O Inquisidor - Mark Allen Smith

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O Inquisidor - Mark Allen Smith

Transcript of O Inquisidor - Mark Allen Smith

  • A verdade pode ser a pior torturaGeiger tem um dom: ele sabe quando algum est mentindo. Na funo que exerce, a chamada obteno de informaes, Geiger utiliza sua valiosa habilidade e vrios mtodos psicolgicos que levam suas vtimas a um ponto em que o medo supera a dor. Assim que atingem esse ponto, elas no tm mais como resistir.Uma das nicas regras seguidas pelo torturador no trabalhar com crianas. Quando seu scio, o ex-jornalista Harry Boddicker, lhe traz um novo cliente que exige que ele interrogue um menino de doze anos, sua resposta no. Mas quando o cliente ameaa levar o menino para Dalton, um torturador sem regras, famoso por matar seus interrogados, Geiger, cujo passado um mistrio at para ele mesmo, surpreendido por um sentimento estranho de proteo e foge com o menino na tentativa de salvar sua vida.Enquanto Geiger e Harry investigam por que o cliente est to desesperado para descobrir o segredo guardado pelo garoto, eles se veem caados por um adversrio cruel. E no meio dessa caada implacvel que o passado misterioso e sinistro de Geiger vem tona.

  • PRLOGO

    Ocliente,sentadoemumasaladesetentametrosquadrados,olhavaparaum grande espelho falso que oferecia a viso de uma escurido vazia esilenciosa. A gravao de uma gargalhada nervosa, continuamenteinterrompida por uma tosse seca, saa pelas caixas de som nas paredes,mas o cliente no a ouvia, pois tinha colocado os tampes de ouvidodeixadosparaele.

    Ele olhou para o relgio. Onze e meia da noite. Estava ali havia trshoras e bebericava uma segunda dose de usque. A sala sem janelas eraforrada de madeira antiga com um acabamento suave de cinza e commobliassofisticadas.HaviaumacadeiraArneJacobseneumantigotapetepersa.Obarcromadoestavaabastecidocomcarasbebidasdestiladas,umpinotnoireumSancerredentrodeumbaldesuado.Quatrolustrescnicos,deaoescovado,pendiamdo teto, ea luzque forneciameracaptadaporlapidaes nos copos cristalinos de usque e transformada em desenhosbrilhantes em forma de estrelas. Na prateleira inferior do bar, o painelfrontaldeumgravadordeDVDpiscavaumminsculoolhovermelho.

    O cliente era o chefe de segurana de uma grande fabricante deprodutos eletrnicos americana. Ele no ganhava o suficiente para estarfamiliarizadocomtaisluxos,masaspessoasparaquemtrabalhava,sim,eelasaguardavamseutelefonema.Foranecessriaumasemanadepesquisae contatos para providenciar um encontro em um restaurante em LittleItaly com um chefo da mfia, vestido com impecvel e extravagante

  • elegncia, chamado Carmine Delanotte. O homem o tinha interrogadoenquanto tomavamumagarrafadeBaroloedoisespressosduplos, antesde finalmente fornecerocdigodeacesso interneteonomedeGeiger,que,contudo,ficousubentendidonoseroseuverdadeiro.OcdigohaviapossibilitadooacessoaositedeGeiger,DoYouMrJones.com,eofatodetersido referido por Delanotte fez as coisas andarem rpido. Mais cedo,naquelanoite,oclientecapturaraoalvoMatthewGant,umdoscarasdarea de pesquisa e desenvolvimento da empresa em uma garagem e,seguindoinstrues,levara-oparaaqueleprdiosimpticodedoisandaresnaLudlowStreet.

    Quando o cliente e Geiger finalmente se conheceram naquela sala, aprimeira coisa que ele reparou foi que o outro quase nunca piscava osolhos. O cliente orgulhava-se da prpria frieza, mas o homem o haviadeixadodesconfortvel.Otomsedosoeuniformedesuavozesuaposturainflexvelcontribuamparatalefeito.Eletinhaolhoscinzentoselpticosemum rosto fino e anguloso. O corpo parecia esguio e firme, talvez porpraticarcorridaoualgumtipodeartemarcial.Ehaviaumaleveinclinaoemsuapostura,comoseseuesqueletotivesseumamaneiraparticulardeacomodaragravidade.

    Havia algo verdadeiramente estranho nele no entanto, o que sepoderiaesperardeumprofissionaldesuarea?Oclienteouviratodotipode histrias. Geiger era um louco que cumprira pena pesada; um agentedesonestodaAgnciaNacionaldeSegurana;umherdeirodegeneradoqueno precisava do dinheiro e fazia aquilo pela emoo. O nico ponto emcomum em todas as histrias era o que dizia que Geiger era inigualvel.Quandosecumprimentaramcomumapertodemos,oclientefalou:

    Dizem que voc o melhor, e nossa esperana que isso sejaverdade.OsprojetosqueacreditamosqueMatthewtenharoubadovalemmilhes.

    Geigerohaviaencarado,inexpressivo.

  • Nolidocomesperanaaquidisseraele,epartira.Durante a primeira hora, a sala no outro lado do vidro havia

    permanecidonaescurido.OsnicossonseramasexplosesderaivadeMatthew,repletasdebravataeindignao.FoiquandoavozsussurradadeGeiger chegou ao cliente atravs das caixas de som como o chamado deumaalmapenada.

    Paredefalar,Matthew.Vocnotemmaispermissoparafalar.Haviasidoosussurromaisaltoqueocliente jouvira.Emseguida,as

    luzes foram acesas e, atravs do espelho falso, o cliente viu Geigerrecostado na parede de uma sala austera, vestindo um pulver preto ecalaspretaslargas.Asalaeracompletamenterevestidadelinleobranco,e dezenas de lmpadas de sete centmetros embutidas nas paredes e noteto faziam todas as superfcies reluzirem.Nas paredes norte e sul haviavrias pequenas cmeras instaladas trinta centmetros abaixo do teto.Depoisdealgumtempo,aquelacenacomeouapregarpeasnosolhosdocliente, os ngulos do cmodo desaparecendo gradualmente at Geigerparecer suspenso no ar, uma silhueta escura, congelada em um quadroluminosodealabastro.

    No centro da sala,Matthew estava sentado emuma antiga cadeira debarbeiro couro vermelho, cromo reluzente e porcelana. Amarras demalha demetal estavam atadas ao redor de sua cintura, seu peito, seustornozelosepulsos,e,quandoelesemovia,reflexosbrilhantespercorriamastreliasmetlicas.Seurostoestavaplido,commanchasvermelhasnasbochechas.Estavacomotorsonuedescalo.

    Durantemeiahora,GeigerencarouMatthewemsilncio,sedeslocandoacadadezminutosatdarumavoltaaoredordasala.Elemancavadeleve,mas, de alguma maneira, havia incorporado a deficincia mecnicacorporal,demodoquenopareciaumaenfermidadeparaele,parecianatural.OsolhosatentosdeMatthewacompanhavam-noacadavoltapelasala.

  • Geiger deu um empurro na cadeira de barbeiro, fazendo-a girarlentamente.Depois,foiemboraeasluzesseapagaramoutravez.Osistemadesomcomeouatocarumasriedevinhetas,cadaumacomaduraodepoucosminutos.Oclienteouviuumengarrafamentocombuzinasepneusguinchando... umamulher cantarolando desafinadamente... o som de umnico acorde em um violo fora do tom... um telefone tocandorepetidamente, parando, e voltando a tocar... e, finalmente, a gargalhadanervosaeatosse.Nocomeo,MatthewtinhagritadoPutaquepariu!,masdepois havia ficado em silncio. Na metade da trilha sonora, o clienterecolocouostampesdeouvido.

    As luzesseacenderamdenovoquandoGeigervoltouaentrarnasala.Com as mos atrs das costas, ele parou ao lado de Matthew, que oencaravacomumafriaexplcita.Oclienteremoveuostampes.

    MatthewdisseGeiger,fecheosolhos.Umacarrancafirmou-senorostodeMatthew,maseleobedeceu.Agora,imaginequetenhacadoemumpoovazio.escurocomoo

    breu l embaixo. Voc no consegue ver nada. O nico som o da suarespirao. Seu corpo di. Talvez tenha quebrado um tornozelo, ou umpulso.

    Geigerpermaneceuemsilncioporvriossegundos,comoqueparaseassegurar de que Matthew pudesse ouvir a si prprio respirando naescuridodesuapriso.

    Adorfazumpequenoshowdeluzesatrsdosseusolhos.Vocsenteogostodesanguenaboca.Esticaobraoetateiaaoredor.Asparedessofrias e midas, e lisas tambm. Nenhuma rachadura ou depresso ondepossasegurar.Conseguesevernofundodessepoo,Matthew?

    O cliente sentiu um calafrio na nuca. Ele conseguia ver Matthew lembaixo.

    Voctentamanteracalma.Comeaagritarporsocorro.Dizparasimesmo:Algumvaimeouvir.Contudo,depoisdealgumtempo,percebeque

  • provavelmente vai morrer l embaixo. Assim que esse pensamento lheocorre,algodentrodevocrealmentecomeaamorrer.Nonacarne,masnoesprito.Entendeoquedigo,Matthew?

    Estoudizendo,cara...Noseioquevocquer!Matthew, eu disse que voc no tem permisso para falar. Apenas

    concordecomacabea.Lembra-sedeeuterditoissoavoc?Matthewencarouoolharquenopiscavaeconcordoucomacabea.As

    mosdeGeigersaramdetrsdascostascomummicrofonesemfioefonesdeouvido,queelecolocoucomfirmezanacabeadeMatthew.

    Sennheiser 650s disse. Prefiro esses aos AKGs. umaexperinciacommaisnuances.Fecheosolhos,Matthew.

    Matthew obedeceu, dando um suspiro errtico, os olhos movendo-senervosamentesobasplpebras.

    Geiger ergueu omicrofone e comeou a caminhar pela sala enquantofalava baixinho. O cliente achou que ele parecia um daqueles gurus deautoajudados canaisde televisoaberta, sque comumpblicodeumanicapessoa.

    Conseguemeouvircomclareza?perguntouGeiger.Matthewconcordoubalanandoacabea.Certo.Agora,devoltaaopoo,Matthew.Estnele?Matthew engoliu em seco, o pomo de ado subindo e descendo. Ele

    concordoudenovo.timo.Apalavrasoouparaoclientecomoumaprecedelicada.

    importantequeacreditequeestejano fundodopoo,Matthew,porqueessenoumjogomental.Vocestlembaixo,eeusousuanicasada.Sou a corda que pode ser jogada at voc e asmos que podempux-lopara o alto. Ele colocou delicadamente uma das mos no ombro deMatthew,queretesouocorpo.Eanicacoisaquefazacordaserjogadaatofundodopooaverdade.

    Oclienteinclinou-semaisparapertodovidro.

  • umacoisalinda...averdade.Anicacriaoperfeitadohomem.Eeuareconheoquandoaouo.Noqueeusejaparticularmenteintuitivoouperceptivo,masjouvitantasmentirasqueperceboquandoaverdadedita.

    Geigerinclinou-seataalturadorostodeMattheweoclienteconseguiuverasarticulaesdamandbuladohomemressaltadaspelaansiedade.

    Toscaninidiziaqueeracapazdeperceberseacordadeumviolino,no meio de uma orquestra, estava desafinada. Ele no tinha ouvidoabsoluto, mas ouvira tantosmilhes de notas que conseguia detectar namesmahoraoqueeraverdadeeoquenoera.Geigerrespiroufundo.Portanto,Matthew...Nomintaparamim.

    Asnarinasdohomemdilataram-secomoasdeumpotroaosentircheirodefumaa.Geigerinclinouocorpoeaproximou-seaindamaisdele,atquesomenteomicrofoneestivesseentreoslbiosdeambos.

    Ouviuoqueeudisse?Nomintaparamim!Oataqueauditivo,atravsdosfonesdeouvido,fezacabeadeMatthew

    recuar com tanta fora que o cliente pensou que o pescoo dele fossequebrar.Seusolhosseabriraminstantaneamente,abocadistendeu-seemumcrculocavernosoeseuuivodurouunsbonscincosegundosantesdesetransformarnumgemidoabafado.

    Geiger virou a cabea para o lado e o cliente ouviu o estalar dasvrtebrascervicaisdele.Depois,virou-aparaooutrolado.Outroestalo.Ocliente tentou interpretar a expresso de Geiger, mas no conseguiudiscernirnenhumaemoo.

    MatthewdisseGeiger,precisoquemantenhaosolhosfechados,que pare de gemer e preste ateno. Concorde balanando a cabea seconseguir.

    OgemidodeMatthewficoupresonagarganta.Suacabeaseergueueabaixounumarespostadbil,mecnica,eseusolhossefecharam.

    Existemdiversasformasdeprovocardorparasituaesespecficas...

  • Emprimeiro lugardores fsicas,psicolgicaseemocionais.Dentrodessascategoriasexistemmuitassubcategorias.Nombitofsico,haaudio...

    ElebateulevementenomicrofonecomosnsdosdedoseacabeadeMatthewsofreuumespasmo,osolhosabrindoprontamenteoutravez.

    Olhosfechados!Matthew uivou, e Geiger colocou delicadamente a ponta de um dedo

    sobre cada uma das plpebras trmulas do homem e as fechou. Depois,colocouumpolegaremumpontocincocentmetrosesquerdadoesternodele.

    Htambmapresso...O polegar enrijeceu e, praticamente sem nenhum indcio de esforo,

    GeigeropressionoueMatthewsoltouumurro rouco, o rosto contorcidoemumacaretaquerevelavaosdentes.Oclienteobservou,impressionado,enquantoapalpava,comcuriosidade,asprpriascostelas.

    Haforabruta...Geiger ergueu o brao, o cotovelo dobrado num ngulo de noventa

    graus. O antebrao balanou como uma alavanca de mola e atingiu emcheio o peito deMatthew, deixando-o sem ar, arfante, desesperado parasugaroarparadentrodospulmes.

    Ehapenetrao,alaceraodacarne...Geigerfezumapausa.Masissoarcaicodemaisparamimprosseguiu.Noentanto...A mo dele moveu-se at atrs da orelha e puxou algo que saiu

    deslizando. Era brilhante e prateado, dez centmetros de comprimento,imensuravelmentefino.

    Abraosolhos.As plpebras de Matthew se abriram. Seus olhos castanhos estavam

    marcadosporlinhasvermelhas.Sabeoqueisso?Matthew semicerrou os olhos diante do objeto posicionado entre o

  • polegareoindicadordeGeigerebalanouacabeaemnegativa.Oclienteassentiu.Certavezelehaviadeslocadoumdisconacolunaetentadotudoembuscadealgumalvio.Elesabiaoqueera.

    Isso uma agulha de acupuntura. Sua funo principal bloquearimpulsosqueo crebro identifica comodor impedindo-osdeviajarpelasviasneurais.Mas tambmpodecriardor.Aagulha reluziunaspontasdosdedosdeGeigercomoaespadaminsculadeumheridebrinquedo.Existemcertasironiasemmeuofcioimpossveisdenoseperceber.

    A observao foi dita sem qualquer trao de humor ou ameaa, e aausncia de ambos fez os pelos danucado cliente se arrepiarem.AmolivredeGeigeragarrouMatthewpelos cabelos.Umganidocurtoescapoudohomemnouma reaodor, e simuma resposta involuntriadereconhecimentodoqueestavaporvireGeigerinseriuhabilidosamenteaagulhaentreasvrtebrasdopescoodeMatthew,quenorecuou,eemnenhummomentodesviouseuolhardorostoimplacveldeGeiger.

    Ofatoqueoserhumanoumaestruturanotavelmentevulnervel.Essaagulhamaislevedoqueapenadeumpardal,Matthew.Algrimadeumacrianaequilibradanapontaseriacapazdeenverg-la.

    Geiger mexeu um pouco a agulha, provocando uma srie de gritosestridentes. Depois, removeu-a e os berros cessaram. Lgrimas rolavampelasbochechasdeMatthew,suarespiraoestavaacelerada,oarentravaesaaemarfadascurtas.

    Htambmamanipulaodearticulaes,aaplicaodecalorefriointensos, ingesto forada de lquidos. A verdade, Matthew, que eupoderiatrabalharemvocdurantevriosdiassemrepetirumprocesso.

    GeigerremoveuosfonesdeouvidodacabeadeMatthewecolocou-os,comomicrofone,nocho.

    Quanto dor psicolgica, creio que sua sensibilidade a estmulosfsicos torne desnecessria a explorao de tal rea. Quanto doremocional... Segundoseuarquivo,voc solteiro, sem ligaesamorosas,

  • filho nico sem pais vivos, demodo que no vejo nenhum benefcio emtrilhar tal caminho.Vocpodenoacreditar,Matthew,masumcaradesorte.

    O cliente queria que Geiger espancasse Matthew para que eleconfessasse e terminasse logo com aquilo. Depois, ele poderia dar seustelefonemaseirparacasa,masquandoconheceraGeiger,haviapercebidoquenoseriaassim.

    No vou te perguntar agora,Matthew, porqueposso ver que aindanoestprontoparadizeraverdade,enoquerofazercomqueminta.

    Pergunteoquediabosquiser.Eu...eunopossodizeroquenosei,merda.

    IssoverdadedisseGeiger.Irrelevante,masverdade.Umpensamento deuumnno estmagodo cliente. PoderiaMatthew

    estardizendoaverdade?Seriapossvelqueoutrapessoativesseroubadoos projetos de pesquisa e desenvolvimento da empresa? Tudo apontavaparaMatthew,mas...

    O poo, Matthew disse Geiger. Voc est no fundo do poo,entofecheosolhos.

    As mos de Geiger moveram-se para os lados do corpo, os dedostamborilandoonada.Aoobserv-lo,oclienteseperguntousehaveriaumpadro;pareciaqueeletocavapianonoar.

    Certo. Voc est a embaixo h algum tempo, e a mente afetadaquandoo corponopode semoverpor longosperodos.A escuridoe aclaustrofobia afetam a percepo, a noo do tempo e de simesmo. Issotudocriaumambientenoqualasfronteirasemocionaissetornamvagas.Adorficaemsegundoplanoemrelaoaomedo.Aesperanaseextingue,odesesperotorna-seumcompanheiro.Quandoissoacontece,voccomeaaverquemrealmente...Asprofundezaseoslimitesdesuafora.

    Geigerajoelhou-sediantedele. Ento voc muda, Matthew, sofre uma reestruturao at o nvel

  • molecular.omelhorjeitodedespertarparaarealidade.Geiger fechouosolhosemassageou-oscomopolegareodedomdio.

    Erammovimentoscalculados,precisos. Vamos fazer uma pequena pausa agora. Voc vai permanecer no

    poo.Eleretirouumavendapretadesedadobolsoeamarrou-anorostode Matthew. Mais uma coisa, Matthew. Aprendi que diante daexperinciadecertos tiposdedor, aexpectativademaisdorquase topoderosaquantoaprpriasensao.Creioque,nodevidotempo,vocvaiconcordarcomigo.

    Geiger sumiu de vista e as luzes se apagaram novamente. Algunssegundossepassarameentoaportadasaladeobservaoseabriueeleentrou.Semolharparaocliente,foiatobar,serviu-sedeumcopodguaecomeouabeber.

    Estouumpoucopreocupadodisseocliente.Temosohomemcerto?

    Geigerassentiucomacabea.Temcerteza?Oacenooutravez.Comosabe?ExpliqueiissoaMatthew.Elepousouocopovazio.Vocestava

    ouvindo,noestava?Sim...Toscanini.MasporqueMatthewaindanoconfessou? Ele ainda no atingiu o ponto de liberao. Mas vai chegar l em

    breve.Pontodeliberao?Geiger concordoumais uma vez,mas parecia no querer ter de fazer

    aquilodenovo. Matthew ainda est com mais medo do que possa acontecer caso

    confessedoquecomoquevaiacontecersenoconfessar.Porenquanto,arealidade da tortura prefervel possibilidade da morte. Mas isso vai

  • mudar.Oclienteperguntou-secomoseriaorostodeGeigerquandosorria,se

    quealgumavezfaziaisso.No vamosmat-lodisse o cliente.Precisamos apenas saber

    paraquemelevendeuosdados.Ohomemencarou-ocomaquelesolhosquenuncapiscavam.Maselenosabedisso.Geigerdeixouasala.Oclientesuspiroueolhoudenovoparaoespelhoe

    paraoabismonegro.Ascaixasdesomtransmitiram,comotrmulasasasdeanjos,avozsuavedeGeiger.

    Matthew,estnopoo?Vocpoderesponder.AvozdeMatthewsooucomolixasobremadeiraspera.Sim.Estou.timo.EntoMatthewcomeouagritar.Osomfoitoaltoquesaiudistorcido

    das caixas. Os anjos dissiparam-se. O cliente deu meia-volta e pegou ostampesdeouvido.

  • PARTEUM

  • 1s quatro da manh, parado porta na varanda dos fundos, Geigerobservavaumaaranhatecersuateia.

    Chovia.O cu, cinza claroenublado,pareciaamarrotadonohorizontecomoumacolchavelha.Umagotadguapendiaemum fiodeumanovateiaqueseestendiadobeiralsobreavarandaatabalaustradademadeira,poucomaisdeummetroabaixo.Abrisatocavaofiocomoacordadeumviolo;agotaoscilou,massemantevefirme.Emseguida,aaranhadesceu,ocorpovolumosobalanando,ecomeouateceroutrofio.

    Maiscedo,GeigerestiveradigitandosuasanotaessobreasessocomMatthew.EnquantoSgt.PepperchegavaaeleatravsdasHyperionsdedoismetros, Geiger sentia a esplndida resposta de graves, alcanando at oestalido da palheta da McCartney nas cordas do baixo. O gato, como decostume, estava deitado na mesa, estendido na extremidade direita dotecladoe,quandopassavamaisdoquealgunsminutossemseracariciado,levantavaumadaspatasdianteirasparadar tapinhasnamodohomem.Seu ronronar ficavamaisaltoquandoeraacariciadona cicatrizacimadoolho esquerdo que perdera. Geiger no conhecia as circunstncias doferimento; o animal j estava assim quando apareceu na varanda dosfundos,trsanosantes.Tampoucosabiaonomedoanimaloudeondeelevinhaoquesignificaqueosdoiseram,decertaforma,parecidos.

    Geigersemprefaziaanotaesnamesmanoitedeumasesso,enquantoas aes e reaes estavam frescas na mente. Descobriu que at umas

  • poucashorasde sonoeramcapazesdeborraros limitesdamemria.Nodiaseguinte,seuparceiro,Harry,enviariaatranscriodovdeodasesso,qualGeigeririaassistir,inserindocomentriosempontosrelevantes.

    Trabalhava sentado em uma cadeira de escritrio ergonmica,produzida especialmente para ele. Mesmo assim, precisava se levantar acadaquinzeminutosouapernaesquerdacomeavaaformigartodaatosdedos dos ps. Ao longo dos anos, havia consultado trs especialistas arespeitodoproblemaumdelesclassificara-ocomopmorto,mastodos afirmaram a mesma coisa: a nica sada era uma cirurgiareconstrutiva. Geiger respondera que ningum chegaria perto dele comnenhumtipodelmina,pornenhummotivo.Logodepoisdeoexaminar,osmdicoscompreendiamporquesesentiaassimemrelaoaoassunto.

    Eleseguiuatavarandadosfundosparaselivrardadormnciaefumarumcigarro.Nofumavadentrodecasa.Descobriuqueocheirodefumaaacumulada afetava sua concentrao. Meses atrs, quando ainda era umnovatonodiv,oDr.CorleyrastrearatalreaoatopaideGeigereseusinfinitosCamels.At ento, aquelahavia sidoanica imagemdopaiqueCorleyconseguiraextrairdeleemumsonho,Geigertinhavistoorostoptreo do pai olhando para ele do alto, com um cigarro preso entre oslbios carnudos, a fumaa saindo de suas narinas em espirais. Geigerrecordara-sedeterpensado:EssaaaparnciadeDeus.Squemaisalto.

    Elesentiuogato,queacabaradepassarpelaporta,esfregar-seemseustornozelos. Pegou o animal no colo e pendurou o corpo felpudo sobre oombro.Almdo cantinho confortvel na escrivaninha, aquele era o lugarpreferidodoanimal.

    Geiger acendeu um Lucky Strike e observou a aranha. Cheia dedeterminao, ela desempenhava sua tarefa singular com inmerasrepeties perfeitas. Imagine um carpinteiro capaz de cuspir pregosproduzidosnos intestinos edeusar asmos comomartelos. Imagineummsicocujoinstrumentofosseoprpriocorpo.Eleseperguntousehaveria

  • outrosertodiligenteeartsticonacriaodeumaparatoparamataralmdohomem.

    Geiger era um apstolo, um escravo das particularidades. Estavaconstantemente desmembrando, destilando e definindo partes do todo,porquenaOIobtenodeinformaesosdetalheseramcruciais.Seuobjetivo era aperfeioar o processo at transform-lo em arte, o queexplicavaporquecadacoisaqueaconteciaapartirdomomentoemqueeleentrava na sala tinha o prprio grau de significncia e exigiareconhecimento. Cada expresso facial; cada palavra dita e momento desilncio; cada tique, olhar emovimento. D a ele quinzeminutos na salacomumJonesqualquere,noveemcadadezvezes,elesaberqualserareao a uma ao especfica antes que a pessoa a execute: medo,confronto, desespero, arrogncia, negao. Havia padres, ciclos, refrescomportamentais. Bastava prestar muita ateno para ver todos eles.Geigeraprenderaissoouvindomsica;passaraacompreendercomocadanotadesempenhaumpapelnotodo,comocadasomafetaecomplementaorestante.Eracapazdecantarolarcadanotaemmilcomposiesmusicais.Estavamtodasemsuacabea.Namsica,comonaOI,tudoimportava.

    Aindaassim,mesmocomosincontveisfatoresquepoderiamentraremjogo, avisodeGeiger sobreo seu trabalhoera relativamente simples.OclienteeoJonesquasesempreoapresentavamumdentretrscenrios:

    N1:Roubo.OJonesroubaraalgodocliente,quequeriadevoltaoquefoiroubado.

    N2:Traio. O Jones cometera umato de deslealdade ou traio e ocliente desejava descobrir as identidades de quaisquer cmplices e aextensodospotenciaisdesdobramentos.

    N3:Necessidade.OJonespossuainformaesouconhecimentosqueoclientedesejavaobter.

    Todosossereshumanossodiferentes,masemumnmerolimitadode

  • formas.AstranscriesdeGeigerprovavamissorepetidamente.Desdequeiniciara tal trabalho, ele preenchera vinte e seis fichrios pretos de dezcentmetros, que agora repousavam alinhados sobre a escrivaninha. Eracapaz de cruzar referncias nos dados de acordo com a profisso, idade,religio,posseseomais importanteasalegaes.Osfichrioseramumaenciclopdiasobrerespostasereaesaintimidaes,ameaas,medoedor.Masaspginasnocontinhamnenhumdadorelativomorte.NuncaocorreraaGeigerdeumJonesmorrerduranteumasessonenhumavezemonzeanos.ComodiriaCarmine,elebeiravaaperfeio.

    Seusclientesvinhamdosetorprivado,domundocorporativo,docrimeorganizado,dogoverno.Hquatroanos, chegaraa trabalharduranteumtempoemumaprisosecretaparaespiesdaCIA.Elesacreditavamqueosprprios mtodos eram avanados, mas Geiger vira imediatamente queestavam desatualizados; eram homens que arrancavam asas de moscasenquanto falavam sobre salvar o mundo. No ramo da OI, no haviasubstitutoparaahabilidade.Patriotismo,religio,crenaferrenhanocertoe errado eram coisas que deveriam ser deixadas de lado. No fim, haviamentiraseaverdade,eoespaoentreambaspoderiasertotnuequenohavia lugar para integridade e convico. Os agentes na base secretaficavam nas sombras, observando-o enquanto trabalhava; para Geiger,pareciam homens das cavernas vendo-o acender uma fogueira com umZippo.

    Ele era um estudante da arte e historiador. Assim como os fichriospretos continhamo conjunto doprprio trabalho, ele era um compndiovivodoofcio:suasorigens,bases lgicas,metodologiaseevoluo.Sabiaqueohomemutilizavaatorturasemculpapelomenosdesde1252,quandoo papa Inocncio IV autorizou seu uso para lidar com os hereges. Desdeessa sano oficial, tempo e esforos incalculveis foram investidos nacriaoenoaperfeioamentodemtodosparainfligirdor,nabuscadoqueum indivduo ou um grupo considerava informaes indispensveis ou a

  • verdade.Aprticanopossuaqualquerviscultural,geogrficooutnico.A histria mostrava que, se houvesse ferramentas rudimentaresdisponveismartelos,serras,grosasemateriaisbsicosmadeira,ferro, corda, fogo , pouco mais era necessrio. E, com algumconhecimentosimplesdefsicaeengenharia,vocestavanonegcio.

    Geigeriniciaraaprpriaformaoestudandoosinstintoseasescolhasfundamentaisdospioneiros.Certosmtodosetcnicaseramespecialmenteeficientes,incluindo:

    Objetosafiados. A Cadeira de Judas provou ser to eficiente durante aInquisio que a maioria dos pases europeus comeara a customizarversesprprias.CulladiGiuda,Judaswiege;noimportavaonome,eraumassento piramidal sobre o qual o Jones, sustentado por cordas, eraempoleirado.

    Aprisionamentoepresso.ADamadeFerro,umsarcfagoverticalquecontinha estacas de ferro afixadas em seu interior e aberturas para ainsero de vrios objetos afiados ou pontiagudos durante uminterrogatrio.Tambmera,atcertoponto,umaancestraldoprocessodeprivaosensorial.Equipamentoscomoobuskin,aBotaEspanholaeaBotaMalaiarecorriamcompressoeaviolentaspancadasparaquebrarps;osanjinhoseramlimitadosadedos,separadamente,masuminterrogadorqueos carregasse consigo era capaz de transformar qualquer lugar em umacmaradetortura.

    Algemas e esticadores. A roda foi um avano tecnolgico, empregandocilindrosgiratrios, engrenagense alavancas, e viabilizandoa capacidadedeaumentaroureduzirrapidamenteadorfsicaempouqussimotempo.

    O afogamento simulado foi outra criao dos interrogadores daInquisio. Eles compreenderam que, ainda que submergir um Jones nagua pudesse ser eficaz com o passar do tempo, o afogamento simuladodisparava o reflexo de engasgo quase instantaneamente, aumentando omedodamorte.

  • Calor intenso sempre havia sido um elemento bsico do ofcio para otorturador,daaexpressoandarembrasas,assimcomoadilaceraoeoesfolamentodacarne.Tambmhaviaumasriedeferramentasteis,dassimples (comoalicatespara arrancarunhas) s complexas (comoaPera,uma ferramenta dobrvel de ao, e muitas vezes requintadamenteentalhada,queerainseridanavaginaounonuse lentamenteexpandidacom a ajuda de uma manivela presa a um parafuso). O catlogo deferramentaseraextenso:aRoda,aPatadoGato,oEsmagadordeCabeas,oTubo do Crocodilo, o Picquet, o Strappado. Todas essas e outras foraminventadasantesdaRevoluoIndustrial,eGeigerpassaraaentenderqueaprticadetorturanoeraumaaberrao.Porconveninciaepelabuscadeinformao,ohomemsempreestevedispostoapassarporcimadesuasprpriasleisetrairsuascrenasparalegitimaratorturadaquelesquenoascompartilhavam.

    Depois de muito estudo e reflexo, Geiger desenvolvera umprocedimento operacional padro. Trabalhava somente atravs dereferncias. Se uma empresa ou indivduo necessitasse de seus servios,era levado a seu site e recebia a senha. Harry, seu scio, avaliavaimediatamenteasolicitao; senovissenenhum impedimento,pediaaoclienteempotencialqueenviassealgumasinformaespreliminaressobreoJones.Depois,comeavaainvestigare,dentrodedoisdias,elaboravaumperfildetalhado.Harryeraumhomemirritadio,masnohavianingummelhornoquefazia.EleeracapazdedescobrircoisasqueningumsabiasobreumJones,nemocnjuge,omelhoramigo,ogoverno,nemmesmooprprio. Depois de ler o dossi, Geiger informava ao scio se o trabalhoseriaaceito.

    Ele tinha trs regras. No trabalhava com crianas, apesar de Harryjamais ter recebido tal solicitao. No trabalhava com pessoas quetivessemsofridoproblemascoronriosnopassado.Enotrabalhavacompessoas com mais de 72 anos Geiger havia analisado estudos que

  • demonstravamqueo riscode infartosdomiocrdioeAVCsaumentavamparanveisinaceitveisdepoisdessaidade.

    Porm, havia uma rea proibida: o mais rpido possvel. Acompreenso de Geiger para tudo importa era que um Jones no asomaperfeitadesuaspartes.Portanto,seumclientedesejasseummaisrpido possvel um trabalho feito s pressas , Geiger costumavarecusar.Haviaelementosdemaisaseremassimilados:linguagemcorporal,reao verbal, tom de voz, expresses faciais, um fluxo constante deinformaesquemoldavamsuasescolhasedecises.Umerrodeclculoouuma concluso incorreta, no importando se fosse pequena, poderiaarruinar uma sesso ou at abrir um buraco em seu universo particular.Era por isso que ele preferia trabalhar de dentro para fora e seguir umplano de jogo baseado na pesquisa de Harry. Alguns profissionais, comoDalton,trabalhavamdeforaparadentroerecorriamaumaaplicaomaisdireta e firme de brutalidade. Mas com tal abordagem, o cliente nemsempre podia ter certeza das condies em que o Jones se encontrariaquandoasessoterminasseapesardeque,emalgunscasos,aquilonoeraumproblema.

    Geiger, como todos no ramo de OI, ouvira diversas histrias sobreDalton.AmaisfamosadatavadaTempestadedoDeserto,quandopoliciaiskuwaitianos capturaram um dos capangas de Saddam cruzandosorrateiramente a fronteira. Trabalharam no iraquiano durante umasemanaenoconseguiramnada,entochamaramDaltonelhederamcartabranca.Aqueletipodesessoerachamadodelimpro,umaabreviaodelibertao improvvel, o que significava que provavelmente seriaimprudente permitir que o mundo voltasse a ver o Jones depois que ointerrogatrio fosse concludo.Assimque foi feita a primeirapergunta, oiraquiano sorriu e Dalton decepou um de seus lbios com um estiletecircular. Depois, comeou a trabalhar com uma pistola de pregospneumticaeoJonesrevelouaointerrogadoroqueelequeriasaber.A

  • histriapodeserapcrifa,masfezacarreiradeDalton.NoramodaOI,nofaziamal ter tal reputao a de que seria capaz de qualquer coisaporque amaioria dos clientes via o Jones como o inimigo e, na verdade,queriamaisdoqueumacompensaoouesclarecimento.Elesqueriamquefossempunidoscommuitador.

    Para Geiger, poltica, negcios e religio eram os trs dedosremanescentesdeumpunhoferidoembatalha.Noentanto,averdadeeraumaarmaqueatumamodeficienteaindaconseguiaagarrarebrandir.Eraumacommodity notavelmente verstil; podia ser negociada, ajudar aserviraalgumpropsitoougerarlucro.Maseraumelementoinstvelcommeia-vida curta, de modo que deveria ser utilizada logo, antes queexplodissenacaradocliente.Desdecedo,Geigeraprenderaqueaverdadedeixara de ser sagrada era apenas o itemmais visado nomercado, equalquer um no ramo de OI que acreditasse que atuava dentro dosparmetrosdealgumcdigovirtuosoestava,nomnimo,seiludindo.

    OgatosaltoudoombrodeGeigerparaabalaustradadavarandaepartiuemsuacaminhadanoturna.Semdvidaestariadevolta lpelascincodamanh;orelgiobiolgicodacriaturaeraperfeito.

    A aranha conclura o trabalho noturno. Uma mariposa grande e comlistras jestavapresabemnocentroda teia,debatendo-se furiosamente,semsaberquequantomaistentavaselivrar,maisapertadosficavamseusgrilhes. Movendo-se sem pressa, a aranha desceu da quina superiordireitada teia.Nodemonstravaqualquer sensodeurgncia, comoseosfinsfossemsecundriosaosmeios,earefeiomeramenteumsubprodutodaartequeacapturara.

    GeigeracendeuoutroLuckye,quandoaaranhaalcanouseuprmio,eleaproximou a chama do isqueiro de um fio da teia. Ela, a mariposa e aaranhadesapareceramemumalabareda.

    Ele decidiu no pensar sobre sua ao naquele instante, e entrou denovonacasa.Falariasobreelaamanh,comCorley.

  • 2Paradoprximoaoparapeitodesuavarandanodcimooitavoandar,oDr.Martin Corley tragou o Marlboro Light que fumava entre as sesses, efranziu a testa.Desdequehavia trocado amarca comumde cigarropelaverso light, tal conduta tinhase tornadoamais recentedeumasriedeatosdeautonegaopoucosatisfatrios,designadosaafastar incursesarespeitodamortalidade.Nohaviasidoomarcodos60anosqueaguaraseufocoeoafastaradeantigoshbitos,esimasconsequnciasdodivrcio.Ocasamentoduradouroeseusincontveisrituais,aindaquedesgastadoseestticos, forneceram uma rotina entorpecente, uma homogeneidade quemascaravaapassagemdotempo.DesdeapartidadeSara,eraasolidoqueinformava a ele, diariamente, sua idade e o potencial para maisdeteriorao.Primeiro,veioamudanapara leitecom1%degorduranocaf. Depois, veio a Coca Diet no lugar da normal, substituindo o sabortradicional pelo qumico, que permanecia na boca. Em seguida, a AmstelLight,queexigiadeleumaespciedeautoenganaoparaseconvencerdequeestavabebendocerveja.E,agora,atragadasemprazerdafumaarala,com a espera pela acelerao da pulsao que no ocorria mais. Sem asatisfaoresultante,oatodefumarfoidesmascarado,setornandooquerealmenteera:umvcioperpetuadoporumamenteindolentedemaisparaexplorarasiprpriacomamesmadilignciaquededicavaaoterritriodasoutras.

    Olhando para baixo, para a rua 88 Oeste, Corley viu Geiger dobrar a

  • esquina e se aproximar da entrada lateral do prdio. Ele telefonaramarcandoumaconsultaoitomesesantes,depoisdeencontraronomedeCorley listado em um site sobre psiquiatria. Na primeira sesso, haviareveladoomotivodesuapresena:doismesesantes, tiveraumsonhodecomplexidadeedramapicos,seguidoporumaenxaquecacolossal.Desdeento, comoCorleyhaviadescoberto, o sonho repetira-se a cadaduasoutrssemanas,compoucasvariaes,nopalcodasuamente,eemcadacasouma enxaqueca excruciante vinha como o segundo ato. Em todas assesses,Geigerhaviasidoprecisoeisentodefalsidade,umfornecedorderelatos sem qualquer emoo. Corley considerou o novo paciente umacontradiointrigante,oequivalenteaumarochainteligente.

    No fim da primeira sesso, quando Geiger decidira levar o processoadiante, ele fizera duas exigncias. A primeira era que falaria somentesobre o sonho e no sobre seu passado ou sua vida fora das paredes doconsultrio.Asegundaeraquedeveriareceberumachaveparaaentradadeserviodoprdio,paraquenoprecisasseatravessarosaguo.

    Corley tinha se recostado em sua cadeira, cofiando abarba grisalha, eperguntouporqu.

    Porque sei o que funciona melhor para mim havia respondidoGeiger.

    FoiaprimeiradasinmerasvezesqueCorleypresenciaraumtomqueGeigerusava com frequncia.Apesardeuniformee impassvel, o tomdevoz era ancorado em uma certeza que fazia com que parecessedesnecessriodar continuidade discusso, atmesmo sem sentido. Suaprimeira regra, limitando toda a discusso aos eventos de ummundo desonho,significavarestringirseveramenteoslimitesteraputicoshabituais,easolicitaodeumachave iamuitoalmdasregrasaceitasnenhumpacientejamaisfizeratalpedido.MasCorleyhaviaconcordadocomasduasexigncias. O sonho, prova de algum distrbio radical do qual o homemclaramentenotinhaconscincia,agiracomogasolinaderramadasobreas

  • brasasplidasdapaixodeCorley.EledesejaraqueGeigerretornasse.Davaranda,observouopacientedestrancaraportadeservioeentrar.

    Depoisdejogarocigarroemumvasodebarrosemflores,elecaminhoudevoltaparaoconsultrio.

    Corley olhou para o bloco de anotaes no colo. Apenas recentementecomeara a tomar notas durante as sesses. No passado, fizera algunsregistrosdepoisdeatendercadapacienteeosdescartaranoite.Umdia,comeouarepararempequenasfalhasnoturnasdememria,umalacunasem importncia ao se lembrar de detalhes. Ele experimentara ginkgobiloba,mashaviadesistidoporquesempreseesqueciadetom-la.

    Bemdisseele.Ateiaestavapronta,umamariposapresa,evocincendioutudo.Oquevocachaquesignificaisso?

    Geigerestavadeitadonodivolhandoparaasprateleirasde livrosnaparede.Conheciadecorassilhuetasnaestantecadattulo,autor,corefonte. No centro inferior dela havia uma fotografia emoldurada de umcasaro em um amplo jardim entre rvores majestosas. Suas linhasmarcantes e o telhado anguloso chamaram sua ateno. No passado, eleperguntaraaCorleysobrea casaeobtivera respostascurtas.TudooqueGeigersabiaeraquetinhacemanosdeidadeeficavaemColdSpring,NovaYork,acercadeumahoradeviagem.

    O que acho que significa isso? perguntou Geiger. No tenhocerteza.Oquevocachaquesignifica?

    BemcomeouCorley.Podeestarrelacionadoacontrole.Poder.OsdedosdeGeigertamborilaramnodivemcombinaesdesequncia,

    velocidadeeritmoquevariavam.ParaCorley,aquelesomhaviasetornadopartedassesses,umacompanhamentopercussivosuaveparaaspalavrasditas.Duranteosprimeirosquatromesesdeterapia,Geigertelefonavaparamarcar uma consulta somente aps um evento de sonho-enxaqueca, eaquele era o nico assunto discutido. Contudo, aos poucos, as sesses

  • irregulares evoluram para uma visita, s vezes duas, por semana e,ultimamente,opacientepareciamenosrigorosoquantoprimeiraregra.svezes,comofizerahoje,atchegavaanarrarumeventodavidareal.

    TalvezestejarelacionadoacompletudedisseGeiger.Interessante.mesmo? Creio que sim respondeu Corley. Voc poderia ter dito

    destruio,oquepoderiaserconsideradooopostodecompletude.Boaobservao,Martin.Antes de Geiger, nenhum paciente jamais se dirigira a ele pelo nome,

    mesmo depois de trinta anos de trabalho. Na primeira vez, a atmosferatranquilaentreelessedesfizeraempequenasondas,deixandoopsiquiatradesconcertado e irrequieto na cadeira. Aquilo agitara algo dentro dele, aintimidade no forada do gesto to contraditrio inescrutabilidadebsica de Geiger. Corley jamais disse nada a respeito e, por fim, haviaaceitadoaquilocomopartedadinmicaincomumentreeles.

    TudoumprocessodisseGeiger.Princpio,meio,fim.oquefuncionamelhorparamim.Vocsabedisso.Completude.

    O olhar de Geiger se voltou para o teto. Anos antes, houvera umainfiltrao.Oolhardeleerasempreatradopelamudanasutilnatexturacausada pelo reparo. Ele sabia exatamente como a tarefa havia sidoexecutada, passo a passo, porque ele mesmo j a realizara centenas devezes.

    Porqueachaqueestamosfalandodaaranha?perguntouCorley.Geigerdobrouojoelhodireitoeergueulentamenteapernaatopeito.

    Corleyaguardouoestalofamiliaresuavedaarticulaodosacro.AaranhahaviaterminadodetecerateiadisseGeiger.Portanto,

    porqueaincendiei?Notenhocerteza.Porqueestnomeuterritrio? E somente voc decide quando algo est concludo em seus

    domnios?

  • Reidetudoquevejo?UmsomdelicadoescapoudeGeiger.Poderiatersidoumsuspiro.Essaafaladealgum,no?

    RicardoIII?indagouCorley.YertletheTurtle?Oqu?Olivroinfantil.Corley aguardou, descendo as pontas dos dedos por uma bochecha

    barbadaedepoispelaoutra.MasosilnciodeGeigereracomoosomdeumaportasendofechadacomfora.

    Voc se lembrade algum livro infantil?perguntouCorleyOucantigas?Algumacoisavemsuamente?Talvezbrinquedos,ou...

    No.Novemnadaminhamente.Com o tempo, o mdico havia comeado a imaginar Geiger como um

    menino perdido e perturbado que, de alguma maneira, permaneceradestemido.Comoossonhoserampraticamenteonicocontextodentrodoqual Corley podia trabalhar, ele no sabia quase nada sobre o homem epodiasomentetentaradivinharoquehaviaalmdos limitesdassesses.Aindaassim,ahistria sobreaaranhaconvencera-odequeacrianaemGeiger estava enterrada sob tanto entulho traumtico que era mais umfantasmadoqueumserreal.svezes,Corleysentia-secomoummdiumemumasessoespritatentandocontatarosmortos.

    Eleolhouparaorelgio.Tinhasidooltimopresentequeaesposalhedera. Gravado na parte de trs haviaPara onde vai o tempo? Com amor,Sara.

    Nossotempoestacabandodisseele.Portanto,permitaqueeufaaumaobservaoparaquevocpensearespeito... Sobreaaranha.Eleajeitouoblocodenotassobreojoelhoeescreveuemptico?Talvezincendiarateianoestejarelacionadoacompletudenemadomnio.Elereparou que a dana dos dedos do paciente tornou-se mais intensa. Talvezvocnoquisessequeaaranhamatasseamariposa.

    Os dedos de Geiger pararam e ele se sentou. Corley observou seus

  • msculos trapzios excessivamente desenvolvidos moverem-se sob otecido.Suascamisaseramsempredemangascompridas,dealgodopretoescovadoefechadasnopescoo.

    Geiger levantou-se e girou a cabea para a esquerda e para a direita.Corleyouviudoisestalidos.

    MaterialparareflexodisseGeiger.Econtinuou:Medigaumacoisa,Martin.

    Corleyjesperavaopedido.Eletornara-separtedoprocesso,partedoritualde sadadeGeiger.Geralmente, era algo comoMedigauma coisa...seguido por uma pergunta, ou Diga-se de passagem... e uma notciaaparentemente insignificante seria proferida. Corley sabia que essasltimas interlocues ajudavam o paciente a produzir um encerramentoparaumprocessoque,porsuaprprianatureza,nopossuafimdefinido,portanto lhe concedia, dependendo do teor da sesso, um sentimento decontroledespedida.

    Vocvaicomfrequnciaparasuacasa?perguntouGeiger.NorespondeuCorley.Porqueno?Corleycolocouoblocodenotassobreaescrivaninha.Precisamospararagora.

    Para Geiger, a caminhada matinal de ida e volta para o consultrio deCorleyerasempreumbanqueteparaossentidos.ACentralParkWesterauma vista caleidoscpica: txis fazendo fintas no trnsito como pesosmdios de pele amarela; nibus morosos e deselegantes fumegando echiando; ces e as pessoas que os levavam para passear, fungando eencarando uns aos outros; corredores alongando as pernas em sinaisvermelhosenquantoaguardavamparaentrarnoparque;homenscompeleolivcea arrastando-se pelas sarjetas, puxando carrocinhas de cachorrosquentes e de souvlaki atrs de si como penitentes debilitados. Tudo era

  • puroestmuloparaGeiger,umataquedecores, formas,sons,movimento.Nemosmaissutissons,coresegestospassavamdespercebidosnemeramignorados, mas nenhuma reao secundriamais sofisticada ocorria. Eleabsorvia tudo,porm,aindaassim,noretinhanada.Era tantoumvcuocomoumpoosemfundo.

    Elemorava emNova York havia quinze anos, e sua chegada cidademarcavao inciodanicavidadaqualconseguiase lembrar.Nodia6desetembro de 1996, Geiger nasceu como um homem quase totalmentemaduro,deidadeindeterminada,nomomentoemqueomotoristadeumGreyhound o sacudiu pelo ombro quando ele dormia em um banco naltima fileira de um nibus que acabara de chegar ao terminal PortAuthority,emNovaYork,nocruzamentodarua42comaOitavaAvenida.Ogaroto/homemsupsqueeledeviaestarnofimdaadolescncia,mas,foraisso,eratoestranhoparasimesmoquantoaspessoasporquemcruzavanas caladasda cidade. Ele eraum corpodolorido e cicatrizado, amentelivredepensamentos,umamquinahumanasemumcartodememria.Funcionavasomenteporinstinto.

    Nodia seguinte, enquanto caminhavapelas ruasdoHarlem, eleparouparaobservarumaobra,umdostrabalhadoresserravaumanovamoldurade janelaparaumedifciodecrpito feitodetijolosmarrons.Uminstantedepois, atravessou a entrada semporta epediuumemprego. Foi umatogenuno, impensado, e quando o chefe da equipe perguntou se sabiatrabalharcomcarpintaria,elerespondeuquesim,masnosabiaporqu.

    Ele trabalhara com reformas durante quatro anos jamaispermanecendomuitotemponamesmaempreiteira,optandoporturnosnoite,noafiliadosasindicatos,principalmentenoHarlem,noBrooklyneno SoHo, dormindo clandestinamente nos pores dos prdios ondetrabalhava, economizando. Todas as empresas pagavam emdinheiro nodeclaradonadadenmerosde identidade,nadade impostos,nadadepapis que pudessem ser rastreados. Inicialmente, havia usado o nome

  • Gray,depoisBlack.Umdia,passandoporumalivrariaBarnes&Noble,viuumlivrosobreaartedeH.R.Giger.Asimagensbizantinasencantaram-no,assimcomoonomecomosdoisgs.Porumaquestodesimetriavisual,eleacrescentouume,tornando-se,portanto,Geiger.

    Certa noite, depois de terminar o turno de trabalho emumprdio detijolosmarrons,emWilliamsburg,Geigerdormiraemumespaosobopiso,no poro do prdio. Foi despertado s trs da madrugada por passosdescendoosdegraus.Permaneceudeitado,observandoosfeixesdeluzdaslanternas danarementre as estruturas de cinco por dez centmetros, aomesmo tempo que ouvia dois homens discutirem o trabalho enquanto oexecutavamdeviamcolocarcabosatrsdeparedesdegessofrescoparaainstalaodeumaescuta,quetentariagravarconversasincriminatriasarespeitodecertoCarmineDelanotte.

    OuvidizerqueDelanottepossuiumadezenadessesdisseumdoshomens.

    Meucunhadotrabalhanoramoimobilirioafirmouooutro.Eledizquetudoaquivaivalerumafortunaquandoexpulsaremoslatinoseospretos.Comprarbarato,reformar,vendercaro.

    Essegrampoperdadetempo,sabia?Delanotteespertodemais.Talvez.Masouvidizerqueestoprestesadobrarumdos tenentes

    dele.Sim,tudobem.Elestentamedobramummontedeles,masamaioria

    nofala.Jogamtudoquetmcontraoscaras...Fodemcomascabeasdeles,fazemchantagens,svezesatchegamaespanc-los.Osputosnoabremaboca.

    Deveserumtrabalhomuitoestranho.Oqu?Tentarfazerpessoasfalarem.Resolvercasosdifceis.Vocnopode

    simplesmenteencheroscarasdeporrada.precisosermaissutilqueisso,entende?

  • Mas existem caras que sabem fazer isso. Interrogadores,especialistas...Elessabemcomofazeraspessoasfalarem.

    Enquanto os dois homens tcnicos do FBI, presumivelmente seguiamconversando,Geigerpermaneceudeitadonaescuridoesentiuonascimentodealgo.Eraumacoisasempeso,queflutuavalivremente,maspoderosaobastanteparaconcentrarseus instintosemumadireoeemum curso de ao. J sentira tal desabrochar e aquela atrao uma vezantes; paradodiante do prdio de tijolosmarrons dilapidadonoHarlem,ummpetocresceradentrodelecomosebrotassedeumnvelmolecular.Estava acontecendo novamente, naquele momento, uma espcie dechamadogentico,umasensao topoderosae isentadeanlisequantoumaavalanchedestruindotudoemseucaminho.

  • 3HarryBoddicker levantouoolharparaos estais resistentes e fortementeiluminadosdaPontedoBrooklyn,edepoisparaumhelicpteroconformeele pairava sobre o East River, zunindo no cu de vero azul-arroxeadocomoumvaga-lumegigante.

    Olhouparaavanazul-escuraestacionadasoboacessodaFDR.OJonesestavanatraseira,amordaado,amarradoepresocomfitaadesiva,dentrodeumbademetal.Eraumdos intermediriosdeCarmineresponsveispor carregarodinheiro ilegaldeumapessoaparaoutra.Quinzeminutosantes,quandotrsdoscapangasdomafiosofizeramaentrega,informarama Harry de que, quando pegaram o sujeito capturaram-no enquantocomiaanamoradanoapartamentodelaprecisaramagircomviolncia.Deixaram-nocomosolhosroxosetalvezonarizquebrado,almdeumpardecostelasfissuradas.

    Agora, Harry precisava telefonar para Geiger. Na ltima vez querecebera um Jones danificadoum gerente executivo de ProvidenceGeiger tinha falado sobre estados necessrios, origens comprometidas epotencial reduzido, comsuavozsuave jamais seelevandooubaixando,edepoiscancelouoservio.ComoCarminereceberiaodescontohabitual,otrabalhovaliaapenas12mildlares,masaideiadeperdersuaparte,3mil,correu diretamente do crebro de Harry para seu estmago e bombeouuma bolha de gs amarga que subiu pelo esfago. Eles no haviam sidorequisitadosparanenhumtrabalhohcincodias.Harry tomoumaisdois

  • anticidos. Fosse l o que tivessemacrescentado misturaparecida comgiz,paratornaroprodutoantigonovoeaprimorado,nofaziadiferenaparaseuestmago.Elecontinuavaincomodandoerosnandocomosempre.

    Afastou-se umpoucoda van e digitou furiosamente no celular. Geigeratenderia depois do terceiro toque. No um ou dois, tampouco quatro.Sempretrs.

    Oque,Harry?atendeuGeiger.Sobrehojenoite.Humproblema.Produtodanificado.Detalhes,Harry.Harrysuspirou.Umolhoest fechadode to inchado.Onarizpodeestarquebrado.

    Costelas.Depoisdeumabrevepausa,Geigerdisse:Mudanadelocao,Harry.Leve-oparaoBronx. Certo disse Harry, fechando os olhos de alvio. Geiger estava

    dispostoaaceitaroservio.EusepropofolemvezdeBrevital.Doismiligramas.Certo.Propofol.Doismiligramas.

    Quando Harry telefonou, Geiger estava no quintal fazendo flexes comapenas um brao: cinquenta com o esquerdo, cinquenta com o direito,depoisquarenta,depoistrinta,abrisasecandoosuoremseucorponu.Oquintal era um osis verde de 7m 5m no centro de uma densa reaurbanadeconcretogeomtrico, tijoloseasfalto.Opedaodegrama, comumbancodecarvalhoeumarvoremodestabordonoruegus,eracercadoem trs lados por uma cerca alta demadeira, queGeiger construra commais de cem tbuas verticais demais oumenos trsmetros de altura. Oladomaisextensodacerca,opostoaosfundosdacasa,estendia-sedolestepara o oeste, e ele cortara o topo de cada tbua at um comprimentoespecficoedepoisrasparaouentalharacadaumaparaque,quandovista

  • dosdegrausnosfundosdacasa,todaaextensofosseumarplicaperfeita,em escala menor, da silhueta dos edifcios que se erguiam diretamenteatrsdela.

    Mais cedo, Geiger havia estudado o arquivodo Jones e construdo emsuamenteumpanorama.JohnJackieCatsMassimoumdoshomensdeCarmine, e duro em todos os aspectos tinha 42 anos, era corpulentomas musculoso e estava habituado violncia fsica. Na juventude, foraesfaqueadonopeitoe levaraumtirodeescopetanacoxa.Eamavagatos:tinhaseisdeles.Mas,agora,Massimojsofriadedorfsicaepoderiaestarcomavisocomprometida,demodoqueGeigerteriaquereorganizartudo:asaladesesso,astticas,ametodologia.Contudo,nemcogitoucancelarotrabalho,poisnofariaaquilocomCarmine.

    CarminederaaGeigerseuprimeirotrabalhoemOI,onzeanosantes.NodiaseguinteaoqueentreouviraaconversaentreostcnicosdoFBI,Geigerfoi a um cybercaf e encontrou uma foto de Carmine Vincent Delanotte,renomadochefodamfia,almdoendereodeseurestaurante,LaBellaRistorante,emLittleItaly.LeudiversosartigossobreCarmineedescobriuqueeleeraumaespciedevisionrio.Nocomeodadcadade1980,haviacomeado a adquirir prdios de tijolos marrons decrpitos em diversosbairros, praticamente de graa. Aparentemente, agarrara todas aspossibilidadesascasasforneciamaeleumafachadalegtima,meiosparalavar dinheiro e fechar contratos ilegais e, quinze anos depois, umaenxurrada de dinheiro comeou a fluir em sua direo. Um dos artigoscitava uma fonte no FBI que alegava que, nos ltimos tempos, Carmineganhava mais dinheiro no ramo imobilirio do que na agiotagem e nacorretagemdeapostasjuntas.

    Naquelanoite,GeigerentrounorestaurantedeCarmineeentregouaomatreumenvelopelacrado.

    EntregueessacartaaoSr.DelanottedisseGeiger.Talvezseusmodos tenhamexercidoum impacto imediato,ou talvezo

  • matrecostumasseentregarenvelopesaoproprietrio;dequalquerforma,ele pegou a carta sem dizer uma palavra sequer e afastou-se. GeigerreparouemCarmine,queestavaemumamesano canto com trsoutroshomens. O brilho de seus olhos azuis e do cabelo com traos grisalhoscintilavam a cada inclinao da cabea, como se uma corrente alternadapassasseatravsdele.

    Omatrereclinou-separaseaproximardopatro,sussurrouaoouvidodele e lhe estendeu a carta. Carmineolhoupara a oferta, depois se viroupara Geiger. O olhar frio avaliou-o, e o visitante viu o ar vazio de noreconhecimentodarlugaraumlampejodecuriosidadenosolhosgrandesecerleosdohomem.Eleabriuoenvelopecomumfloreiodaunhapolidadopolegar, retirou a nica folha de papel e a leu. Depois, dobrou-ametodicamente, rasgou-a ao meio, em seguida rasgou-a pela segunda eterceira vezes. Colocou os pedaos de papel emuma xcara de porcelanasobreamesa,acendeuumpalitodefsforoequeimou-os.

    Os lbios de Carmine moveram-se e as palavras fizeram com que osoutros se movimentassem. O matre afastou-se, os trs homens selevantarame ficaramdep atrs dele, contra umaparededecorada comtecido brocado vermelho-sangue. Carmine olhou novamente para Geiger,ergueudoisdedosgrossoseosbalanou,dandoaovisitanteumcomandoimperialparaqueseaproximasse.

    Quando estava a um metro de distncia, Carmine apontou para ele.Geiger parou. O chefo inclinou-se sobre o papel em chamas e apagou ofogo com um sopro. A fumaa subiu em lufadas lnguidas da xcara,Carmineabanouumpoucodelanadireodoprpriorostoeinspiroudeformaprofundaevoluptuosa.Depois,levantouoolharparaGeiger.

    Notenhomaispermissoparafumardisseelecomumavozqueressoavacomoecodemilharesdecigarrostragados.Deudeombroscompesarerecostou-se.Rapazes...disseele.

    Astrssentinelassedirigiramparaobar.

  • Sente-se disse. Geiger deslizou em uma cadeira e Carmine seserviudedoisdedosdeChivas.Elepousouagarrafadiantedovisitante.

    NobeborespondeuGeiger.Carmineergueuocopoeobebericou. Trs anos e ainda no consigo me habituar a um Chivas sem um

    Lucky. Ele pousou o copo. Quanto voc recebe no turno damadrugada?Quantopagoavoc?

    Centoecinquentadlarespornoite. Dinheiro, sem papelada. Portanto, na verdade, est mais para

    duzentosevintepordia.Sim.maisdoquesuficienteparaalugarumquarto,no?Sim. Mas voc est dormindo em uma das minhas casas. Isso no

    permitido,Sr.Geiger.Eusei.Ento,porquefazisso?Economizomuitodessamaneira.OscantosdoslbioslargosdeCarminevoltaram-separacima.Estfodendocomigo,Geiger?No.Sabequemsou,certo?Sim,Sr.Delanotte.Liaseurespeito.OslbiosdeCarmineconcluramoarcoemumsorrisocompleto.Certodisseele.Emprimeiro lugar:vocnovaidormirmais

    nas minhas casas. Segundo: agradeo o aviso quanto aos federais. Voucuidar disso. Ele deslizou a mo para dentro do palet e tirou umacarteiradecourocinza-amarronzado.Quinhentosdlaressoamjusto?

    NoqueroseudinheirodisseGeiger.No? Est to abastado por dormir de graa nasminhas casas que

  • noprecisadele?Tenhoumapergunta.Pergunte.sobreseustenentes.Comovaidescobrirqualdelestrairvoc?Carminefezumacareta.Podeserqualquerumentrecincoouseis.Conheoumcara.Elevai

    descobrir.EupoderiafazerissodisseGeiger.Oquevocpoderiafazer?perguntouCarmine.Descobriroqueprecisasaber.Ecomofariaisso,Geiger?Voufazerperguntasaostenenteseelesvomedizeraverdade.Portanto...Quandovocnoestfazendoreformasemimveis,est

    noramodaverdade?Obtenodeinformaes.AcabeadeCarmine inclinou-se, comoadeumcoouvindoumapito

    distante.Eleestavaavaliandoo tomdevoz;Geiger tinhaditoaspalavrassemomenorindciodeironiaousarcasmo.

    ObtenodeinformaesrepetiuCarmine.Compreendo.Muitobem...Sendoassim,oqueestoupensandonesseinstante?

    Nosouumleitordementes,Sr.Delanotte.Geigervirouacabeapara a direita; houve um estalido praticamente inaudvel. Mas,provavelmente, voc est se perguntando se eu poderia ser maluco... ouretardado.

    O sorriso de Carmine espreitava logo abaixo da superfcie, como umtubaroemguasrasas.

    Suponho que eu no possa realmente solicitar um currculo, ouposso?Vocpossuiexperinciaem...obtenode informaes, isso?Nonegciodaverdade?

    Sei reconhecer quando algum est mentindo. Sei muito sobre as

  • pessoas apenas olhando para elas. Geiger virou a cabea para aesquerda.Outroestalido.Voccanhotoacrescentouele.

    verdade.Comopoderiasaberisso?Suassobrancelhas.Minhas sobrancelhas, hein? Agora vai ler a palma daminhamo e

    dizeromeufuturo?No sei fazer isso.Mas voc enxergamelhor comoolhodireitodo

    que com o esquerdo... E teve dois, talvez trs, dedos da mo esquerdadeslocadosmuitotempoatrs.Elesaindadoem.Deveserartrtico.

    Carmineflexionouinvoluntariamenteosdedosdamodireita,depoissedebruounadireodeGeigeratqueosrostosdosdoisficassemapoucoscentmetrosdedistncia.

    Algumjfalouquevocumfilhodaputamuitoestranho? Sim. Muitas pessoas. Os dedos de Geiger tamborilaram sobre a

    mesa.Medeixeiraoprimeirointerrogatrio.Carmine franziu a testa e serviu-se de outros dois dedos de bebida.

    Olhouparaocopo,eporum instantepermaneceuabsolutamente imvel,comoque ouvindo o somde dezmil pressentimentos toda a sua vidabaseadaneles.Depois,seusolhoscomearamabrilharcomasabedoriadaintuio.

    Geiger,voctemumtelefonecelular?perguntou.No.Compreum.

    Com o programa dirio de flexes concludo, Geiger voltou para casa eparou diante de sua enorme estante de CDs. Ele prprio a projetara econstrura; comdoismetrosquadrados, era feitademadeirade cerejeiraimaculada, possua prateleiras abertas sobre roladores, e continha 1.800lbuns. Ele passou os olhos pelas caixas de plstico e puxouDumbartonOaks,deStravinsky,ligouoamplificadoreinseriuoCDnoaparelhodesom.

  • UmacascatadeviolinossederramoudasHyperions.Elecaminhouatumaportaeaabriu.Dentro,haviaumpequenocloset,

    comapenasum1,30m1,30m, eparedes espelhadasdo cho ao teto.AmsicafluaparadentrodaliatravsdeduasminicaixasBosefixas.

    Aindanu,Geigerolhouparaseureflexotriplo.Inspecionouosmsculostesos sob a pele firme, as patelas tortas e os calombospronunciadosnaspartesexternasdostornozelos.Elegirouocorpoevirouopescooparavera leve curva escolitica da parte superior da coluna e as cristas ilacasestranhamente achatadas na bacia. E, como sempre, observou com umaintensidade especial a mirade de cicatrizes finas como navalhas quecorriam em colunas horizontais ao longo dos tendes das pernas epanturrilhas at o tendo de aquiles. Pareciam marcas pacientes emeticulosasgravadasporumprisioneironaparededeumacela.

    Geiger entrou no closet e deitou-se de lado, encolhendo-se comoumabola para caber no interior. Esticou a mo e puxou a porta, fechando-a.Cerrouosolhos.Enquantoamsicagiravaaoseuredor,cadanotaexplodiaem uma gota de luz radiantemente colorida que deixava uma trilhaevanescente como a de uma estrela cadente em um cu noturno. Eleconseguia saborear os sons, tambm; cada instrumento e cada tomproporcionavam um sabor distinto. O violoncelo pintava longos feixesverde-mar com um sabor doce e fresco. Os violinos salpicavam linhasvermelhasquentescomtraosdecanela.

    Eleestavanaescuridoagora.Precisavapensar.

  • 4Jackie Cats despertou ao som lamentoso de um gatomiando. Seus olhosdoam,esconseguiaabrirumdeles.Lembrava-sede tersidoarrancadodacama,amarradocomfitaadesivaecolocadoforaemumgrandebadealumnioparecidocomumcaixo;eque,mais tarde,umcaraabriraobaeenfiaraumaagulhaemseupescoo.Orestanteeraumalacunaatagora.

    Ele estava na escurido e no conseguia ter noo das dimenses dolugar.Percebeuqueestavasuspensonavertical,comosmembrosesticadosnocentrodeumaestruturageomtricafeitadebarrasdeaoaparafusadasumasnasoutrasemngulosretos,formandoumcuboococompoucomaisde3m3m.Estavanu,braosepernasesticadosemngulosde45graus,punhos e calcanhares amarrados com firmeza s barras horizontais,superiorese inferiores,porcorreiasdecouro.Abaixodele,nocho,haviaumagradecirculardemetalcomcercade1,30mdedimetro.

    Seucorpomachucadoestavabanhadopelosfeixesdeluzquebrilhavamdasoitoquinasdo cubo.Nohavianenhumaoutra iluminao e, foradocubo,ochoeotetopretosfundiam-secomaescurido.Elenosabiaondeestava, mas sabia o porqu e o que estava por vir. Puxou as correias,testando-as.Elasnocederam.

    Omiadodiminuiuparaouivoguturaldeumfelinofurioso,elogodepoisoutrouivolentoeoscilantesejuntouaele,anunciandoumsegundogato.

    JackieCatsgritou:

  • Calemasmerdasdessasbocas!Ele no conseguia acreditar no quanto havia sido otrio.Umestpido

    idiota de merda. Ele tinha esperado anos por sua chance, aturado asbabaquices de Carmine, formado a equipe certa, executado o plano semproblemas.Livre,limpoerico.Setivesseseguidooplanejado,estariaagoraa 12 mil metros de altitude, com seis pequenas garrafas de Chivas namesinha dobrvel, ouvindo Como aprender portugus em seu iPod. Mastinha ido casa de Nicki para com-la mais uma vez e, em vez disso,acabara fodendo a si prprio. Balanou a cabea compesar, o que fez osolhoslatejarem.

    Putamerda!Osuivosaumentaramparasilvoserosnadosguturais.Depois,osgatos

    que estavam alm de seu campo visual se atracaram. O som de corpospequenos colidindo, rosnados ferozes e gritos, como giz arranhando umquadro-negro, teciam uma cacofonia aguda. O som fez Jackie ranger osdentes,oqueprovocoudoremseusolhosoutravez.

    Os uivos cessaram e ele foi cercado por um silncio denso, pulsante.Logoalmdolimitedaluz,eleviudoisolhosquenopiscavamflutuandonaescurido,encarando-o.

    Aqui,gatinho,gatinhochamou,rindo.Eletinhafeitoaspazescomomedomuitotempoatrs.Jhaviaolhado

    fundonocanodeumaescopeta,sentidoumestileteafundaremsuacarne,cumprido cinco anos emeio no presdio deAttica com todos os tipos demarginais. E tinha uma teoria sobre o medo. Tudo girava em torno doarrependimento.Sevocfazoquequerdavidaenoenganaasiprprioem relao s escolhas que faz, ento no h arrependimentos, e umhomemsemarrependimentosnotemmedodenada.

    Mesmoassim,aindadesejavanoterfeitoaquelaltimavisitaaNicki...Osolhosdispararamnadireodeleealgobalanourumoluzcomum

    zunido era um grande remo de madeira e atingiu-o de lado no

  • esterno.OcorpodeJackietentousedobrarporreflexo,masasamarrasoimpediram, de modo que ele tremeu e teve espasmos como um peixegrandeemumanzol.Depois,lentamente,acalmou-se.

    Fi-lhodapu-ta.Saiudabocadele.A dor prolongou-se at seu pescoo e inundou os olhos de lgrimas.

    Algumestavadep,foradocubo;vestiapretoeusavaluvaseumcapuz.JackieCats sabiaquenoestava lidando comCarminenemcomnenhumdosrapazes.Elesotinhamlevadoparaumprofissional.EleselembravadeCarminetermencionadodoiscarasnopassado.UmnomecomeavacomDDenton,Durbin, algo parecido. Ele no conseguia recordar o nomedooutrosujeito.

    Nossadisseele.Aporradeumremodebote?A ponta do remo atingiu-o na base das costas. Seu corpo tentou se

    curvarparaa frenteeo remoacertou-onoestmago.Osgolpesestavammassacrandoseusreflexosinvoluntrios.Antesqueosmsculospudessemserecuperardeumespasmoviolento,sofriamochoquedeoutrapancada.Jackie contorcia-sepordentro.Ele sentia comosepartesdeleestivessemsendo arrancadas das entranhas. A bile subiu por sua garganta comomagmavulcnico.

    Vocescolheuummeiomalditodeganharavida,seumerdadoentio.Deveserbemremunerado.Noseincomodaseeuvomitar,no?

    O almoo de Jackie esguichou no cho. Ocorreu-lhe que aquelaprovavelmente fora sua ltima refeio, e ele no a apreciara. A vitelaestavadura.Eleinspirouavidamenteoarparaospulmes.

    Novouentregarningum,babacagrunhiu.Atrsdele,umavozsuavedisse: Preciso dos nomes dos homens que ajudaram voc a roubar o

    dinheiro,John.Jackie Cats virou a cabea omximo que conseguiu. O cara estava ali

    atrs,mastudoqueconseguiavereraaescurido.

  • Vocouviuoqueacabeidedizer?rosnou. Preciso dos nomes dos homens que ajudaram voc a roubar o

    dinheiro,John.Vocsurdo,porra?Ou...A lateral do remo colidiu com seupeito emumestrondo.Eleuivou, a

    cabeagirandoparatrsatempodeveroremodesaparecer.Avozestavaatrsdele,entocomoosujeitopoderiaestardiantedele?Haveriamaisdeum?

    Diga a Carmine... que ele tem seu dinheiro de volta e tem a mim,portantodeixeparal.Novoudedurar.Evocpodechuparmeupau.

    Eleouviuumestalidoesentiuumfluxode lquidomornosederramarsobre sua cabea e seus ombros e escorrer pelo corpo, encharcando-o epingandoparadentrodagrade.

    Quemerdaessa?O lquido que caa diminuiu para um filete e parou, e os feixes de luz

    ficarammais intensos.Oprodutoardianosolhos,comocloroemexcessoemumapiscina.Tinhaumgostoamargo.

    umamisturadeguacomtrsagentesqumicosdisseavoz.Sob as luzes, vai comear a aquecer medida que secar na pele. agradvel,nocomeo.

    Durantealgunsminutos,foiagradvel.JackieCatslembrou-sedequandosedeitavano tetode cimentoda casada famlia, pertodaFlatbushAvenue,quando era garoto. O sol no rosto e o calor subindo atravs da toalha eaquecendosuascostas.Masagorasuapelequeimavadetoquente.Elesesentiacomoumpedaodecarneemumespeto.Quaseconseguiaouvirocorpofritando.

    E ento, como funciona? perguntou escurido. Voc no pagoamenosqueeureveleosnomes? isso?Porque,se forassim,vocestfazendoessetrabalhoprobono.Estoudizendo:podeesperaratque

  • euestejatorradocomoaporradeumcarvo,masJackieCatsnovaiabriraboca.

    Eu j faleioquepreciso, John,masnomomentonoestoupedindonadaavoc.Aindanoestnahora.

    Ento,quemvoc?Dentonouooutrocara?OnomedeleDalton.Tantofaz.A pele dele parecia estar encolhendo, ficando justa sobre os ossos. As

    mos ficaramdormentes.Elehavia comeadoa se sentirmuitoestranho:suspensodaquelamaneira,estavaperdendocontatocomanoodeondeoprprio corpo comeava e terminava. Se ao menos pudesse tocar emalgumacoisa...

    Que tal o seguinte? De um babaca perverso e louco para outro.Acrediteemmimquandodigoquenovouentregarningum,entoquetalirmosdiretoaoassuntoevocmesoltaagoramesmo?Acabamoslogocomisso.

    Ele ouviu o sibilar, um instante antes de o remo atingir sua patelaesquerda.Seuberrosoouroucoeestranho.

    Devoentender issocomoumno?Elegargalhou,oque tambmsooudiferenteagora.Metlicoeagudo.Vouexplicaroseguinteavoc,ento.Tenteentenderporquednomesmomemataragora.

    Outrosibilarantecedeuapancadadoremoatingindoapateladireita.OsdentesdeJackiemorderamseulbioinferior.Elesentiuogostodesangue.Luzesintensasseacenderamderepentenasparedesenoteto.Amudanatica causou tamanho impactovisualqueo corpodeleenrijeceucomosetivessesidogolpeadomaisumavez.

    Asalaeragrande,comcercade36metrosquadrados.Nohaviamaisnadanelaexcetoumhomemdepdiantedele,muitoprximodaestruturadeao.Completamentevestidodepreto,segurandooremo.

    Prazeremteconhecer,filhodaputadisseJackieCats.

  • Geiger removeu a mscara de esquiador. Estava satisfeito com oandamentodascoisas.Haviautilizadoforademaneiramoderada,apenasosuficienteparamanteros sentidosprimriosdeMassimoconcentradosnaquele momento, enquanto o cubo e a soluo de soda casticaexecutavamgradualmente seu trabalho.Aospoucos, o senso concretodoeufsicodohomemiriasealterarediminuiria,porfimafetandosuamentee enfraquecendo seu senso de determinao, prioridades, lealdades.MassimodiziaaGeigeroquantoeraduro,explicandoporquenopoderiaserderrotado.Eraumbomsinal.

    Prossiga, John pediu Geiger. Me diga por que deveramosencerrarlogoasesso.Estououvindo.

    Poisbem.Compreenda,damaneiraquevejoascoisas,vidaemorteso uma questo emque no d para sair perdendo. Sinto isso h trintaanosevoucontinuaramesentirdessamaneira,no importaoquevocfaacomigo.Sabeporqueassim?

    Geiger comeou a caminhar lentamente ao redor do cubo. O remopendiaparabaixoaoladodeseucorpo.

    Mediga,John.Aquiestoporqu:comotipodevidaque levonomeumundo,se

    algumquisermeeliminar,timo.Faaomelhorquepuderevejasevouser derrubado. Se eu for, ei, tudo certo pormim, porque ento vou estarmortoecagandoparatudo.Nomeimportoquetenhabatidoemmim,ouqueestejafodendominhaesposaoumijandonaminhasepultura.Foda-se,faaamerdaquequiser,ouno.Estmeacompanhando,Sr.X?

    Prossiga,John.Mascasotentemeapagareeunocair...Bem,vocprecisasaberque

    vou voltar para pegar voc e que vai ter um caminho cheio de justiacompensatriaestacionandona frentedasuaporta.Porquevouestarmesentindo como Deus em um fim de semana prolongado sem nada parafazer, fora alguns estragos realmente terrveis. E antes de terminar com

  • voc, voc vai mandar sua esposa se ajoelhar e chupar minha pica atengasgar.Paramefazerpararcomsuador,vaiimplorarqueeufaacoisascom ela que voc jamais se permitiu pensar em fazer com a puta maismiservelnaqualpudesseenfiarseupau.Entendeu?

    Geigerpercebeuquenodemorariamuito.Portanto,deum jeitooudeoutrodisse JackieCats,mortoou

    vivo,voumesairbem...percebe?Vidaemortesoumaquestoemquenodparasairperdendo;umabelezaentreguenumaputabandejadeprata.Enovoudedurar.Jamais.

    Tenhoumapergunta,John.?Esevocfosseooutrocara?Queoutrocara?Ocaranasuahistria,aquemestpunindo...Queoptaporoferecera

    esposaasofrerdegradaessexuaisparadarcabodaprpriatorturafsica.Estdizendoquenofariaessaescolhasefosseele?

    issomesmo,porra!Oqueacabeidetentardizeravoc? Sendo assim, no que voc difere dele? Geiger entrou no cubo.

    Assim toperto, conseguiasentiro cheirodoresduodasoluodesodacustica.Eleaplicariaumasegundadoseembreve.Mediga,John.Oqueotornadiferentedele?

    O rosto avermelhado de Jackie Cats contorceu-se em uma confusoraivosa.

    Dequemerdaestfalando? Por que voc no afunda at tais profundezas? O que h de

    interessanteemvoc?Forafsica?Vocmaisduro?Geigerergueuoremoe,movendo-oparabaixo,atingiuo ladoexterno

    dotornozelodireitodeJackieCatscomumestaloagudo.Voctemumaresistnciamaiordor?ElegolpeouotornozeloesquerdoeJackieCatsrosnou.

  • Vocmaiscorajoso?Geiger pegou o remo de forma diferente e cravou a extremidade

    arredondada dentro da clavcula direita de Jackie Cats. Uma arfadaprofundaescapoupeloslbiossangrentos.

    Oumaisnobre...Ouleal?Geigerenfiouo remonaclavculaesquerda, escolhendoospontosnos

    quaisinfligiriaumadorintensasemquebrarnada.Oumaisamoroso?Geigerergueuoremocomoumalana,demodoqueapartesuperiordo

    narizdeJackieCatstornou-seumalvopreciso.Enquantoelemoviaoremocomforaparaafrente,JackieCatsretraiu-sediantedoimpactoiminenteeoremoparouadoiscentmetrosdele.Seusolhosrolaramparatrseasuacabeainclinou-separaolado.

    John, o que tenho a dizer agora importante, portanto concordemovendoacabeaseestivermeouvindo.

    V...se...foder.OsdedosdeGeigeriniciaramumadanaaoladodesuacoxa.Nestasala,John,tentamoslidarcomaverdade,epermanecemosaqui

    atqueaencontremos.Agora,eurealmenteachoquevocacreditaqueoqueacabademecontarsobresimesmosejaverdade.Creioquesejaquemvocpensaque...Masdiscordodevoc.Elesaiudocubo.John,meutrabalho obter informaes, mas, para conseguir isso, talvez preciseprimeiro ajud-lo a se tornarmais consciente de seuspontos fortes e desuas fraquezas, do que capaz de fazer e do que no . Descobrir seuverdadeiroeu,John...Issooquerealmenteimportaaqui.

    GeigercaminhouataparedebememfrenteaJackieCats.Portanto, tentedarumaolhadaemquemvocrealmentequando

    todasasposeseapelidossoremovidos.Faaumatentativa,John,eentovoceeuvamosconversardenovoeveroresultado.Possoatchegarapedirquemedigaainformaodaqualpreciso.

  • Geiger esticou a mo at um painel de controle preto na parede,pressionouumbotoeoutraduchacaiusobreJackieCats,quegrunhiumasquase no se moveu. Geiger pressionou outro boto e todas as luzes seapagaram,excetoospequenosspotsdocubo.

    Jfizisso,filhodaputamurmurouJackieCats.Osomdosgatosmiandoeuivandorecomeou,eentoavozdeGeiger

    falouemmeioescurido,comofizeramaiscedo. Preciso dos nomes dos homens que ajudaram voc a roubar o

    dinheiro,John.Afrasetornou-seumloopdeudio.Entremeadacomaconfusofelina,a

    vozrepetiaincessantementeaspalavras.Preciso dos nomes dos homens que ajudaram voc a roubar o dinheiro,

    John.Precisodosnomesdoshomensqueajudaramvocaroubarodinheiro,John.Precisodosnomes...Ento,umrudoescapoudeJackieCats.Mesmonoestadodebilitadoemqueseencontrava,osomoatordoou.Tinhasidoumchoramingo.

  • 5Bebericandoseucafmatinal,sentadomesadasaladeestaremBrooklynHeights,Harryolhoupelajanela,paraoEastRiver.Eledeslizouamoparadentrodacalademoletomeapalpoucuidadosamentearea,esboandouma careta, que parecia uma ferradura incrustada no rosto com a barbaporfazer.Nanoiteanterior,duranteumdeseusbanhosmaratnios,haviadescoberto algo que o fizera estremecer em meio fumaa quente dochuveiroalgopequeno,subcutnea,navirilha.Onduloeradotamanhodeumauvaeumpoucoduro.

    DuranteosanosnosquaisestiveranaseodeobituriosdoNewYorkTimes,ondetrabalhavaantesdeconhecerGeiger,Harryhaviadesenvolvidoa convicodeque sevocvivessealmdos40anos,mais cedooumaistardeteriaumcncer.Apequenaporcentagemquenochegavaaos40aquelesquemorriamnumacidentedecarro,eramassassinadosousofriamum AVC teria desenvolvido cncer caso tivesse vivido mais tempo.Agora,Harryestavacom44anos,eseucorpo,outroraumirmodearmascontra o mundo, no era mais digno de confiana. Ele sabia, atravs detodas as vidas que examinara, que dentro de todo homem existem seusprpriosCsareBrutus,eapartirdaqueleponto,acarnepoderiatra-lo.OmomentoEttuchegaria,nocomoumaadaganascostas,esimcomoumnduloinchadosentidoaoengolir,ouumapupiladilatadavislumbradanoespelho,ouumamassadotamanhodeumauvadescobertapelapontadodedoduranteumaducha.

  • Em momentos como aquele, Harry invejava Geiger. No trocaria delugar com ele por nenhum preo claramente, o homem tinha maisdemniosdoqueumapinturadeHieronymusBosch,masocoraoeamente do scio, semelhantes a armadilhas de ao, exerciam um grandeapelosobreHarry.NadajamaispareciaforadocomumparaGeiger.Eleeracomo uma espcie de engenheiro mstico que descobrira uma forma dedesativar os altos e baixos dos acasos e seus impactos. No comeo daamizade entre os dois, Harry estava certo de que o outro tomava algumestabilizador de humor, um daqueles medicamentos que lixavam eremoviam as extremidades speras das experincias. No entanto,eventualmente, mudara de opinio. Se Geiger estivesse sob o efeito dealgumadroga,eraalgoproduzidonoprpriocrebro,eseja lqual fosseaquelecoquetelquimioneural,Harryocobiava.

    Eles haviam se conhecido onze anos antes noCentral Park, s trs damadrugada. Harry estava bbado, seu hbito noturno na poca, e estavasendo chutadona cabeapor dois skinheads. Alguns anos antes, havia setornado um homem sem sonhos no daqueles que se tem ao dormir,masalgumquedesistiradequalquernoodeperspectivas,dequalquerpromessadonovoeinusitado,dequalqueresperanadealgodiferente.Ossonhos da juventude estavam tomortos quanto as pessoas sobre quemescrevia,cinzasep,demodoqueaspancadassemritmodaspontasdasbotasnacarne,adorsufocanteeapossibilidadedeserconduzidoparaforadomundo,tudopareciaquasecorreto.Aderrotatornara-seumaparceira;estava sempre por perto, seguindo-o bamboleando poucos passos atrsdele.Opensamentodefinalmentedizeradeusjestavaesticandooslbiosferidos de Harry em um sorriso sobre dentes quebrados quando Geigerinterrompeu sua corrida noturna apenas pelo tempo necessrio paranocautearosvndalosemumborrodemosepsletaisedepoisseguiuseucaminho,antesqueHarryconseguisseinspirararsuficienteparafalar.

    Duassemanasdepois,comtrintapontosnacabeaedoisdentesnovos,

  • Harry deu incio a uma viglia noturna no local de sua humilhao. Noprecisouesperarmuito:nasegundanoite,sobchuva,Geigersurgiunapistavestindo uma camiseta e calas de moletom, e Harry bloqueou suapassagem.Ooutrofreou,correndoparado.

    Oquevocquer?perguntouGeiger.Queriasagradecer.OcabelopretodeGeigerbrilhavacomocera.Gotasdechuvaescorriam

    de suas sobrancelhas e caam nos olhos,mas no pareciam incomod-lo.Harrypercebeuqueelequasenuncapiscava.

    MeunomeHarry.HarryBoddicker.Estendeuamo,masGeigersequerolhouparaela.Possotepagarumabebida?perguntouHarry.

    Eunobebo.Bem,sachei,considerandoquevocsalvouminhavida... Foi sorte, Harry. No teve nada a ver com voc. Se estivessem

    chutandoumco,euteriafeitoomesmo.Ento,quetalumcaf?Vocbebecaf,nobebe?Poruminstante,Geigeroencaroucomosolhosfixos,quenopiscavam,

    e no disse nada. Harry de repente sentiu-se desconfortvel; o homempareciaestarinspecionando-o,julgando-o.Ento,Geigerassentiuedisse:

    Estbem,Harry.Eles foram para um bar na Broadway e escolheram um canto nas

    sombras, com cheiro de amnia. Enquanto Geiger bebericava caf puro,Harry tomou trs Wild Turkeys. Ao longo das trs horas seguintes, eleatuouemummonlogobiogrfico, queera emparteumato ansiosoporcompartilhareemoutraumatentativadereafirmao,comoseacorreiaque o prendia ao passado estivesse perigosamente puda e recontareventospudessesustentarseulugarnopresente.

    Oritmodahistria seacelerouquandoHarrycontouaGeiger sobreaconquista de um emprego de pesquisador noTimes, assimque deixara afaculdadecomunitria.

  • Foiquandodescobriquetinhaumtalentoparadesencavarcoisas.MechamavamdeP.engraadocomosvezes levaalgumtempoatquevocdescubraquebomemalgumacoisa.

    ElecontouaGeigersobrenoitesdedicadasaentrarsorrateiramenteemredes de computadores usando softwares que ele mesmo criara, sobreutilizar tais habilidades para desencavar segredos e ligar pontos, sobreescrever uma matria importante a respeito da elaborao de perfispsicolgicoscombaseemaspectosraciaisquegerarasuareputaocomoreprter.

    Certamanh, ali estava,na segunda seodaprimeirapgina. PorHarryBoddicker.Foialgodotipo:Ei,soueu.

    EnquantoHarry falava, Geiger disse pouco alm de responder sim ounoalgumasvezes.Eleconcordavaoubalanavaacabeaemnegaoparaoutrasindagaes,eapesardessasertodaaextensodesuaparticipaoativa,emnenhummomentosentiuvontadede irembora.Percebeuqueohomem tendia cada vez mais a um estado melanclico medida que olcoolfaziaefeito,equesuasrecordaestornavam-semenosdetalhadasemaisaleatriasconformeahistriasedesenrolava.Geigertambmsentiuqueeleestavadeixandodeforaumcaptuloimportante:falavadaprpriavidacomosetivessevividoduasetapasdistintas,masnuncamencionavaoeventoquefizeraaprimeiraterminaredespertaraaseguinte.Naprimeirafase, o conto de Harry era cheio de animao e de orgulho por suasrealizaes,masdepoisguinavaparabecosmaissombrios.Apaixopelotrabalho minguara; fatos eram imprecisos, prazos eram perdidos. Beberdeixara de ser um hobby e tornara-se um hbito. Depois de meses deadvertncias,oTimeshaviaconcedidoaeleumaltimachanceeumamesanaseodeobiturio.

    VocconheceaquelasensaodisseHarrydesentirqueatingiuo fundo do poo, e ento perceber que est no lugar ao qual realmentepertence?

  • Harry disse a Geiger que ser relegado ao obiturio tinha sido comovoltarparao lar: ele vivia com fantasmas e seuspassados, submerso emseus feitos e declnios. Mas tambm o estimulara a criar programas debuscacadavezmaissofisticadose inteligentes.Preencheras lacunas,darcontinuidadeaocaosaquilotornara-seumaobsesso,umtipoestranhoderessurreio.

    Ouvir aquela histria pica havia sido uma experincia singular paraGeiger. Durante aquelas trs horas, aprendeu mais sobre Harry do quejamaissouberaarespeitodequalquerpessoa,eenquantocorriaparacasaao amanhecer, ocorreu-lhe um pensamento como que entregue por umamoinvisvel.AquelanoseriaaltimavezqueveriaHarryBoddicker.

    O sinal do computador de Harry indicava uma visita ao site. O som erasempre um tnico. Significava trabalho, o desafio de montar o quebra-cabea da vida de algum, e dinheiro. Ele descobrira a apreciao pelodinheiro somente depois que havia passado a trabalhar com Geiger e afaturarmuito. O dinheiro era til, claro,mas tambm atuava como umblsamoparaavergonharelativaaomodocomoeleoganhava.

    Harryjamaistinhapresenciadoumasesso,maspassaraacompreenderque, para Geiger, a importncia do trabalho no estava relacionada adinheiro.SDeussabiaaoqueestavarelacionada,masHarrynuncaousouperguntar. Seria como perguntar a Van Gogh por que ele pintava, ouperguntaraJack,oEstripador,porquesaaparacaminharnoite.Comopassardotempo,elecompreenderaqueGeigerprecisavafazerotrabalho,e, assim como tudo o mais a respeito do homem, aquilo o intrigava.Recordou vagamente aquela sensao, a agitao de uma correntesubmarinaforte,capazdepux-loatalgummaragitado.Geiger,apesardetoda a estranheza estoica, lembrava a Harry de como costumava ser asensaodapaixo.

    Harryobservouositenomonitor.Noventaecincoporcentodosacessos

  • noDoYouMrJones.comeramdefsdeDylan,queencontravamumahomepage com uma fotografia do cantor. Mas o sinal significava que algumclicaraemsenhaparaseaventurarmaisafundonosite.Asenhadeveriaser uma frase de cinco palavras baseadas nas letras de mamo, a frutafavoritadeHarry.Casoacertassem,aindicaoeralegtima.

    Harrybebericouocafesorriuquandoovisitantedigitou:Muitosaquimentem aos outros. Nada mal, pensou. Obviamente, nada jamais seequiparara ao primeiro log-in de Carmine, em 1999. Minestrone,antepasto,macaroni,amaretto,ossibuchi.Umarefeioitalianaclssicadecincoitens,deumhomemcujoapetiteesensodehumoreramtograndesquantoseusensodevingana.Algumquelevaraavidadamesmamaneiraqueexerceraopoder:comomximodeintensidade.

    O site aceitou a frase e solicitou uma referncia. Quando o visitantedigitouonome:Colicos,eleoreconheceu.Colicoseraumbarodoferro-velhoque tinhausufrudodos serviosdeGeigerduas vezesnopassado.Harryaguardouenquantoovisitanteseguiaasinstrueseinformavaseunome, nmero do celular, a identidade do Jones e o motivo pelo qualprecisavadosserviosdeGeiger.

    Mais uma vez, Harry espremeu delicadamente o caroo na virilha ecogitoupedirquealgumdesseumaolhada.Masodiavairamdicosquasetanto quanto saber que tinha um motivo para faz-lo. Geiger o haviaensinado a criar diversas identidades falsas, mas o seguro-sade eraarriscado demais para algum que vivia fora do sistema, portanto elepagavaascontasmdicasemdinheiro.Noapreciavaaideiadeabrirmodealtasquantiasparaexames,testes,bipsiasetodoorestante.

    Apginadawebfoipreenchidacomtodasasinformaese,emseguida,outro sinal indicou a sada do visitante. Harry pressionou imprimir econferiuashorasnorelgio.Lilychegariaembreve.

    Seuolharvoltou-separaa fotografiadelanamesadocanto;encolhidaemumsof,olhavaparaelecomseusorrisotravessoquepareciadizersei

  • deumsegredo.Mas sua irmno tinhamais aquela aparnciahmuitotempo.Dez anos atrsHarry colocara-a emumasilo e, desde ento, doisdomingosporms,viajavaatNewRochelleparavisit-la.Sentadoaoladodairmenquantoelaolhavaparaonadaecantavatrechinhosdecanesantigas,eleouviaumavozquepareciaanci,comoseelajtivessevividoumperodoequivalenteadozevidas.Elaparecia terse transformadoemalgosadodeumfilmedeficocientfica,umserdominadoporumaformade vida aliengena, com movimentos desajeitados, de fala estranha edesconjuntada,emotivaesinescrutveis.

    Aindaassim,HarryestavaconvencidodequeLilymantinhaumafirmecompreenso do absurdo da prpria vida, e a persistncia dela oassombrava.Eletinhatentadotreinarasimesmoanopensarnela,masairmhaviasetornadoumainvasoraemsuaconscinciaquasedesocupada,recusando-se a ser despejada. A culpa dele no girava em torno dosentimentodet-laabandonadoelepagavaumafortunaparamant-lanoasilo.Emvezdisso,Harryeraatormentadopelaverdadeinquestionvelque tinha se instalado nele h tempos. Ele no gastavamais de cemmildlarespor anoporque amavaLily; fazia aquiloporquedesejavaque elaestivessemorta.Atualmente,seisdgitospareciamopreoapagarporsuaculpa.

    Acampainhadotrreotocou.Harrycaminhouataportaepressionouobotodaentradanaparede.Quatromesesantes,emumatorepentinodecontrio, ele providenciara para que Lily fosse trazida para seuapartamentoporumadasenfermeiraspsiquitricasemseudiadefolgaedescobriraque,emcomparaoavisitarodesertoalvejadodoquartodelano asilo, receb-la em seu apartamento exercia um efeito positivotemporrio sobre sua raiva. Recentemente, agendara mais uma noite naqualeladormirialparahoje.

    Harry abriu a porta e recuou alguns metros, ouvindo os passos quesubiamos degraus. Umamulher de 20 e poucos anos, cabelos negros de

  • espantalho,trajandoumasaia-calaverdeetnisdecanoalto,transpsoumbraldaportacarregandoumapequenamaladelonaparapernoite.

    Ol,Sr.Jones.Ol,Melissa.Elavirou-se,estendendoumadasmosparaosaguo,quenopodiaser

    avistadodali.Venha,Lily.Vamos.Umavozsuaveesedosadisse:Horadeir. Isso mesmo falou a enfermeira, e puxou Lily para dentro do

    apartamento.OsmedicamentosealoucurahaviamdeixadoairmdeHarrypequena

    e acinzentada. Ela vestia a blusa cor-de-rosa demangas curtas e a calatrs-quartos lils que ele havia comprado para ela alguns anos atrs. Oscotovelos,osossosdospulsosedasbochechasdeLilydestacavam-secomproeminncia sob a pele opalescente, e agora, como sempre aconteciaquandoavia,Harryprecisavalembrarasiprpriodequeairmeraseisanosmaisnovaqueele.

    Comoelaest?perguntou.IgualdisseMelissa.Bem.Certo,Lily?Haviaumaimobilidadenela;praticamentenadapareciasemover,como

    se a psicose fosse um cncer que tinha dissolvido todos os msculos,tendes e nervos. Ela parecia leve como o ar uma figura de origamigigante e bela. Quando seus olhos azuis afundados no rosto por fim semoveram e pousaram em Harry, encararam-no sem qualquer indcio dereconhecimento.

    Ele avanou em direo irm. O olhar dela estava fixo na pequenacavidade sob seu pomo de ado. Ele ergueu uma dasmos e bateu trsvezescomosnsdosdedosnotopodacabeadeLily.

    Algumemcasa?

  • Os lbios de Lily curvaram-se muito delicadamente sob o toque doirmo.

    HarryolhouparaMelissa.Costumvamosfazerissoquandoramoscrianas.Airmcaminhouparaaamplajanelapanormica.GostodaquidisseLily.Tudosemovetorapidamente.Gostode

    vertudosemovendorapidamente.OEastRiver,perturbadoapenasporpequenasondulaes,carregavana

    superfcieumreflexoperfeitodasilhuetadeManhattan.Emdiasdeverocomo aquele, a cidade parecia ter uma gmea brilhante que jazia logoabaixodagua.

    Lily apoiou a cabea no vidro e colocou as palmas das mos nele.Comeouacantarpausadamenteemslabaslevesedanantes.

    Muitofundo...abaixodooceano...Harrycomeouaacompanh-la.Ondedesejoestar,elapodeestar.Lilypareciasurdadiantedainteraodoirmo.Conheceessacano,Melissa?perguntouHarry.Atlantis?N-odisseela.Temcaf?Nobule.Podefazerumnovosequiser.Harrysentou-serecostadonamesa,eseupeitosubiuedesceucomuma

    respiraoprofundaemumsuspiroaindamaisprofundo.Elepegouumafolha de papel da impressora. Ao ler, comeou a balanar a cabea paracimaeparabaixo.Elegostoudoqueviu.

    Melissa,precisareisairporumtempo.Tudobem.Vamosficarbem...Lilyestbem.Harrylevantouosolhoscomumsorrisoenviesado.mesmodisseele.Lilyestbem.

  • 6Estavam sentados emum reservadona lanchonetedaColumbusAvenue.Harry frequentava o local desde a dcada de 1980, quando ele e a irmmoravamnavizinhana.Agora,eraumlugarondeeleeGeigertomavamocafdamanhduasvezesporsemana.Elecomiaomeletedecheddarcombacon e o scio tomava caf preto. Costumava falar sobre o trabalhoumamodificaonocodecdoe-mail,novosspywarescustomizados,algumbanco de dados que conseguira hackear e Geiger ouvia, s vezesrespondendocomumaobservaodeumanicafrase.HarrytraziaoTimese,quandoterminavadefalar,osdoisliamojornal,maselejamaispegavaaprimeiraseoporqueGeigerliasomenteascartasparaoeditor.

    Harry esvaziou um terceiro sach de leite no caf para aplacar oestmago,enquantoGeigerabriaapastaeextraadelatrsfolhasdepapel.A primeira era uma impresso do formulrio preenchido no site pelocliente empotencial.Onomedele,RichardHall, e seunmerode celulareramseguidospelasolicitao:

    Representooproprietriodeumacoleoparticulardearte.Hdoisdias,umapintura,umaDe Kooning, foi roubada. Acreditamos que o ladro seja um negociante de artes que atuoucomointermedirioemaquisiesparameucliente.Eleacreditaquenotificarasagnciasdaleinonecessariamentevaiajudararecuperarapintura,portantocontateivoc.

    Harry observou os olhos cinzentos de Geiger deslizarem de um ladopara o outro. Mesmo depois de trabalhar para ele durantemais de uma

  • dcada,sabiapoucoarespeitodoscio.TraaraumperfillimitadoapartirdeobservaesaleatriassabiaqueelenoeradeNovaYork,queeraamantedemsica,vegetariano,quenopossuaumaTVeviviaemalgumlugar na cidade , mas, havia muito tempo, parara de fazer at asperguntas pessoaismais casuais. Qualquer conhecimentomais particularquepudessetersobreeleforaobtidoatravsdeumainclinaodacabeade Geiger enquanto escutava, ou de um comentrio ocasional sobre umtrabalho. Harry passara a ver a natureza da ligao entre eles no maissimples dos termos: necessidade. O scio, por motivos que ele nocompreendia, lhe tinha confiado uma parte significativa de sua vida, eHarry colocara a tarefa de servi-lo no centro da prpria. Eram os sciosmais estranhos: como se fossem gmeos siameses, mas separados poranos-luzdedistncia.

    OformulriodeRichardHallprosseguia:

    OhomememquestoDavidMatheson.Tem34anos,moranonmero64darua75Oeste,cidadedeNovaYork,estadodeNovaYork,eonmerodeseuSeguroSocial379-11-6047.Eleestsobminhavigilnciaeestoucapacitadoaentreg-lo,comofui informadodequeseu procedimento-padro. provvel que Matheson tivesse um comprador certo antes doroubo, portanto crucial que o assunto seja resolvido logo. Estou autorizado a pagar umadicional de 200 mil dlares caso voc obtenha informaes que levem recuperao dapintura. Por favor, contate-me antes das duas horas ou vou procurar outra pessoa.Atenciosamente,RichardHall.

    Geigerpousouaprimeirafolhadepapelnamesa.Harrysorriu.Nadamal,hein?Vocfariaumtrabalhourgente?Umpassodecadavez,Harry.Temosumjeitodefazerascoisas.Harryconcordoueconteveumarroto.As outras pginas eram pesquisas tanto sobre o Jones como sobre

    RichardHall.Harryseaprofundaraemumadezenadediferentesveiascomo gostava de cham-las enquanto procurava informaes sobreDavidMatheson.Eleobtiveraumdiplomaemrelaes internacionais,um

  • mestrado em histria da arte e trabalhara dez anos como avaliador,consultorecompradordeobrasdearte.EstavaemlistasnegrasnaGrciaenoEgitoporseencontrarcomoperadoressuspeitosdomercadonegrodeantiguidades.MoravaemNovaYorkhtrezeanoseeradivorciado;onicofilhoviviacomamenaCalifrnia.TudooqueHarrysabiasobreHalleraadatadenascimento,onmerodeSeguroSocial, suadispensahonrosadaGuarda Nacional em 1996 e os treze anos de pagamentos de impostoscompulsrios pela Elite Services Inc., uma empresa de investigaes daFiladlfia.

    Rita, a garonete com o cabelo descolorido preso num coque estilocolmeiaquecostumavaservi-los,chegoucomobuledecaf.ElasabiaquenodeveriasedaraotrabalhodefalarcomGeiger.Comeleerasempreomesmo: caf preto, reabastecido duas vezes, e praticamente nenhumapalavra. s vezes, os olhos dele encontravam os dela, mas no haviareceptividade neles. A princpio, ela tinha entendido o jeito dele comofrieza, mas havia percebido com o tempo que estava errada, poisinterpretaraaausnciade ternuraporsuaexpressocontrriaenquanto,naverdade,nohaviaemooalguma.Elapuxouaxcaradeleeserviuocaf,depoisadeslizoudevoltaeolhouparaHarry.

    Querido?Eledispensouaofertaabanandoamo.Jpasseidomeulimite,Rita,eestoupagandoporisso.Querocafdamanhdesempre,Harry?Nadahoje,meubem.Ritaseguiuemfrente.Geigerrecolocouasfolhasnapasta.Ento,oqueacha?perguntouHarry.NohmuitoaquicomoquesepossatrabalhardisseGeiger.Ooutrofranziuatesta.Notivemuitotempo.Noestavacriticandoseusesforos,Harry.

  • Harryconcordoucomacabea.Nohouveraqualquertomnegativonaspalavras; jamais havia. O tom neutro de Geiger era como um teste deRorschachauditivo.Harryouviaoquequeria,dependendounicamentedoprpriohumor.svezes,aquilooenlouquecia.

    muitoprovvelqueoclientedeHallnotenhaadquiridoapinturadeformalegaldisseGeiger.porissoquenoqueremapolcia.

    Issopassoupelaminhacabea.Masnoimporta...Certo?VocdescobriusealgumDeKooningfoiroubadooudesapareceunos

    ltimoscinquentaanos?A-h.Dois.Em1979e1983.OsdedosdeGeigerdanaramsobreotampodamesa.Harry,mesmoque eu obtenha a informaoqueHall deseja, no

    possvel assegurar que o cliente dele vai conseguir realmente reaver apintura.Jamaisvamosverodinheiroextra.

    Poderamos fazerdissopartedoacordo.SeMathesonconfessar,eupoderia acompanhar Hall quando fosse reaver a mercadoria. Assim,saberamos.

    No.Otrabalhoacabaquandoasessotermina.Nocruzamosessalinha.Ointeriorcontraoexterior,Harry.Vocsabedisso.

    A cabea de Harry balanou para cima e para baixo e seus ombrosarqueadosseabaixaram.

    Eusei,eusei.summontededinheiro.Geiger pegou o caf, assoprou-o e bebericou-o. Harry observou, como

    faziacomfrequncia,quemesmoaquelasimplesaoeraexecutadacomafinessedeumdanarinodebal.

    Harry,quantofaturamosanopassado?Poucomaisdeummilho.Vinteecincoporcentodissoso...?Duzentosecinquenta.Quedariaquantosevocpagasseimpostos?

  • Quatrocentosecinco.Certo,certo.Geigerencostouaxcaradecafnoqueixo.Emumcenriodeurgncia,

    o Joneso fatordeterminanteeo relgioestavanando.Normalmente,elenogostadecontarcomasorte,masquandooclientetempressa,nohescolha:obrigadoaesperarqueointerrogadoabraaboca.Maiscedodoquetarde,oJonesprecisariamostraralgoumafraqueza,umafobia,umdemnio,e,depoisdisso,Geigerapostariatudo.Trabalhosurgentessosemprearriscados,masapresentamumestiloprpriodedesafio.

    Elecolocouaxcaranamesa.Noemitiunenhumsom.DigaaHallqueestdepdisse.OslbiosdeHarrylevantaram-senoscantos,emumsorrisodealeluia.