O instagramável: estética e cotidiano na cultura visual...

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba - PR – 04 a 09/09/2017 1 O instagramável: estética e cotidiano na cultura visual do Instagram 1 Manuela de Mattos SALAZAR 2 Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE Resumo Este trabalho investiga o encontro entre estética e cotidiano em imagens da rede visual Instagram e questiona: o que faz algo instagramável? Pensa-se a partir do conceito mundo-mosaico de Flusser, que estabelece que atualmente a humanidade vive e conhece por meio de fotografias, compondo um grande e fluido mosaico. Metodologicamente, 900 imagens foram coletadas entre as fotografias compartilhadas publicamente com a hashtag #postitfortheaesthetic, o que tornou possível uma reflexão a respeito da criação de imagens técnicas na cultura visual do Instagram e a determinação de algumas características estéticas recorrentes nas fotografias compartilhadas nesta rede visual. Palavras-chave: Instagram; estetização do cotidiano; fotografia vernacular; cultura visual. 1 Mundos-mosaicos A rede visual Instagram está em constante expansão. Criada em 2010, conquistou um milhão de usuários em seus dois primeiros meses; em um ano pulou para dez milhões; em três anos já eram 150 milhões; e, em dezembro de 2016, a rede abarcava meio bilhão de usuários ativos, comunidade essa que produziu até novembro de 2016 um total de 40 bilhões de imagens, entre fotografias e vídeos, e que compartilha cerca de 95 milhões de imagens diariamente. Em uma torrente incessante de quase 1100 imagens por segundo, o Instagram compõe mundos-mosaicos, como afirma Flusser ao dizer que “estar no mundo fotográfico implica viver, conhecer, valorar e agir em função de fotografias. Isto é: existir em um mundo-mosaico(1998, 86, grifo do autor). Neste trabalho, visamos refletir sobre o papel da estetização do cotidiano na fotografia do Instagram. Pesquisando o Flickr, Murray (2008) detecta o surgimento de uma “estética do cotidiano”. Para ela, muito mais do que uma “embalsamadora do tempo” como 1 Trabalho apresentado no GP Fotografia, XVII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Mestra em Comunicação pela UFPE, graduada em Jornalismo pela UFPR e especialista em Jornalismo digital pela AESO – Faculdades Integradas Barros Melo. [email protected]

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O instagramável: estética e cotidiano na cultura visual do Instagram1

Manuela de Mattos SALAZAR2 Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE

Resumo Este trabalho investiga o encontro entre estética e cotidiano em imagens da rede visual Instagram e questiona: o que faz algo instagramável? Pensa-se a partir do conceito mundo-mosaico de Flusser, que estabelece que atualmente a humanidade vive e conhece por meio de fotografias, compondo um grande e fluido mosaico. Metodologicamente, 900 imagens foram coletadas entre as fotografias compartilhadas publicamente com a hashtag #postitfortheaesthetic, o que tornou possível uma reflexão a respeito da criação de imagens técnicas na cultura visual do Instagram e a determinação de algumas características estéticas recorrentes nas fotografias compartilhadas nesta rede visual. Palavras-chave: Instagram; estetização do cotidiano; fotografia vernacular; cultura

visual.

1 Mundos-mosaicos

A rede visual Instagram está em constante expansão. Criada em 2010, conquistou

um milhão de usuários em seus dois primeiros meses; em um ano pulou para dez milhões;

em três anos já eram 150 milhões; e, em dezembro de 2016, a rede abarcava meio bilhão

de usuários ativos, comunidade essa que produziu até novembro de 2016 um total de 40

bilhões de imagens, entre fotografias e vídeos, e que compartilha cerca de 95 milhões de

imagens diariamente. Em uma torrente incessante de quase 1100 imagens por segundo, o

Instagram compõe mundos-mosaicos, como afirma Flusser ao dizer que “estar no mundo

fotográfico implica viver, conhecer, valorar e agir em função de fotografias. Isto é: existir

em um mundo-mosaico” (1998, 86, grifo do autor). Neste trabalho, visamos refletir sobre

o papel da estetização do cotidiano na fotografia do Instagram.

Pesquisando o Flickr, Murray (2008) detecta o surgimento de uma “estética do

cotidiano”. Para ela, muito mais do que uma “embalsamadora do tempo” como

1 Trabalho apresentado no GP Fotografia, XVII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Mestra em Comunicação pela UFPE, graduada em Jornalismo pela UFPR e especialista em Jornalismo digital pela AESO – Faculdades Integradas Barros Melo. [email protected]

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estabeleceu André Bazin, a fotografia de hoje é transitória, maleável, imediata, e efêmera,

a partir da lógica do feed — o carrossel de imagens das redes sociais, em que, a cada

segundo, novos conteúdos substituem os “velhos”, compartilhados um segundo atrás. É

uma fotografia “dedicada à exploração do olhar urbano e sua relação com a decadência,

a alienação, o kitsch e a habilidade de localizar beleza no mundano” (MURRAY, 2008,

155)3. Ou seja, trata menos dos momentos especiais da vida doméstica ou da auto-

representação, e mais das pequenas descobertas visuais do dia-a-dia, retiradas da

percepção sensível do cotidiano.

Assim como no Flickr, não é difícil identificarmos esta tendência apontada por

Murray no Instagram. De maneira geral, dois elementos nos parecem essenciais à prática

fotográfica vernacular desta rede visual: a estética e o cotidiano. Trata-se de um

argumento corroborado por Manovich (2016) a partir de uma pesquisa em larga escala,

com aproximadamente quinze milhões de fotografias postadas na rede. Interessa-nos

principalmente sua classificação dos três modos de expressão do Instagram – Casual,

Professional e Designed. Em uma das fases da pesquisa, observaram-se cerca de 152 mil

imagens compartilhadas publicamente na cidade de Londres em setembro de 2015, e

identificou-se um total de 80% de fotos casuais, 11% de fotos profissionais e 9% de

imagens designed. Essas porcentagens podem variar entre grupos diferentes de imagens,

mas podemos entender que permanecem estáveis em diversas demografias do Instagram.

Fig 1: Exemplos dos modos Casual e Professional

Fonte: MANOVICH, Lev, 2016, capítulo 1, p. 12-13

3 Tradução nossa: “(...) dedicated to the exploration of the urban eye and its relation to decay, alienation, kitsch, and its ability to locate beauty in the mundane”

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Fig 2: Exemplos do modo Designed

Fonte: MANOVICH, Lev, 2016, capítulo 1, p. 12-13

No modo casual (fig 1) temos imagens que reproduzem os ideais do “modo

doméstico” (CHALFEN, 2002) similar ao da fotografia vernacular do século XX e suas

atualizações. Os principais objetivos desta tipologia são a documentação e o

compartilhamento de experiências, através principalmente de retratos, autorretratos e

fotos em grupo (as chamadas selfies). Seguem convenções que definem não só seus

assuntos, mas os modos de ver e fotografar oriundos principalmente das práticas

vernaculares dos séculos XIX e XX, ou, em alguns casos, tornados comuns na era do

Instagram, como no caso das fotos em que o autor retrata seus próprios pés.

No modo professional (fig 1) temos imagens produzidas de acordo com as regras

estéticas e técnicas estabelecidas pela fotografia do século XX, em termos de

enquadramento, angulação e fotometria, listadas em manuais e em websites sobre técnicas

fotográficas ou ensinadas em cursos de fotografia. Por mais que varie de imagem para

imagem, o aspecto mais essencial das imagens do modo profissional é que essas regras

foram todas estabelecidas antes do Instagram e das câmeras de celulares. Inclusive, é este

mesmo conjunto de normas que se encontra implementado na programação de câmeras

fotográficas e câmeras de celulares através de algoritmos presentes em seus softwares.

Por último, o modo designed (fig 2) abarca as imagens concebidas, preparadas e

editadas para terem um “visual distinto e estilizado”. Elas unem duas esferas: a fotografia

e o design gráfico. Enquanto no modo profissional, os autores optam por espaços abertos

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e uma variedade de detalhes, o modo designed privilegia fotos de perto (ou close-ups),

espaços reduzidos, áreas em apenas uma cor, e o mínimo possível de detalhes. Enquanto

uma privilegia a paisagem, a outra dá mais importância aos detalhes de objetos, corpos e

faces. Há diferenças de composição (a primeira é simétrica, a segunda é assimétrica); de

perspectiva (a profissional é mais aberta e a designed planificada); e de linearidade (na

primeira temos linhas complexas e curvas, na segunda, linhas retas e restritas).

Manovich (2016) recupera uma série de forças que teriam influenciado o

surgimento deste tipo de imagem, principalmente dentro dos parâmetros do design

moderno. Alto contraste no uso de tons, cores, fontes, tamanhos e formas, paletas de cores

limitadas, formas geométricas simples, grandes espaços vazios, composições

assimétricas, projeções paralelas são alguns dos princípios do design característicos do

século XX que, para o autor, compõem o escopo de dimensões visuais que visa garantir

máximo de controle nos resultados. Mais importante ainda foi o surgimento de uma

estética minimalista nas décadas de 1990 e 2000, que se manifesta no design dos

computadores Apple, na arquitetura comercial, em publicações impressas, sistemas

operacionais, websites e aplicativos. Para o autor, é a estética do que é considerado

moderno, sofisticado e contemporâneo, tendo, assim, tornado-se a escolha dos jovens

urbanos que cresceram entre os anos 2000 e 2010, a grande massa demográfica do

Instagram4.

O autor lista algumas estratégias visuais comuns nas fotos do modo designed:

brilho, contraste e saturação acentuados, saturação diminuída para criar um efeito quase

monocromático, uma grande proporção de áreas claras e menos proporção de áreas

escuras, fundo branco, áreas monocromáticas, grandes espaços vazios em contraste com

áreas texturizadas, composições com arranjos diagonais, uso frequente do ponto de vista

de cima para baixo. O autor batiza de “instagramism”, algo como “instagramismo”, essa

mistura de mídias, linguagens, união entre fotografia e design, reforçando a ideia de que

se trata de um movimento cultural expressivo, que retomaria origens diversas na história

do design de cartazes, capas de revistas, anúncios, e movimentos fotográficos do século

20 como a New Vision ligada à Bauhaus. “‘Instagramism” oferece uma nova visão do

4 Segundo pesquisa do Pew Research Center, o Instagram chegou em 2016 a 32% dos usuários da Internet nos Estados Unidos. Destes, 59% tem entre 18 e 29 anos e 33% tem entre 30 e 59 anos. A demografia envolve 39% de usuários vivendo em centros urbanos, 28% em subúrbios e 31% em áreas rurais. (Disponível em http://www.pewinternet.org/2016/11/11/social-media-update-2016/)

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mundo e sua linguagem visual, mas diferentemente dos movimentos modernistas da arte,

é composto por milhões de autores conectados ao Instagram.

Esta recente pesquisa de Manovich foi um interessante ponto de partida para que

pudéssemos visualizar com mais precisão o imenso universo da rede visual Instagram.

Sua taxonomia nos fez nomear algo que apenas intuíamos ao observar inúmeras galerias

de usuários: a mistura endêmica entre a fotografia, as artes e o design, em uma plataforma

de interação social, feita de pessoas comuns para pessoas comuns. Nossa análise, assim,

focou principalmente nas imagens designed, pois entendemos que, mesmo sendo as

menos representativas em quantidade, foram as que primeiro despertaram nossos

questionamentos a respeito destas fortes conexões que vislumbramos haver entre o

Instagram e estetização do cotidiano.

Trata-se de uma fotografia da distópica “sociedade produtora de imagens que

encobrem o abismo” concebida por Flusser (2008, 98), que nega a profundidade,

elogiando a superficialidade de suas imagens. Trata-se de uma sociedade “deliberada,

artificial, obra de arte. Nada haverá nela de ‘orgânico’, de ‘natural’, de ‘espontâneo’, de

tudo o que deva a sua origem ao acaso, porque será a sociedade contra o acaso e em prol

do deliberado improvável” (Idem). Como no design, cada elemento dessas fotografias

pertence a um lugar em uma composição elaborada sobre temáticas cotidianas: o que

comemos no almoço, o que estamos lendo no momento, os pés sobre um piso que

achamos bonito. Para Groys (2010), em um mundo onde a vida cotidiana se exibe e se

comunica nas nossas redes de comunicação, torna-se impossível a separarmos de sua

representação: o dia-a-dia se torna obra de arte, a vida, um artefato. O banal se torna o

establishment de nossa expressão visual contemporânea. Ser artista não é mais um destino

exclusivo, é agora uma prática cotidiana.

2 Poste pela estética

No Instagram há uma hashtag que se relaciona diretamente a nosso objeto de

pesquisa: #postitfortheaesthetic (poste pela estética) agrega imagens que os usuários

consideram especialmente “estéticas”. O vasto número de imagens nesta hashtag (em 3

de janeiro de 2017, abarcava mais de 530 mil fotografias e vídeos), torna difícil a tarefa

de estimar onde e quando ela se iniciou, mas ela parece ter sido criada em um perfil

homônimo @postitfortheaesthetic, designado como um “espaço coletivo de estilo de

vida, arte, design, natureza, viagem”. Ao selecionarmos as imagens a serem analisadas

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nesta pesquisa, escolhemos um total de 900 imagens (Fig 3) marcadas com

#postitfortheaesthetic, divididas em grupos de 180 fotografias de datas consecutivas (de

22 a 26 de novembro), e retiradas na ordem em que foram postadas. O número múltiplo

de nove facilitou a seleção de imagens já que o Instagram organiza seus mosaicos de

imagens de três em três, formando quadrados de nove em cada tela. Desse modo,

desenvolvemos nosso mundo-mosaico que possibilitou análise mais aprofundada desse

grupo de imagens.

Fig 3: 900 imagens marcadas com a hashtag #postitfortheaesthetics

Fonte: Instagram, pesquisa de 22 a 26 de novembro de 2016, diversos usuários

Das 900 imagens selecionadas, 131 (14,9%) foram postas de lado por se

configurarem como anúncios, propagandas ou postagens empresariais. As 769 imagens

restantes compuseram o principal mundo-mosaico analisado e sistematizado. A partir

desta seleção de imagens, iniciamos um processo de sistematização e categorização,

dividindo o resultado em três grandes grupos temáticos: coisas, espaços e corpos (fig 3).

Em cada uma das três categorias, estabelecemos, então, outras subcategorias temáticas,

em um total de doze gêneros escolhidos pela repetição frequente: de coisas, temos objetos

cotidianos (14,7%), botânica (6,8%), comidas & bebidas (11,5%); de espaços,

percebemos arquitetura (6,4%), decoração (4,8%), paisagem (6,5%), cidades (6,1%); e,

finalmente, de corpos dividimos as imagens em retratos (10,7%), selfies (2,7%), grupos

(4,1%), fragmentos (4,4%); e uma última categoria, que junto com anúncios não foi

analisada por abarcar imagens com outros temas (6,4%), cuja maioria é ilustração e não

se classifica como imagem fotográfica.

De certo modo, todas as categorias aqui listadas denotam proximidade com

vivências e a esfera do banal em nossas vidas: seja em objetos cotidianos, relógios,

maquiagens, sapatos, cadernos, computadores, ou nas comidas, nas xícaras de café e nas

vezes que vamos a um restaurante e o prato parece merecedor de uma fotografia, ou

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mesmo nas plantas que ornam nossas casas, cuja arquitetura e decoração também

merecem ser registradas. Ou nos encontros cotidianos com cenários que intrigam, com

paisagens ou cenas urbanas que, de alguma maneira, causam impacto. A relação

imagética com o cotidiano se aproxima também da relação com o corpo, com retratos

posados, autorretratos em frente ao espelho, segurando o celular nas chamadas selfies, em

grupos, ou mostrando apenas pequenos fragmentos: os pés, as mãos vistas de cima, os

cabelos. Nelas, a trama cotidiana se encontra fixada na busca do belo, do aprazível, do

prazeroso em todos os setores da vida, e talvez possa ser visualizado não apenas nas 900

imagens aqui observadas, mas em todo o mundo-mosaico do Instagram.

3 As estéticas do Instagram

Para além dessas classificações temáticas, como podemos descrever as

características do que configura o instagramável, elemento que une todas essas imagens,

e denota as escolhas estéticas mais comuns no mundo-mosaico do Instagram? Na estética

do aplicativo, pautada por imediatismo e pelo uso de câmeras celulares, o usuário está

dentro da cena, vivenciando aquela situação no momento em que ela ocorre, e a

publicando logo depois. É isso mesmo? A instantaneidade é, de fato, um valor para este

observador? Acreditamos que até poderia ser esse o caso quando o aplicativo surgiu e a

maior parte dos usuários utilizava a própria câmera do programa e postava em tempo real.

Hoje, contudo, é comum que nas publicações que vão para o perfil utilizem não somente

ela, mas outros aplicativos de câmeras. Parece ser muito mais relevante a relação com

uma curadoria dos momentos mais instagramáveis vividos pelos usuários do que a

exaltação da instantaneidade e do aqui-e-agora. Isso abre espaço para que haja no

Instagram dois tipos de fotografia em relação ao cotidiano: a casual e a calculada.

As fronteiras são, contudo, difusas. Pode até ser que a “casual” demore para ser

postada, ou passe por um longo processo de edição após a sua produção, mas o clique do

aparelho se dá no aqui e agora da vida banal. Refeições, a cama bagunçada de manhã, a

roupa que estamos usando no dia: por mais que tenham previamente sido estetizadas para

a fotografia, não há um preparo elaborado nestas fotografias. Já nas “calculadas”, é

perceptível a aproximação da fotografia com o pensamento do design, com uma

formatação elaborada dos elementos presentes na cena: cada coisa ganha seu lugar, há

um cenário elaborado, “direção de arte” para se posicionarem elementos complementares,

e pós-produção bastante evidente, como se as fotos pertencessem à editoriais de revista.

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Em termos de perspectiva, o manuseio das câmeras de celular parece estimular a

escolha por se olhar o mundo de cima para baixo. Trata-se de um padrão onde o usuário

o posiciona a câmera acima dos objetos fotografados, que são dispostos abaixo sobre uma

superfície lisa, compondo as chamadas flat lay, (algo como planificações), um dos

gêneros mais populares do aplicativo. De fato, dentro do grupo temático coisas da hashtag

#postitfortheaesthetic identificamos quase 80 dessas imagens (Fig 4).

Fig 4: Seleção de imagens “flat lay” da categoria coisas da hashtag #postitfortheaesthetic

Fonte: Instagram, pesquisa de 22 a 26 de novembro de 2016, com fotos de diversos usuários

Da mesma maneira, encontramos também uma série de imagens com esta

perspectiva, mas mas com a presença humana. As fotos funcionam como “autorretratos”

que mostram apenas partes do corpo: pés, mãos e braços demonstram imediatamente a

presença do fotógrafo (Fig 5). Raramente estas imagens nos parecem calculadas; elas

parecem partir muito mais da espontaneidade da observação do próprio corpo, e do

registro da interação destes corpos com os objetos a sua volta.

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Fig 5: Seleção de imagens “de cima para baixo” da hashtag #postitfortheaesthetic

Fonte: Instagram, pesquisa de 22 a 26 de novembro de 2016, com fotos de diversos usuários

A fotografia comumente praticada no Instagram vai contra as regras de manuais

de fotografia tradicionais e enfatiza a realização de imagens centralizadas (Fig 6), com

ocorrência acentuada na categoria espaços. Talvez isso aconteça devido à obrigatoriedade

inicial do Instagram, cujo software permitia apenas imagens em formato quadrado, o que

acabava por forçar esta subversão de regras de composição fotográficas anteriores, quase

sempre baseadas em uma fotografia retangular, pela ubiquidade do formato 35mm no

mundo amador.

Fig 6: Seleção de imagens centralizadas da categoria espaço da hashtag #postitfortheaesthetis

Fonte: Instagram, pesquisa de 22 a 26 de novembro de 2016, com fotos de diversos usuários

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Além deste hábito pautado na simetria ideal, nas fotografias da hashtag

#postitfortheaethetic também detectamos uma ênfase às composições com linhas

diagonais, em detrimento das linhas horizontais ou verticais, frequentes na fotografia

“professional” do século 20. Dentre todas as categorias e subcategorias, pudemos

observar cerca de 60 fotografias (Fig 7) que optaram por este tipo de composição

inclinada, ou por angulações nos elementos e espaços. Frequentemente, os itens aparecem

fragmentados na composição, identificando estas linhas de fuga que alongam a imagem

e concedem um aspecto menos calculado às imagens.

Fig 7: Seleção de composições diagonais da hashtag #postitfortheaesthetic

Fonte: Instagram, pesquisa de 22 a 26 de novembro de 2016, com fotos de diversos usuários

Sobre as variações cromáticas, observamos a preponderância efetiva de duas

gradações. Sabe-se que os filtros dos aplicativos Instagram, VSCO e Snapseed,

frequentemente transformam as cores das imagens, concedendo tons mais amarelados,

esverdeados, azulados ou avermelhados para as fotografias. Ajustes de brilho, contraste,

nitidez, sombras, altas luzes, estrutura, temperatura, cor, vinheta, realce e nitidez são

comuns a estas plataformas. Um favorito, contudo, é o ajuste de saturação, que controla

a intensidade das cores em uma fotografia.

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Fig 8: Seleção de imagens com pouca saturação da hashtag #postitfortheaesthetic

Fonte: Instagram, pesquisa de 22 a 26 de novembro de 2016, com fotos de diversos usuários

É bastente comum usar um efeito de saturação muito baixa, onde as cores

remanescentes ficam com pouca intensidade e o que restam praticamente são os tons de

cinza nas imagens. É quase um preto e branco, mas a presença das cores, em matizes

pastel, é ainda notável, como podemos observar na figura 8. Além da ênfase dada ao

cinza, notamos na hashtag #postitfortheaesthetic uma preferência pela cor branca, em

imagens de alto brilho e contraste; de fato, mais de 150 imagens (fig 9) entre as 900

imagens pesquisadas, exibem esta característica.

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Fig 9: Seleção de imagens com fundo branco da hashtag #postitfortheaesthetic

Fonte: Instagram, pesquisa de 22 a 26 de novembro de 2016, com fotos de diversos usuários

A fotografia vernacular clássica do século XX, com fotos de viagens, aniversários,

passeios na praia e pontos turísticos continua, sem dúvida, sendo a mais ubíqua no

Instagram. Contudo, o instagramável aqui descrito parece integrar um imaginário

coletivo sobre a configuração dos mundos-mosaicos do aplicativo: essa mistura entre

fotografia, design, arte, consumo e cotidiano em uma mesma plataforma automatizada e

programada para este tipo de imagem.

As características e parâmetros estéticos que enumeramos como frequentes na

hashtag #postitfortheaesthetic podem também ser encontradas no estilo de objetos de

consumo, em decorações de espaços, em livros, revistas, programas de TV, vídeos, e em

diversos outros elementos que compõem uma estética contemporânea instagramável. Não

podemos afirmar com exatidão se é essa cultura visual do Instagram que se alimenta desta

estética, nem que ela só ganha destaque na sociedade devido à fotografia do Instagram. É

válido, portanto, que pensemos a partir da “sociedade transestética”, vislumbrada por

Lipovetsky e Serroy (2015), onde o capitalismo estético promove um cotidiano que já se

encontra a priori estetizado pela difusão de parâmetros de estilo, design e arte em todas

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as esferas da sociedade contemporânea. Faz parte dessa sociedade hiperartística,

composta por indivíduos estéticos, o consumo estético massificado, que garante um visual

estetizado para tudo que é produzido.

Desse modo, o instagramável talvez esteja no limite entre uma cultura visual e

um “estilo de vida”, já que suas tendências surgem a partir das referências visuais

existentes, mas também pautam tendências e modas fora de seus mundos-mosaicos. Uma

questão que fica é: para que se tenha um feed instagramável, é necessária essa vida

pautada em seus parâmetros estéticos? Mesmo que se trate apenas de uma fabricação

imaginária dos usuários, que criam cenas e editam imagens, há, de fato, uma constante

preocupação em transparecer estes ideais em qualquer lugar e em quaisquer condições.

Assim, tendências estéticas relacionadas a hábitos, objetos, cores, formas que já

existiam na vida real, começam a ganhar ainda mais força no aplicativo e se multiplicam.

Ao unirem inspirações provenientes de diversas fontes, mas, principalmente, do próprio

aplicativo Instagram, os instagrammers compõem seus mundos-mosaicos fluidos, como

os curadores de suas próprias vidas, calculando as melhores combinações, filtros, cores,

texturas, composições, perspectivas.

Por isso, nesse nicho específico, a foto vernacular perde seu caráter doméstico, e

ganha ares de peça de publicidade, de design, de arte. Mesmo assim, algumas

características deste gênero perduram, como, por exemplo, o fato de continuarmos

valorizando nossas imagens como únicas, embora reproduzam padrões, e sejam

semelhantes aos de uma série de outras pessoas. O uso constante da ferramenta hashtag

é uma reafirmação disto, pois é uma forma de querer integrar-se a um mar de imagens

semelhantes, e sentir um pertencimento momentâneo, que pode nos conectar com pessoas

que têm a mesma visão, e a mesma necessidade de fotografar determinados objetos, de

determinadas maneiras semelhantes.

Outra percepção que temos é como alguns dos elementos do instagramável –

espaços brancos, linhas diagonais, elementos centralizados, planificados – lembram a

configuração das galerias de arte contemporânea, principalmente as modernistas. “As

paredes são pintadas de branco. O teto torna-se fonte de luz. O chão de madeira é polido

(...) para que você ande sem ruído. A arte é livre, como se dizia, “para assumir vida

própria”. (O’DOHERTY, 2002, 4). Não há sombras, não há sujeira, não há tempo, não há

natureza. Os espaços em branco desnaturalizam o mundo e possibilitam centralizar todas

as atenções nos objetos de arte. Precisa haver equilíbrio, dimensões agradáveis,

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luminosidade, assim como demanda a “expografia” de alguns perfis do Instagram,

pensada por seus “curadores”. Este modo de configuração concede um destaque

primordial aos objetos, que são retirados de seu contexto de usabilidade, e

recontextualizados em representações visuais. Neste tipo de fotografia transparece um

intuito colecionador ao promover uma catalogação visual de tudo aquilo que chama

atenção e parece ser suficientemente instagramável.

Ao dizer que vivemos, conhecemos, valoramos e agimos em função de imagens,

Flusser descreve a essencialidade do instagramável. Neste universo fotográfico de fluidez

permanente, onde em um segundo fotografias são substituídas por outras fotografias,

onde visões de mundo podem ser percebidas através de mundos-mosaicos, onde são

revelados ínfimos detalhes da vida cotidiana, a ênfase se encontra principalmente na

contemplação de momentos da intimidade. “Viver” em função das imagens “passa a ser

recombinar constantemente experiências através de imagens” (FLUSSER, 1998, 86), ou

seja, no Instagram, significa buscar no mundo experiências instagramáveis, que possam

se transformar em imagens perfeitas para o compartilhamento. “Conhecer” “passa a ser

elaborar colagens fotográficas para se ter uma ‘visão de mundo’” (idem), ou seja,

recompor estas vivências em imagens, de modo a expressar uma visão própria deste viver

subjetivo através da montagem calculada e gradual de um perfil coerente, que conte uma

história tida como interessante. “Valorar” “passa a ser escolher determinadas fotografias

como modelos de comportamento, recusando outras” (idem), o que no aplicativo significa

entender o mundo a partir dos parâmetros instagramáveis, mascarando as situações que

reprovem no crivo destas regras particulares de estetização, e cercar-se de outros

indivíduos que assim também o entendem. Por fim, “agir” “passa a ser comportar-se de

acordo com a escolha” (ibidem), transformando as próprias ações no mundo não virtual

em ações voltadas para o Instagram.

Ao aguçar esta percepção para os detalhes do cotidiano, e promover a estetização

destes instantes, o Instagram cria um clima de apreciação da banalidade, que pode se

transferir para outras instâncias da sociedade das imagens. Viver neste mundo-mosaico,

portanto, não é apenas pautar a criação de imagens nos parâmetros do instragramável,

mas pautar a própria vida, as ações, os reflexos. Viver em busca de uma vida picture

perfect, onde coisas, cenários e corpos sejam a priori estéticos. Mergulhar neste mundo

de imagens-sonho de nossa cultura do consumo, realizar fantasias na forma de vivências

estéticas de uma vida mais clean, e, portanto, mais satisfatória, com menos distrações,

Intercom–SociedadeBrasileiradeEstudosInterdisciplinaresdaComunicação40ºCongressoBrasileirodeCiênciasdaComunicação–Curitiba-PR–04a09/09/2017

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enfeamentos, problemas. Eliminar quaisquer fronteiras entre a vida e a arte através das

imagens; transportar o instagramável para a vida em si. No hiperreal de Baudrillard, a

cortina não se fecha mais, a vida é sonho, é imagem e o real se alimenta de si mesmo,

como aquilo que é passível de reprodução, de maneira equivalente ou melhor. O

Instagram é como um espaço de hiperarte: somos todos instagrammers; artistas são

instagrammers: somos todos artistas.

REFERÊNCIAS

BAUDRILLARD, Jean. Simulations. New York: Semiotext(e), 1983. CHALFEN, Richard. Snapshots ‘r’ us: the evidentiary problematic of home media.” In: Visual Studies, v. 17, n. 2, 2002. FLUSSER, Vilém. Ensaio sobre a fotografia: para uma filosofia da técnica. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1998. GROYS, Boris. The Weak Universalism. E-Flux, 2010, http://www.e-flux.com/journal/the-weak-universalism/, acessado em agosto de 2016. INSTAGRAM, Press News. Acessado em janeiro de 2017: https://www.instagram.com/press/?hl=en LIPOVESTKY, Gilles, SERROY, Jean. A estetização do mundo – Viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

MANOVICH, Lev. Instagram and the contemporary image - Subjects and Styles in Instagram Photography (Parte 1). Disponível em http://manovich.net/content/04-projects/090-subjects-and-styles-in-instagram-photography-part-1/lm_instagram_article_part_1_final.pdf, 2016

MURRAY, S. Digital Images, Photo-Sharing, and Our Shifting Notions of Everyday Aesthetics. IN: Journal of Visual Culture, v.7, 2008, p147-163. O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco – A ideologia do Espaço de Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002.