O ISLÃ ENTRE CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE

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O ISLÃ ENTRE CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE Abdelwahab Meddeb O islã constitui, a um só tempo, uma civilização, uma religião e um objetivo político. Nos dias que correm, os dois primeiros atributos foram eclipsados pela violência dos sediciosos que perpetuam seu próprio crime invocando o islã. Os atentados espetaculares de 11 de setembro de 2001 foram cometidos em nome da jihad, a guerra santa, a qual historicamente foi o vetor da expansão islâmica. Mas será a reativação da jihad pelos atuais terroristas teologicamente legítima? Será possível colocar no mesmo nível, e analisar segundo os mesmos critérios, a expressão da guerra santa agora e em períodos anteriores? Convém mostrar de que modo os fundamentalistas procedem a manipulações que tiram as noções de seu contexto de pertinência e traçam uma continuidade conceitual que nega as mutações da história, atuando sobre as idéias e provocando sua metamorfose. Pois é fácil demonstrar que, dentro da tradição teológica, a jihad está sujeita a condições específicas que não estão presentes no contexto do 11 de setembro, ocasião em que ela foi nomeada. 1 Mais que isso, num esforço de interpretação dogmática, do âmbito mais do espírito do que da letra, é possível inferir que essa noção guerreira pertence à parte conjuntural das prescrições divinas que pode ser evitada por uma determinada evolução. E, desde meados do século XIX, duas gerações de teólogos reformadores vinham tornando obsoleta essa noção de jihad, que foi veementemente restabelecida, em meados do século xx, pelos doutrinários do fundamentalismo, a fim de mobilizar as pessoas em torno de seu apelo polêmico à guerra de crenças. No entanto, a maneira de agir dos fundamentalistas islâmicos só vem confirmar a visão estabelecida no senso comum, a de um islã por natureza belicoso, hegemônico, conquistador, politicamente violento. Mesmo quando se encontra em situação de fragilidade, ele pelo menos ousa declarar as hostilidades, ainda que não disponha dos meios para a guerra contra os inimigos que designou para si e que são muitíssimo mais poderosos. Assim, diante de uma relação de forças desfavorável, não renuncia à guerra, e sim a adapta aos meios do terrorismo, o qual se transforma em arma capaz de produzir enormes estragos. Os candidatos ao terrorismo tornam-se temíveis quando fica patente que estão prontos a morrer para honrar o mito sacrificial; fazem do dom de sua vida um ato santo devastador. Os acontecimentos de 11 de setembro ocupam todos os espíritos e exigem da humanidade uma luta sem tréguas contra o terrorismo fundamentalista. E essa luta constitui um desafio, e também um teste, para a democracia. Além dos meios da guerra, legítimos desde que se localizem os antros móveis dos militantes islâmicos militarizados, nunca se deve perder de vista que é pelo lento e tateante procedimento judiciário que é importante confundir os membros das "redes adormecidas"

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O ISLÃ ENTRE CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIEAbdelwahab Meddeb

O islã constitui, a um só tempo, uma civilização, uma religião e um objetivo político. Nos dias que correm, os dois primeiros atributos foram eclipsados pela violência dos sediciosos que perpetuam seu próprio crime invocando o islã. Os atentados espetaculares de 11 de setembro de 2001 foram cometidos em nome da jihad, a guerra santa, a qual historicamente foi o vetor da expansão islâmica. Mas será a reativação da jihad pelos atuais terroristas teologicamente legítima? Será possível colocar no mesmo nível, e analisar segundo os mesmos critérios, a expressão da guerra santa agora e em períodos anteriores? Convém mostrar de que modo os fundamentalistas procedem a manipulações que tiram as noções de seu contexto de pertinência e traçam uma continuidade conceitual que nega as mutações da história, atuando sobre as idéias e provocando sua metamorfose. Pois é fácil demonstrar que, dentro da tradição teológica, a jihad está sujeita a condições específicas que não estão presentes no contexto do 11 de setembro, ocasião em que ela foi nomeada.1

Mais que isso, num esforço de interpretação dogmática, do âmbito mais do espírito do que da letra, é possível inferir que essa noção guerreira pertence à parte conjuntural das prescrições divinas que pode ser evitada por uma determinada evolução. E, desde meados do século XIX, duas gerações de teólogos reformadores vinham tornando obsoleta essa noção de jihad, que foi veementemente restabelecida, em meados do século xx, pelos doutrinários do fundamentalismo, a fim de mobilizar as pessoas em torno de seu apelo polêmico à guerra de crenças.

No entanto, a maneira de agir dos fundamentalistas islâmicos só vem confirmar a visão estabelecida no senso comum, a de um islã por natureza belicoso, hegemônico, conquistador, politicamente violento. Mesmo quando se encontra em situação de fragilidade, ele pelo menos ousa declarar as hostilidades, ainda que não disponha dos meios para a guerra contra os inimigos que designou para si e que são muitíssimo mais poderosos. Assim, diante de uma relação de forças desfavorável, não renuncia à guerra, e sim a adapta aos meios do terrorismo, o qual se transforma em arma capaz de produzir enormes estragos. Os candidatos ao terrorismo tornam-se temíveis quando fica patente que estão prontos a morrer para honrar o mito sacrificial; fazem do dom de sua vida um ato santo devastador.

Os acontecimentos de 11 de setembro ocupam todos os espíritos e exigem da humanidade uma luta sem tréguas contra o terrorismo fundamentalista. E essa luta constitui um desafio, e também um teste, para a democracia. Além dos meios da guerra, legítimos desde que se localizem os antros móveis dos militantes islâmicos militarizados, nunca se deve perder de vista que é pelo lento e tateante procedimento judiciário que é importante confundir os membros das "redes adormecidas" que rondam em meio a pessoas comuns em sociedades fundadas na liberdade de palavra, de reunião, de movimento e de empreendimento. Diante da ameaça, convém controlar a impaciência. É nos momentos extremos, aliás, que se testa a força do direito, cuja autoridade deve se estender às situações de exceção.

Nosso propósito, porém, não é o de dar instruções para esse teste. O que queremos é constatar como tais acontecimentos obscurecem nossa compreensão do islã como fenômeno histórico complexo. Eles nos afastam de suas potencialidades e possibilidades e confirmam o estereótipo que o fixa no papel do inimigo. Ora, tal interpretação equivocada do islã é o melhor aliado de Bin Laden, de seus partidários e seguidores. Uma das maneiras de lutar contra o fundamentalismo é devolver o islã à sua complexidade e reconhecer sua contribuição para a universalidade. Para tanto, convém não reduzi-lo apenas à expressão política e guerreira e abordá-lo através de

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duas outras instâncias em que ele se expressa; de modo que é conveniente considerá-lo como civilização e religião antes de levar em conta sua vocação política e guerreira.

Ao evocar a civilização islâmica gostaria, primeiro, de atenuar o particularismo que o epíteto estabelece e insistir em uma questão comum, para além das especificidades formais e lingüísticas que distinguem as contribuições dos povos e das nações e que estabelecem as diferenças, ilustrando a diversidade humana ao longo do tempo e do espaço. Neste estágio, gostaria de refutar duas considerações, uma que contém um quinhão de verdade, e outra que representa o preconceito mais difundido.

A primeira procura delimitar os contornos das identidades sobre as quais se constroem as civilizações. Assim, é legítimo estudar a civilização chinesa, a indiana, a ameríndia, a egípcia, e evocar seu nascimento, crescimento, apogeu, decadência e, em alguns casos, o momento em que elas desaparecem.

A segunda é a visão projetada das comunidades constituídas sobre 0 outro: quando se olha para uma civilização a partir de uma outra, é comum que se atribua somente a si mesmo e aos seus o status de civilizado, colocando 0 outro na condição de bárbaro.

Ora, pretendo ultrapassar essas duas considerações (que associam uma verdade insuficiente a um tropismo) integrando, no interior de toda instituição humana, a tensão entre civilização e barbárie. Tensão esta que está no centro da energia criadora e das obras que ela produz.

É nessa passagem que o plural se converte em singular e que as civilizações alimentam um princípio civilizador único, sempre ameaçado, assediado, agredido pela barbárie, e a história nos ensina que não existe nenhuma conquista definitiva que liberte o homem da atração da destruição. Em suma, o ato civilizador que emana de uma ou outra civilização alimenta a civilização tout court, a qual é ameaçada pela barbárie que jaz no fundo de todo aquele que, hábil, inventa e edifica; se o ato civilizador exige esforço e superação, a barbárie, por sua vez, corresponde ao instinto e ao estado natural: tal é a conclusão a que chega Freud em seu O mal-estar na civilização.2

O melhor exemplo que ilustra essa constatação foi proposto pelo século XX, quando um dos povos mais inventivos, representante dos estágios derradeiros da civilização moderna, européia, ocidental, afundou, com o nazismo, na mais tenebrosa e funesta barbárie, aliando-se à Técnica, considerada como fim da metafísica (Heidegger).

De acordo com o grande historiador árabe Ibn Khaldún (século XIV),3 as categorias de civilização e barbárie são o motor que faz girar a toda da história na sucessão de Estados e dinastias nos territórios do islã. Segundo esse pensador, que elaborou uma visão cíclica da história, a civilização das cidades está destinada a perecer; forças vivas, com sua energia guerreira intacta, surgem da barbárie nômade e atacam, e depois investem contra as cidades e as destroem; na seqüência, os recém-chegados instalam-se sobre os escombros dos que acabaram de aniquilar e, aos poucos, iniciam a reconstrução; civilizam-se e crescem à medida que constroem até que iniciam sua decadência, sendo derrotados por novos bárbaros fadados a percorrer as mesmas etapas, que sempre retornam em sua inabalável sucessão.

Gostaria de explicar dessa perspectiva o feito civilizador do islã. E minha tese será pontual e clara: o islã levou a civilização a um apogeu que ela não conhecera antes dele. Para sustentar essa afirmação, convém situar esse islã em relação ao espaço em que ele se desenvolveu, assim como à época em que se manifestou. Dois pontos de vista se confrontam: o defendido por Henri Pirenne em Maomé e Carlos Magno,4 segundo o qual a entrada do islã no cenário mediterrâneo constitui uma ruptura irreparável; e o de Maurice Lombard em O islã em sua primeira grandeza,5 que insiste na continuidade do feito civilizador sob a autoridade islâmica, pelo menos no período que vai do século VIII ao

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século XI.Nem é preciso dizer que a tese da continuidade é aquela que privilégio, e é fácil

explicá-la em seus múltiplos domínios. Vou começar pela arquitetura, pois, como diz Viollet-Le-Duc, ela é o "espelho da ideologia". É nas formas que ela combina que se manifesta com maior clareza o estado dos seres que se movem à sombra dos edifícios. E os monumentos do islã souberam adaptar suas novas limitações culturais às grandes tradições arquitetônicas encontradas nas terras da alta Antigüidade que acabavam de ser conquistadas. O Domo do Rochedo, em Jerusalém (692), constitui o termo de um processo iniciado no século VI a. C.; é uma realização perfeita da idéia do plano centrado - inaugurado pela orquestra do teatro grego, passando pelos tesouros de Delfos, pelos templos circulares de Roma, pelas igrejas paleocristãs e bizantinas construídas em conformidade com o octógono ou em torno de uma cruz grega.6 E a mesquita omíada de Damasco (c. 710) ilustra à perfeição o plano basilical romano, com suas três altas naves paralelas.

As formas herdadas, é claro, submetem-se às necessidades da nova religião, já que, em ambos os exemplos, os monumentos destinados à oração exibem sua orientação para Meca por intermédio do mihrab, nicho que olha em direção à ka'ba, cubo recoberto por um pano preto, ônfalo do mundo situado no centro do recinto sagrado, para o qual o fiel se volta onde quer que se encontre no mundo, e em torno do qual gira o peregrino quando está visitando o local.

O cenário também se adapta às novas exigências. Para honrar, se não o caráter não icônico do templo, pelo menos a recomendação profética que restringe ao inanimado a prática de imagens, os mosaicos bizantinos se despojaram de seres animados, limitando-se, em Jerusalém, a um cenário geométrico, floral, emblemático e epigráfico. E para propor a Damasco paisagens que associam a arquitetura áulica aos jardins floridos, arborizados, atravessados pelas águas dos rios, que alguns identificaram como uma imitação do paraíso corânico, que oferece uma sombra pronta para saciar o sonho do homem do deserto, submetido à tirania do sol.

É importante nos determos nas letras monumentais que reluzem nas paredes da "rotunda" de Jerusalém, pois elas testemunham um ato inaugural de grande alcance. Atestam primeiramente que o edifício é datado (de 72 da era maometana, ou seja, 692 d. C.). Trazem, além disso, uma das mais antigas transcrições corânicas. Finalmente, projetam em escala monumental a escrita, transposição do pergaminho à parede que inventa a caligrafia. Esta será a arte primeira do islã, destinada a exaltar a letra onde se encarna a voz do verbo divino, tornando-a o sinal que remete ao simbólico e ao imaginário, como a Tábula das Leis na tradição judaica e o Corpo no cristianismo.

Se tomarmos o exemplo das mesquitas do século IX do Ocidente muçulmano, a de Kairuan e a de Zituna, em Túnis, notaremos que os construtores daquelas vastas salas hipostilas se inspiraram nos conjuntos anteriores, romanos e bizantinos, como se se tratasse de uma pedreira ou de fábricas de capitéis e colunas. Isso poderia ser interpretado como negação da tradição antiga e de seus derivados, como uma recusa do templo romano e da basílica bizantina. No entanto, existem provas arqueológicas de que, quando os árabes chegaram à África (por volta do final do século VII), a maior parte dos monumentais conjuntos não só já não estava em funcionamento como estava abandonada, sem manutenção, parcialmente em ruínas. A reutilização pôde então devolver vida a um signo abandonado. Pôde alimentar a emulação, a obrigação de estar à altura da coisa tomada emprestada e restituída às próprias paredes. Aquele que toma emprestado pode até desejar superar o que cede, inventando um espaço de outra amplitude, destinado a honrar aquilo a que serviu alhures.

Além de sua beleza intrínseca, essas duas mesquitas (principalmente a de Kairuan), na profundeza de sua penumbra, constituem dois museus de colunas e

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capitéis romanos e bizantinos, tão numerosos e varia dos que representam preciosas amostras a partir das quais se pode esboçar um perfil do comércio do mármore e do tratamento que este recebia no cenário mediterrâneo. Assim, na reutilização de artefatos antigos, monumentos islâmicos tornam-se o repositório de uma parte da história do Império, de Roma a Constantinopla.

As obras produzidas em terras islâmicas inscrevem-se, se não na continuidade, ao menos como conseqüência das referências antigas. Pois as civilizações ignoram o culto do puro, criam apenas mediante a mistura. Outra mesquita famosa ilustra esse fenômeno. É a famosa e lindíssima mesquita de Córdoba, que fascinou mais de um visitante (entre seus milhares de admiradores, cito Edgar Quinet,7 que, quando a viu, no inverno de 1844, a ela se referiu com suas "mil colunas [...] mescladas ao abandono da natureza edênica"; ou mesmo Rilke,8 que em uma de suas cartas censura a intrusão católica, que interrompeu a fluidez exibida pela mesquita).

Essa selva de colunas do século x é a metáfora de um oásis que, como os que o antecederam, na África, reproduz o jogo de sombras e luzes que pontua os palmeirais. Essa "lição das trevas" é uma celebração nostálgica do espaço das origens que o árabe oferece a si mesmo no exílio, distante da terra de seus antepassados. Também deparamos aqui com a reutilização das colunas antigas, às quais se adapta, na escala do monumento, uma citação romana tirada do aqueduto de Segóvia e que aparece na dupla fileira de arcos. E foi o próprio Basileu quem mandou ao califa uma equipe de mosaístas para decorar a parede que acolhia o nicho do mihrab e a abóbada que o precede.9 Através desse alvo sobre o qual incidem todos os olhares ressoa o clarão sonoro das tésseras de ouro, prata, lápis-lazúli e esmeralda. E a visualização técnica da abóbada tira um esplêndido proveito estético do cruzamento de ogivas, que teria uma finalidade estrutural nas naves de luz que cantariam o Deus nas terras do Norte.

Essa mesquita, que supostamente representa a arte islâmica por excelência, é o produto de uma nostalgia árabe tornada real a partir de antigos feitos da arte, enriquecidos por uma reminiscência romana em cuja linha focal canta o luxo de Bizâncio e em cuja calota o espectador pressente o gótico por vir.

No momento em que a Europa se afastou da referência da Antigüidade, o islã viria a ser o continuador desta. Uma outra prova disso é a adaptação das termas nos banhos turcos, tão numerosos nas cidades do islã - e que foram murados pelos cristãos quando reconquistaram as cidades de al-Andalus, como em Córdoba, onde, no início do século XIII, o primeiro gesto da autoridade católica foi proibir o acesso aos quase trezentos banhos públicos da cidade, gesto por meio do qual Nietzsche denunciou o "niilismo" em relação ao corpo na tradição cristã.10

Os ritos de purificação deram uma sobrevida, ou mesmo um renascimento, aos estabelecimentos romanos, nos quais a água quente e o vapor circulavam por redes de tijolos refratários distribuídos ao longo das salas, e cuja função se adaptava às várias temperaturas, do frio ao quente. Os banhos árabes retomaram a divisão romana, que distinguia o vestiário (apoditarium), a sala fria (frigidarium), a sala morna (tepi-darium) e a sala quente ou estufa (caldarium).

Também é possível perceber a continuidade de Roma em duas outras realizações que, na aparência, são radicalmente distintas.

De fato, existe algo mais antitético que o rigor do urbanismo romano e a aparente anarquia das cidades islâmicas? Um aplica com preocupação obsessiva a idealidade ortogonal; a outra propõe um dédalo onde mesmo a sensata Ariadne perderia a razão. Ao traçado das ruas que, em absoluta simetria, só se cruzam em ângulos retos se opõe o mais intrincado dos labirintos. Conclusões apressadas tiradas dessa constatação atribuíram a razão geométrica aos senhores do tabuleiro, e a desordem da improvisação aos que fazem crescer o dédalo como que para confundir o estrangeiro, incapaz de discernir entre as ruas abertas e os becos. Acrescente-se a isso o sentimento de angústia instaurado pela frustração de ter que interromper o

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passo quando, numa rua aparentemente comum, somos obrigados a dar meia-volta ao deparar com um beco sem saída.

A verdade que estrutura a cidade islâmica, porém, é mais complexa. Os princípios funcionais do urbanismo romano estão totalmente presentes. Ocorre apenas que, no islã, o mestre-de-obras se nega a sistematizá-los. Toda cidade funda-se no cruzamento do cardo com o decúmano; estes muitas vezes se organizam em dois paralelos que serpenteiam e conduzem a portas que correspondem aos pontos cardeais. Na zona central em que eles se encontram, desenvolvem-se as funções do fórum: o templo e o mercado (onde o negociante convive com o artesão), aos quais às vezes se juntam o palácio ou a cidadela. E muitas vezes os amplos pátios das grandes mesquitas é que servem de praça (como no pátio da mesquita das Omíadas, em Damasco; de el-Azhar, no Cairo; de Zituna, em Túnis; e de Karaouine, em Fez).

É em torno desse princípio de plano romano que se aglutina o dédalo descontínuo composto por uma série de unidades originalmente reunidas ao redor de um mesmo "espírito de corpo" (tribo, clã, clientela) - o que funda a lógica dos bairros no pacto comunitário. Todas as cidades históricas da margem sul do Mediterrâneo funcionam segundo essa dupla referência, que vincula a improvisação atribuída à solidariedade clânica ou étnica a uma estrutura inspirada nos princípios urbanísticos romanos. Isso também se verifica em Fez, Rabat, Marrakech, Túnis, Cairo e Damasco.

O segundo exemplo de aproximação entre uma estranheza islâmica e uma familiaridade romana é, sem dúvida, a casa. O que as separa é a face cega da morada árabe, que impede que o olhar estrangeiro a penetre: mesmo a porta, única abertura para a rua, opõe ao olhar curioso 0 obstáculo de uma comprida passagem em ziguezague. Essa disposição reforça a reputação introvertida da casa islâmica, correspondendo à separação entre espaço privado e espaço público, sobredeterminada pela assimetria sexual instaurada pelo código do desvelamento, que implica a proteção das mulheres dos olhares estranhos quando elas se movem em nudez relativa de membros, cabelos e rosto.

Basta, porém, estar do lado de dentro dessas construções para descobrir que a estrutura das casas não faz mais que retomar o projeto romano, centrado em torno de um pórtico que se abre para o pátio e se estende para além de uma das alas construídas, até um jardim que oferece, no interior do recinto, uma segunda abertura para o azul do céu. Quando as cidades italianas, aliás, reatam com a referência arqueológica romana, encontram nas moradas patrícias da Renascença o uso do cortelho, o que lhes confere uma surpreendente semelhança com os palacetes da margem sul.

Finalmente, acrescento o que poderíamos chamar de civilização das villas, que foi interrompida na Europa cristã e teve continuidade no islã. Todas as grandes famílias de Córdoba dispunham de um palacete intramuros e de uma villa nos arredores da cidade, particularmente em locais elevados. É o que atestam os vestígios arqueológicos de Rusafa, Medinet az-Zahrâ' e Medinet az-Zâhira, nos arredores da aglomeração que tangencia as sinuosidades do Guadalquivir.

Uma importante obra literária, O colar da pomba - ou, na tradução francesa, Do amor e dos amantes11 -, escrita no ano 1000 pelo cordobês Ibn Hazm, também testemunha a migração das famílias, no verão, para essas villas de lazer e cultivo, onde se respira ar puro e se espreita a brisa da noite quando o calor toma conta dos corpos e paralisa os espíritos presos à teia compacta das ruelas e das paredes em que o tijolo conspira com a pedra para aumentar a pressão do calor.

E os tratados de agricultura, como o de Sa'd Ibn Luyün (1282-1349),12 natural de Almeria, descrevem em detalhe como o espaço era distribuído nessas propriedades em que o estábulo, as estrebarias e o galinheiro são relegados aos extremos, seguidos pela área dedicada à horticultura e pelo pomar, até chegar aos canteiros de flores separados por açudes que acolhem a música da água que jorra, escorre, cascateia, o

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mais perto possível da villa propriamente dita, ocupada pelo proprietário e por sua família em veraneio.

O que temos é precisamente o intermediário entre a villa romana e as ricas casas de veraneio que, durante a Renascença, seriam construídas pelas grandes famílias toscanas ou venezianas. E a distribuição do espaço descrita por Ibn Luyún está muito próxima daquela a que Palladio se submeterá ao testar seu sempre renovado talento na realização de suas villas à beira do Brenta ou na região de Pádua, ou ainda nas cercanias de Vicenza e no prolongamento da teia urbana de Treviso.

Aproveito, aliás, a oportunidade que me levou a citar os tratados de agricultura no contexto das villas para mencionar o mais famoso deles, que foi composto por Ibn al-'Awwãm, sevilhano do século XIII.13 Primeiro, esse escrito nos diz que a agricultura era considerada ao mesmo tempo uma ciência, uma técnica, uma arte e uma profissão. A obra foi resultado de múltiplas contribuições, babilônicas, gregas, romanas, sírias, bizantinas, ibéricas, baseadas em um método experimental. É a típica fusão que cria o novo espírito da civilização que prosperou em nome do islã. Nessa civilização, encontraram-se tradições que antes dela permaneciam isoladas.

Constata-se então que o princípio de continuidade não se restringe à participação romana ou à grega. É na fermentação, dentro do mesmo cadinho de tradições ocidentais e orientais anteriores, que se revela a verdade da civilização do islã. Dar continuidade aos que nos precederam, ser seus herdeiros, não implica a submissão do discípulo ao mestre, nem algum espírito conservador. Da recapitulação chega-se à síntese, que inaugura uma nova acumulação. A continuidade se faz, então, dentro de um espírito crítico e pragmático que estimula a criação. Lembraremos mais tarde como as ciências desenvolvidas em língua árabe confirmam esses mesmos princípios.

O exemplo arquitetônico também mostra seu valor em outros lugares, evidenciando o trabalho de criação dentro da continuidade de outras tradições. Depois dos casos na tradição ocidental, também é possível verificá-lo no Oriente. Ele é confirmado em vestígios persas, como o da monumental abóbada do palácio sassânida de Ctesifon (século VI), que serviria de modelo à arquitetura dos iwân-s, universalmente difundida desde a Mesopotâmia, do Egito à índia. O iwân é aquela abóbada muito elevada, de perfil fendido, que cobre um vasto espaço ao abrir-se em um só bloco sobre um pátio.

Essa imitação oriental fará com que o oratório do islã conquiste a altura, sugerindo o simbolismo do vôo e associando a experiência religiosa à ascensão, à viagem do espírito pelas esferas celestes. Assim, a transcendência é visualizada em termos de elevação, enquanto a horizontalidade das mesquitas ocidentais anteriormente citadas mostra uma adesão religiosa que traz o céu para a terra, tornando imanente a transcendência.

Um dos mais belos exemplos de iwân é o que encima a medersa mameluca onstruída no Cairo pelo sultão Hassan (início do século XIV). Maqrizi, cronista cairota do século XV, nos revela em suas khitat que intenção, tanto do patrocinador como do arquiteto, era competir com o modelo sassânida lançando o desafio técnico e estético de superá-lo em monumentalidade e beleza com uma abóbada que ultrapassa em cinco côvados o modelo sassânida de Ctesifon.14

Outra invenção que se submete à imitação de uma obra-prima antiga pertence à arquitetura otomana. O genial Sinan emula, no século XVI, Anthemios de Tralles e Isidoro de Mileto, autores do conceito do projeto e da elevação a que se conformou Santa Sofia (532-537). Assim será criado o terceiro grande modelo que ilustra a arquitetura das mesquitas, junto com o iwân e as salas hipostilas. Sinan não se limitou a imitar Santa Sofia, ele também assimilou sua inspiração e, por assim dizer, esgotou suas potencialidades nas variações que efetuou.

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De sua obra profusa e variada, vou citar um trabalho do início, a mesquita Shahzad (1548), em Istambul, onde ele se afastou do modelo ao acrescentar duas semicúpulas laterais, obtendo assim um projeto centrado, polilobado, contido num quadrado. E como a altura da cúpula (37,5 m) é quase igual ao lado do quadrado (38 m), o volume interno sugere a ilusão de um cubo, forma a que Platão atribui "a eterna beleza". O quadrilóbulo contido em seu quadrado responde ao quadrado do pátio, aplicando assim a disposição pitagórica dos "quadrados girando dentro de um círculo".15 E, como sempre ocorre com Sinan, cada mínimo detalhe é desenhado com o maior cuidado e contribui para o dinamismo do conjunto, do qual nenhum elemento pode ser retirado sem desfazer sua definitiva unidade.

Na referência ao platonismo e ao espírito geométrico dos gregos, na monumentalidade, na extrema precisão do desenho, na preocupação com o movimento dentro da unidade (que foi também uma característica de Alberti), Sinan representa uma formidável resposta a seu colega da geração anterior, Michelangelo. Em ambos os casos, o mito do arquiteto demiurgo encarnou-se no Oriente e no Ocidente em duas figuras que se sucederam imediatamente no tempo.

Mas ainda será necessário empregar essas categorias (Oriente/Ocidente) que separam, tratando-se de uma obra que é produto de um islã sem fronteiras? Essa interrogação sugere que situemos os produtos dessa civilização, se não numa história partilhada com a Europa, ao menos em distintas diacronias que não deixaram, porém, de cruzar-se no mesmo cenário.

E, baseando-me ainda no exemplo arquitetônico, destaco outra coexistência entre atos e projetos do islã e do Ocidente. Trata-se do problema geométrico em torno da articulação entre o cubo e a semiesfera. Na década de 1420, ela se manifestou nas obras florentinas de Brunelleschi (sacristia de San Lorenzo, capela dos Pazzi, em Santa Croce, Santa Maria degli Angeli). Em 1424, foi edificada em Bursa, primeira capital dos otomanos, Yechil Djami, a "Mesquita Verde", que propõe, com sua peça central, suas duas câmaras laterais e a sala de entrada, quatro soluções distintas para essa mesma problemática, ecoando as pesquisas de um dos mestres da primeira geração do Quattrocento.

Sabemos que Brunelleschi era exatamente um artista cujas realizações eram precedidas por especulações teóricas. E, por sua obra, podemos avaliar que o responsável pela concepção da Mesquita Verde era também um arquiteto teórico, já que propõe em um único monumento múltiplas soluções para um mesmo problema: como se a obra ilus-trasse uma dissertação com suas reflexões sobre a geometria pura.

Essa relação entre o cubo e a esfera foi pensada pelos geômetras gregos; foi aprofundada por seus sucessores árabes, que dispunham de tratados de geometria prática (como o de Abú al-Wafâ' al-Buzjâni, do século X, intitulado O livro das construções geométricas necessárias ao artesão). E essa colaboração entre o saber geométrico e a arquitetura responde ao mesmo problema em igrejas bizantinas, coptas e visigóticas, do século V em diante.

Ao lembrar esses fatos, nosso objetivo não é negar a originalidade de Brunelleschi; pelo contrário, reafirmamos sua iniciativa, como homem da Renascença, de renovar a Antiguidade greco-romana, partindo de informações oriundas da investigação arqueológica. Quanto ao mestre da Mesquita Verde, podemos afirmar que ele pertence a uma cultura que não rompeu seus laços com as referências antigas.

Essa aproximação e essa comparação revelam que nos movemos em um espaço geográfico e imaginário único, que é o do Mediterrâneo. Dois exemplos da década de 1420 mostram, no islã, a continuidade das referências antigas, enquanto na Europa foi necessária a ruptura da Renascença para que houvesse um retorno aos fundamentos esquecidos.

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Para concluir esta exposição, passemos do campo da arquitetura para o da escultura, mantendo-nos em Florença e, em parte, na companhia de Brunelleschi, o qual participou do concurso lançado em 1401 para selecionar o artista que iria decorar a Porta do Paraíso do Batistério, que dá para a fachada de Santa Maria dei Fiore. O tema do concurso, o sacrifício de Abraão, era familiar a uma memória alimentada de ritos islâmicos. Como se a escolha do tema visasse tornar mais natural o encontro de referências islâmicas em Ghiberti, o famoso ourives e escultor que foi o vencedor do concurso e que se iniciara em óptica com al-Kindi (século IX), que ele cita com respeito, e principalmente com Ibn al-Haytham (século X), conhecido na Europa por seu primeiro nome, Alhazen.16

Em seu De optica, Ibn al-Haytham consagra um capítulo ao processo de apreensão (al-Idrâk), que ele submete às condições de 21 categorias (distância, movimento, luz, cor, velocidade...). Além da análise da percepção como fenômeno físico, psíquico e mental, para ele o objetivo último da apreensão é perceptível pelo discernimento estético do feio e do belo. Tais são, em última instância, as categorias que se tornam razão de ser da apreensão. E todas as outras categorias se reorganizam em função das duas primeiras para propor uma visão estética relativista. Em meio a tantos outros parâmetros, a medida, "a relação equilibrada [nisba] entre as partes", pode caracterizar o belo. Trata-se efetivamente da arte das proporções, herdada da tradição platônica e pitagórica, divulgada entre os artesãos do islã pela enciclopédia neoplatônica usada em sua educação, a das epístolas dos Irmãos da Pureza (Rasã'il Ikhwân as-Safâ) (século x). E Ghiberti17 se apropriará desse critério único das proporções para fazer dele o fundamento da beleza.

O epistemólogo e historiador da ciência Gérard Simon demonstra, em A arqueologia da visão,18 que a revolução do olhar proposta por Ibn al-Haytham explica os termos em que se formulará a questão da perspectiva, ao mesmo tempo como problema técnico de pura geometria e como "forma simbólica", retomando a expressão de Panofsky.19 Assim, a perspectiva, que está na base da revolução que confere identidade às artes visuais da Europa, não pode ser explicada sem a mediação de uma obra escrita por um sábio do islã, expressando-se em língua árabe.

No mesmo livro de Simon, a história da óptica clássica é considerada em diacronia: primeiro se reconhece o início grego, em duas etapas, de Euclides (século IV a. C.) e de Ptolomeu (século n d. C.); depois,o período intermediário árabe, representado pela ruptura instaurada por Ibn al-Haytham (século XI);20 e finalmente a passagem para as línguas vivas européias, representada pelos autores do século XVII - Copérnico, Descartes, Malebranche, que seguiram o caminho aberto por Ibn al-Haytham. Seria preciso esperar as proposições de Newton sobre o espectro para que a história da óptica sofresse uma nova reorientação.

Esse último exemplo possibilita a passagem das artes para as ciências. E voltamos a deparar com as mesmas idéias que encontramos na arquitetura, mas de um modo mais claro, mais nítido, quando consideramos o desenvolvimento das ciências em língua árabe, especialmente a matemática. A visão dominante em relação à matemática de língua árabe retém, de sua história, três contribuições: a universalização dos algarismos hindus, a descoberta da álgebra e a transmissão ao Ocidente da tradição grega (Euclides, Apolônio, Arquimedes, Diofante...). Ora, essa visão vem se mostrando cada vez mais restritiva, depois do impulso trazido por Roshdi Rashed21 às pesquisas na área.

Está estabelecido que em Bagdá, no século IX, ocorreu uma mutação da história da matemática em razão da convergência - com o advento das traduções - de tradições que, até então, não tinham se encontrado: no cerne da língua árabe se cruzaram os legados egípcio e babilônio, grego, persa, hindu e, como se descobriu há pouco, chinês.22 A partir desse confronto, ocorreu uma alternância entre diferenciações e sínteses que resultou na elaboração de um novo espírito científico. Desde então, o campo de influência dos matemáticos árabes no Ocidente medieval ampliou-se tanto

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na aritmética como na álgebra e na geometria. A Europa do século XII redescobre Euclides em uma tradução latina dos Elementos, feita a partir de adaptações árabes. Muitas outras traduções latinas do árabe passam a circular nos meios científicos da Europa (de Khwârazmi, inventor da álgebra, de Ibn al-Haytham etc.). Sabe-se ainda que o matemático europeu mais inventivo do início do século XIII, Fibonacci, sabia árabe e tinha realizado viagens de formação científica em que se abastecera nas próprias fontes.23

A contribuição da matemática árabe não está mais restrita a essa circulação limitada à Idade Média. A oposição entre ciência medieval e ciência moderna não resiste a um exame dos fatos. Vários séculos podem separar cientistas contemporâneos em suas pesquisas: é o caso de Fârisi (algebrista do século XIII) e de Descartes, na teoria dos números. Ou dos trabalhos de al-Karaji (século XI), que aplicou a aritmética à álgebra mediante operações chamadas "polinômios", as quais, até o século XVIII, constituiriam o cerne de todo tratado de álgebra. Ou o "binômio de Newton" e o quadro dos coeficientes, conhecido como "triângulo de Pascal", que já são encontrados no tratado de al-Samaw'al (século XII).24

Seguindo os passos dos matemáticos que trilharam o caminho aberto por Khwârazmi (para quem a álgebra era uma ciência que resolveria problemas tanto numéricos como geométricos), descobrimos que da articulação entre álgebra e geometria surgiu uma escola muito ativa e inventiva. Sharaf al-K?n al-Túsi (final do século XII) é um de seus grandes representantes. A mais notória intuição desse matemático foi o cha-mado "polígono de Néwton.25 Sua obra trouxe diversas inovações, superadas apenas por Descartes ou Fermat. Seus étodos numéricos, muito elaborados, deixavam para trás as pesquisas de Viète.

Ao reunir as contribuições da matemática árabe em uma história comum, constata-se que as classificações habituais se confundem. Podemos ilustrar com a história dos paralelos, que é de fato uma só, de Euclides a Henri Poincaré,26 incluindo as pertinentes observações dos matemáticos árabes da Idade Média, que não pode mais ser associada ao obscurantismo. Na época, uma razão soberana e inquieta pensava a matemática teórica e, pela experimentação, colocava-a em prática. Esse estado de espírito perduraria até o século XVII europeu, quando, novamente, ocorreria uma ruptura.É importante notar que a matemática em língua árabe já tinha um caráter internacional, o que usualmente se atribui apenas às ciências modernas e ocidentais. Afinal, não existe uma matemática árabe, nem européia ou ocidental; existe apenas uma língua que, durante certo tempo, tem o privilégio de ser o veículo de uma busca da qual participam indivíduos de diversas etnias, nações e crenças. Para além das diferenciações, e pelo jogo das sínteses, a história da matemática é una, e durante certo tempo sua língua foi o grego, mais tarde o árabe, depois o latim e, finalmente, outras línguas vivas européias.

Se a matemática é um exemplo radical da singularidade da civilização, veremos também que o discurso que mais se opõe a ela nos confirma essa singularidade. Com efeito, se nos deslocarmos da ciência para o misticismo, do discurso objetivo para a expressão subjetiva, da razão lógica para os enunciados da experiência interior, veremos que, não obstante as diferenças de crenças, a idéia de uma diacronia comum é plausível, para além do jogo das convergências a que predispõem todos os místicos, pelo modo como ultrapassam a particularidade do culto e do rito singulares a cada crença.

Ó sufismo, aqui também, será herdeiro de tradições especulativas e espirituais diversas: para os fundamentos da meditação corânica convergem interpretações neoplatônicas, disciplinas do monarquianismo dos Pais, anacoretas do deserto, o espírito da luz difundida por Zoroastro, assim como a prática de retiros ascéticos entre os brâmanes, ou mesmo o pensamento paradoxal dos taoístas (fundado na união dos contrários e na dialética do feminino/masculino). É isso que faz do sufismo uma espiritualidade que se alimenta de um pensamento e de uma experiência que trazem

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em si os vestígios de tradições espirituais anteriores. Ele chega à maturidade pela escuta e recepção de diversos métodos e escolas, dos quais alguns já haviam se fecundado mutuamente e outros nunca tinham tido contato.

Essa mistura dá profundidade ao sentimento religioso dos sufis, que René Guénon considera o mais completo em seu modo de descrever o que ele chama de "doutrina única", cujo clarão de verdade percebera ao longo de suas peregrinações pelas grandes tradições espirituais. Em conseqüência de sua conclusão, ele entrou no islã pela via do sufismo, reunindo discípulos em torno da revista Études traditionnelles, que constitui o ponto de encontro dos intelectuais europeus convertidos - entre os quais cito Martin Lings e Michel Chodckievicz.

Tal como nas outras áreas, essa capacidade de englobar é o dom da expansão islâmica, pondo em prática a decisão corânica de promover o islã como nação do meio ("Assim fizemos de vós uma comunidade mediana"). 27 É nessa particularidade que Toynbee identifica a singularidade do islã, único a ter tido contato, simultaneamente, com as fronteiras da Europa ocidental, de Bizâncio, da China e da índia. Essa contigüidade com a diversidade trouxe à língua árabe o privilégio de chegar às áreas abarcadas pelo latim, pelo grego, pelo chinês e pelo sânscrito, que se somaram aos territórios integrados que puseram à disposição os saberes em língua persa, siríaca, aramaica, hebraica e demótica. O islã uniu essas tradições heterogêneas, unificou-as e revigorou-as.

Devido a essa situação, "o mestre maior do sufismo", Ibs `Arabi (Múrcia, 1165-Damasco, 1240), foi associado a múltiplas tendências. Sua obra é tão polimorfa e aberta que ele foi visto ora como um "cristão inconsciente" (pelo jesuíta espanhol Miguel Asin Palacios),28 ora como neoplatônico (pelo egípcio A. E. Affifi,29 aluno de Reynóld A. Nicholson). Embora mantendo a originalidade, complexidade e polifonia, ele foi, não sem razão, aproximado por Henry Corbin de certas tradições gnósticas que vinculam a ele predisposições xiitas e iranianas.30 Finalmente, o japonês Toshihiko Izutsu o lê em uma surpreendente e fecunda aproximação com o taoísmo.j' Essa pluralidade de interpretações levou Michel Chodckievicz a lembrar a obediência do mestre murciano à ortodoxia sunita, para além de toda a sua audácia e dos desvios impressionantes suscitados pela tensão entre lei e experiência, presente em toda a prática mística mas que encontra seu ápice em Ibn ‘Arabî.32

Para ficar apenas no campo "ocidental", é possível estabelecer uma diacronia comum no campo da mística. Faço a vocês esse convite, tomando o exemplo da experiência com o invisível. O primeiro elo seria representado por Plotino, quando ele fala em termos teológicos acerca do áphatos33 (inefável). Em segundo lugar, sugiro o nome de Fílon de Alexandria, embora este estivesse em atividade dois séculos antes de Plotino. Pois ele continua a desenvolver apenas a tradição grega (em pleno século III), enquanto FIIon (no início do século I) se abre a todas as variações monoteístas, via que lhe permite articular a filosofia helênica com as Escrituras reveladas.

Fílon, judeu de língua grega, medita sobre a figura do invisível associando os conceitos gregos à Bíblia. Ao ler a palavra que Javé dirige a Moisés: "Não poderás ver a minha face",34 invoca o aperinóetos(inconcebível), o aperígraptos (impossível de circunscrever), o askemátistos (impossível de representar), o athéatos (impossível de contemplar). Ao envolver-se na nuvem obscura, Moisés "compreenderá que Deus, em seu ato de existir, é incompreensível para toda criatura, e verá precisamente que ele é invisível".35

Assim se instala o sujeito ante a presença do mistério que envolverá a linguagem em face do desafio do indizível e do invisível. O espaço reservado para dar lugar "ao Qualquer Outro aqui presente" será ocupa do pelos Padres. E à patrística caberá o terceiro elo, já que Fílon teve descendência direta exclusivamente cristã. Entre os Padres, eu mencionaria duas vozes no momento em que elas meditam sobre o versículo mosaico. João Crisóstomo (344-407) assimila a visão ao conhecimento:

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"Pois as virtudes incorpóreas não têm pupila, nem olhos, nem pálpebras, e o que para nós é visão nelas é conhecimento. Assim, quando escutares que `ninguém nunca viu Deus', imagina estar escutando que ninguém nunca conheceu Deus em sua essência com absoluta exatidão".36

Gregório de Nissa (segunda metade do século IV), por sua vez, embora não ignorasse a conversão da visão em conhecimento, persiste na busca do ilimitado que envolve o olhar. Como o que é procurado para ser visto não tem contornos, sua busca torna-se infinita, preocupação de todos os instantes, e assim é assimilada à busca estética (do belo) e à busca amorosa (do desejo sempre insaciado): "[...] nenhum limite poderia interromper o progresso da ascensão até Deus, já que, por um lado, o belo não tem fronteira e, por outro, a progressão do desejo que se estende até Ele não poderia ser detida por nenhuma saciedade".37

Ora, um versículo corânico equivale exatamente ao versículo bíblico; refere-se ao mesmo episódio mosaico; é quase uma citação, recriada no gênio da língua que o acolheu: "Lan tarânî" ("Tu não Me verás") .38 A expressão em árabe impressiona pela concentração de sua força, tendo se tornado ponto de parada para o caminhante sufi - constituindo o nosso quarto elo, que ilustrarei pelo comentário deixado por Qushayri (986-1072), um dos mestres da Via, em sua tafsîr (exegese corânica).39

Curiosamente, no comentário sufi se cruzam, como que pontilhadas, as perspectivas traçadas pelos dois padres do século IV. Primeiro, Moisés é representado como um enamorado bêbado ao apresentar seu pedido a Deus: "Deixa-me ver, que eu Te contemple";40 não tinha consciência da futilidade de seu pedido, pois o enamorado sabe que é possuído a tal ponto pela figura amada que ele não a reconhece caso ela se apresente diante de seus olhos. Como fica então o tema do amor, que não pode ser refreado por nenhuma representação? Somente voltando à sobriedade é que Moisés percebeu a impossibilidade de seu pedido, que confundia visão e conhecimento. Mas essa confusão é apenas sinal da busca infinita de um desejo que não pode ser saciado por nada. E Deus confirmará a seu profeta sua predileção e proximidade, dirá Qushayri, ao comentar a continuação do episódio corânico que concede a Moisés o privilégio de ouvir o inaudível, situando-o, assim, pelo ouvido, o mais perto possível desse "Qualquer Outro aqui presente". Esse privilégio dá a Moisés o poder "de escutar o rangido do cálamo sobre a Tábua", quando Deus dita os mandamentos aos anjos escribas.

Asin Palacios também aponta as proximidades e semelhanças entre Ibn ‘Arabî, de um lado, e Juan de Ia Cruz e Teresa d'Ávila, de outro, ao mesmo tempo insistindo na precisão do pensamento plotiniano do sufi de Múrcia.41 Assinala igualmente inúmeras coincidências entre o Shaykh e os Padres. Por seu vínculo com os fundamentos neoplatônicos (que, segundo Asin, o coloca dois séculos à frente dos pensadores europeus da Renascença) e com as observações dos Padres, é legítimo situar Ibn ‘Arabi como o quinto elo, que conduzirá ao último elo de nossa diacronia, o que é representado pelos dois grandes místicos da Contra-Reforma católica em língua espanhola.

Há, inclusive, motivos para ligar esses elos ao nosso exemplo da experiência da visão, que, no caso, se identifica ao conhecimento intuitivo.42 Assim, a atitude de Ibn ‘Arab? e Juan de Ia Cruz, na contempla ção, exclui tudo que não seja Deus. Ambos compartilham, afinal, uma concepção agnóstica acerca de um Deus inacessível a tudo que não é Ele. A contemplação alcança a perfeição quando se despoja de qualquer analogia com o criado. Ela é limitada pela experiência metafísica de um Deus sem modo, obscuro, envolto em trevas, produtor de angústia; ruma até Ele com o espírito desnudo, com uma tristeza espiritual que, supostamente, é a chave da contemplação. Ambos partilham essas características, em busca de um Deus que "não tem forma nem rosto"; a memória, "vazia de forma e de rosto, aproxima-se mais seguramente de Deus; pois, quanto mais ela se prende à imaginação, mais se afasta de Deus [...], porque Deus [...] não cai na imaginação", 43 diz Juan de Ia Cruz em seu comentário ao

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verso 3 do "Llama de amor viva". Ibn `Arabî poderia ter escrito essas mesmas palavras para comentar um dos versos de seu Intérprete dos desejos.44

0 que propusemos até agora, em três campos distintos, são apenas indicações, que estão longe de ser exaustivas. Podemos ainda verificar a validade da estrutura de nosso processo civilizador - fundada, em sua própria diferença, na identidade do cenário e do percurso - evocando o extraordinário eco que ressoa entre Dante e Ibn ‘Arabî,45 ou no cruzamento das tradições romana e árabe nos temas e na prosódia que pontuam o amor cortês,46ou na circulação do mito literário da loucura de amar até a morte - mito desconhecido dos gregos e dos latinos, dos hindus e dos chineses, criado pelos árabes durante a segunda metade do século VII, com a lenda de Medjnûn e Layla, que seria transposto para a Europa e se encarnaria em Tristão e Isolda, em Romeu e Julieta, e seria reavivado pela figura do jovem Werther e retornaria, no mundo contemporâneo, com os surrealistas, com O amor louco de Breton ou O louco de Elsa de Aragon; 47 ou ainda na versão ocidental das Mil e uma noites, de Galland a Borges, passando por Le Comte de Beckford e Proust, sem esquecer a fascinação que exerceu nos cineastas, de Pasolini a Raul Ruiz.48

Do mesmo modo, também podemos testar a pertinência dessa estrutura civilizadora tanto na filosofia (principalmente o papel de Averróis e sua descendência latina e hebraica no conceito de separação, que conduziria à teoria da laicidade)49

como no pensamento político (especialmente Farabi, que adapta para o islã a cidade utópica de Platão)50 ou na teologia (na qual se observa que o islã, antes de privilegiar "a ortopraxia", encerrou todas as possibilidades da interrogação metafísica, as mesmas com que o cristianismo depararia).51

No início deste texto, dissemos que, para preservar a complexidade do islã, seria conveniente que nos aproximássemos dele como civilização, como religião, como desejo político. No último exemplo, o do sufismo, abordamos a questão religiosa por meio da intensidade poética e do ardor metafísico da experiência interior. Esta pode transbordar por todos os orifícios dos edifícios da crença. Nela, o que mais conta talvez seja a energia que provoca e, principalmente, a aspereza da interrogação que instaura. Estando mais próxima do campo da pergunta do que do campo da afirmação, ela atrai os contemporâneos e se presta a muitas atualizações. Não se fala em mística órfã, quando se evoca Höl-derlin ou Nietzsche, ou Georges Bataille? Não é sua invocação que pode suspender a redução racionalista ou laica?

Vejo a religião como um sistema de crenças que propõe um absoluto, ajudando o sujeito a constituir-se à medida que fabrica, no contato com ela, um imaginário e um simbolismo, construção que é necessária para enfrentar o real com eficácia. É o pré-requisito psíquico e ético que leva a pessoa a assumir-se como sujeito jurídico e a conquistar o status de cidadão. É assim nas sociedades e nos meios marcados pela crença. Com isso, o islã continua a cumprir um papel eminente no mundo, já que cabe a ele a tarefa de produzir as mulheres e os homens que vão renovar o pacto social.

Ora, ao nos aproximarmos do islã como uma totalidade globalizante, e não como três instâncias distintas, um perigo está à espreita. É no magma da visão totalizadora que a civilização perece. É o que ocorre nos nossos dias, quando, confundindo os graus de eficiência de uma ou outra instância (civilização, religião e política), os sujeitos do islã vivenciam, sem que saibam isso, o esquecimento de sua própria tradição, ou sua negação deliberada, situação em que o senso comum predispõe a receptividade aos predicados definidos pelos militantes do fundamentalismo. Em meio a essa confusão propícia à amnésia, nos descobrimos contemporâneos à barbárie.

Se a barbárie é a negação da civilização, pode-se considerar que ela sempre rondou o cerne do islã, mas foi relegada sempre que a autoridade política tinha consciência de que, mais que sua sobrevivência, seu dever era salvaguardar o edifício da civilização contra a atuação dos que são tomados pelo projeto de destruí-lo.

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Sabemos que a civilização só se edifica, prospera, caso se misture. Tão logo se erga a voz que pretende a pureza da origem e da letra, tão logo as energias se concentrem em arrolar o que abala essa pretensa pureza, os inquisidores estabelecem o rol das iniciativas estrangeiras que perturbam as águas claras que dão brilho aos fundamentos. Essa busca da integridade dos fundamentos tem regularmente encontrado adeptos no islã.

O primeiro a estabelecer um rol exaustivo de elementos perturbadores foi provavelmente Ibn Taymiyya, teólogo do final do século XIII, hoje considerado, tanto pelos wahhabitas como pelos fundamentalistas, um pai fundador. Em seu desejo de purificar o islã, ele se revela niilista, ou seja, negador, em nome da regra religiosa, de elementos civilizadores, justamente aqueles que aclimataram o islã ao mesmo, ao que ele partilha com outros e que o afasta do diferente, que o encerra em seu exclusivismo. Em meio às matas a serem desbastadas dentro da selva do islã, Ibn Taymiyya designa desordenamente as áreas onde havia brotado a filosofia (sementes gregas), o sufismo (enxertos que cruzam essências da índia e do cristianismo), o culto dos santos (cujas raízes mergulham no húmus pagão), a interpretação exageradamente bíblica do Corão (introduzida pelo "isrâ‘iliyyât", nome dado pelos teólogos mais velhos). Curiosamente, em seu rol negativo, nenhuma palavra cita as ciências e as técnicas, cuja origem estrangeira é patente.

Percebemos nessa exceção a similaridade com os fundamentalistas atuais, que habilmente retêm o instrumento da técnica, único valor oci-dental a ser preservado. Pois nossos fundamentalistas ilustram à perfeição a definição evolutiva do niilismo, tal como proposta por Leo Strauss.52 Segundo Strauss, o niilismo se expressa, num primeiro momento, pela negação da civilização moderna, fundada na cidadania e na democracia. O julgamento negativo da modernidade se resume a um sentimento antiocidental. O surgimento desse sentimento é perfeitamente datável: ele aflora com a criação da associação dos Irmãos Muçulmanos no Egito, no final da década de 1920; é surpreendente constatar que ele é contemporâneo ao niilismo europeu criticado por Leo Strauss, que tem exatamente o mesmo objeto de ódio.

Tal sentimento é novo em terras islâmicas. A partir de meados do século XIX, as primeiras gerações de teólogos reformadores constataram que tinham perdido o fio da civilização; tentaram retomá-lo assimilando e imitando a civilização que viam florescer, ou seja, na margem em frente, na Europa. Agiam no sentido de articular as fontes do islã com o modelo ocidental que os fascinava. Lutavam ao mesmo tempo contra o despotismo local e contra a hegemonia colonial, em nome dos princípios da democracia e do parlamentarismo. Sua palavra de ordem era modernizar o islã. Ignoravam tudo da barbárie niilista.

Foi na terceira geração, com os Irmãos muçulmanos, que a palavra de ordem mudou radicalmente: o que se reivindica de agora em diante é a islamização da modernidade. O que isso significa? Significa justamente preservar da modernidade ocidental apenas a parte técnica; a reivindicação da pretensão à ciência requer um esforço muitíssimo mais rigoroso. De resto, os líderes desse movimento queriam submeter a sociedade a um islã total, em que a civilização se perde em detrimento da prática político-religiosa. Esse programa, que era a princípio bem minoritário, foi aos poucos tomando a cena, que estava vaga após uma série de lacunas e fracassos políticos.

Numa segunda etapa, assistiremos ao triunfo do prolongamento natural do niilismo como definido por Leo Strauss; a civilização tout court torna-se então alvo dos destruidores. Por esse motivo, antes de representar um perigo para a estabilidade mundial, o fundamentalismo torna-se uma ameaça para o próprio islã. O primado do político está destruindo o islã como religião e como civilização. A desumanidade das exigências feitas em nome de Deus pela política está produzindo monstros; essa nova máquina representa um atentado contra a religião que provê os sujeitos humanos. E reduzir a fé ao critério único do direito divino escraviza a energia criadora. Estamos

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sendo desafiados a criar zonas de hospitalidade para os atos de transgressão, a fim de manter nosso contato vital com a arché do islã, que é nossa obrigação preservar tanto por si mesma como pela alegria que suas manifestações na atualidade nos propiciam.

É esse o dever de cada um contra os novos bárbaros. Impõe-se uma luta impiedosa contra aqueles que atentam contra a civilização. É um dever diante da memória do que o islã legou à dita civilização. A guerra contra a barbárie só pode obter legitimidade com esse reconhecimento. Diante do secular e impressionante conjunto de obras e saberes, de e sobre o islã, constata-se que, em língua francesa, esse reconhecimento pode ser totalmente ativo.

Caso exista uma guerra, é uma guerra civil, e não, como querem os fundamentalistas, uma guerra entre civilizações, entre o islã e o Ocidente. A célebre expressão de Temístocles: "Bata, depois escute", exige que cada um participe simultaneamente da guerra e do reconhecimento. É assim que se constrói o mundo, na comunidade do destino. Para o bem e o para o mal, de agora em diante

o Ocidente e o Oriente não podem mais ser separados.53

Mas será que isso já ocorreu? As proposições e lembranças esboçadas neste texto provam o contrário.

Gostaria de encerrar com duas observações. A primeira propõe uma nova abertura para o que pode ser visto como um enigma; a segunda é uma profissão de fé que decorre naturalmente da tese ilustrada nas páginas anteriores.

Inúmeros observadores espantam-se com o fato de uma civilização tão brilhante ter sofrido uma interrupção tão brutal quanto definitiva. Comentei, em A doença do islã,54 alguns motivos evocados pelos historiadores para explicar esse fenômeno. Lembrei também que, qualquer que seja a pertinência das causas apresentadas, persiste uma parte do enigma, a do papel da Providência ou do inconsciente na história. O fato está aí: durante cinco séculos (750-1250) o islã conduziu a civilização a um ponto que ela nunca alcançara; viveria mais cinco séculos às custas do patrimônio acumulado até dar-se conta, no início do século XIX, que a civilização em questão não era a mesma. O que aconteceu? É essa a pergunta, correta, que todos se fazem, juntamente com Bernard Lewis, que, no entanto, não traz as respostas de que necessitamos para superar a crise que corrompe o princípio civilizador .55

Em torno dessa mesma pergunta gostaria de propor uma perspectiva sugerida por um grande espírito árabe do século IX, al Jâhiz, polígrafo racionalista, mestre da ironia (assim como Voltaire). Detenho-me nas páginas que ele dedica ao maniqueísmo. Essa crença, ainda viva em sua época e aceita por espíritos brilhantes, estava fadada a enfraquecer-se, ou mesmo desaparecer. Pois, segundo diz al Jâhiz, a literatura proposta por seus adeptos não era nem estimulante, nem atraente. Não comporta máximas edificantes, nem sabedoria, nem filosofia, nem dialética sofisticada, nem observações práticas sobre os ofícios e as artes, nem considerações políticas úteis. Ora, ainda segundo al Jâhiz, demonstra inépcia todo livro que não aborde as questões da sobrevivência neste mundo e não defenda seu sistema de crenças pelos meios da razão; qualquer pessoa sensata o rejeitaria se constatasse que ele exige, do fiel, apenas uma fé cega.56 Em suma, podemos ampliar os argumentos de âl Jahiz e considerar que, quando o simbólico e o imaginário se reduzem a uma mitologia absurda, composta de fábulas fúteis, estamos assistindo à derrocada da razão e da conseqüência desta, que é o fim do poder imperial. Na Bagdá em que escrevia al Jâhiz, até um marinheiro "buscava a razão das coisas" e sabia que a maré era causada pela atração da lua e não pela "respiração de um demônio marítimo", como afirmava a mitologia maniqueísta.57 E, no meio dos pesquisadores que faziam avançar a ciência da época, os documentos não apresentam um só cientista maniqueísta. Além disso, o maniqueísmo contemporâneo de al Jâhiz "apresentava-se não apenas como uma religião definitiva, incapaz de qualquer evolução, mas também, principalmente, como

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uma ciência absoluta e uma cultura universal e enciclopédica que abraça todos os ramos do saber".58

E a situação do islã da decadência seria precisamente a do maniqueísmo tal como era criticado por um adepto do islã civilizador: uma crença definitivamente fixada, que execra qualquer inovação; um pensamento conservador que fecha as portas às críticas da razão; a ausência de sábios e de espírito científico. Portanto, é com argumentos retirados do próprio percurso do período de luzes do islã que fustigamos o islã das trevas do qual somos os herdeiros rebeldes.

Em Diálogo entre um filósofo, um judeu e um cristão, Abelardo (reinventor da cópula entre sujeito e predicado),59 sugere que o personagem do filósofo é identificável como um sujeito do islã,60 tendo de usar a língua árabe, que nosso abade logicista, aliás, considera a língua da razão, a que convém dominar quando se quer estender o campo dos possíveis que os exercícios do intelecto encerram. Por isso ele a elogiava e convidava os seus a familiarizarem-se com ela. Assim, na época emque a civilização era conduzida pela língua árabe, não era impensável imaginar Abelardo conclamando seus correligionários: "Arabizai-vos!". Agora, a civilização é ocidental, e eu, por minha vez, digo àqueles cuja origem compartilho: "Ocidentalizai-vos!".

Tradução Dorothée du Bruchard

NOTAS(1) Cf. o que diz a respeito um manual malekita do século x, o Risala, de al-Qayrawâni, cap. XXX, "Da guerra santa", pp. 163-6 (trad. Léon Bercher, ed. bilíngüe, Alger, 1952). Para uma visão sintética da noção de Jihad (da qual se conclui a inadequação de sua exploração pelos fundamentalistas), consultar os artigos de Hervé Bleuchot, "Le Jihad et les valeurs universelles". Annuaire de lAfrique du Nord, vol. xxxnr, CNRS, 1994, pp. 25-35; "Le but du Jihâd et son évolution en droit musulman (rite malékite)". Reme Maghreb-Europe. Rabat: De Ia Porte, 1997-8, pp. 9-31.(2) Sigmund Freud. Malaise dans Ia civilisation. Trad. Ch. E J. Odier. Paris: Pur, 1971. (3) Ibn Khaldün. Le livre des exemples, vol. I: Autobiographie, Muqaddima. Trad. A. Cheddadi. Paris: NRF, 2002. Bibliothèque de Ia Pléiade.(4) Henri Pirenne. Mahomet et Charlemagne. Paris; Bruxelas: Alcan; NSE, 1937. Dois exemplos da formulação clara dada pelo autor: "Enquanto os germânicos não têm nada a opor ao cristianismo do Império, os árabes são exaltados por uma nova fé. É isso, e apenas isso, o que os torna inassimiláveis" (p. 130); "O islã rompeu a unidade mediterrânea mantida pelas invasões germânicas. É esse o feito mais essencial da história européia desde as guerras púnicas. É o fim da tradição antiga. É o começo da Idade Média [...]" <p. 143).(5) Maurice Lombard. L Islam dans sa première grandeur VIII-XI siècle. Paris: Champs; Flammarion, 1971. Lembremos a conclusão do livro: "Entre a China, a índia, Bizâncio e a barbárie medieval - turca, negra e ocidental -, do final dos antigos impérios até o despertar dos Estados modernos, a civilização muçulmana terá sido, em sua primeira grandeza, um local de mistura, cronológico e geográfico, um plano de intersecção, uma excepcional conjuntura, um fabuloso encontro marcado" (p. 259).(6) Michel Ecochard. Filiation de monuments grecs, byzantins et islamiques: une question de géometrie. Paris: Geuthner, 1977.(7) Edgar Quinet. Je sens brtialer le nom d Allah: voyage à Grenade, Cordoue, Séville. Montpellier: L'Archange Minotaure, 2001.(8) Rilke. Carta datada de 4 de dezembro de 1912. In: Correspondance avec Marie de Ia Tour et Taxis. Trad. P. Klossowski. Paris: Albin Michel, 1960, p. 122.(9) Henri Stern. Les mosaiques de Ia grande mosquée de Cordoue. Berlim: Walter de Gruyter, 1976.(10) Nietzsche. L Antéchrist. Paris: Pauvert, 1967, p. 102.(11) Ibn Hazm. De l'amour et des amants. Trad. G. Martinez-Gros. Paris; Arles: Sindbad; Actes Sud, 1992.

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(12) Ibn Luyûn. Tratado de agricultura. Ed. e trad. J. Eguaras Ibanez. Granada,(13) Ibn al-'Awwâm. Le livre de 1'agriculture. Trad. J. J. Clément-Mullet. Actes Sud; Sinbad, 2000.(14) Maqrizi. Khitat, III. Cairo: Madbúli, 1998, p. 320.(15) Alexandre Papadopoulo. L'úlam et I'art musulman. Paris: Citadelles & Mazcnod, 1976-2000, p. 278-9.(16) Os excertos usados por Ghiberti foram transcritos em latim por Vitello.(17) Erwin Panofsky. L'oeuvre d'art et ses significations. Trad. M. e B. Teyssèdre. Paris: Gallimard, 1969, p. 85.(18) L'archéologie de Ia vision. Paris: Seuil, 2003, pp. 53-4.(19) E. Panofsky. La perspective comme forme symbolique. Paris: Minuit, 1975. (20) Esse cientista era conhecido na Europa ao ponto de ser citado em Le roman de Ia rose como Alhaçan, autor do Livro dos olhares (tradução literal do título árabe Kitâb al-Manâzir), quando a Natureza, na autodefinição com a qual se apresenta, descreve o arco-íris como uma ilusão de óptica, antes de discorrer sobre os espelhos. Ver Le roman de Ia rose, verso 18038, ed. e trad. Armand Strubel. Paris: Lettres Gothiques; Livre de Poche, 1992. Agradeço a Charles Méla por me ter chamado a atenção para essa menção.(21) Roshdi Rashed (org.). Histoire des sciences arabes. 3 vol. Paris: Seuil, 1997. (22) Cf. as pesquisas de Karine Chemla, sobretudo seus artigos: "De Ia synthèse comme moment dans 1'histoire des mathématiques". Diogène, n° 160, out.-dez. 1992, pp. 97-114; "Similarities between Chinese and Arabic mathematical writings: root extraction". In: Arabic sciences and philosophy. Cambridge University Press, 1994, pp. 207-66.(23) Ver André Allard. "L'influence des mathématiques arabes dans l'Occident médiéval". In: Hútoire des sciences arabes, vol. u. Paris: Seuil, 1997, pp. 198-229.(24) Além dos livros e artigos de Roshdi Rashed, cf. o estudo de Philippe Abgral. "La recherche des traditions mathématiques, de l'Antiquité hellénistique à l'âge dassique en Europe". Bulletin d Études Orientales, vol. 50, 1998, p. 1928.(25) Christian Houzel. "Sharaf al-D?n al-Túsî et te polygone de Newton". In: Arabic sciences and philosophy, vol. 5. Cambridge University Press, 1995, pp. 239-62.(26) Christian Houzel. "Histoire de Ia théorie des parallèles". In: Roshdi Rashed (org.). Mathématiques etphilosophie de l'Antiquité à 1 áge classique. Paris: CNRS, 1991, pp. 163-79.(27) Corão, n, 143 (tradução do autor).(28) Miguel Asin Palacios. L'islam christianúé: étude sur le soufúme à travers l'oeuvre d'Ibn Arabî de Murcie. Trad. B. Dubant. Paris: De La Maisnie, 1982.(29) A. E. Affifi. The mystical philosophy of Muhid Din Ibnul Arabi. Cambridge University Press, 1938.(30) Henry Corbin. L'imagination créatrice dans le soufúme d'bn Paris: Flammarion, 1958.(31) Toshihiko Izutsu. Sufúm and taoúm: a comparative study of key philosophical concepts - Ibn Arabî, Lao-Tzu & Chuang-Tzu. Tóquio, 1983. Ver também Sachiko Murara. The Tão of Islam: a sourcebook on gender relationships in Islamic thought. Albany: State University of New York Press, 1992.

(32) Michel Chodckievicz. Le sceau des saints: prophétie et sainteté dans Ia doctrine d Ibn Arabî. Paris: Gallimard, 1986.(33) Plotino. Enéadas, IV, 8, 6. (34) Êxodo, }=n, 20.(35) Filon. De Posteritate Caini, 14-5, pp. 53-5. Trad. R. Arnaldez. Paris: Le Cerf,1972.(36) Jean Chrysostome. Homenes sur . l'incompréhensibilité lière. Paris: Albin Michel; Le Cerf, 1993, pp. 136-7.(37) Grégoire de Nysse. Vie de Moïse. Trad. J. Daniélou. Paris: Albin Michel; Le Cerf, 1993, pp. 138-40.(38) Corão, VII, 143.(39) Qushayri, Lat'âif al-Ishârât [Sutilezas das alusões], I. Cairo: I. Basyúni, 1981, pp. 565-7.

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(40) Corão, VII, 143. Cito a correta tradução de Jacque Berque (Paris: Albin Michel, 1995).(41) Asin Palacios, op. cit., pp. 160-1 (sobre as semelhanças com Juan de Ia Cruz); pp. 205-6 (com Teresa d'Ávila); p. 199 (sobre a extrema precisão, em Ibn `Arabî, da referência a Plotino).(42) Ibidem, cap. x, "L'intuition mystique", pp. 163-9. (43) Ibidem, p. 169.(44) Ibn `Arabî. L'interprète des désirs. Trad. M. Gloton. Paris: Albin Michel, 1996. (45) Escolhi-os como pais espirituais ao iniciar minha criação e meu pensamento sob a égide daquilo que chamo de minha dupla genealogia, européia e islâmica. Essa referência à arché não implica um conservadorismo da iniciativa; muito pelo contrário, não deixamos de retomar o diálogo com os mortos, e de ao mesmo tempo ousar as aventuras do novo que se oferecem aos passos do errante. O próprio Joyce não interpelava o poeta florentino com um familiar "il padre Dante"? Sobre o que aproxima Dante de Ibn `Arabî. ver Miguel Asin Palacios. L'eschatologie musulmane dans la Divine Comédie. Trad. B. Dubant. Milão: Archè, 1992. Ver também Abdelwahab Meddeb. "Le palimpseste du bilingue: Ibn `Arabî/Dante". In: Du bilinguisme. Paris: Denoël, 1985, pp. 125-44.(46) Ver Ramon Menendez Pidal. Poesia arabe y poesia europea. Madri: Espasa-Calpe.(47) André Miquel & Percy Kemp. Majnún et Layla: l'amour fou. Sindbad, 1984. (48) Abdelwahab Meddeb, "L'esprit des Mille et une nuits". Théâtres au Cinema: Raoul Ruiz, vol. 14. Magic Cinema, 2003, pp. 60-5.(49) Alaind de Libera. Penser au Moyen Âge. Paris: Seuil, 1991. Ver também Maurice-Ruben Hayoun & Alain de Libera. Averroès et l Averroüme. Paris: PUF, 1991.(50) Em sua atualização da filosofia política, Leo Strauss, quando reflete sobre seu século, coloca Farabi entre as referências obrigatórias, depois de Platão e Aristóteles, e antes de Yehuda Halévi, Maimônides e Maquiavel, Bodin, Espinosa, Locke, Hobbes, Condorcet... Sobre a presença de Farabi em Leo Strauss, ver La persécutionet l'art d'écrire. Trad. anônima. Paris: Agora; Pocket, 1989.(51) Ver Josef van Ess. Prémices de ia téologie musulmane. Paris: Albin Michel2002.(52) Leo Strauss. Nihilisme et politique. Trad. O. Sedeyn. Rivages, 2001, pp. 33ss. (53) Goethe. Divan occidental-oriental. Trad. H. Lichtenberger. Paris: Aubier, 1940 p. 301.(54) Abdelwahab Meddeb. La maladie de l'islam. Paris: Seuil, 2002, pp. 79-81. (55) Bernard Lewis. Que s'est-il passé? Paris: Gallimard, 2002.(56) Jâhiz. Kitâb al-Hayawân, vol. I. Cairo: `A.-S. Hârûn, 1938, pp. 55-8.(57) Melhem Chokr. Zandaga et zindîqs en islam au second siècle de l Flégire. In: titut Français de Damas, 1993, pp. 66-8.(58) Ibidem, p. 66.(59) A necessidade da cópula, como ligação entre o sujeito e o predicado, foi formulada pela primeira vez dois séculos antes, no século x, por Farabi, numa língua, o árabe, que não faz uso do verbo ser! Ver pp. 111-3 de seu livro de lógica Kitâb al-hurzcf. Beirute: Muhsin Mahdi, 1986.(60) Jean Jolivet. "Abélard et le philosophe", Revue de l Histoire des Religions, 164, 1963, pp. 182-4. Ver ainda, também de Jolivet, "L'islam et Ia raison, d'après quelques auteurs latins des XIe et XIIe siècles". In: Philosophie médiéuale arabe et latine. Paris: Vrin, 1995, pp. 155-65.

(Civilização e Bárbarie /organizado por Adauto Novaes. Editora Companhia das Letras)

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