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R e v i s t a e L a t o S e n s u F A C O S / C N E C V O L. 2, O U T U B R O / 2 0 1 2 - I S S N 2 2 3 7 9 6 0 6 Página 34 O jogo da memória: representações, na literatura e no cinema, da ditadura militar “encoberta” pelo espetáculo esportivo Letícia Boff Scheffer 1 Escrever a história dos vencidos exige a aquisição de conhecimentos que não constam nos livros da história oficial (...). O historiador (...) pretende fazer emergir as esperanças não realizadas (no) passado e inscrever em nosso presente seu apelo por um futuro diferente (...). O esforço (...) é não deixar essa memória escapar, mas zelar pela sua conservação, contribuir na reapropriação desse fragmento de história esquecido pela historiografia dominante (Jeanne Marie Gagnebin). Resumo: Partindo de duas linguagens da arte a literatura e o cinema este artigo pretende analisar as relações entre o futebol, de maneira especial a Copa do Mundo de 1970, e a ditadura militar. A análise destas relações se dá a partir do romance Ana sem terra de Alcy Cheuiche e do filme O ano em que meus pais saíram de férias, dirigido por Cao Hamburger. Para tanto, procura-se compreender as estratégias publicitárias dos governos militares capazes de produzir a ideologia de “Brasil Grande”, como a conquista da Copa, e a tentativa (insuficiente) de encobrir os anos violentos. Palavras-chave: Ditadura militar. Futebol. Literatura. Cinema. História. Abstract: Starting from two languages of art the literature and the film this article intends to analyze the relationships between soccer, in a special way a World Cup of 1970, and the military dictatorship. The analyze of these relationships is given from t he novel “Landless Ana” by Alcy Cheuiche and the film “The Year My Parents Went on Vacation”, directed by Cao Hamburger. For such it is tried to figure out military governments advertising strategies capable to produce the ideology of “Large Brazil”, as the World Soccer Championship winning, and the insufficient attempt of covering up violent years. Keywords: Military dictatorship. Soccer. Literature. Cinema. History. A produção literária contemporânea, em parcela significativa, invoca a necessidade da compreensão do período ditatorial militar no Brasil, o qual compreendeu 21 anos (1964-1985). Com ela, inquietações e reflexões parecem ser infinitas. O cinema, outra linguagem da arte, também contribui na leitura e expressão desta época, sobretudo servindo-se de histórias periféricas para mostrar o enfrentamento da repressão política e, por outro lado, a sua falta. Diante dessas alternativas e consideradas as possibilidades de leitura das relações que se estabelecem entre a História e a Literatura como modalidades de um exercício imaginário de reconstrução do mundo, como afirma Sandra Pesavento (2003), procura-se estabelecer o diálogo entre duas produções artísticas, uma literária e outra cinematográfica, a saber: o romance Ana sem terra do escritor Alcy 1 Graduada em Letras pela Faculdade Cenecista de Osório. Pós-graduada em Diálogos entre a História e a Literatura do Rio Grande do Sul nesta mesma instituição.

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O jogo da memória: representações, na literatura e no cinema, da ditadura militar “encoberta” pelo espetáculo esportivo

Letícia Boff Scheffer1

Escrever a história dos vencidos exige a aquisição de conhecimentos que não constam nos livros da história oficial (...). O historiador (...) pretende fazer emergir as esperanças não realizadas (no) passado e inscrever em nosso presente seu apelo por um futuro diferente (...). O esforço (...) é não deixar essa memória escapar, mas zelar pela sua conservação, contribuir na reapropriação desse fragmento de história esquecido pela historiografia dominante (Jeanne Marie Gagnebin).

Resumo: Partindo de duas linguagens da arte – a literatura e o cinema – este artigo pretende analisar as relações entre o futebol, de maneira especial a Copa do Mundo de 1970, e a ditadura militar. A análise destas relações se dá a partir do romance Ana sem terra de Alcy Cheuiche e do filme O ano em que meus pais saíram de férias, dirigido por Cao Hamburger. Para tanto, procura-se compreender as estratégias publicitárias dos governos militares capazes de produzir a ideologia de “Brasil Grande”, como a conquista da Copa, e a tentativa (insuficiente) de encobrir os anos violentos. Palavras-chave: Ditadura militar. Futebol. Literatura. Cinema. História. Abstract: Starting from two languages of art – the literature and the film – this article intends to analyze the relationships between soccer, in a special way a World Cup of 1970, and the military dictatorship. The analyze of these relationships is given from the novel “Landless Ana” by Alcy

Cheuiche and the film “The Year My Parents Went on Vacation”, directed by Cao Hamburger.

For such it is tried to figure out military governments advertising strategies capable to produce the ideology of “Large Brazil”, as the World Soccer Championship winning, and the insufficient attempt of covering up violent years. Keywords: Military dictatorship. Soccer. Literature. Cinema. History.

A produção literária contemporânea, em parcela significativa, invoca a necessidade

da compreensão do período ditatorial militar no Brasil, o qual compreendeu 21 anos

(1964-1985). Com ela, inquietações e reflexões parecem ser infinitas. O cinema,

outra linguagem da arte, também contribui na leitura e expressão desta época,

sobretudo servindo-se de histórias periféricas para mostrar o enfrentamento da

repressão política e, por outro lado, a sua falta.

Diante dessas alternativas e consideradas as possibilidades de leitura das relações

que se estabelecem entre a História e a Literatura como modalidades de um

exercício imaginário de reconstrução do mundo, como afirma Sandra Pesavento

(2003), procura-se estabelecer o diálogo entre duas produções artísticas, uma

literária e outra cinematográfica, a saber: o romance Ana sem terra do escritor Alcy

1 Graduada em Letras pela Faculdade Cenecista de Osório. Pós-graduada em Diálogos entre a

História e a Literatura do Rio Grande do Sul nesta mesma instituição.

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Cheuiche e o premiado filme brasileiro O ano em que meus pais saíram de férias,

dirigido por Cao Hamburger. Do primeiro, prevalece para a discussão o capítulo

Porto Alegre: inverno de 1970.

Optar pela inclusão do cinema neste trabalho é por considerá-lo como tradutor da

identidade brasileira, remontada sob a base ficcional. Desde a década de 30, o

cinema começou a ser visto como instrumento efetivo da política e da cultura

(GOLDMAN, 2000, p. 275), contribuindo para que a realidade brasileira pudesse ser

melhor compreendida e, dessa maneira, legitimando-se como arte nacional.

Traduzir o Brasil no cinema, no entanto, não significa descrever costumes e

paisagens locais, alerta Goldman (2000). É preciso uma visão crítica da sociedade

brasileira e compreender as contradições do país. Assim, não apenas se constrói

uma identidade, mas faz-se possível problematizá-la.

As narrativas - cinematográfica e literária - escolhidas para análise compreendem as

décadas de 60 e 70 e representam e apresentam uma visão crítica de vários

aspectos da sociedade brasileira. Neste período, o regime político vigente adotou

normas de conduta, entre as quais a tortura, para impedir que seus opositores

políticos se manifestassem. Para tanto, foi necessário que se criassem leis brutais

capazes de silenciar a população. A tortura política começou a se abater sobre

segmentos da sociedade a partir do golpe militar em 1964 e de forma sistemática a

partir de 1968, quando instaurado o Ato Institucional número 5, e iniciado o período

mais repressivo da ditadura militar.

No Estado ditatorial, há os que apoiam e aderem à situação, os que são tidos como

suspeitos - a quem cabe controlar, reprimir e, eventualmente, eliminar - e, há ainda,

aqueles que ficam ou se dizem indiferentes. Nessa situação política, o povo é vítima,

uma vez que é mantido afastado de qualquer participação social, no silêncio e no

imobilismo e, ao mesmo tempo, suspeito, muitas vezes testemunha do regime, ainda

que de maneira indireta.

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O regime instituído em 1964 fora guiado pela Doutrina de Segurança Nacional. De

acordo com Silva (2004), esta doutrina associava segurança e desenvolvimento. O

combate ao comunismo se daria em várias esferas, inclusive militar, política,

econômica e psicossocial (p. 232), e era ponto de destaque no quesito segurança

nacional. Os militares tinham, então, uma linha de ação e não estiveram sozinhos,

mas foram parceiros de setores empresariais, tecnocratas e elites políticas.

É da Doutrina de Segurança Nacional que surge também o conceito de inimigo

interno, já que o que estava sendo combatido era uma ideia. Assim, as Forças

Armadas passaram a intervir ainda mais na política interna e a fazer altos

investimentos na área de inteligência e segurança interna (SILVA, 2004, p. 232).

Diante disso, é preciso, sobretudo, tentar superar mitos acerca do período ditatorial,

tanto os cinicamente veiculados pelos grandes meios de comunicação, como os

elaborados por pessoas descompromissadas com a sociedade, os quais, muitas

vezes, defendem o período ignorando atos como os de tortura e perseguição ou os

defendendo como práticas de Segurança Nacional.

Conduzidos pelos êxitos econômicos, surgiam ideologias que representavam um

projeto salvacionista e concebiam o país como “Brasil Grande”. Neste contexto

intensifica-se, de maneira especial no ano de 1970, a paixão futebolística e o desejo

do tricampeonato da seleção brasileira na Copa do Mundo. Sabe-se que este

esporte, ainda hoje consagrado no país, entorpece seus torcedores. A discussão

pertinente aqui é a que revela o futebol como distanciamento político da população e

como tentativa – insuficiente - de encobrir os anos violentos.

Em primeiro lugar, este esporte é uma espécie de máscara da ditadura militar. O

governo Médici, assumido em 1969, o apoiava, ainda que indiretamente, visando o

desenvolvimento de uma ideologia de nação homogênea. Por outro lado, o futebol é

também a possiblidade de suscitar um sentimento de estranhamento da realidade,

mas isto depende de uma atitude individual, do sujeito constituído em relação ao

outro e disposto a não neutralizar-se perante os fatos.

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Esporte de massas, tanto como prática lúdica, quanto como espetáculo

(GUAZZELLI, 2010, p. 85), o futebol, pode ser considerado o maior elemento

brasileiro de nacionalidade, um exemplo disso é a capacidade de mobilização que

uma Copa do Mundo provoca no Brasil, colocando na mesma torcida pessoas de

sexo, religião ou orientação política diferente. A identificação do futebol como o

esporte mais popular do Brasil é indiscutível, afirma Guazzelli (2010), assim como a

Seleção Brasileira como a representação máxima da identidade nacional.

Neste sentido, Simoni Guedes (2006), argumenta que as sociedades modernas

tendem a multiplicar os rituais nacionais, como as competições esportivas, para que

se reforce e recrie a totalidade social. O futebol é o esporte privilegiado desta

representação da nação brasileira.

Em meio a ditadura militar e após o AI-5, junto ao uso indiscriminado da violência,

havia a preocupação em afirmar o regime de maneira positiva e, neste sentido, o

uso do futebol foi cuidadosamente pensado. O presidente Médici estava presente

nos estádios, os preparadores físicos eram ligados ao Exército Brasileiro, ou seja, os

jogadores foram acompanhados de perto pelo governo (GUAZZELLI, 2010, p. 87).

A partir do diálogo que se estabelece, como afirma Pesavento (2003), a História e a

Literatura oferecem o mundo como texto e o presente da escrita que inventa um

passado ou constrói um futuro, para melhor explicar-se. A abordagem deste artigo

reflete a necessidade de olhar para uma realidade ainda incômoda que é o período

ditatorial no Brasil.

O olhar de investigação desta pesquisa incide especialmente sobre dois

personagens das narrativas escolhidas, Willy e Mauro – respectivamente

correspondentes ao livro e ao filme -, imersos no contexto da ditadura militar. Com

relação ao primeiro, o futebol aparece para o leitor como anestesiante diante da

tortura sofrida; para o segundo, a Copa do Mundo é uma espécie de suporte para o

enfrentamento – ou a passividade – dos acontecimentos.

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Literatura e cinema: apresentação das narrativas que possibilitaram o diálogo

com a história

O livro Ana sem terra, pelo próprio título, já apresenta um intertexto com a obra de

Érico Veríssimo Ana Terra. Enquanto neste observa-se o apego e o pertencimento

de uma família à terra, aquele mostra o enfrentamento, a luta pela posse de um

pedaço de chão, pelo alcance da justiça, as andanças de uma família, ou melhor, de

filhos, já que mãe e pai faleceram. Willy é filho homem, guardião de suas irmãs Ana

e Heidi, juntamente com Gisela, a mais velha.

No início da narrativa, intitulada Litoral Sul do Brasil – Verão de 1958, Willy tem

apenas 12 anos e o desejo de seguir sua vocação: ser padre. Contrariado por

Gisela, dá “tempo ao tempo” antes de entrar no seminário. Antes disso serviu o

quartel, e fora até mesmo preso por carregar um retrato de suas irmãs. Conhecera

algumas pessoas com as quais se identificou, sobretudo Rafael e Marcela e o

sargento Bóris; este fora acolhido durante um tempo pelas irmãs de Willy na

pequenina cidade de Três Forquilhas, no litoral norte do Rio Grande do Sul.

É através de Bóris que se têm as primeiras referências à ditadura, visto estar

foragido devido à repressão do regime. Neste instante, o romance recai sobre Porto

Alegre – Inverno de 1970, ano da Copa do Mundo no México. Entre futebol e tortura,

o capítulo alterna a narrativa da final da Copa e a narrativa dos movimentos e do

sofrimento de Bóris e, especialmente, de Willy. Julgava-se que ambos estavam

envolvidos com o desaparecimento do Capitão Lamarca.

Depois disso, a continuidade da história dá-se seis anos depois. Aliás, vale dizer que

o livro contempla de 1958 a 1990, e as sequências dos capítulos deixam muitos

intervalos. São nove capítulos e, consequentemente, nove anos descritos. Dessa

forma, de um capítulo para o outro, há um deslocamento dos personagens, novo

cenário, nova situação, mas mantendo um elo, uma ligação com o antes narrado.

Em Amazônia: período das águas de 1976, por exemplo, os personagens já

estavam longe do Rio Grande do Sul: haviam decolado em Brasília e viajado até a

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Amazônia, onde estaria Ana, irmã de Willy, num assentamento dominado por

colonos de origem alemã. Quem visita é Silvestre, avô de Rafael que servira no

quartel com Willy. Ao conversar com Ana é que fica sabendo da tortura sofrida pelo

irmão.

No diálogo entre eles, novas informações acerca do período ditatorial são

encontradas: Willy fora torturado junto com Bóris no DOPS2 (Departamento de

Ordem Política e Social) em Porto Alegre e agora estava exilado na França; a família

toda seria torturada se não fosse avisada por Hans, marido de Heidi, mas houve

tempo para fugir, no primeiro momento para Santa Catarina.

Questões referentes à luta pela terra, às incoerências produtivas – importar leite em

pó possuindo o maior rebanho bovino do mundo, por exemplo, ou ainda importar

alimentos que a nossa terra produz com facilidade -, à dominação, à ganância e à

importância de conhecer o passado para compreender o presente são ainda

contempladas em Ana sem terra.

O ano em que meus pais saíram de férias, por sua vez, aborda a questão da

ditadura de maneira bem mais subjetiva. Mauro, um menino de 10, 11 anos, é

deixado pelos pais em frente à casa do avô, o barbeiro Mótel, para que ele o

cuidasse. De maneira bastante inesperada ele se separa dos pais, vítimas de

perseguição e repressão. Como desculpa, os pais afirmam estarem saindo de férias.

Porém, antes mesmo da chegada a casa, o avô já falecera. Mótel era judeu, como

grande parte da população que residia naquele bairro, o Bom Retiro, em São Paulo.

Devido à demora na volta dos pais para buscá-lo – conforme promessa do pai, até a

final da Copa – passa a ser cuidado, temporariamente, por um judeu, vizinho do avô,

chamado Shlomo. Afastado da família, conhece uma nova realidade, novas pessoas

e nova cultura, aguarda um telefonema dos pais e acompanha, pacientemente, os

jogos da seleção brasileira na Copa de 1970.

2

O Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), criado em 1924, foi o órgão do governo brasileiro, utilizado principalmente durante o Estado Novo e mais tarde no Regime Militar de 1964, cujo objetivo era controlar e reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao regime no poder.

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Mauro também carrega o sonho de ser goleiro e esta é mais uma de suas esperas.

À medida que o tempo vai passando, a verdade vai se revelando para o menino,

transformando a inocência em dura realidade. Assim, metaforicamente, o filme

apresenta uma espécie de deslocamento das tensões históricas do momento. A

referência à ditadura não é explícita e é mostrada através do olhar de um menino,

que além de sofrer a ausência dos pais, ainda se angustia com a entrada numa nova

comunidade, sem falar na preocupação com a atuação do Brasil na Copa do Mundo.

Como Sandra Pesavento expõe: “[...] História e Literatura são formas distintas,

porém próximas, de dizer a realidade e de lhe atribuir/desvelar sentidos.” (2003: 32).

Em Ana sem terra, privilegia-se para análise o capítulo que trata especificamente de

julho de 1970, mês da partida final da Copa do Mundo realizada no México, onde se

enfrentavam Brasil e Itália. Em O ano em que meus pais saíram de férias, a narrativa

contempla um período um pouco maior. As primeiras cenas remetem a narrações

esportivas de 1969; posteriormente, se tem a espera pela Copa e a própria

competição.

Os militares no poder: um olhar sobre a “história oficial” e a face autoritária de

Médici

A ditadura militar no Brasil abrangeu de 1964 a 1985; o Ato Institucional número

cinco (AI-5), promulgado em 1968 e que institucionalizou a repressão, a violência e o

terror, requer grande importância, visto suas implicações sociais e abordagem nas

obras.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que a economia brasileira viveu um período

de acelerado crescimento econômico, findado nos primeiros anos da década de 60.

Entre 1963 e 1967, no entanto, o crescimento caiu pela metade, o que gerou um

acirrado debate sobre a natureza das reformas econômicas necessárias para

retomar as taxas históricas de expansão da economia (PRADO; EARP, 2003, p

209). Dentre as questões que surgiam, emergia uma referente às mudanças

políticas e reformas institucionais capazes de viabilizar a continuidade do processo

de desenvolvimento brasileiro.

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Em 1964, tem-se, então, a transição de um regime aparentemente democrático para

uma ditadura militar. O primeiro presidente da República do governo militar foi

Castelo Branco. O novo governo garantiu o poder político necessário para a

realização de reformas conservadoras e de um plano de estabilização econômica

(PRADO; EARP, 2003, p. 213), criando, no Brasil, as bases de um novo modelo de

crescimento.

Das reformas previstas, apenas a que se referia ao controle da inflação é que não foi

bem-sucedida. É importante ainda dizer que o conjunto de reformas deu-se em um

contexto de baixo crescimento econômico e de grande insatisfação popular com os

rumos da economia (PRADO; EARP, 2003, p. 217). Para apoiar o general Costa e

Silva em sua candidatura à Presidência da República, Castelo Branco exigiu,

portanto – e apenas -, compromisso com a política anti-inflacionária. Em março de

1967, o general assumiu o governo.

Como sinônimo do boom econômico observado desde 1968 e como instrumento de

propaganda de governo, a expressão “milagre brasileiro” passou a ser usada. Dentre

as características do “milagre”, estão as elevadas taxas de crescimento, menores

índices da taxa de inflação e comércio exterior multiplicando-se. Num cenário

conturbado, desejava-se obter a legitimação pela eficácia, medida alcançada pela

reversão de uma situação caótica, por reformas e pelo sucesso desenvolvimentista

(PRADO; EARP, 2003).

No início, as medidas usadas pelo novo presidente pareciam ser uma continuidade

das anteriores, em que a redução do papel do setor público e o aumento da

participação do setor privado eram aspectos considerados prioritários, afirma Prado

e Earp (2003, p. 219). Contudo, o crescimento de movimentos de oposição no

âmbito interno invocava maior preocupação com a retomada do crescimento.

Em 1968, por exemplo, irrompeu o movimento estudantil, cuja luta catalisou a

insatisfação de outros segmentos da sociedade. Rapidamente, conforme Prado e

Earp, sucederam-se a repressão ao movimento oposicionista (...), o Ato Institucional

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nº 5, novas cassações de adversários, a morte de Costa e Silva3, o início da luta

armada contra o regime, a posse de uma junta militar provisória e a escolha do novo

presidente (2003, p. 221).

Em 1969, quem assumiu a presidência foi o general Emílio Garrastazu Médici,

desconhecido publicamente. Aceitou o posto porque era o único general de quatro

estrelas que podia impedir o aprofundamento da divisão que lavrava no Exército,

afirma Thomas Skidmore (1988, p. 211). O próprio Médici afirmara em discurso que

era capaz de manter as Forças Armadas e trabalhando para alcançar os ideais da

Revolução de 19644.

Na escolha dos ministros, apresentava-se como imune a pressões de ordens

diversas, pois afirmava ter compromisso apenas com sua consciência do futuro do

país. Esta postura “não política” era o que mais agradava aos militares (SKIDMORE,

1988, p. 213). Além disso, procura passar uma ideia de neutralidade, que coloca as

Forças Armadas como avessas à “politicagem” que tanto teria prejudicado no

passado o Brasil. O começo do seu governo era um momento sombrio, já que dez

meses antes o país estava subjugado à repressão. Marchas estudantis, piquetes de

trabalhadores em greve ou comícios de oratória demagógica não aconteceram (ou,

pelo menos, o grande público não viu ou soube). O clima parecia de tranquilidade,

mas a repressão e a censura do governo eram a razão principal (SKIDMORE, 1988,

p. 215). Tida, então, como possibilidade de conter as subversões e produzir

desenvolvimento, esta rígida forma de controle precisava continuar.

Vale destacar que não é somente a repressão que caracterizava o governo de

Médici. Segundo Skidmore (1988, p. 215), brasileiros situados no vértice da pirâmide

salarial – os profissionais, os tecnocratas, os administradores de empresas – foram

beneficiados com o rápido desenvolvimento econômico. Além disso, salários

3

Costa e Silva faleceu no dia 17 de dezembro de 1969; contudo, começou a sentir os primeiros sintomas da isquemia que o levaria à morte na noite de 25 de agosto do mesmo ano, quando foram rejeitadas pelos militares suas propostas de derrubada do AI-5 e promulgação de uma nova Constituição. 4 É importante considerar a alternância no poder de tendências distintas das Forças Armadas, que

ocorrem entre moderados – “castelistas”/”Sorbonne” e a “linha-dura”. No período que vai de 1968 até 1974 o governo é controlado pela “linha-dura”; com a posse de Geisel, os “moderados” voltam ao poder.

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subiram, novos empregos surgiram, as universidades federais - embora sob rigoroso

controle político - receberam verbas. A tentativa de tornar o Brasil uma potência

mundial sensibilizou muitos brasileiros que acabaram alistando-se fervorosamente

na defesa do regime (1988, p. 216).

É a chamada “modernização conservadora”. O Brasil, ao contrário de outros países

comandados quase na mesma época por ditaduras militares, como o Chile e a

Argentina, teve um Estado que bancou, na base de muito dinheiro vindo do exterior,

uma modernização de cunho nacionalista, isso ocorreu em grande parte por conta

de uma ideologia muito presente no exército.

Nem todos estavam satisfeitos, logicamente. Mas o rigoroso sistema autoritário

tornou possível a “estabilidade” política, definida como a ausência de qualquer

oposição ou crítica séria. Tal filosofia política era aceita, ainda que implicitamente,

porque possibilitava a continuidade e coerência na formulação das políticas

econômicas, visto o notável progresso.

Para as classes média e alta, a política econômica estava seguindo o rumo

desejado, dando, para uma minoria, uma boa oportunidade de consumir bens

nacionais e internacionais. Nas palavras de Prado e Earp (2003), a ideia de que

estava em processo a construção de um “Brasil Potência” passou a constituir a base

da propaganda do governo e o fundamento de sua legitimidade. A legitimidade do

governo no plano político é dada, assim, pelo sucesso do plano econômico, cujo

crescimento era contínuo e acelerado.

Diante disso, Médici ficou conhecido como peça central na transformação do Brasil

em potência mundial, graças ao autoritarismo vigente. Em 1968, criara-se um único

centro de propaganda do governo, a Assessoria Especial de Relações Públicas

(AERP). No governo de Médici, transformara-se na operação de RP mais

profissional que o Brasil já vira (SKIDMORE, 1988, p. 221), produzindo, sobretudo,

frases de efeito como “Você constrói o Brasil!”, “Ninguém segura este país!” ou

“Brasil, conte comigo!”.

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Chefiada pelo coronel Octavio Costa5, as referidas mensagens objetivavam

fortalecer a mentalidade saudável de segurança nacional, indispensável para a

democracia e a garantia do esforço coletivo visando o desenvolvimento. O uso da

televisão nestas campanhas não surpreendia, afirma Skidmore (1988). O Brasil

emergia como mercado consumidor de TV devido, em parte, a planos de compra a

crédito, fazendo com que em 1970, 40% das residências já tivessem o aparelho em

casa. Além disso, a novidade era também a chegada da televisão em cores.

Quando Médici assumiu a Presidência, o Brasil tinha 45 emissoras de TV

licenciadas. Seu governo concedeu mais 20 licenças e nesse processo ajudou

consideravelmente o crescimento da Rede Globo (SKIDMORE, 1988, p. 222). Esta

emissora, vale ressaltar, fora alvo de críticas desde o financiamento inicial, uma vez

que violavam a lei brasileira de telecomunicações por ter surgido com investimento

de um grupo americano chamado Time-Life. A Constituição proibia qualquer pessoa

ou empresa estrangeira de possuir participação em uma empresa brasileira de

comunicação.

A denúncia foi rejeitada pelo governo, permitindo que a Rede Globo continuasse

crescendo. Segundo Skidmore, os críticos diziam que esta ascensão podia ser

explicada pela defesa dos interesses oficiais através da programação (...) durante o

governo Médici (1988, p. 222). É dessa época também a introdução da TV em cores

no Brasil, ocorrida oficialmente em 1972.

A emergência do Brasil como uma sociedade dinâmica original era o tema central da

AERP. Diante disso, uma das estratégias com bastante eficiência consistiu em

associar futebol, música popular, presidente Médici e progresso brasileiro

(SKIDMORE, 1988, p. 223). O general, aliás, era fanático por futebol. Nervoso com o

treinamento da seleção brasileira para o Campeonato Mundial de Futebol no México,

queixou-se à comissão nacional supervisora que demitiu imediatamente o técnico.

5

Octavio Costa comandou a Assessoria Especial de Relações Públicas (Aerp) da presidência da República entre os anos de 1969 a 1973. Nos artigos publicados no Jornal do Brasil defendia a posição militar perante a necessidade do golpe de 64. Mesmo sem ter realizado nenhum curso de Jornalismo ou Relações Públicas, recebeu como primeira tarefa redigir o discurso de posse de Médici.

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Além disso, a vitória do Brasil foi prevista pelo presidente, para a felicidade da

população. Médici fora fotografado sorridente e feliz entre os membros da seleção e

admirando a taça. Cartazes também surgiram, mostrando Pelé em um salto e a frase

do governo: “Ninguém segura mais este país”.

Diante de tamanhas conquistas, o ano de 1970 foi cheio de “sucessos”. A

concentração de riquezas, de acordo com Edgard Luiz de Barros (1991), estava nas

mãos de 25% da população; a classe média emergente começou a usufruir de um

promissor mercado consumidor. O “milagre” se espalhou pelo país e começaram a

surgir grandes supermercados e shopping centers, o nível de renda da família

permitia a compra de bens duráveis e até mesmo da casa própria.

Posando de pai, protetor severo e jovial, o general procurava representar-se como o

compreensivo líder de todos os “bons brasileiros”, afirma Barros (1991). Todos

aqueles que questionavam e criticavam o regime estabelecido, colocavam em risco

a segurança nacional, ou seja, eram os inimigos internos e precisavam ser

combatidos.

O tricampeonato da Copa do Mundo enlouqueceu o país, aliando a ideia de que os

campeões eram nativos de um país brilhante e dinâmico. A população identificava o

autoritarismo com as realizações esportivas e econômicas. No retorno dos

jogadores, foi decretado até feriado nacional para que a população pudesse

comemorar a vitória. Aos jogadores, o prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, deu um

automóvel a cada um, usando de verbas públicas. Médici, no palácio presidencial,

entregou a eles prêmios em dinheiro no valor de milhares de dólares (BARROS:

1991, p. 61). Nota-se, a estratégia publicitária dava excelentes resultados.

Surge, então, o nacionalismo ufanista do “Brasil Grande”, a realização da vocação

nacional a ser grande potência e o tratamento de todos os críticos da política

econômica (...) como traidores (SILVA: 1990, p. 373). A propaganda nacionalista é

incentivada pelo governo em torno do slogan: “Brasil: ame-o ou deixe-o”, utilizado

nas comemorações oficiais da vitória da Seleção Brasileira. Francisco Silva (1990)

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afirma que sob o efeito do milagre econômico e da vitória nos campos de futebol, o

regime militar parece consolidado e forte.

Marques (2011), referindo-se ao caráter alienante do futebol no Brasil, usa a

expressão “verdeamarelismo”, usada por Marilena Chauí6. Tal expressão parte da

ideia de que o uso da bandeira brasileira foi uma imposição do regime militar, muito

presente nas comemorações do Tricampeonato da Seleção na Copa de 1970. A

bandeira, então, usada nas festividades, identificava a vitória da seleção como uma

ação do Estado.

As pessoas desligam-se de questões que atravessam o seu cotidiano, pondera

Simoni Guedes (2006), e o envolvimento emocional, muitas vezes caracterizado

como paixão, é uma das justificativas para o caráter alienante do futebol. No futebol

era possível enxergar uma possibilidade de redenção das desigualdades sociais.

Contudo, apesar de aparentemente ser elemento agregador da sociedade, capaz de

reunir toda a população ao redor de uma televisão ou um rádio, havia outra verdade

nestes dias de Copa do Mundo. A literatura e o cinema, em suas representações,

contribuem nesta leitura.

Estabelecendo um diálogo entre as obras e a história

No livro Ana sem terra, apesar de se ter referências à perseguição política do

período ditatorial militar através do personagem Bóris num capítulo que abarca o

ano de 1968, é no capítulo seguinte a este que a análise recai. Em primeiro lugar

porque privilegia a narração do jogo da final da Copa do Mundo e, em segundo,

porque descreve a tortura sofrida pelo personagem Bóris e, sobretudo, a sofrida por

Willy.

Logo no início do capítulo, intitulado Porto Alegre: inverno de 1970, o narrador já faz

referência ao futebol, afirmando que naquela manhã o noticiário era todo dedicado

ao futebol (p. 97). Sabe-se que há alguém numa lancha no rio Guaíba, em Porto

6 CHAUÍ, Marilena. “O verdeamarelismo” em Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo,

Fundação Perseu Abramo, 2000.

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Alegre e que mais alguém insiste no volume do rádio para que possa ouvir melhor,

afinal, trata-se da grande final contra a Itália.

Os comentários e narrações do rádio são transcritos no livro entre aspas. Num

primeiro momento, vale destacar a afirmação de que Everaldo e seus companheiros

vêm dando muitas alegrias ao povo brasileiro e, ainda, a observação de que nota-se

nas ruas, nos bares, em todas as entrevistas com populares uma tendência geral em

torcer pelo Brasil. Qualquer criança sabe de cor a escalação da seleção brasileira (p.

97-98). Adiante, aparece o nome do presidente Médici, pelo fato de haver mandado

uma mensagem que fora recebida com seriedade pelos jogadores e dirigentes.

Enquanto no livro, um delegado diz que num dia como aquele ninguém devia

trabalhar (p. 101), o filme O ano em que meus pais saíram de férias parece ser

justamente o retrato desta expressão: nos dias de jogo as ruas ficam completamente

vazias. Observa-se que casas de comércios estão fechadas ou sendo fechadas, as

ruas enfeitadas. Mauro, que esperava pelos pais até o início da Copa, prega a tabela

dos jogos na parede e afirma: Até que não demorou tanto assim. E o grande dia

tinha chegado. O Brasil parou para ver o jogo.

Para o menino, era um grande dia por dois motivos: Todo mundo estava esperando

o grande momento. E eu estava o esperando o grande momento e os meus pais!

Não sai de casa naquele dia porque precisa esperar pelos pais. Veste o uniforme da

seleção, olha para as ruas vazias e espera...

Ambas as narrativas são marcadas pelo envolvimento com o futebol. Logo no início

do filme, percebe-se a tensão e apreensão dos pais no telefone, na decisão das

“férias” comunicada ao filho e numa cena bastante interessante na qual o casal –

Miriam e Daniel - avista um caminhão do Exército. Eles se entreolham, o semblante

do pai fica sério; ambos carregados de preocupação, ao passarem pelo caminhão,

expressam alívio. No livro, proporcionalmente ao tamanho do capítulo, demora-se

mais a fazer referência à ditadura.

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No entanto, em Ana sem terra, o leitor é, de certa forma, tomado de surpresa na sua

leitura, pois apesar do tratamento um tanto grosseiro entre os personagens, não se

espera que a ação narrada culminará na tortura dos personagens, muito menos que

essa seja sofrida por Bóris e Willy.

Bóris, diferente de Willy, não passou por interrogatório. O diálogo deste com um

assistente do Diretor do DOPS parecia tranquilo, até porque era intercalado pelo

assunto do dia, o futebol. Quando Willy afirma que sua religião não combate as

pessoas dos ricos, mas sim os mecanismos políticos, a ditadura, que fabrica mais

ricos à custa dos pobres (p. 106), logo é associado ao marxismo e à admiração por

Che Guevara. E ele completa: da mesma forma que admiro o Padre Camilo Torres,

assassinado na Colômbia pela mesma gente que aqui nos prende e tortura (p. 106).

O delegado se defende afirmando que nunca torturou ninguém e que para eles a lei

maior é a Segurança Nacional. Contudo, o mais interessante e que soa como

argumento do que declarara, é a fala: Nós ainda temos a consciência da Pátria,

ainda pensamos em verde e amarelo. E se o senhor vier até a janela, verá que o

povo está conosco. O futebol conseguiu despertar o patriotismo do povo (p. 106).

Nestas palavras, a paixão do povo pelo futebol representa a ideologia de uma nação

homogênea, como se todos compartilhassem das mesmas ideias.

O diálogo que segue reflete ainda mais o papel do futebol neste contexto:

- O futebol é o ópio do povo... Se o Brasil vencer o jogo desta tarde, o General Garrastazu Médici vai consolidar seu poder. - O que será ótimo para o Brasil! Imagine se o povo descobre que vocês terroristas querem que a seleção perca o tricampeonato. Invadiriam a cadeia para linchá-los um por um (p. 107).

O tricampeonato representava exatamente a consolidação de Médici, o “Brasil

Grande”, a máscara pacificadora da ditadura militar. No filme, uma pequena cena

apresenta algo semelhante. Ítalo, estudante de esquerda e que está junto de outros

estudantes que estão na frente de uma TV ainda desligada – como quem não adere

ao fanatismo provocado pelo governo – afirma: Se a Tchecoslováquia ganha, é uma

vitória socialista e é aplaudido pelos demais. Tratava-se do primeiro jogo da Copa,

justamente entre Brasil e Tchecoslováquia. No primeiro gol, que não é brasileiro,

estes estudantes comemoram.

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Todavia, no momento em que a seleção brasileira marca seu primeiro gol, o

ambiente do Centro Acadêmico volta a aparecer e, dessa vez, a vibração é intensa.

Por sinal, a cada gol, a vibração e a comemoração aumentam. Na disparidade

destes dois momentos, um dos dilemas da esquerda naquela época: a dificuldade

de torcer contra o Brasil.

No livro, quando o delegado tenta fazer uma ligação e não obtém sucesso, queixa-

se que as pessoas da companhia de telefone devem estar todas em casa esperando

pelo futebol. Ao convidar um colega para o almoço, este recusa, visto já ter cumprido

seu horário de serviço e desejar voltar para casa, pois a televisão nova já chegou (p.

110).

Em seguida, após a descrição do estado físico de Bóris, mandam buscar Willy.

Nesse momento, há uma longa narração do futebol, falando da organização dos

times e do início da partida. O esporte, aí, é uma espécie de fuga, de desvio de

atenção do leitor, anestesiando-o da tortura anteriormente citada.

Deste momento em diante, uma vez que Willy entra na sala, contempla o estado

miserável de Bóris e começa a ser torturado fisicamente, a narrativa alterna

momentos tensos relacionados ao personagem e ao próprio jogo:

- Isto aqui é brinquedo de homem (...)! Tirem a roupa desse padre e ponham na cadeira do dragão... Vamos ver se uns choques na bunda não fazem ele cantá. - E... e o jogo, seu Pedro? - Tu pode fica perto do rádio escutando baixinho. Se tiver perigo de gol, tu levanta o volume. (...) Com as mãos espalmadas, bateu-lhe com toda a força nos ouvidos. O jovem caiu de joelhos. O delegado deu-lhe um pontapé nas costelas. O padre caiu de boca no chão. (...) - Tem falta para o Brasil. (...)”...e falhou a defesa italiana! E uma falta ma-ra-vi-lho-sa para o Brasil!”

Assim o diálogo vai se constituindo, misturando gritos de dor e de gol. Enquanto os

torturadores pulavam, Willy respirava com dificuldade, tinha os olhos arregalados e

uma fumaça azul brotando dos cabelos (p. 113). Cada nova situação imposta a Willy

era seguida por uma situação de jogo, na tentativa de amenizar o sofrimento do

personagem e fizesse também o leitor desviar-se do que se passava.

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No entanto, nem para o leitor, nem para o narrador é possível ignorar os fatos. Isso

se consolida no final da narrativa, quando entre aspas, o que parecia ser apenas

referência à partida de futebol, se mistura ao sofrimento de Willy:

(...) faltam quinze segundos para terminar a partida, o prisioneiro afrouxa os esfíncteres, o cheiro é insuportável, as bandeiras estão tremulando, Gerson mostra o cronômetro para o juiz, ele não quer terminar, o prisioneiro não confessou, os torturadores berram e pulam em volta do pau-de-arara, é Brasil quatro Itália um, o prisioneiro agoniza na cela, o médico foi comemorar em casa, é o futebol brasileiro, minha gente (...). Agora ninguém segura mais este país! (p. 121-122).

Em O ano em que meus pais saíram de férias, no bairro onde está o menino Mauro,

todos se reúnem e se unem diante da televisão. Em contrapartida, há imagens de

muros pichados com denúncias contra a violência e declarações contra a ditadura

pelos quais as pessoas passam sem dar a menor importância, como quem ignorava

tal situação. Isto mostra que a história da ditadura se serviu também daqueles que a

testemunharam indiretamente, ainda que isso se refletisse apenas num olhar para

um muro. Há, inclusive, uma imagem que primeiro mostra a frase “Abaixo a ditadura”

e funde para a bandeira do Brasil.

Outro deslocamento de tensões presente no filme centra-se novamente em Mauro e

seu desejo de ser goleiro. Trata-se um drama íntimo do menino, cuja posição no

time do bairro traduzia sua dor da incerteza e da espera. Somando-se às outras, já

são três esperas: esperar no gol, esperar pelos pais, esperar a vitória da seleção. E

a cada jogo da seleção, a intensificação do abandono, ou ainda, do efeito cruel da

ditadura na vida do menino.

Ainda que de maneira subjetiva, a história de Mauro nos aproxima muito do contexto

da ditadura militar. Ele é um ser até então inocente e que estava à margem da

História, assim como muita gente, e sofriam consequências. O menino, além de

tudo, era vítima da ditadura do próprio Shlomo que impunha sua cultura e seus

costumes. Dessa maneira, pode-se dizer que o conflito deste personagem permeava

tanto o drama do contexto político brasileiro quanto o drama étnico. Por fim, o dia da

vitória da seleção brasileira é um dia de tristeza na vida de Mauro, já que

representava a queda de uma família idealizada.

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Considerações finais

O futebol, aparentemente, nada teria a ver com questões políticas. Contudo, tanto

no contexto da ditadura militar brasileira, quanto hoje em dia, este esporte interfere

de maneira mais incisiva na vida de muitas pessoas do que a própria violência da

opressão política. Assim, atuava ora como suporte de enfrentamento, ora como

passividade nos acontecimentos.

A passividade é representada tanto no livro Ana sem terra quanto no filme O ano em

que meus pais saíram de férias. Nas duas narrativas, o rádio e a televisão são

centros de interesse e encontro do povo brasileiro em dia de jogo da seleção. O

assunto, a decoração das ruas, a preocupação parece ser uma só. O futebol e, de

maneira especial, as Copas do Mundo, são espaços celebrativos da brasilidade,

construção simbólica da unidade nacional. As diferenças e desigualdades que

permeiam a estrutura social são “suspensas” (GUEDES, 2006).

Em contrapartida, enquanto se celebram as vitórias da Copa de 1970, no livro há a

tortura dos personagens Bóris e Willy, que diante de tamanho sofrimento, são os

únicos que não aderem à torcida e, por conta disso, são ainda mais agredidos. No

filme, também não consideramos como torcedores durante a Copa os pais de

Mauro, Miriam e Daniel, perseguidos pela ditadura. Entretanto, nas primeiras cenas,

Daniel junto ao filho mostra seu envolvimento com o futebol por meio da valorização

da bola que o filho não poderia esquecer, a parceria no futebol de botão e os

comentários tecidos acerca da escalação da seleção.

No Brasil, o futebol fora promovido pelos regimes ditatoriais militares na tentativa de

mascará-los. Por outro lado, numa estratégia individual, é este esporte que

possibilita para o menino Mauro o estranhamento da realidade. A espera pela volta

dos pais até o início da Copa e, posteriormente, alimentado pela esperança, até a

final da Copa, o faz amadurecer e perceber que também se tornara um exilado. As

palavras finais do menino expressam essa percepção: “E mesmo sem querer, nem

entender direito, eu acabei virando uma coisa chamada exilado. Eu acho que exilado

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quer dizer quem tem um pai tão atrasado, mas tão atrasado que acaba nunca mais

voltando pra casa”.

Tanto a narrativa literária Ana sem terra quanto a fílmica O ano em que meus pais

saíram de férias apresentam narradores que não julgam os fatos vividos, mas

apenas os vivenciam. Além disso, são a partir de fatos do cotidiano que as

narrativas revelam a opressão do regime militar. Tais vivências tendem a se

aproximar às de muitas pessoas que viveram no período ditatorial militar no Brasil.

Por isso, o diálogo estabelecido entre as linguagens artísticas aqui apresentadas e a

História permite às pessoas não apenas rememorar um período, mas atentar às

ideologias. Em primeiro lugar, é importante dizer que a identificação do sucesso

econômico com a aprovação do regime militar, na década de 1970, era tão grande

que dificilmente se faria uma análise serena das condições econômicas do país

(PRADO; EARP, 2003). A ideia da legitimação pela eficácia que permeava o

imaginário dos militares e seus aliados e o nacionalismo das Forças Armadas que

fizeram opção pelo crescimento, sem se preocupar com a melhoria das condições

de vida da população, exceto quando pudesse afetar a segurança do regime.

O sucesso econômico do país aliado ao sucesso da seleção foi uma das mais

eficazes alternativas de “encobrir” a ditadura militar. Uma vez que “o Brasil inteiro

parou” durante os jogos da Copa, observa-se a capacidade de mobilizar a população

e desviá-la das tensões do momento. A vitória da seleção instigou ainda mais a

equipe de Relações Públicas, produzindo cartazes e disseminando as marchinhas

ufanistas.

Nas duas narrativas, há ainda um contraste que não pode ser ignorado: a vitória do

Brasil e o sofrimento dos personagens. No momento em que a seleção brasileira

torna-se tricampeã, Willy e Mauro estão em seus piores momentos. O clima final é

de melancolia. Willy ensanguentado no pau-de-arara e Mauro caminhando solitário

pelas ruas. Nestas cenas, a representação de que nem todo o Brasil parou e que o

futebol, apesar de brilhante estratégia, escapa ao fanatismo de alguns.

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Esse era o Brasil em que vivíamos. E, nestes personagens e suas vivências, a

impossibilidade de se acreditar na propaganda ideológica do sucesso político

brasileiro através do futebol, uma vez que as vitórias brasileiras contrastavam com a

dura realidade do país.

Referências

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CHEUICHE, Alcy. Ana sem terra. 5. ed. Porto Alegre: Sulina, 1994.

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Disponível em: http://www.cbce.org.br/cd/resumos/028.pdf. Acesso em: 20 dez.

2011.

O ano em que meus pais saíram de férias. Direção: Cao Hamburguer. Brasil:

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PESAVENTO, Sandra Jatahy. O mundo como texto: leituras da história e da

literatura. In: História da educação. ASPHE/FaE/UFPel. n. 14. Pelotas:

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PRADO, L.C.D.; EARP, F.S. O “milagre” brasileiro: crescimento acelerado,

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DELGADO. O Brasil republicano: o tempo da ditadura. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2003.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da (Org.). Enciclopédia de guerras e revoluções

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______. A modernização autoritária: do golpe militar à redemocratização 1964/1984.

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SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro:

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