O INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS · constatou-se a necessidade de unificar as medidas...
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O INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS - IBCCRIM, entidade não
governamental, sem fins lucrativos, com sede na cidade de São Paulo (SP), Rua
Onze de Agosto, 52 – Centro, vem, por meio de seus representantes, apresentar
nota técnica sobre o Projeto de Lei nº 2902/2011, de autoria do Poder Executivo.
1. Objeto do PL nº 2902/2011 e sua tramitação legislativa
Tramita atualmente, perante a Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania da Câmara de Deputados, o Projeto de Lei nº 2902/2011, o qual, em seu
texto original, visava inserir novo regime de medidas cautelares patrimoniais no
bojo do Código de Processo Penal, unificando-as sob a rubrica de “medida cautelar
de indisponibilidade de bens, direitos e valores”. Além disso, pretendia alterar,
também, o Código Penal e as Leis n.º 9.613/98 e n.º 11.343/2006, por meio de
algumas disposições sobre temas correlatos.
O Anteprojeto original foi inspirado em uma pesquisa realizada pela Escola
de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio) sob a
coordenação do professor Thiago Bottino. Após o estudo do sistema atual,
constatou-se a necessidade de unificar as medidas assecuratórias para dotá-las de
maior racionalidade sem perder de vista seu caráter cautelar; optou-se, por
consequência, por unificar a nomenclatura, diferenciando a medida dos institutos
de arresto, hipoteca e sequestro que possuem dinâmica própria na legislação
processual civil; e entendeu-se ser mais adequado aplicar a medida de
indisponibilidade apenas a produtos ou proveitos do crime, isto é, a bens de
origem ilícita.1 Assim, o anteprojeto apresentado foi fundado nesses pilares, os
quais deveriam ter sido mantidos para conservar a coerência do futuro diploma
legal.
1 O relatório final da pesquisa está disponível em http://www.justica.gov.br/seus-direitos/elaboracao-
legislativa/pensando-o-direito/publicacoes/anexos/25pensando_direito_relatorio.pdf. Acesso em
12.09.2015.
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Antes da apresentação oficial do Projeto pelo Poder Executivo ao Poder
Legislativo foram levadas a cabo alterações substanciais, contrariando as
conclusões do estudo apontado. Não obstante, após a deflagração do processo
legislativo, algumas emendas foram acrescidas ao texto, desfigurando
significativamente a ideia original.
Atualmente, a Câmara dos Deputados está trabalhando com um texto
substitutivo em sua quarta versão que visa alterar apenas o Código de Processo
Penal, o Código Penal e a Lei de Drogas. Esse texto servirá de base para o exame
crítico que se pretende fazer.
Essas alterações perpetradas no decorrer do processo legislativo não
atentaram para a existência dos pilares apontados acima, os quais são essenciais à
coesão do todo. Para exemplificar desde logo, basta mencionar que no atual
Substitutivo (SBT 4 CCJ, apresentado em 06.08.2014) foi inserido artigo (art. 126
do Código de Processo Penal) prevendo expressamente a possibilidade de decretar
a indisponibilidade para garantir a reparação de danos ou pagamento de custas e
multas, distanciando-se da ideia original de permitir a aplicação da medida apenas
para bens de origem ilícita.
O grande problema é que não foram feitas todas as adaptações necessárias
à mencionada inclusão, ocasionando a falta de coerência do Projeto de Lei.
Além disso, outros aspectos necessários à preservação da legalidade do
processo de utilização de uma medida de indisponibilidade de bens foram
deixados de lado nesse percurso, como a previsão de prazo máximo de duração da
medida, a exclusão de toda a regulamentação da conversão da indisponibilidade
em perdimento e os artigos que sistematizavam a cooperação jurídica
internacional.
Feita essa breve apresentação do problema, será feita uma introdução
teórica sobre medidas cautelares patrimoniais no processo penal para, depois,
passar a uma análise dos pontos em que o atual Substitutivo do Projeto de Lei nº
2.902/2011 peca, seja por incoerência, seja por omissão. Após, serão sugeridas
alterações em seu conteúdo de maneira a torná-lo consentâneo com os princípios
constitucionais e legais que norteiam as medidas cautelares no processo penal.
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2. Das medidas cautelares patrimoniais no processo penal
Atualmente, o inciso II do artigo 91 do Código Penal prevê como efeito da
sentença condenatória a perda, em favor da União, dos instrumentos, produto e
proveito do crime. Levando em consideração os efeitos deletérios do tempo sobre
a eficácia do processo, é natural que se busquem mecanismos para assegurar a
utilidade do futuro provimento jurisdicional que, neste ponto específico, dizem
com a pena de perdimento.
Em termos gerais, com o escopo de diminuir os riscos, o processo admite as
chamadas medidas cautelares. De acordo com Scarance:
“São providências urgentes, com as quais se busca evitar que a decisão
da causa, ao ser obtida, não mais satisfaça o direito da parte e não
realize, assim, a finalidade instrumental do processo, consistente em
uma prestação jurisdicional justa.” 2
As medidas cautelares possuem natureza instrumental, isto é, consistem em
um meio para garantir a tutela jurisdicional do processo de conhecimento ou de
execução, razão pela qual a tutela por elas proporcionada é provisória. Ainda, pelo
aspecto temporal envolvido em sua gênese, as medidas cautelares são dotadas do
fator urgência, que implica a sumariedade da cognição nelas empreendida. Nesse
sentido, em geral, sua concessão depende da presença de dois pressupostos: o
periculum in mora e o fumus boni iuris.
Essa é uma construção da Teoria Geral do Processo que deve sofrer algumas
adaptações antes de ser transposta ao processo penal. Isso porque, neste caso, não
se admite a antecipação do provimento final condenatório, de maneira que não se
tutela o direito material do acusador, mas tão somente o processo. Além disso, o
2 FERNANDES, Antonio Scarance, Processo Penal Constitucional, 6ª Ed. rev,. atual e ampl., São Paulo,
Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 279.
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fumus boni iuris exigido deve se restringir a um juízo a respeito da materialidade
delitiva e autoria, ainda que indiciário, sem prévia consideração da culpabilidade. 3
Indiscutível é, todavia, a necessidade de se verificar a presença do
periculum in mora, entendido como o perigo causado pela demora inerente ao
processo garantista, bem como o perigo da ocorrência de algum evento que
dificulte ou impossibilite a efetividade da decisão. Assim, devem ser colhidos
elementos que tenham o condão de concretizar o dano temido, tais como indícios
de que a situação patrimonial do investigado ou acusado sofrerá alterações no caso
da decretação de medidas patrimoniais.
Diante das peculiaridades apontadas, e considerando que as medidas
cautelares penais sobre bens patrimoniais afetam direitos individuais, não será
possível prescindir da existência de justa causa para sua decretação no âmbito do
processo penal.
No atual texto do Código de Processo Penal existem três medidas
cautelares patrimoniais: seqüestro, hipoteca e arresto. Até 2006, quando foi
editada a Lei n. 11.435, a terminologia não era adequada, chamando-se de
seqüestro o que era arresto. Agora, a devida diferenciação foi feita. Assim,
seqüestro é a retenção da coisa litigiosa quando houver dúvida acerca de sua
propriedade. Arresto é a retenção de qualquer bem para assegurar que uma dívida
será saldada. Por derradeiro, a hipoteca legal recai apenas sobre bens imóveis do
acusado independentemente de sua origem, também com o objetivo de garantir a
solvabilidade do devedor.4
Diante do regramento confuso dessas medidas, bem como da ineficácia
resultante de sua utilização, o Ministério da Justiça patrocinou o mencionado
estudo que ensejou a elaboração do Projeto de Lei em comento para alterar a
configuração legal das medidas assecuratórias no processo penal. Não se pode
3 GIMENES, Marta Cristina Cury Saad, As medidas assecuratórias do Código de Processo Penal como
forma de tutela cautelar destinada à reparação do dano causado pelo delito. Tese de Doutorado. São
Paulo: USP, 2007, p. 37-38. 4 OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de, Curso de Processo Penal, 11ª Ed., Rio de Janeiro, Ed. Lúmen Júris,
2009, p. 279 e 282; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Medidas Cautelares Patrimoniais no
Processo Penal. In Vilardi, Celso Sanchez ela t (coord.), Direito Penal Econômico: crimes econômicos e
processo penal. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 177-178.
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perder de vista, entretanto, o conteúdo deste item teórico preliminar, o qual será
utilizado para avaliar o conteúdo do Substitutivo ao Projeto de Lei nº 2.902/2011
atualmente em discussão.
3. Sobre o âmbito de aplicação da medida de indisponibilidade
Orientando-se pelo princípio da univocidade da norma, de maneira a se
distanciar do regramento da lei processual civil, os estudos prévios à elaboração
do projeto de lei em exame optaram por unificar a nomenclatura das medidas
assecuratórias no processo penal, agregando clareza ao instituto. Assim, foi
cunhado o termo “indisponibilidade”.
Conforme apontado anteriormente, algumas das medidas atualmente
previstas no Código de Processo Penal têm como escopo tornar indisponíveis
valores obtidos licitamente com o fim de assegurar a futura reparação do dano ou
mesmo o pagamento de multa ou custas.
Ocorre que a pesquisa efetuada pela Fundação Getúlio Vargas apontou
argumentos para restringir o uso da medida de indisponibilidade aos bens de
origem ilícita: i) a legislação processual penal não deve ser utilizada para tutelar
interesses particulares; ii) na maioria dos casos não se fixa um valor mínimo para a
reparação, mesmo após a reforma de 2008 (artigo 387, IV do CPP)5; iii) a definição
do valor da indenização é de competência exclusiva da jurisdição civil; iv) nos
casos em que a Fazenda Pública é credora da indenização civil pelo dano, pode se
valer de meios mais eficientes para satisfazer seus créditos, como as execuções
fiscais.
5 Consta da pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas: “Mesmo decorrendo de uma imposição
legal – e, portanto, esperado em 100% dos casos, salvo exceções justificadas – o que se verificou é que
apenas 16% dos juízes aplicaram o 387, IV em mais da metade dos casos. E nunca por ignorância da lei.
Quando perguntados dos motivos que levaram à não aplicação do instituto, os juízes indicaram diversos
fundamentos para sua impropriedade no sistema processual penal. Especialmente nos crimes afetos à
Justiça Federal, e que são de maior repercussão econômica, os juízes afirmam não ser necessária a
aplicação do referido dispositivo legal.” Disponível em http://www.justica.gov.br/seus-
direitos/elaboracao-legislativa/pensando-o-direito/publicacoes/anexos/25pensando_direito_relatorio.pdf.,
p. 56. Acesso em 12.09.2015.
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Sendo assim, embora o anteprojeto inicial tenha tido o objetivo de unificar
as medidas, excluiu do seu âmbito de aplicação dos bens, direitos e valores
licitamente obtidos, de forma que a medida cautelar de indisponibilidade abarcaria
apenas produto ou proveito de crime. Assim, o artigo 131, caput do Projeto
originário apresentado pelo Executivo, em Seção denominada “Do Alcance da
Medida de Indisponibilidade” previa que:
“Art. 131. Estão sujeitos à medida de indisponibilidade os bens, direitos ou
valores sobre os quais pese suspeita de ser produto de crime, ou constituir,
direta ou indiretamente, proveito de crime.”
Esse artigo foi mantido no atual substitutivo, tendo sido apenas alterada
sua numeração. 6 Porém, embora o artigo 132 restrinja o alcance da medida tenha
aos bens, direitos e valores de origem ilícita, na atual versão do Projeto de Lei foi
incluído artigo preliminar conferindo nova função ao instituto, consignada no
artigo 126, in verbis:
“Art. 126. A indisponibilidade poderá ser decretada para garantir o
perdimento dos bens, direitos e valores, a reparação dos danos decorrentes da
infração penal ou para o pagamento de prestação pecuniária, multa e custas.”
(NR)
Observa-se a primeira incoerência: se o artigo 91, II do Código Penal
estabelece o perdimento do produto e do proveito do crime como efeito da
condenação, como a indisponibilidade dos bens, direitos e valores de origem ilícita
poderá viabilizar a reparação do dano ou o pagamento de custas ou multas? Ou,
por um lado, se mantém o regime anterior em que é possível acautelar bens,
direitos e valores de origem lícita no processo penal de modo a resguardar os
efeitos civis da sentença condenatória, ou, por outro, se opta pelo novo sistema
6 Vale apontar que a redação do atual Substitutivo foi alterada e não se refere mais à “suspeita” de ser
produto de crime, mas sim a “prova ou elementos de informação”, com maior tecnicidade. Preceitua o
atual artigo 132: “Estão sujeitos à medida de indisponibilidade os bens, direitos ou valores sobre os quais
haja prova ou elementos de informação suficientes de ser produto de infração penal, ou constituir, direta
ou indiretamente, proveito de crime.”
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proposto, em que apenas produto e proveito do crime são afetados, limitando-se a
funcionalidade da medida de indisponibilidade a garantir a eficácia da sentença
penal condenatória.
Existe apenas uma possibilidade de integrar artigos e direcionar bens
para garantir a reparação do dano e pagamento de multas com base no Parágrafo
Único do artigo 144-D do Substitutivo atual, que trata do Levantamento de
indisponibilidade e prescreve que, em algumas das hipóteses em que o
levantamento seria autorizado, “se for o caso, o juiz manterá a constrição em bens
suficientes para garantir a reparação de danos decorrentes da conduta objeto do
processo penal.”7
Essas hipóteses dizem respeito a situações em que não há sentença
condenatória (por ter havido absolvição ou extinção da punibilidade) ou por ter
sido provada a licitude dos bens, direitos e valores (pela procedência dos
embargos). Em última instância, portanto, seriam bens lícitos indevidamente
indisponibilizados.
Analisando detalhadamente o texto desse artigo 144-D, depreende-se
outra incoerência do dispositivo legal em virtude do acréscimo inauspicioso do
artigo 126. A redação prevista é a seguinte:
“Art. 144–D. A medida de indisponibilidade será levantada sempre que
ocorrer alguma das seguintes situações:
I – for prestada caução em valor equivalente pelo investigado, indiciado,
acusado ou terceiro;
II – for o processo suspenso na forma do artigo 89 da Lei 9.099, de 26 de
setembro de 1995, depois de reparado o dano;
III – sobrevier sentença ou acórdão absolutório;
IV – for extinta a punibilidade do investigado, indiciado ou acusado;
V – os embargos forem julgados procedentes.”
7 Esta previsão já existia no Projeto de Lei inicialmente encaminhado pelo Poder Executivo, embora
naquele texto não houvesse a indicação da finalidade da medida de indisponibilidade de assegurar efeitos
civis.
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Esse texto foi originalmente elaborado com vistas a regulamentar a
medida de indisponibilidade unicamente direcionada ao proveito e produto do
crime, de maneira que sempre que houvesse uma sentença absolutória, não
haveria a necessidade de acautelar o efeito penal da sentença condenatória e,
portanto, o levantamento poderia ser efetuado.
No entanto, em um panorama no qual é prevista a possibilidade da
medida de indisponibilidade ser utilizada para efeitos civis, também, não se
poderia autorizar o levantamento em qualquer situação de absolvição. Ainda que o
Parágrafo Único preveja a possibilidade de manutenção da indisponibilidade para
o caso, confere uma ampla margem de atuação ao juiz, o que não se coaduna com o
disposto nos artigos 66, 67 e 386 do Código de Processo Penal. Seria necessário um
regramento mais preciso da hipótese autorizadora da manutenção da
indisponibilidade, vinculando-a com o objeto de alguma ação cível com vistas à
reparação do dano.
Com efeito, referidos preceitos indicam a possibilidade de ajuizamento
de ação cível de reparação de danos nos casos em que não houver sido reconhecida
a inexistência material do fato ou em que não tiver sido comprovado que o réu não
concorreu para a prática da infração. Nas demais hipóteses absolutórias, como
falta de prova para condenação ou o fato não configurar infração penal, é possível
requerer a reparação do dano, de forma que não faria sentido permitir o
levantamento da indisponibilidade caso a garantia do efeito civil seja uma das
funções da medida.
Pode-se imaginar, ainda, uma situação limite na qual o acusado é
condenado e não possui qualquer patrimônio de origem lícita, de forma que a
aplicação do perdimento impossibilitaria a concretização dos efeitos civis da
sentença condenatória, ainda que intentada em juízo próprio.8 Todavia, esta é uma
lacuna que não foi resolvida em nenhum estágio do atual Projeto de Lei, apesar da
previsão do artigo 126.
8 Nesse sentido, acreditamos ser interessante rever o alcance do perdimento do artigo 91 do Código Penal
nos casos em que não houver bens aptos a reparar o dano da vítima. Em tempos de Justiça Penal
Restaurativa, na qual é dada maior ênfase à posição jurídica da vítima e a necessidade de restabelecer seu
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Note-se, portanto, que o conteúdo do atual Substitutivo do Projeto de Lei
n.º 2902/2011 está permeado de incongruências que devem ser sanadas antes de
sua aprovação. A escolha pela restrição da função da indisponibilidade para
acautelar os efeitos penais da sentença condenatória parece mais consentânea com
a natureza do processo penal e com o ideal de celeridade.
4. Da natureza cautelar da medida de indisponibilidade
Apesar de o Código de Processo Penal não trazer previsão expressa sobre o
tema, como já pontuado no item 2 supra, a doutrina considera o periculum in mora
requisito indispensável para o deferimento de qualquer medida cautelar e não
poderia ser diferente com a medida de indisponibilidade em comento. Trata-se de
corolário da presunção de inocência que emana do texto constitucional.
Assim, tanto no Anteprojeto de Lei elaborado pelos pesquisadores da
Fundação Getúlio Vargas, quanto no Projeto original apresentado pelo Poder
Executivo, havia a expressa previsão do periculum in mora como requisito para a
decretação da medida de indisponibilidade. Prescrevia o texto do Projeto original:
Art. 126. São requisitos para a aplicação da medida de indisponibilidade
de bens, direitos e valores:
I - indícios da proveniência ilícita dos bens, direitos e valores, ressalvada
a hipótese de reparação do dano;
II - prova da materialidade do crime e indícios suficientes de autoria; e
III - indícios de comportamento do detentor ou proprietário dos bens,
direitos ou valores tendente a se desfazer destes ou utilizá-los para a
prática de infração penal.
Todavia, o inciso III foi suprimido do texto atual do Substitutivo sob a
seguinte justificativa do relator:
estado anterior ao crime, é importante prever a possibilidade de direcionar bens, direitos e valores de
origem ilícita para a reparação do dano.
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Outrossim, apresento novo Substitutivo, visando à supressão do inciso III
do artigo 127 do Substitutivo anterior. É que os incisos I e II já são
suficientes para dotar de proporcionalidade e razoabilidade a aplicação
da medida de indisponibilidade. Exigir no caso concreto “indícios de
comportamento do detentor ou proprietários dos bens, direitos ou
valores, tendentes a se desfazer destes ou utilizá-los para a prática de
infração penal” tornaria excessivamente difícil a caracterização.
Compreenderia prova extremamente difícil de ser produzida,
configurando o que a doutrina chama de “prova diabólica” e
inviabilizando a aplicação da medida.
É dizer que, na prática, será quase impossível provar comportamentos
do proprietário do bem que demonstrem a vontade deste de se desfazer
dos bens. A bem da verdade, quando o requerente puder “provar” tais
comportamentos, muito provavelmente os bens já tenham sido
alienados, tornando impossível a aplicação da medida e causando graves
prejuízos a efetividade da prestação jurisdicional.
(...)
Ora, se o que se pretende é tornar mais efetiva e menos complexa a
análise judicial que concede a medida acautelatória em questão,
desarrazoada é a manutenção no bojo do Substitutivo do previsto em seu
art. 127, inciso III”.
A exclusão foi inauspiciosa. Como medida cautelar que visa garantir o
resultado final do processo, a determinação da indisponibilidade de bens, direitos
e valores só tem razão de ser no caso de haver fundadas suspeitas de que, ao final,
os supostos produtos e proveitos do crime terão desaparecido. Assim, antes de
definir a natureza ilícita desses bens por meio da declaração da sentença
condenatória, o afastamento da plenitude do exercício do direito de propriedade
em conjunto com a presunção de inocência só poderá ser levado a cabo se
estiverem sendo praticados atos que revelem o risco à satisfação do direito.
Portanto, é indispensável que o inciso III seja realocado no Projeto de Lei.
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5. Outros aspectos relacionados às alterações propostas ao Código de
Processo Penal
Como já pontuado, o projeto de lei em comento visa introduzir alterações
não apenas ao Código de Processo Penal, mas também uma breve modificação no
Código Penal e algumas inserções na Lei n.º 11.343/2006.
Fato é que o estudo que inspirou o anteprojeto inicial foi concentrado na
necessidade de mudanças no sistema de medidas assecuratórias do Código de
Processo Penal, de modo que é salutar segregar sua análise da parcela direcionada
ao outro diploma legal.
Até porque, como se afirmará adiante, é mais razoável ter um sistema
único de medidas cautelares patrimoniais, sendo contraproducente haver
disposições especiais para cada tipo de delito.
Nos itens anteriores destacamos dois aspectos centrais da crítica ao texto
do atual Substitutivo. Todavia, existem diversos artigos que foram excluídos, tanto
do estudo original, quanto do primeiro Projeto apresentado pelo Poder Executivo
(que já era mais sintético). O que se afirma pode ser comprovado pela verificação
da extensão do texto corrente, muito mais enxuto em comparação ao inicial.
Fato é que a elaboração do texto do anteprojeto foi embasada em um
estudo doutrinário e empírico que avaliou as reais necessidades de
regulamentação e estabeleceu os procedimentos necessários para um instituto
constitucional, legal e eficaz. A eliminação de parcelas de seu texto não acarretou
apenas uma falta de coerência dos trechos restantes, mas também eliminou itens
de suma importância para a constitucionalidade e legalidade do futuro diploma
legal.
Contudo, diante da grande extensão do texto inicial do projeto, optamos
por destacar itens fundamentais à configuração de um instituto consoante nosso
ordenamento jurídico e com vistas a produzir um processo mais eficiente, sem os
quais não se pode admitir a aprovação do Projeto de Lei examinado.
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(i) O primeiro ponto a ser ressaltado é a exclusão de parágrafo sobre a
duração da medida de indisponibilidade, que existia no artigo que estabeleceu os
requisitos para sua decretação.
A definição de um prazo para a duração da medida é de fulcral importância
para alinhá-la com os princípios da presunção de inocência e duração razoável do
processo. O postulado da temporalidade das medidas cautelares em geral já é
conhecido e não pode ser afastado com relação à indisponibilidade de bens,
direitos e valores. Os prazos sugeridos eram bastante razoáveis (180 dias no curso
do inquérito e 360 no curso do processo – §3º do artigo 128 do Anteprojeto
originário) com o objetivo de vincular os juízes que costumam ser
condescendentes com prazos legais exíguos e descolados da realidade. Por fim,
cabe lembrar que a ideia de que as medidas cautelares não podem durar
indefinidamente já se consolidou como posicionamento do Supremo Tribunal
Federal, como apontado pela pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, de maneira que
é indispensável sua consolidação no Projeto de Lei.
Outro ponto bastante importante é a supressão de todos os artigos que
regulamentavam as questões atinentes à Cooperação Jurídica Internacional.
Como corolário dessa exclusão, a autoridade central e o Estado requerente
foram retirados do rol de legitimados para requerer a medida. Restou apenas o
dispositivo genérico do artigo 144-F que prevê a possibilidade da medida de
indisponibilidade ser objeto de cooperação jurídica internacional em matéria
penal, sem qualquer regulamentação, o que dificulta sua realização em
consonância com a Constituição, em virtude da previsão de um procedimento ser
um corolário do princípio da legalidade.
A importância de regulamentar a Cooperação Jurídica Internacional para a
efetividade das medidas de indisponibilidade é revelada no seguinte excerto do
relatório produzido pela Fundação Getúlio Vargas:
O processo de globalização jurídica e política do mundo atual demandam
um alto grau de solidariedade internacional, principalmente no que diz
respeito à repressão a crimes de efeitos transnacionais. A expansão da
criminalidade, que ganhou caráter transnacional, foi progressivamente
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tornando os tradicionais mecanismos de cooperação (carta rogatória,
homologação de sentença estrangeira e extradição) ineficientes. No
âmbito do Direito Penal, em que estão envolvidas questões de ordem
pública e de direitos indisponíveis, um Estado, mesmo sem qualquer tipo
de acordo com outro, deve cumprir pedidos de cooperação jurídica,
garantindo que seu futuro pedido também será cumprido por esse outro
Estado.9
No âmbito da Cooperação Jurídica Internacional viabiliza-se a contratação
de escritórios de advocacia estrangeiros especializados em investigação
patrimonial, o que aumenta significativamente a possibilidade de obtenção de
resultados positivos nos casos de blindagem patrimonial em paraísos fiscais, de
modo que a medida não pode ser ignorada em um Projeto de Lei que tenha como
objetivo fazer valer a lei e determinar a perda de todos os bens, direitos e valores
ilicitamente obtidos no país e enviados a outros países.
(ii) Vale destacar, ainda, que a diminuição da regulamentação do
administrador judicial fez com que fosse excluído o prazo máximo para sua
nomeação, podendo ensejar a criação de “cargos” vitalícios de administradores, o
que não é desejável.
(iii) A normatização da alienação antecipada também foi toda suprimida,
sendo que uma das regras essenciais deixadas de lado foi a possibilidade de o
interessado pedir que a alienação não seja efetivada, mantendo a garantia de outra
forma. Isso porque há vezes em que o levantamento do valor correspondente não
será suficiente para restituir o proprietário do bem ao status quo ante, como
quando o bem tiver grande valor afetivo. Diante da falta de regulamentação do
instituto, o melhor seria suprimir totalmente a possibilidade de alienação
antecipada.
(iv) Com todas as supressões levadas a cabo no decorrer da alteração do
projeto legislativo, acabou sendo excluída a imperiosidade da determinação de
intimação do atingido pela medida de indisponibilidade para se manifestar
9 Disponível em http://www.justica.gov.br/seus-direitos/elaboracao-legislativa/pensando-o-
direito/publicacoes/anexos/25pensando_direito_relatorio.pdf., p. 79. Acesso em 12.09.2015.
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previamente sobre os aspectos essenciais de sua determinação, ou seja, excluiu-se
o exercício do contraditório prévio à decretação da medida. Do jeito que está posto
no atual Substitutivo, o interessado só poderá se manifestar em sede de embargos,
prejudicando o exercício de seu direito constitucional.
(v) Cabe mencionar a falta de razoabilidade das multas previstas nos
parágrafos 4º e 5º do artigo 133 do atual Substitutivo. A multa poderá ser de até
metade do valor dos bens indisponibilizados se houver modificação do estado de
bens que impeça o cumprimento da medida, sem qualquer fixação de parâmetro.
Não obstante, há uma previsão de aumento da multa em até mil vezes no caso de
descumprimento reiterado da advertência relativa à impossibilidade de
modificação do estado dos bens.
Também seria de suma importância que todos os dispositivos que
tratavam sobre como o perdimento deveria ser efetivado fossem reavivados no
Projeto de Lei, também em respeito ao princípio da legalidade.
A título final, e como alertado no início no item, foram eleitos alguns
pontos fundamentais para análise nesta breve nota, o que não exclui a existência
de outros temas que mereçam maior debate.
Exemplo é a exigência que o inciso II do artigo 125 faz de que a medida de
indisponibilidade deve ser adequada à “gravidade do crime”. A expressão é
demasiadamente ampla e o Projeto não oferece qualquer subsídio que indique
como deve ser interpretada.
Outros pontos que também merecem reflexão mais aprofundada são a
possibilidade do assistente de acusação ter legitimidade para o requerimento da
medida (artigo 130) e a previsão de contrarrazões nos embargos (artigo 141, §3º).
Tudo isso demonstra que o Projeto de lei em apreço não está maduro para
aprovação.
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6. Aspectos relacionados às propostas de alteração da Lei de Drogas (Lei
n. 11.343/06)
Em primeiro lugar, em nome da coerência e unicidade do ordenamento
jurídico, entendemos desnecessárias disposições sobre indisponibilidade na lei em
comento que tratem dos mesmos aspectos abordados no Código de Processo Penal,
devendo ser aplicado o regramento geral e, apenas quando houver necessidade,
devem haver previsões específicas atinentes aos entorpecentes.
Nesse sentido, a nova proposta de redação do artigo 60 da Lei n.
11.343/06 destoa da nova redação do artigo 132 do Substitutivo.
Nesse, a palavra “suspeita” outrora presente no artigo 131, foi substituída
por “prova ou elementos de informação suficientes de ser produto de infração
penal, ou constituir, direta ou indiretamente, proveito de crime”, conferindo-se
maior segurança quanto ao stardard probatório exigido para o deferimento da
medida de indisponibilidade. Assim, no caso de vingar a regulamentação
específica, a redação do artigo 60 da Lei n. 11.343/06 deve ser harmonizada com o
artigo 132 do Código de Processo Penal, precisando a carga probatória exigida
para a indisponibilidade em comento.
Além disso, causa estranheza a possibilidade de alienação no prazo máximo
de trinta dias dos meios de transporte e utensílios apreendidos que tenham
supostamente sido usados para a prática do crime de tráfico ilícito de
entorpecentes. Como corolário do princípio da presunção de inocência, seria
indispensável a existência de uma sentença condenatória acerca da existência do
crime para que os instrumentos utilizados na sua prática pudessem ser alienados
como forma de perdimento. Outro não é o mandamento do artigo 91, II do Código
Penal. Se a ideia era permitir a alienação antecipada, o texto legal deveria ter sido
mais explícito, mas não parece ser o caso, já que esse instituto vem previsto no
artigo 61-A.
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Por fim, cumpre criticar a inserção dos artigos 63-A, que condiciona os
pedidos de restituição ao comparecimento pessoal do acusado, exigência
demasiadamente rígida inspirada no artigo 366 do CPP.10
Considerações Finais
As breves considerações aqui tecidas tiveram o escopo de demonstrar as
incoerências resultantes das reiteradas alterações promovidas no texto do
Anteprojeto originalmente apresentado com inspiração em um estudo acadêmico
sério patrocinado pelo próprio Ministério da Justiça.
O regramento unificado da medida de indisponibilidade pode contribuir
para a coerência do sistema processual penal em seu aspecto patrimonial, desde
que observados os pilares da cautelaridade, bem como que haja uma coerência
sistêmica concernente ao seu âmbito de aplicação, inicialmente restrito aos bens,
direitos e valores ilicitamente obtidos. O IBCCRIM, em suma, e diante de tudo o que
se expôs, entende que o Substitutivo apresentado não está em consonância com os
princípios destacados como essenciais no âmbito de aplicação da medida de
indisponibilidade de bens e deve sofrer profunda revisão antes de passar a
integrar o ordenamento jurídico brasileiro.
São Paulo, 18 de novembro de 2015.
Andre Pires de Andrade Kehdi
(Presidente do IBCCrim)
10 Sobre o artigo 63-B, entendemos ser necessário maior debate, pois pode ensejar uma indevida inversão
do ônus da prova.