O JOGO DA VERDADE

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1 O JOGO DA VERDADE Celina Montenegro

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O JOGO DA VERDADE

Celina Montenegro

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Escritório e advocacia

Mesa de trabalho em destaque

Estante com livro e fotos

Doutora, a moça chegou.

Eu não sabia se você concordaria em me receber, mas pensei

que não perderia nada se tentasse.

Eu realmente não sei o que dizer.

Claro que não esperava ser convidada

para o seu escritório em pleno sábado!

Pensei que devíamos conversar num lugar neutro.

Seu escritório é um lugar neutro? Pra quem?

Em um lugar público poderíamos não ficar à vontade.

Entendo, aqui só tem a moça da limpeza.

Como foi que você me localizou?

Meus pais me contaram quem você é na primeira vez que

perguntei sobre você. Eu tinha treze anos.

Isso foi há dez anos!

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As pessoas costumam passar por uma fase rebelde quando são adolescentes.

Não aconteceu com você?

Você mora em São Paulo?

Moro sim, desde que eu tinha oito anos.

Desde que voltamos para São Paulo, nunca mais fui ao Rio de Janeiro.

Vou para lá em todas as férias. Fui a uma palestra

sua no ano passado.

Qual delas?

A que você fala sobre crimes de corrupção. Você pensa

realmente aquelas coisas que falou?

Se viu minha palestra ano passado e levou tantos meses para me enviar um e-mail,

resolver esta dúvida não deve ter sido o que motivou você a me procurar.

Não. Realmente não foi.

Seus pais sabem que você está aqui?

Posso ter comentado alguma coisa com a minha mãe.

Você e sua mãe são amigas?

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Isso importa?

Para mim não faz diferença, mas para ela sim.

Ela acha que vocês não são.

E como você sabe disso?

Eu a vi contando para a minha avó, as duas

estavam falando sobre os filhos.

E como você sabe que ela é a minha mãe?

Quando disse a minha mãe que iria procurá-la, ela pensou que

eu tinha entendido quem é a sua mãe. Eu não tinha, mas

então ela já tinha falado.

Estou um pouco confusa.

Sua mãe e minha avó são amigas. As duas se encontraram

na minha casa, durante a última visita da minha avó,

no mês passado.

E porque sua mãe achou que você tinha identificado minha mãe?

Ah! Eu ouvi a conversa das duas e, alguns dias depois,

falei em te procurar.

E o que sua mãe pensa disso?

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Não sei. Mas acho que espera que eu entenda

que não faz sentido te procurar.

Mas não é o que você acha.

Talvez. Você algum dia pensou em mim?

Isso é mais complicado do que você está fazendo parecer.

Eu não estou fazendo parecer nada. Exatamente

por isso estou te perguntando.

Sempre pensei em você como uma criança que acabou de nascer.

Só que eu cresci. Afinal, em algumas semanas,

fará vinte e três anos que não nos víamos.

O tempo não passa para a memória de alguns fatos que vivemos.

Você se arrependeu? Quis não ter feito isso?

Nunca pensei dessa forma.

Eu imaginei isso porque, se tivesse, poderia ter me encontrado.

Eu nunca soube quem eram seus pais.

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Mas minha avó conhece você. Eu a vi falando isso.

Meus pais nunca me contaram como foi.

E, claro, você não perguntou. Não queria saber?

Eu era uma garota assustada de quinze anos.

Mas como diria minha avó, para transar você não estava

assustada, não é? Não pensou nisso?

Você está simplificando a situação.

Vim aqui para te dar a chance de você me explicar.

Para dizer o que quiser.

Só concordei com este encontro porque penso que você tem o direito

de me fazer as perguntas que desejar. Mas não posso prometer

que irei respondê-las.

Quero que você me conte porque desistiu de mim,

porque você não me quis.

Eu era uma adolescente assustada, morando numa cidade desconhecida, me sentindo

sozinha e com muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo. Meus pais me disseram

que eu poderia entregar a criança para pais que pudessem amá-la como tinha

direito e depois, quando eu desejasse, ter meus filhos.

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Aí você desistiu de mim!

Eu entendi que você merecia o que eu não podia te dar naquele momento.

Porque você não se sentia preparada?

Você sempre simplifica tudo assim? Não considera a hipótese de que possa

Haver infinitas possibilidades para cada ato de alguém?

Você sabe quem é meu pai?

Claro que sim! Ele era meu namorado.

Não entendi a surpresa da minha pergunta.

Ele dizia que eu era a mulher da vida dele. Mas, quando soube que eu

estava grávida, disse que era problema meu.

E você não concordou com ele.

Não, não concordei. Ele me convenceu a fazer algo que eu não desejava

e ele sempre soube disso.

Onde ele está?

Eu nunca mais o vi depois daquele dia. Quando voltei a São Paulo,

já não tinha sentido saber dele.

Não achou que ele deveria saber onde eu estava?

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Não foi você que disse que se eu quisesse saber sobre você teria procurado? Eu

realmente não tinha ideia de como te encontrar. Mas ele sempre soube quem eu sou.

Ele deve ver você nos jornais, defendendo os indefensáveis.

Porque você foi à palestra? Você estuda na universidade?

Fui ver você.

...

Essa é você?

Sim.

Parecem de épocas diferentes.

E são.

E as crianças?

Crianças que eu conheci.

Um advogado tem fotos dos seus clientes no escritório?

Não, penso que não.

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Entendo!

Fiquei muito surpresa quando li seu e-mail.

Nunca pensou na possibilidade de que eu a procurasse?

Não, nunca pensei nisso.

Mesmo sabendo que há infinitas possibilidades

para cada ato de alguém?

Porque meus pais me garantiram que você estava com pessoas que iriam

amar você como deveria ser amada. Confiei neles.

Eu fui amada como deveria. Talvez até mais do que mereça.

Nenhum filho é amado mais do que merece.

Como você sabe disso? Tem filhos?

Não.

Não quis? Ou não pôde ter mais?

Só encontrei alguém que gostaria de ser o pai dos meus filhos há pouco tempo.

E ele?

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Ele pensa que eu deveria procurar você.

Da primeira vez que perguntei sobre você, queria machucar meus pais.

Eles achavam que eu era nova demais para namorar.

E era?

Provavelmente. Depois, reconheci que tinham razão

e que eu não queria conhecer você de verdade.

Algumas vezes, ter treze anos pode ser muito difícil!

Foi para você?

Quando fiz dezesseis anos foi o ano mais difícil!

O ano em que eu nasci.

O ano em que descobri que somos responsáveis pelo que desejamos.

Você realmente nunca soube quem eu sou?

Eu realmente não sei o que você deseja.

Por isso levou tantos dias a responder meu e-mail?

Respondi no exato minuto que o li. Eu estava de férias e não vi

nenhum e-mail durante vinte dias.

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Você acha que seus pais podem ter contado

a meus pais quem é o meu pai?

Não sei. Nunca mais falamos sobre isso.

Por que? Era um assunto proibido?

Porque eles disseram que eu deveria ter a oportunidade de escolher

quem eu desejava ser.

E quem você desejava ser não cabia ser mãe.

Provavelmente.

Você não disse quem são essas crianças.

Você não gostará de saber quem são.

Como você sabe disso?

No primeiro estágio que fiz quando ainda estava na universidade, conheci um advogado

que faz um trabalho voluntário em um abrigo, dando apoio jurídico em casos de

adoção. Eu trabalho com ele desde esta época.

Quem são essas crianças?

Alguns dos casos que conseguimos encaminhar para adoção.

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Você continuou a fazer a mesma coisa que

fez quando adolescente.

Você estudou? Foi para a universidade?

Faz diferença para você o que os meus pais me deram?

Não estou perguntando sobre o que seus pais te deram. Perguntei

que você fez com o que eles te ofereceram.

Seu pai é professor universitário, não é?

E sua mãe uma empresária bem sucedida?

O que tem isso?

Meu pai é funcionário público e minha mãe é dona de casa.

Classe média baixa. Moramos num apartamento de

dois quartos que deve caber nesta sala.

Você não vai conseguir me fazer ter pena de você. Eu acredito que

as pessoas são quem elas desejam ser.

Então você não acredita em herança genética.

Acredito que as pessoas podem decidir o que fazer com a herança genética.

Com a nossa mudança para São Paulo, as pessoas deixaram

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de saber que eu sou uma filha adotiva. E me acham muito

parecida com a minha mãe, o que garante que nossa história

se torne verdadeira. Então, falar sobre criança abandonada

não é um problema.

O que você quer dizer com isso?

Já reparou que as mães que... não, mãe não... geratriz....

as mulheres que abandonam os filhos simplesmente

geraram eles, não é? As pessoas sabem que você

me entregou para adoção?

Não, apenas meus pais ficaram sabendo. Durante os dois anos em que moramos

no Rio de Janeiro, só viemos a São Paulo no Natal.

Eu já tinha nascido.

Você tem irmãos?

Não. Você disse que o homem que gostaria de ser pai

dos seus filhos acha que você deveria me procurar.

Então outra pessoa sabe sobre mim.

Apenas ele.

E mesmo assim você não me procurou. Pensou, ao menos,

em perguntar a seus pais se sabiam com quem eu estava?

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Não, não pensei. Não penso que se possa ter o direito de simplesmente voltar a

vida de alguém depois de tanto tempo, depois de quase uma vida inteira.

Você quer dizer da vida inteira, não é?

Além disso, eu temia não reconhecer você. Como acontece nos filmes, sabe? Mãe e filha separadas

pelo nascimento que se encontram e se reconhecem.

Detesto esse tipo de filme. Sempre soube que não te reconheceria

porque você é muito diferente da minha mãe.

Você é sofisticada, chic, elegante e rica.

Mas ela é a sua mãe! Eu compreendo isso e penso que você tem razão. Talvez tenha sido isso que

me levou a não te procurar, respeitar o fato de que você tem uma outra mãe.

Não é outra mãe. Ela é a minha mãe, simples assim.

Você tem razão, simples assim. E, por isso, minha surpresa quando li seu e-mail.

Você acredita que, em algumas situações, a genética

decide por nós?

Não, não acredito. Penso que nós somos responsáveis por quem somos

e por nossas decisões.

Então essa história de que somos resultado da genética

e do meio que vivemos é tudo balela?

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Bem.. talvez não. Não escolhemos apenas o que conhecemos?

Onde nascemos pode determinar isso.

E eu? O que determina quem escolhi ser é ter nascido

numa família classe A ou o fato de ter sido entregue para

pais trabalhadores que moram na periferia?

Você não disse o que estudou.

Você não disse o nome do meu pai biológico.

Augusto.

Sou professora numa grande escola particular,

tradicional e respeitada.

...

Eu menti para você.

Mentiu? Quando?

Desde que cheguei aqui.

O que você quer dizer com isso?

Há anos vou a suas palestras e já estive

em julgamentos que você trabalhou.

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O que você quer dizer com isso?

Que eu menti para você.

E qual o significado disso?

Conheço Augusto há algum tempo. Ele é engenheiro em uma

grande construtora. Mas, nem de longe, tão bem

sucedido quanto você.

Se você o conhece, porque veio aqui perguntar sobre ele?

E como você soube quem ele é?

Esqueci de contar que tenho o mal hábito de

escutar a conversa das pessoas.

O que você realmente veio fazer aqui? Não me parece que veio apenas saber

porque entreguei você em adoção ou porque nunca procurei você.

Vim saber se tem possibilidades de que

eu seja uma mãe como você.

Não, acho que não. Você provavelmente será uma mãe amorosa e dedicada como a sua.

Sua mãe não foi amorosa nem dedicada?

Por isso desistiu de mim?

Eu não desisti de você! Eu entendi que você não cabia na vida que eu desejava quando

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tinha quinze anos. Me deixei levar pelas escolhas de Augusto e dos meus pais e

paguei o preço pelas minhas escolhas. Assumo que não desejei você, que me senti livre quando

eles a levaram embora. Que odiei cada minuto daqueles meses de gravidez e nunca me

achei tão feia. E que, a partir daquele dia, ninguém mais tomou nenhuma decisão por mim.

Por isso não me procurou apesar do homem que deseja

para pais dos seus filhos pensar que devia.

Ele não sabe o que eu vivi e não tem o direito de decidir pelos seus pais, que ele nem

conhece. Se algum dia eu procurasse você, pediria antes permissão.

Eles falariam não.

É um direito deles, já que são seus pais.

...

Você tem mais alguma pergunta para fazer?

Você não vai querer saber o que o Augusto disse?

Não.

Não? Você é fria!

Ele não tem a menor importância para mim, nem deveria ter para você também.

Por que não? Dizendo isso você quer dizer que você

também não deveria ter importância para mim?

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Não deveria!

Então...

Você ama seus pais?

Claro que sim, que pergunta!

Se os ama, o que está fazendo aqui?

...

Você não sabe porque está aqui. E não sabe porque isto não tem significado.

Quem eu sou além de uma advogada sofisticada e rica que defende os indefensáveis?

Apesar de não acreditar na herança genética,

posso ter doenças da sua família.

Isso é improvável. E teria herdado doenças familiares independente de quem são seus pais

biológicos. Não é a genética que define quem você é, não foi a genética que te deu a coragem e a

raiva que você tem para estar aqui hoje.

Não tenho raiva, você não é importante para mim.

Se não sou importante para você significa que tem um motivo para estar aqui.

Augusto me disse que nunca esqueceu você. E que a cada vez que olhava

para a filha que tem 12 anos, pensava sobre o que aconteceu comigo.

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Mas nunca teve coragem para procurar você.

Ele pensou que você tivesse perdido o bebe porque viu em uma

das suas entrevistas que você não tem filhos.

Conveniente, não?

Quando conheceu aquelas crianças, pensou em mim?

Elas não tinham pais que pudessem cuidar delas. Não é o seu caso.

Como você tem tanta certeza disso? Quem te garante que

não fui negligenciada por meus pais?

Uma confiança inabalável nos meus pais. A mesma confiança que você tem nos seus.

Você não pode saber se confio neles.

Não sabia antes de você chegar. Mas, agora, não tenho dúvida nenhuma.

Por que? Você não pode saber quem eu sou

em tão pouco tempo.

Porque meus pais jamais permitiriam que você permanecesse com essa família se

soubessem que você não é amada e bem cuidada.

Não conheço você, mas conheço meus pais.

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Se eu te pedisse alguma coisa, você faria?

Depende do que você quer.

Eu não disse que quero alguma coisa.

Se já procurou Augusto, porque só agora veio até aqui?

Encontrei com Augusto há dois meses atrás.

Se você quiser voltar, estarei aqui.

Você se arrependeu por ter engravidado?

Não, nunca. Sempre pensei que a vida de uma criança tem algo de belo e, por isso, todas

as manhãs, desde o dia em que você foi embora, pensei que você deveria estar bem nos braços de

alguma mulher. Talvez, por isso, nunca mais tenha voltado ao Rio de Janeiro. Não seria capaz de me

ver frente a frente com ela.

Saiba que minha mãe agradece a Deus

todos os dias pela sua vida.

Coloca uma pequena caixa na mesa

e vai em direção a saída

Eu trouxe para você.

O que é?

O primeiro dente de leite que arranquei.

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Uma lembrança da minha infância.

Não posso aceitar. Essa lembrança é da sua mãe.

O dente é meu.

Sim, o dente é seu. Mas a lembrança, essa pertence a sua mãe.

É a ela que você deve presentear.

Parece que você não quer nada que

possa te lembrar que um dia eu existi.

Eu optei por não ter nenhum direito sobre qualquer coisa relacionada

a você quando concordei em te entregar para seus pais. Agora

devo honrar minhas escolhas, independente do que eu ou qualquer

outra pessoa julgue ser certo ou não.

Você é doadora de medula, não é?

Sim, sou. Como sabe disso?

Procurei Augusto porque ouvi sua mãe contando para minha

avó que ele tem dois filhos. Pensei que pudessem me ajudar.

O que você está querendo dizer?

Eles fizeram os exames, mas foram incompatíveis. Então,

meu médico me disse que havia encontrado um doador.

Eu não estou entendendo o que você está dizendo.

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Meu médico disse que eu deveria procurar irmãos biológicos. Mas,

depois, ele mesmo descobriu que você era compatível. Claro que

só entendeu que era minha mãe biológica quando contamos.

Você precisa de um transplante?

Aí está meu dente de leite.

Eu já decidi que você deve ficar com ele.

Se não o deseja, dou a você o direito de

decidir o que fará com ele.

Espere.

Sua mãe sabe onde me encontrar.

Sai