JoanColeman, da RAINS (Ritual Abuse Information Network & Sup-port)1 que está sempre presente quando necessito de apoio; ao psi-coterapeuta analítico Remy Aquarone, secretário da ESTD (EuropeanSociety for Trauma and Dissociation)2 e antigo director internacionalda ISST-D (International Society for the Study of Trauma and Dis-sociation)3; à equipa da Sidgwick & Jackson liderada pela minhaimperturbável editora Ingrid Connell e ao nosso agente AndrewLownie, que uniu todas as peças para que fizessem sentido.

Alice JamiesonMarço de 2009

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1 RAINS – Rede de Apoio e Informação para o Abuso Ritual. (N. do E.)2 ESTD – Sociedade Europeia do Trauma e Dissociação. (N. do E.)3 ISST-D – Sociedade Internacional para o Estudo do Trauma e Dissociação. (N. do E.)

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PRÓLOGO

E m Abril de 1993, com a idade de 24 anos, foi-me diagnosticado o Distúrbio de Personalidade Múltipla, também conhecido

como Perturbação Dissociativa de Identidade. Tenho identidadesdistintas que se manifestam inesperada e aleatoriamente, alterandoa minha personalidade, a minha voz e a minha idade. Perco tempoque não vivi e perco-me a mim própria.

Fui vítima de abusos mentais, físicos e sexuais durante toda aminha infância. Nunca disse nada a ninguém. Este livro descreve aforma como desenvolvi «mecanismos» para lidar com o abusoenquanto criança, e como, já adulta, lutei para viver uma vida normalatravés de períodos alternados de psicoses, esgotamentos nervosos,dependência de drogas e automutilação. Não peço desculpa pela lin-guagem intransigente e pelas verdades nuas e cruas que têm de serditas.

O abuso infantil é algo inimaginável para quem nunca teve de osuportar, mas é um inferno para quem vive o sentimento diário davergonha, o medo nocturno da porta a abrir-se e daquele homem (équase sempre um homem) a entrar no seu quarto. Os abusos acon-tecem bastantes vezes em casa e envolvem geralmente familiares pró-ximos: pais, irmãos e outros.

Desde a sua criação em 1986, a ChildLine já ajudou milhares decrianças que telefonaram por causa de abusos sexuais. Mas as crian-ças que fazem esse telefonema são apenas a ponta do icebergue. A grande maioria está demasiado devastada e isolada, demasiado

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receosa para pegar no telefone. Estima-se que nove em cada dez1

crianças abusadas permanecem em silêncio e continuam a fazê-lo naidade adulta.

Tenho esperança de que o meu livro encoraje outras pessoas quesofreram abusos a falarem abertamente sobre isso e que forneçanovas pistas sobre os sinais reveladores de abuso infantil, os quais,muitas vezes, os assistentes sociais, professores, profissionais desaúde e a família muitas vezes não detectam. Não há nada mais hor-rível do que o abuso infantil, e se este livro ajudar pelo menos umapessoa terá valido a pena trazer à superfície as minhas lembrançasmais dolorosas para o escrever.

Os nomes e os lugares foram alterados para proteger a privaci-dade de terceiros. Todavia, trata-se de um relato verídico e extrame-mente pessoal dos acontecimentos da minha infância e de como essesacontecimentos continuam a assombrar a minha vida enquantoadulta.

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1 Kevin Browne, professor de Psicologia Infantil, Universidade de Liverpool, TheGuardian, 27/09/2008.

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CAPÍTULO 1

FRAGMENTOS DE MEMÓRIA

A minha memória é como um grande vaso que foi atirado de uma janela. As peças estão todas lá, umas grandes, outras pequenas,

outras desfeitas em pó. Quando tento unir as peças, juntando umarecordação à outra, partes da história tornam-se claras e lúcidas, massobram muitos espaços em branco e tempo perdido. O meu primeirodia de escola? Desapareceu. As férias em família? Nada. O meu livropreferido? Quando é que aprendi a andar de bicicleta? Momentosimpossíveis de encontrar entre as longas sombras negras que seestenderam por toda a minha infância.

Isto é aquilo de que me recordo. Éramos um modelo de famílianuclear: pai, mãe, eu e o meu irmão Clive, com cerca de mais quatroanos que eu. Éramos uma família à antiga: conservadora, bem-edu-cada, próspera, um tanto antiquada e aparentemente amável e sim-pática.

Vivíamos numa casa grande com um caminho de entrada circu-lar em torno de um carvalho gigante, numa zona abastada das Mid -lands, onde os vizinhos se cumprimentavam, as crianças erameducadas e as pessoas mantinham os seus cães sob controlo. O meupai trabalhava como advogado em Birmingham. Trocava de carrotodos os anos, sempre um Rover topo de gama, e jogava golfe aosdomingos de manhã. A minha mãe trabalhava como secretária numaagência imobiliária e conduzia um Triumph, de dois lugares, azul--claro.

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A casa era em alvenaria com um telhado vermelho e portas devidro que se abriam para um pátio de pedra. A cozinha conduzia àsala do pequeno-almoço e ao comprido jardim das traseiras, ondearbustos de azevinho ocultavam o barracão onde o meu pai guardavaaranhas em frascos de compota. No piso de cima havia quatro quar-tos, uma casa de banho grande e outra de serviço. Cada um de nóstinha o seu quarto. O patamar superior das escadas era como umalinha divisória, o pai e o Clive de um lado, na parte da frente, e eu ea minha mãe nas traseiras, com janelas com vista para o jardim.

Ao fundo do patamar encontrava-se a arrecadação, conhecidacomo a Gaiola devido ao seu tecto abobadado. Era neste comparti-mento que eu guardava os meus brinquedos e me escondia sempreque havia uma sessão de gritaria entre os meus pais. Quando eu erapequena, o compartimento assemelhava-se a uma gigantesca casa debonecas, um lugar mágico onde eu brincava sozinha. Noutras altu-ras, a Gaiola era mesmo uma gaiola e quando tentava abrir a portanão conseguia sair. Quando havia uma discussão entre os meus pais,geralmente elas terminavam com a minha mãe a sair tempestuo -samente de casa e eu ficava trancada na Gaiola até ela regressar. A Gaiola possuía uma conduta de ar para extrair os cheiros da cozi-nha. Depois de discutir com a minha mãe, o meu pai geralmentecozinhava alguma coisa.

Recordo-me nitidamente desses mo mentos: estou trancada naGaiola, e o cheiro da comida que chega através da conduta de ardeixa-me com fome. Eu bato à porta.

«Papá, tenho fome. Papá, tenho fome.»O meu pai responde abrindo a porta e dando-me uma lata de

massa. Depois tranca-me de novo lá dentro. Fico a olhar para a lata,a qual, evidentemente, não consigo abrir. Este era o meu castigo. Osmeus pais deviam ter discutido por minha causa. Eu estava a ser dis-ciplinada por tê-los aborrecido. Num acto de rebelião, bato com alata repetidamente contra a parede.

Noutras ocasiões, era realmente mazinha e escrevia na parede.Antes de saber escrever, conseguia garatujar no estuque por pintarmensagens que tinham significado para mim e que nunca ninguém lia.

A minha mãe regressava a casa, o meu pai deixava-me sair daGaiola e tudo voltava ao normal. Normal era a palavra de ordem.Afinal, éramos a família perfeita, cada um fechado no seu quarto.

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A minha mãe era uma mulher pequena e bonita, com madeixaslouras no seu cabelo castanho e lábios generosos que sorriam comfacilidade. Ao seu estilo, era bastante atraente, e sabia-o. Tinha umapersonalidade forte, uma entoação aguda na voz e costumava levara sua avante. Era impulsiva, mais voltada para a acção do que paraos pensamentos, vistosa no seu carro azul-claro. Elegante e meticu-losa, movia-se a passos largos e andava sempre atarefada. Isto porvezes conferia-lhe um ar distante que contrastava com as suas blusasextravagantes e saias de marca que balançavam ritmicamente en -quanto se apressava nos seus saltos altos.

Passava cerca de uma hora, de manhã, a arranjar o cabelo e amaquilhar-se, enquanto nós os três nos atarefávamos pela cozinha afazer o pequeno-almoço, tentando não nos atravessar no caminhouns dos outros. O pai era o primeiro a sair para o trabalho. O Clivesaía para a escola na sua bicicleta, e quando eu entrei para a escolaaos cinco anos, a mãe deixava-me lá a caminho do escritório.

Uma manhã, estava eu sentada na mesa da sala do pequeno--almoço enquanto a minha mãe andava de um lado para o outro areunir as suas coisas, quando ela parou junto de mim e me pergun-tou: «Achas que devo deixá-lo?»

Ela estava a falar do marido, do meu pai. Eu sabia-o, emboranão soubesse o que responder. Aos cinco anos, vivemos num mundoà parte. O mundo das mamãs e dos papás está para além do nossoentendimento. «Oh, não interessa», acrescentou a mãe com um sus-piro de impaciência, enquanto caminhávamos apressadamente emdirecção ao carro, eu com os sapatos engraxados e ela com o cabelocheio de laca para manter os caracóis no lugar.

Eu e a minha mãe não nos entendíamos. Ela dizia que eu era umacriança insuportável, que era uma tagarela, que fazia demasiadas per-guntas. Eu era hiperactiva, cheia de energia e estava sempre a reclamara atenção dela. Sempre que ela fazia um bolo, quando eu era pequena,trepava para um banco, ansiosa por ajudar. «Mamã, posso mexer?Mamã, posso partir os ovos? Mamã, posso rapar a taça?»

Estava a ser insuportável e ela aturava-me deixando que a aju-dasse, mas em parte eu sentia que estava a ser um incómodo. A mi -nha mãe ocultava os seus sentimentos e eu, sentada nos seus joelhos,

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aprendi a ocultar os meus. Houve uma falha de comunicação crucialentre nós as duas quando eu era pequena e quando atingi a puber-dade já tinha construído uma muralha à minha volta, uma fachadaque escondia a minha instável auto-estima e na qual a minha mãenão conseguia penetrar.

O meu irmão herdara a personalidade e a graciosidade da minhamãe, e a aparência do pai dela, o nosso avô. O Clive vivia absorvidono seu próprio mundo. Raramente levava amigos lá a casa. Não melembro de alguma vez o ter ouvido levantar a voz, zangar-se ou ouvirmúsica muito alto. Era reservado, recatado e solitário. Mas no Verão,quando o céu estava azul e os dias eram maiores, ele tornava-se maisafável. E quando os irmãos mais velhos são afáveis, isso significabrincadeira. Eu estava desejosa que alguém brincasse comigo.

O Clive sabia que eu adorava a minha colecção de peluches, osursinhos, o grande e suave Sr. Feliz e o meu Snoopy com o sorrisode esguelha. Às vezes estava na sala de estar a brincar, e o Snoopyaparecia do lado de fora da janela, pendurado num pedaço de fio, doquarto da minha mãe. Eu lançava-me pelas escadas acima e, nesseespaço de tempo, o Clive já deixara cair o Snoopy e escondera-se nocorredor. Quando eu entrava de rompante no quarto da minha mãe,já ele estava a sair pelas portas de vidro no piso de baixo, ameaçandodar uma tareia ao meu Snoopy.

Eu guinchava de deleite. Era preciso tão pouco para a minha vidaficar completa. Eu ansiava que o Clive fosse sempre assim afável ebrincalhão, mas tinha de me contentar com as brincadeiras ocasio-nais. Nunca me fez rodopiar nos seus braços nem nunca me levou adar um passeio na barra transversal da sua bicicleta. O Clive não sen-tia o impulso fraternal de me sentar nos seus joelhos enquanto está-vamos defronte da televisão. A mãe também não. Essa era a funçãodo papá.

O meu pai era um homem de elevada estatura com feições fortes,sobrancelhas negras e espessas e um cabelo negro que reluzia comoo carvão sob a sua capa de brilhantina. O risco era tão direito comouma linha traçada por uma régua, e tinha uma zona calva no cocuruto,que por vezes coçava, deixando bocadinhos de pele seca sob asunhas. Quando eu estava sentada no colo dele, a ver televisão, ou

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quando ele estava a ler o jornal, ele coçava a cabeça e depois metia odedo na minha boca e eu chupava-o.

O meu pai albergava vagas desilusões e considerava-se superioraos vizinhos. Fazia questão que as pessoas soubessem que era mem-bro do melhor clube de golfe, embora só jogasse uma vez porsemana. Por vezes, contemplava com melancolia a vida mais cosmo-polita do irmão, um corretor da Bolsa de Londres. O meu pai nuncaviajava, excepto para os lugares longínquos que alcançava com o seurádio de ondas curtas. O som dos apitos e zumbidos do outro ladoda porta do seu quarto foi a banda sonora da minha infância.

É fácil agora enquanto adulta ver o quanto eu ansiava pela aten-ção do meu pai quando era pequena. Receava-o e sentia-me atraídapara ele tal como um objecto de metal é atraído para um íman, damesma forma que as crianças gostam de se debruçar em lugares ele-vados e atravessam a rua sem olhar.

Quando o meu pai trabalhava no jardim durante o Verão, eucorria em volta dele descalça e só de cuequinhas. Ele erguia-me nosseus braços e levava-me para o barracão, que exalava um odor a ser-radura e a erva acabada de cortar, uma atmosfera pacífica e organi-zada, com uma luz que se suavizava à medida que ia entrando pelaspequenas janelas empoeiradas. Havia ferramentas com pegas demadeira penduradas em suportes de parede, e frascos com pregos,parafusos, porcas e aranhas dispostos sobre as prateleiras. As tampastinham buracos para que as aranhas pudessem respirar.

Ele sentava-me no banco e, de uma forma brincalhona, acenavaum dedo ameaçador na minha direcção. «Não te atrevas a mexer»,dizia, e eu obedecia-lhe. Ficava ali sentada, com os ombros rígidos,os dentes cerrados e os meus pequenos punhos apertados.

O meu pai adorava este jogo e jogávamo-lo com frequência.Podia ter o corpo quente e húmido de suor por ter andado a correr,mas agora sentia um pavor frio, como dedos gelados a subirem-mepela espinha, à medida que ele retirava os insectos rastejantes dosfrascos e os punha na minha barriga. Observava, paralisada de hor-ror, enquanto as suas patas peludas rastejavam pela minha pele. Tentava não me mexer, mas as aranhas faziam-me cócegas e não con-seguia evitar. Torcia-me e contorcia-me e, nessa noite, sonhava quealguém entrava no meu quarto. Essa pessoa fechava a porta, retirava

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os peluches da minha cama, puxava as cobertas para trás e percorriao meu corpo com os dedos, como se fossem patas de aranhas.

Quando era pequena, sonhava frequentemente com aranhas eaté atingir os meus doze anos, sonhava muitas vezes com chamasque rodopiavam em redor dos meus pés, aquecendo-me os dedossem os queimar. Estou nua da cintura para baixo, deitada de barrigapara cima a agitar as pernas como um bebé.

Desperto envolta em suores frios e, naquele momento de deso-rientação, tenho quase a certeza de que vejo a imagem de um homemexecutando círculos com a chama de um isqueiro junto aos dedosdos meus pés. A imagem é indistinta e desaparece rapidamente. O quepermanece é o gosto a uma substância química na minha boca, comoleite azedo. Visto a camisa de dormir, tranco-me na casa de banho elavo os dentes. Devo ser a adolescente de doze anos com os dentesmais limpos de toda a Inglaterra.

Quando estes sonhos invadiam a minha mente, o meu estômagocontraía-se como se tivesse uma mão a apertar-me as entranhas, eaquele sabor amargo subia-me de novo à garganta como se fossebílis. Muitas vezes, sentia ardor ao urinar, embora estivesse habituadaa isso. Acontecia-me desde muito cedo. O pior era aquela sensaçãode confusão na minha mente, uma sensação de que uma pequenaparte de mim fora deslocada ou reorganizada durante a noite, de quequando me sentava na sanita de manhã, eu era eu, mas nos meussonhos era alguém como eu, mas outra pessoa.

Era muito confuso e pensava sempre em falar à minha mãe dosonho do isqueiro. Queria perguntar-lhe o que significava. Masnenhum momento parecia ser o indicado. Andávamos sempre numacorreria. Não falávamos de assuntos pessoais. Fiz os possíveis porexpulsar os pensamentos e as imagens da minha cabeça mergulhandonuma actividade frenética.

Adquirira o hábito de ir logo para casa depois da escola e fazeros trabalhos de casa durante uma hora com os peluches a observa-rem-me do seu lugar, empilhados sobre a cama e na estante do meuquarto. Cozinhava para o Clive e para os meus pais e tinha o jantarpronto para eles quando chegavam a casa. Não chegavam à mesmahora, e não faziam as refeições juntos, por isso eu preparava três

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refeições distintas à noite, cozinhando e lavando a loiça de cada umadas vezes, e recomeçando tudo de novo.

Não era obrigada a cozinhar. Fazia-o porque queria, para memanter ocupada. Trabalhos de casa. Tarefas da casa. Cortar tomates.Lavar a alface. Bater os ovos. Por vezes, quando estava a fazer umaomeleta para o meu pai, dava por mim a acrescentar muita manteigasem saber por que razão o fazia. Na verdade, por vezes parecia-meque não eram as minhas mãos que estavam a cortar a manteiga, masas mãos de uma estranha.

Eu preenchia todos os segundos com todo o tipo de tarefas, atorrente de actividade empurrando os meus pesadelos cada vez maispara um lugar sombrio, até que, como as sombras, eles se absorviamuns aos outros.

As visões horrendas que me perseguiam eram postas em con-fronto com a luz brilhante das tardes de domingo quando a mãe noslevava, a mim e ao Clive, a visitar os pais dela em Erdington. O pairaramente ia e quase nunca víamos a família dele.

Visitar os meus avós era como ir de férias. Erdington parecia umpaís diferente, mais modesto e, de certa forma, mais honesto. Talcomo não tinha grande opinião sobre os vizinhos, estou certa de queo meu pai considerava os pais da mulher, que viviam numa modestacasa geminada, pessoas inferiores em comparação com o seu gran-dioso estatuto de membro do melhor clube de golfe, advogado ehomem rico. O meu avô paterno falecera antes de eu nascer. A mãedele, ao espreitar para o berço quando nasci, dissera desdenhosa-mente à minha mãe: «Ela deve sair ao teu lado da família.»

Essa mulher, que eu raramente via, chamava-se avó.A minha avozinha era a mãe da minha mãe, uma mulher alegre

e laboriosa que só se sentia feliz quando estava atarefada. Tinha cara-cóis soltos de cabelo branco, ancas largas e mãos vermelhas de esta-rem constantemente em contacto com a água. Ela era como a avó doCapuchinho Vermelho com o nariz de botão e os olhos brilhantesque davam a impressão de esconderem muito mais do que aquiloque ela deixava transparecer. Trabalhou a meio-tempo num estabe-lecimento comercial em Birmingham até se reformar. Tricotava

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casacos de malha e foi sempre uma boa costureira até a artrite tornaros seus dedos nodosos e arqueados.

Ensinava-nos a fazer caramelos e pequenos bolos em forma depastéis a que dava o nome de folhados de maçã, e andava sempre ata-refada a fazer dez coisas ao mesmo tempo: a pôr a chaleira ao lumepara o chá, a baixar o lume ao tabuleiro de caramelos e a dispor osfolhados de maçã nos pratos de louça Doulton com aros dourados àvolta. A repulsa persistente dos meus pesadelos dissipava-se daminha mente e eu sentia-me feliz por estar viva naquela cozinha,com as grandes janelas que davam para o jardim com as suas roseirase canteiros de flores. O jardim devia estar posicionado no sentidooposto ao nosso, pois estava sempre repleto de uma luz acobreada.

O avô regressava a casa, depois de ter estado a arrancar as ervasdaninhas, ostentando um sorriso de orelha a orelha enquanto reti-rava os sapatos de trabalho e calçava um par de pantufas de couropolidas, inclinando-se para me dar um beijo em ambas as faces. Euadorava a avó, mas o avô era a minha alma gémea. De acor do comas histórias da família, quando eu nasci o meu avô segurou-me nosseus braços, olhou-me nos olhos e disse: «Esta pequenina já cá esteveantes.» Contaram-me esta história tantas vezes que deixou de serfolclore e passou a ser uma lembrança.

O meu avô tinha uns olhos azul-claros que me fitavam com umamor puro e incondicional. Eu não tinha de fazer nada nem de seroutra coisa para ser amada pelo avô. Bastava-me ser eu, e isso eradiferente da vida lá em casa, onde eu sentia que carregava o fardo demanter a família unida. A nossa casa, com as suas linhas divisórias eportas fechadas, com os quatro lugares à volta da mesa na sala dopequeno-almoço ocupados apenas por uma pessoa de cada vez, eracomo o cubo mágico que dava a volta à cabeça do meu irmão, umpuzzle detestável que, por muitas voltas e reviravoltas que se lhedesse, nunca se conseguia completar.

O avô estava a ficar surdo, mas isso só lhe tornava os outros sen-tidos mais apurados. Havia sabedoria e, suspeito, um laivo de tristezanaqueles olhos azuis perspicazes. Quando regressávamos a casa, abra-çava-me com tanta força que era como se não me quisesse deixar ir.

Éramos uma família tipicamente inglesa, evitávamos os assuntospessoais, tínhamos os nossos segredos e um sentido de que devíamosseguir em frente com a vida. Mas quando olho para trás, através do

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emaranhado confuso das minhas memórias, não consigo evitar pen-sar se o meu avô, astuto como era, se teria apercebido de que nemtudo estava bem atrás da alta vedação de madeira, no lado chiquedas Midlands.

O avô trabalhara como desenhador. Quando se reformou, aossessenta e cinco anos, arranjou um emprego a tempo parcial a cata-logar os projectos e as plantas para uma empresa de engenharia civil.Gravava placas de cobre e era um artista competente com um traçoleve e uma mão firme.

Eu pedia, «Avô, faz-me um desenho», e ele pegava no seu ca -derno de rascunho e desenhava como uma criança desenha, de formanatural e sem preparação, e dava vida a uma paisagem impressionista,à medida que o lápis dançava pela página. Ao longo dos anos des-perdiçados no consumo de drogas, nos hospitais psiquiátricos, nossofás em apartamentos esquecidos, nas casas de amigos esquecidos,consegui agarrar-me à imagem d’As Palmeiras Ondulantes das IlhasTropicais, um desenho a esferográfica de duas palmeiras num hori-zonte longínquo, e eu penso nessas duas palmeiras como sendo eu eo avô num lugar bem distante e em segurança.

O avô pertencia àquela época em que os homens se orgulhavamde usar as calças bem vincadas, uma camisa branca imaculada e umagravata com um nó bem feito. Tinha moedas dispostas em colunasna cómoda do seu quarto, de modo a ter o dinheiro certo para omotorista do autocarro. Não tinha carro nem queria ter. No auto-carro podia-se falar com os outros passageiros, ou ir sentar-se noandar de cima e observar o mundo a passar. Usava fato completoquando ia sair e preferia os grossos casacos de malha que a avó tri-cotava para andar por casa, com os bolsos a abarrotar de cordéis tra-zidos do jardim, rebuçados, um lenço enrodilhado e o seu maço decigarros Senior Service. Batia com o cigarro no maço, para fixar otabaco antes de o acender, e o aroma daquele fumo, doce e forte, erao cheiro característico do avô.

Não me recordo de alguma vez ouvir o meu avô dizer mal dealguém. Tinha sempre um sorriso na cara e fazia-me rir às gargalha-das quando me contava as suas histórias, independentemente dasvezes que as escutava.

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Aos doze anos, tive a oportunidade de fazer um cruzeiro peloMediterrâneo até Israel, com a minha escola. O avô pagou as duzen-tas libras de sinal. Quando me deu o cheque, ajoelhou-se junto àparede da sala de estar, balançou-se para trás e para a frente, e lamu-riou-se da mesma forma que os crentes fazem junto ao famoso Murodas Lamentações, em Jerusalém. Isto fez-me rir até as lágrimas mecorrerem pelas faces.

Viajámos de avião até Split, na antiga Jugoslávia, depois embar-cámos no SS Bolivia e partimos sob um intenso temporal pelo marEgeu em direcção a Haifa, em Israel. O mar estava muito agitado, onavio balançava como um ébrio de um lado para o outro, e nósobservávamos dos nossos beliches a nossa bagagem a ser lançada detrás para a frente, pelo chão do dormitório. A maioria das raparigasvomitou, mas eu parecia possuir uma costela de marinheiro e des-frutei da sensação de aventura, da ideia de que o navio estava a lutarcontra as adversidades e de que atravessaríamos juntos a tempestade.Era a primeira vez que viajava completamente sozinha, e naquelasondas furiosas, enquanto as raparigas à minha volta estavam enjoadase histéricas, eu nunca me sentira mais relaxada em toda a minha vida.

A bordo do Bolivia não havia passado, apenas aquele momento.A minha mente estava desanuviada. Os pesadelos tinham sido leva-dos pelo vendaval e depositados no fundo do mar. Era como se ossacos e as mochilas no chão do dormitório fossem os pensamentosque normalmente chocalhavam no interior da minha cabeça, liber-tados para escorregarem e deslizarem livremente pelo chão. Eu gri-tei, porque todas as raparigas estavam a gritar, é o que as raparigasfazem, mas secretamente sentia-me muito feliz.

O mar parecia reflectir os meus pensamentos e quando o navioatracou no porto de Haifa, no dia de Natal, estava calmo. Precipi-támo-nos para a camioneta que estava à nossa espera e eu observei aTerra Santa revelar-se perante os meus olhos à medida que serpen-teávamos pela antiga paisagem até Jerusalém. Quando avistei o Murodas Lamentações soltei umas risadinhas abafadas ao recordar-me doavô ajoelhado na sala de estar. Iria recordar-me desse dia muitasvezes e vim a aperceber-me de que a minha mãe também tinha sen-tido de humor. Ela ria-se tanto quanto eu quando o pai dela faziafigura de pateta, como ela dizia, e admirava-o porque ele tinha a con-fiança para ser ele mesmo.

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Viajámos para Belém e visitámos a Igreja da Natividade, o localdo nascimento de Cristo, depois regressámos a Jerusalém para visitara câmara da Última Ceia e, em seguida, encaminhámo-nos para aigreja construída no Monte Calvário, onde se pensa que Jesus foicrucificado. Após um passeio de burro, sentia-me esfomeada e tive-mos um almoço tardio no Monte das Oliveiras, onde consta queJesus alimentou 5000 pessoas com dois pães e cinco peixes.

Encontrávamo-nos no berço da civilização, com ligações histó-ricas às três grandes religiões do mundo ocidental: judaísmo, cristia-nismo e islamismo. Para mim foi um choque, enquanto adolescentede doze anos, ver estes lugares santos a serem patrulhados por sol-dados israelitas armados. Os assuntos do mundo nunca me tinhamtocado antes, mas viajar abre a mente, e durante essa visita de estudoocorreu-me que quanto mais a minha mente se abrisse, melhor;quanto mais informações reunisse, menos espaço haveria para ospesadelos e memórias distorcidas.

Telefonei aos meus pais utilizando o rádio do navio para lhesdesejar um feliz Natal enquanto navegávamos para Rodes, a ilha doscruzados, famosa pela acrópole de Lindos, uma subida de quase 115metros por degraus de pedra talhados na colina sobre a CidadeVelha. Uma visão que, de acordo com o meu guia, «uma vez vista,jamais será esquecida». Atravessámos o Mediterrâneo para a Tur-quia, onde me empanturrei de um doce turco confeccionado comágua de rosas, polvilhado com coco e aromatizado com hortelã, pis-tacho e canela. As palavras e os sabores eram novidade para mim,assim como a visão de mulheres com véus, cobertas com longas ves-tes, os minaretes acima das mesquitas, e ruídos como o grito do mue-zim a chamar os fiéis para a oração, um som tão idêntico aos versosentoados no Muro das Lamentações que poderia ter sido um eco.

A enorme sirene do Bolivia soou e nós navegámos através deum mar sereno até à ilha de Santorini. Em fila indiana, subimos pelotrilho irregular para contemplarmos fascinados a orla em forma demeia-lua da maior cratera vulcânica da Europa, a suposta localizaçãoda cidade perdida de Atlântida. Na véspera de Ano Novo, chegámosa Heraclião, em Creta, onde passámos o dia a explorar as ruínas deKnossos e eu comprei presentes para a minha família: um saco depano para a mãe, um cinto para o Clive, um cinzeiro de cerâmicapara o avô, algo para o pai e algo para a avó.

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A nossa paragem final no dia de Ano Novo foi em Valletta, umacidade portuária, capital de Malta, e voltei para casa com a minhamochila repleta de rolos fotográficos e a cabeça a vibrar com todasas datas e maravilhas arqueológicas que estava ansiosa por partilharcom o meu avô.

Entrei apressadamente em casa a sorrir, mas a minha mãe pareciaestar de mau humor e sentou-me na cozinha. «O que foi agora?»,pensei. Ela disse-me que o meu avô sofrera um ataque cardíaco navéspera de Natal e estava entre a vida e a morte.

— Porque é que não me disseste? — Para quê, para arruinar as tuas férias? Rompi num pranto.O avô estava entre a vida e a morte. A frase era aterradora e eu

mal podia esperar até ao fim do dia para que pudéssemos ir visitá-loao hospital. Desfiz as malas e quando encontrei o cinzeiro do avóquebrado pareceu-me um mau presságio.

Assim que as portas duplas se abriram à hora da visita, corri paraa enfermaria usando um fez turco. O avô estava pálido e parecia maisvelho deitado naquele leito com o pijama às riscas. Mas no momentoem que me viu, endireitou-se na cama, pegou no fez vermelho e co -locou-o na sua própria cabeça. Pegou-me na mão. «O que faria eusem a minha bonequinha?» disse, e daquele dia em diante começoua melhorar.

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CAPÍTULO 2

CORRER E PASSAR FOME

Muitas vezes sentia-me como se estivesse a desempenhar um papel, como se estivéssemos todos a desempenhar um papel

numa telenovela: o pai que trabalha arduamente para sustentar afamília, a mãe que ama o seu marido, os filhos emocionalmente equi-librados, sem nenhuma preocupação no mundo. Os pequenos altose baixos serviam como conflitos menores que eram rapidamenteresolvidos, e o drama progredia para uma conclusão inevitável masobscura. Excepto quando estava em casa dos meus avós, o meu sor-riso era sempre falso. Eu estava constantemente a observar-me, sem-pre a tentar ver-me como as outras pessoas me viam. Nunca eranatural, era sempre um logro, e os outros actores pareciam tão bonsa desempenhar os seus papéis como eu era a desempenhar o meu.

A família que aparentávamos ser era perfeitamente normal.Tínhamos as nossas festas de aniversário, assistíamos juntos aos pro-gramas de televisão e fazíamos churrascos no jardim. No Verão,durante o torneio de Wimbledon, o Clive montava uma rede impro-visada usando a corda da roupa e jogávamos ténis. O meu pai ensi-nou-me a servir, segurando-me na posição correcta. «Faz assim…não, não, não, tens de sacompanhar o movimento da raquete… Nãoé assim. Estica o braço. Arqueia as costas… Não. Não. Não. Fazoutra vez.» Eu estava em sintonia com a mais subtil mudança de tom,a sensação das mãos do meu pai nos meus braços, o corpo dele pres-sionado contra as minhas costas. A minha mãe vinha trotando pelocaminho do jardim nos seus saltos altos, transportando uma bandeja

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com limonada e cubos de gelo a chocalharem nos copos. Nós fazía-mos uma pausa, ofegantes, e depois corríamos à procura das bolasperdidas.

Mas havia algo de errado. Faltava qualquer coisa. Eu sabia disso,e sentia que o resto da minha família também o sabia.

A mãe parecia estar feliz quando ia trabalhar e parecia estar felizaté ao momento em que parava na entrada, metia o carro na garageme entrava em casa. A sua felicidade encontrava-se fora daquelas qua-tro paredes. O pai parecia estar sempre prestes a dizer algo; aquelesom engasgado na sua garganta ia ser uma espécie de revelação parauma mudança de vida, mas o momento da revelação permaneceu nacâmara sufocante da sua mente até que definhou e pereceu.

Agora que o Clive tinha quase dezassete anos, não ia com tantafrequência até à casa dos nossos avós. Tinha interesses mais premen-tes, incluindo uma namorada. Eu ia todos os domingos e não teriadeixado de ir nem que tivesse uma dúzia de namorados, não quetivesse algum. O avô foi melhorando. Parecia um milagre e eu nãoconseguia deixar de me interrogar se não teria sido a minha visita àTerra Santa que pusera algum anjo da guarda em acção.

Depois do ataque cardíaco, diagnosticaram ao avô diabetes eteve de alterar a dieta. A avó parou de fazer folhados de maçã. Co -meçou a preparar pescada, abarrotou a despensa com fruta fresca evegetais, e verificava as calorias e o teor de açúcar no rótulo de todosos frascos com uma lupa. Quando eu chegava lá a casa, o avô levava--me rapidamente para o jardim para me mostrar o que estava a plan-tar na sua estufa. Fechava a porta e agia como um espião ao mostrar--me uma tablete de caramelo. Partia-a e comia um pedaço.

— Não digas à avó — pedia-me.— Mas avô, não devia comer isso, é contra as regras. — A vida é demasiado curta para tantas regras — resmungava,

e ali ficávamos nós a chupar os nossos caramelos.Nesses momentos, os sonhos que me assombravam pareciam-

-me particularmente perversos e obscenos. Eu estava sempre a ima-ginar um homem a entrar no meu quarto a meio da noite, a despir-mea roupa, a acariciar o meu corpo, a afastar-me as pernas e a tocar-meem lugares que não deveria. Assim que abria os olhos de manhã,naqueles primeiros momentos fragmentários, tinha visões fugazes emeio formadas de cenas que eram tão hediondas que corria para o

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chuveiro para fazer dissipar essas imagens do meu cérebro sob a águaquente. Eu era uma pessoa má por permitir que esses pensamentossujos entrassem na minha mente. Ficava na estufa a tentar falar aoavô das coisas horríveis que eu imaginava, mas pelo menos nisso eracomo o meu pai, e deixava as palavras desfazerem-se em pó na minhagarganta.

Se por momentos aparentava estar abatida, o avô dava-me ime-diatamente um abraço. Eu não suportava qualquer tipo de contactofísico: o modo como as raparigas da escola andam pelos corredoresde braço dado ou a forma como um estranho se senta muito próximono autocarro. Eu retraía-me e afastava-me de todas as pessoas,excepto do avô. Sentia-me segura quando ele me envolvia nos seusbraços, vestido com o seu casaco de malha.

— És feliz, boneca? — perguntava-me. — Sim, sim. Muito feliz, avô.— Toma, come outro pedaço de caramelo. Não quero que desa-

pareças, estás tão magra como uma lufada de ar fresco.Eu sorria e comia mais um pedaço de caramelo. — Sinto-me sempre feliz quando estou aqui — respondia.— Sim, eu sei, mas e durante o resto do tempo, também és feliz? — Sim, claro que sim — assegurava-lhe.— Assim é que é. Sabes o que eu sempre digo: não deixes que

os acontecimentos da vida te tornem amarga, deixa que te enrique-çam.

Lembro-me daquelas palavras com muita clareza.

Durante as nossas visitas diárias ao meu avô antes de ele sair dohospital, eu e a mãe tínhamo-nos tornado mais próximas e apesar deos meus pesadelos serem cada vez mais frequentes e mais vívidos, eunão queria estragar essa proximidade tentando descrevê-los. Aosdoze anos, não tinha palavras para explicar o que estava a ver, porqueo que eu estava a ver era fugaz e desfocado. Era como folhear as pági-nas de um livro ilustrado ou uma história aos quadradinhos, com asimagens a chocarem umas com as outras. Se alguém me tivesse per-guntado o que eu vira, eu não seria capaz de descrever tudo de umaforma conclusiva, apenas pedaços aleatórios, como se fosse umacolagem: uma língua, um olho, um par de mãos grandes, um isqueiro

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a circundar os meus pés, dando aos meus dedos um tom rosa-vivona escuridão.

Era melhor não dizer nada. Talvez desaparecesse tudo. Talvezisso fizesse parte do crescimento, da preparação para o mundoadulto. A minha mãe aparentara estar deprimida antes do ataque docoração do avô e, se fosse esse o caso, tinha-o superado e andavamais animada. Vestia-se cada vez com mais estilo, com cores maisgarridas, mais moderna e menos provinciana. Tentou incentivar-mea fazer o mesmo. Fomos às compras e vimos vestidos muito bonitos,apesar de isso não ter qualquer importância para mim.

Fiz treze anos e sentia-me como se estivesse a perder algumacoisa, ou como se houvesse algo que eu já perdera e jamais recupe-raria. Estava a perder a noção de quem eu era dentro do meu própriocorpo. A única forma de conseguir manter algum controlo era atra-vés do que comia, que era cada vez menos, e eventualmente passoua ser quase nada.

Várias vezes por dia, dava por mim inesperadamente no quartodo meu pai, um lugar escuro e masculino onde eu normalmente nãome atreveria a ir. Mas por alguma razão, havia uma balança de casade banho num dos cantos e eu ficava a olhar para baixo, para o mos-trador giratório, para me certificar de que não engordara desde aúltima vez que me pesara, umas horas antes. Não tomava o pequeno--almoço nem o almoço, excepto talvez uma peça de fruta, e empan-turrava-me com uma simples sanduíche de salada sem manteiga aojantar.

A mãe preocupava-se por eu estar tão magra e a sua preocupaçãotransformou-se em terror quando um dos seus amigos sugeriu,depois de ver um anúncio na televisão sobre drogas, que eu podiaestar viciada em heroína.

— Heroína? O que é isso? — perguntei-lhe.Isto acalmou a minha mãe e eu fugi para a casa de banho, onde

me podia despir em privado e olhar para o espelho durante muitotempo para me certificar de que não tinha ganhado nenhum gramade peso desnecessário. Aos treze anos, os meus seios estavam a cres-cer e uma das vantagens da anorexia é que atrasa o processo dapuberdade. Durante um ano não tive período. Já via imagens sexuaisnos meus sonhos, não queria vê-las também no espelho. Escondia--me dentro de T-shirts largas e jeans. Eu era um génio no hóquei,

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fazendo deslizar a bola sob o flanco como um relâmpago. Queriaser realmente muito rápida e seguia um regime estrito de jogging.

Levantava-me todas as manhãs por volta das sete horas e, inde-pendentemente do tempo, corria pelas ruas durante uma hora.Tomava um duche, engolia uma banana e meia maçã, bebia muitaágua e corria para a escola, onde nunca tinham de me dizer que tra-balhasse com afinco. Na escola secundária de Dane Hall eu era amenina inteligente, a marrona, a vencedora de prémios, que sempreinvejou as raparigas descontraídas que conversavam sobre namora-dos e estrelas pop.

Isso não significa que não estivesse atenta à moda. As sweatshirtsdemasiado largas eram muito usadas. Eram muito convenientes paramim. As raparigas vestidas à moda pavoneavam-se em tops de néone caneleiras, os rapazes em jeans descoloridos, os punhos nos seusblazers de escola azuis enrolados para cima, a imitar o Don Johnsonem Miami Vice. No início dos anos oitenta, todos os jovens ouviamDepeche Mode, Human League, Spandau Ballet, as bandas da NewWave que usavam sintetizadores e baterias electrónicas.

Eu já era considerada excêntrica e totalmente estranha devido àminha atracção pelos The Who e Pink Floyd. Ouvia as canções delesrepetidamente no meu walkman. Era como se tivessem sido escritassó para mim.

Havia na minha família uma sensação de desespero a que todosnos agarrávamos: o pai ao seu ar fútil de superioridade; a mãe à con-cha vazia do seu casamento; eu à minha infância perdida; o avô à pre-ciosa vida. Detestava ir para a cama à noite e ter pesadelos, sonhossexuais, sonhos hediondos, despertar um dia mais velha, correr demadrugada, cada vez mais magra. Às vezes sentia-me como uma som-bra que desapareceria quando o sol despontasse sobre os telhados.

Os dias e os meses passaram em espirais de actividade esquecida:a nota máxima por um trabalho de casa cuidadosamente escrito eimediatamente esquecido; o golo marcado no hóquei; o prémio queo Clive conquistou ao derrotar três adversários numa partida de crí-quete lá da escola. O jardim mudou de cores no final do Verão. Ospresentes de Natal foram cuidadosamente comprados e trocadoscom uma emoção artificial. O episódio especial de Natal da teleno-vela foi transmitido.

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Outro aniversário. Catorze. Nalgumas culturas, eu seria umamulher. Sinto-me como uma mulher. Sinto-me como uma criança.Sinto-me como um bebé. Tenho sentimentos diferentes em momen-tos diferentes e não tenho ideia de como devo sentir-me e que sen-timento pertence ao eu que sou eu.

O meu pai converteu-se num autêntico estranho, só falandocomigo em raras ocasiões e de uma forma que me fazia sentir des-confortável. Quando tinha algo para fazer depois da escola, ou ia aalguma festa de aniversário no fim-de-semana, ele adquiriu o hábitode me perguntar se eu andava com alguém.

— O que fazes nessas festas? Tens namorado? Ele beija bem?Eu balbuciava uma resposta envergonhada. Como jovem ado-

lescente, o sexo era a última coisa que tinha em mente. Pelo contrá-rio, enquanto as raparigas se interessavam por maquilhagem e porrapazes, eu queria distanciar-me de todos esses pensamentos. Preen-chia a minha vida com uma intensa actividade. Ainda fazia o jantarna maior parte das noites. Estudava com tanto afinco na escola quenão podia deixar de ser a primeira em tudo. Lia até me doerem osolhos, e corria e jogava hóquei até cair exausta na cama à noite, naesperança de que os sonhos ficassem longe e me deixassem em paz.

Não deixavam. Os pesadelos aconteciam em ciclos, uns desapa-reciam e outros tomavam o seu lugar. Ainda acordava com um sabordesagradável na boca e olhava fixamente para o frasco de aftershavena estante da casa de banho enquanto lavava os dentes. O cheiro doaftershave do meu pai parecia encher a casa. Impregnava o meuquarto, agarrando-se ao pêlo dos ursinhos de peluche. Observava ofrasco e imaginava-me a parti-lo na banheira, mas é claro que nunca o fiz.

O pai assombrava a casa como um fantasma. Chegava tarde,comia sozinho, fechava-se no seu quarto com o rádio de ondas cur-tas, os assobios e os zumbidos a conjurarem cenas na minha cabeçaque eram tão sórdidas e surreais que poderiam ter sido murais pin-tados por Salvador Dalí. Tinha surtos de emoções conflituosas.Umas vezes sentia pena do meu pai, que parecia solitário e recluso,e outras tinha crises de um ódio inexplicável, quando despertava deum pesadelo na obscuridade da noite e dava por mim a sussurraruma oração: «Oxalá estivesses morto. Oxalá estivesses morto. Oxaláestivesses morto.»

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*

Um dia ensolarado no final de Maio, o meu treino foi canceladoe eu fui para casa planeando fazer os trabalhos de casa cedo para ficarcom menos uma coisa com que me preocupar. À medida que atra-vessava o jardim da frente, apercebi-me de que me esquecera daschaves de casa. Havia um carro na entrada, por isso sabia que haviaalguém lá dentro e toquei à campainha. Não houve resposta. Toqueinovamente, mantendo o dedo na campainha. Depois daquilo que mepareceu uma eternidade, a minha mãe veio abrir. O cabelo dela, sem-pre tão bem-arranjado, estava despenteado, tinha os olhos brilhantese, enquanto se encaminhava para a sala do pequeno-almoço, repareique tinha o fecho da saia aberto.

— Tive uma enxaqueca e o Stephen trouxe-me a casa — explicoucom indiferença. O Stephen era o seu patrão. — Estava a preparar--se para me ditar umas cartas.

«Estranha actividade para alguém com uma enxaqueca», pensei. Nesse momento, ouvi o Stephen a descer as escadas a assobiar.

Entrou na cozinha a sorrir. Tinha o cabelo molhado e penteado paratrás, e estava sem o casaco e a gravata.

— Olá, estás em casa — disse-me ele.Não respondi.Saí da cozinha, subi as escadas e fui ao quarto da minha mãe. As

roupas de cama estavam puxadas para trás. Passei a mão sobre o len-çol de baixo. Ainda estava quente. Não sei porque fiz aquilo. E nãosei por que razão me senti enojada com esta descoberta. Senti-metraída. Bem no fundo de mim, sabia desde os meus cinco anos deidade que a minha mãe tinha um caso amoroso. Mas senti-me malpor ter descoberto daquela forma, vê-la com a saia desapertada, asensação de calor na palma da minha mão ao passá-la pelo lençol.Era como se a minha mãe me tivesse enganado a mim, e não ao meupai.

No meu quarto, atirei os livros para a cama e escrevi um ensaiosobre a conquista romana. Correr. Passar fome. Mergulhar no tra-balho. Tinha um arsenal de dispositivos para me impedir de pensarno presente, ou de remoer o passado. Estava a viver na minha cabeça,a punir o meu corpo, a correr, ao que parecia, em círculos, sem che-gar a lugar algum.

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Quando o Stephen saiu, a minha mãe subiu as escadas em bicosde pés e bateu na minha porta antes de entrar.

— Está tudo bem?— Porque não deveria estar? — Hoje nem pareces tu. — Eu nunca sou eu mesma — respondi.Ela soltou aquele suspiro impaciente que as mães reservam às

filhas adolescentes e, quando saiu, fiquei a pensar nessa troca depalavras.

«Hoje nem pareces tu». «Eu nunca sou eu mesma».Foram as palavras mais honestas que alguma vez dissemos uma

à outra. Era o meu «eu» que eu estava a tentar encontrar. Por vezes,fechava os olhos e fingia que era outra pessoa com a missão de explo-rar os corredores do meu cérebro em busca de respostas para enigmasobscuros, a origem e o significado dos meus sonhos, que estavamcada vez mais lúcidos, menos fragmentados, os excertos do filme aencaixarem-se numa narrativa. Eu estava ressentida com a minhamãe, não por ela estar a ter relações sexuais com o Stephen, mas porisso ter permitido que o espectro do sexo abrisse a porta da rua,subisse as escadas e entrasse na sua cama. O sexo era hediondo,repugnante, terrível, era o fantasma que nunca ninguém vira, mascuja presença era sentida por todos.

No fim-de-semana seguinte, o sexo voltou para me atormentar.O meu pai tinha um amigo que aparecia para se vangloriar de cadavez que comprava um carro novo. Ouvira a mãe dizer que ele eraum «patife exibicionista» e que não gostava dele. Mas o meu pai sen-tia-se impressionado com este homem. Ele era o director executivode uma empresa da região e membro do mesmo clube de golfe.

Eles tinham estado lá fora a admirar o Jaguar, que era elegantee negro. Eu estava na sala de estar e, quando eles entraram, o pai dei-xou-me sozinha com este amigo enquanto foi buscar qualquer coisa.O homem era espalhafatoso, seguro de si e todo sorrisos. Aproxi-mou-se de mim como que para me cumprimentar, mas abraçou-meimediatamente e acariciou-me os seios.

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A minha mãe apareceu por acaso nesse momento e atravessou asala como um relâmpago.

— Ei, tu, afasta-te — bradou.Ele limitou-se a soltar uma gargalhada e a afastar-se. Subi as esca-

das a correr e fiz algo que já não fazia há muito tempo: escondi-mena Gaiola.

Nessa noite não comi nada. Na manhã seguinte, depois da cor-rida, enquanto a minha mãe estava no piso de cima a preparar-se parao emprego, retirei da cozinha um copo de plástico com tampa derosca e enchi-o com um cocktail de whisky, gin, vodka e aguardente.Verti um pouco do conteúdo de cada uma das garrafas do armáriodas bebidas para que ninguém notasse a diferença. O meu coraçãopalpitava e sentia um espasmo no pescoço. Assistira a programas natelevisão em que, após os acidentes, as vítimas precisavam de umwhisky ou de um conhaque para acalmar os nervos, e era exacta-mente o que eu precisava para me ajudar a passar o dia.

Na escola, sorvi uns goles da minha mistura secreta e a sensaçãoera inebriante. O meu cérebro estava entorpecido. Sentia-me feliz.Em casa, era como se estivesse cercada por tudo o que era lascivo einsinuante. As mulheres na televisão meneavam-se pelo ecrã com osseios expostos. Havia anúncios para o novo filme Splash, a Sereiaque mostrava Daryl Hannah praticamente despida. A namorada doClive apareceu lá em casa, o que era raro, bateu à porta do meuquarto e entrou vestida com um top e uns jeans justos que mostra-vam a forma do seu rabo.

— O que se passa contigo? — perguntou.— Não se passa nada. E contigo? — Porque é que não te alimentas como deve ser?— Porque é que não te metes na tua vida?Foi uma conversa repleta de perguntas e sem nenhuma resposta.Ela voltou-se e retirou a sua bonita figura do meu quarto e eu

sentei-me no canto com o Sr. Feliz, não me sentindo nada feliz.O sexo estava por toda a parte, nas imagens grosseiras que ator-

mentavam os meus sonhos, na memória da minha mãe dançandopela casa com a saia desapertada, no Stephen com o cabelo molhadoe o assobio alegre. A combinação destas cenas, junto com a tensãoda puberdade e da anorexia, criava um sentimento constante de con-fusão e dor.

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O álcool aliviava essa dor. No dia seguinte, enchi de novo o copode plástico. E no outro a seguir. E depois no outro. Para mim otempo é, e sempre foi, vago, caprichoso e imprevisível. Não flui comum movimento constante, mas sim como o fluxo e o refluxo da maré,impossível de verificar ou de medir. Eu bebia pequenos goles, obser-vava os níveis a descer e, abracadabra, as garrafas vazias desapare-ciam, eram substituídas por outras, e nunca ninguém descobriu queera eu que me infiltrava no armário das bebidas com o meu copo deplástico.

Mas todas as coisas boas têm o seu lado negativo. A seguir àbebida vem a ressaca. Os amigos e professores começaram a notar ocheiro a álcool no meu hálito e perceberam que eu estava sempreafastada dos outros e deprimida. O outro problema da bebida é quenos deixa sonolentos, e uma vez a melhor aluna da sala foi apanhadaa ressonar numa aula de Matemática.

Como os petroleiros no mar, as escolas movem-se lentamente,mas depois de várias semanas, Mr. Keating, o director de turma, cha-mou-me ao seu gabinete e deu-me um recorte de um jornal localsobre crianças que tinham pais alcoólicos. Presumira que eu estavaa imitar os meus pais, e este foi o primeiro de uma vida inteira depressupostos errados, diagnósticos incorrectos, de não entenderemnada do que realmente se estava a passar.

Mr. Keating marcou-me uma consulta com uma psicóloga clí-nica e acompanhou-me à Child and Family Unit1 na clínica Naydon,um anexo ao hospital de dia para adultos. Não falei aos meus paisda consulta, e não me sentia inclinada a explicar o meu gosto recém--adquirido pelo álcool à psicóloga, uma mulher alta e pálida queparecia uma aparição, ali sentada com a luz de Inverno a incidir-lhepor trás, no seu pequeno gabinete de tecto baixo. Mr. Keating per-maneceu comigo no início, mas depois a mulher alta pediu-lhe quesaísse para que ela pudesse colocar-me algumas questões em privado.

Fez uma pirâmide com os dedos, enquanto eu permanecia sen-tada numa cadeira baixa, com a minha saia azul-marinha da esco lapelos joelhos, a mexer com os dedos nas riscas azuis e vermelhas daminha gravata da escola. Ela queria construir uma árvore genealógica

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1 Em Portugal, o equivalente a Unidade de Neurodesenvolvimento e Comportamentoda Criança e do Adolescente. (N. do E.)

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e eu fiquei a observá-la enquanto ela desenhava uma complexasequência de círculos e setas que tocou nalguma memória oculta,profunda e tenebrosa, e me fez sentir desconfortável. Usou os dedospara especificar os assuntos que pretendia que eu abordasse:

A minha relação com a minha mãe e com o meu pai.O que eu sentia por eles.O que eu pensava que eles sentiam por mim. E, o mais impor-

tante, o que eu pensava de mim.

Aquilo era ridículo. Eu andava a tentar responder a estas per-guntas desde que nascera e não podia, assim de repente, dar umaforma à confusão que reinava na minha cabeça. Fez-me perguntassobre os meus sonhos e a simples menção deles era tão agonizanteque lhe respondi que era daquelas pessoas que nunca sonhavam.

— Ah, mas todas as pessoas sonham. — Mas nem todas se lembram. — Ou não se querem lembrar?— Sim, isso mesmo — respondi.Marquei outra consulta, mas não apareci. Na minha ideia, todo

aquele exercício era um desperdício de energia e não tinha intençõesde lá voltar.

O que a psicóloga não sabia, e nunca viria a saber porque eununca lhe disse, foi que as suas perguntas tinham inadvertidamenteacendido uma luz na minha mente. Nessa noite, quando estava nacama abraçada ao Sr. Feliz, veio-me à memória o sonho da chama doisqueiro.

Tenho dois anos. A porta do quarto abre-se e, na ténue claridadeda luz nocturna, vejo um homem entrar no quarto. Ele puxa a roupada cama para trás, leva o dedo aos meus lábios e, com a outra mão,acende o isqueiro da minha mãe. Move a chama junto aos meus pése eu contorço-me e agito os pés. Quero fugir, mas não consigo. Eleé muito grande, muito forte, e tem um dedo enorme pressionadocontra os meus lábios. Inclina-se para a frente e, pela primeira vez,no fulgor da chama azul, reconheço o rosto do meu pai. O estranho

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Page 38: o Inferno de Alice

é que não estou surpresa ou amedrontada. Fico confortada com asensação de familiaridade.

Quando afasta o isqueiro, sorri. Eu retribuo o sorriso. Ele des -pe-me o pijama e brinca comigo, fazendo-me cócegas. Humedece odedo e fá-lo deslizar por entre os lábios da minha vagina. Depoisabre o fecho das calças e tira a pila para fora. Segura-me na cabeça,eu abro a boca sem que ele me diga para o fazer e ele introduz a pilana minha boca. Impulsiona-se para a frente e para trás e enche-me aboca com um líquido amargo que sabe a leite azedo.

Vejo essa cena muito claramente. Sinto que, de alguma forma,ela me é familiar, que aconteceu muitas vezes, embora os pormenorespossam variar ligeiramente. Por vezes, introduz a pila na minha bocapara a humedecer e, em seguida, sobe para a minha cama e empurra--a para dentro da minha vagina. Outras vezes, vira-me de barrigapara baixo e introduz a pila no meu rabo. Dói muito. Tenho o rostopressionado contra a almofada. Faço os possíveis por não chorarporque não quero que o meu pai fique triste.

Ao longo das semanas seguintes, continuei a decompor os so -nhos em que ele vinha ao meu quarto e era como alterar as formasnum caleidoscópio, mudar o padrão, analisar as peças e reconstruí--lo esperando que a imagem fosse diferente. Porque agora, pela pri-meira vez, eu começava a interrogar-me se não eram sonhos, setinham realmente acontecido.

Estava a tentar agarrar-me a algo tangível, algo mais do que umasensação, e quanto mais tentava, mais me parecia uma ilusão. Se estascoisas tinham realmente acontecido, como é que eu podia tê-lasesquecido? Estas coisas não se esquecem. Não é possível. Repeti amim mesma várias vezes que aquilo não era verdade.

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O I N F E R N O D E A L I C E