O lado médico da Cannabis

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Pesquisa FAPESP - Ed. 125

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PESQUISA RESPONDE

27.05.06

• Ernani Cardoso

- Por que os pingüins não con­

gelam? E o que se deve fazer ao

encontrar um pingüim na praia?

• Valéria Flora Radel,

do Centro de Biologia Marinha

da USP em São Sebastião

- O pingüim tem uma série de

proteções para não congelar.

Sua temperatura interna é alta.

Além disso, ele passa uma pro­

teção nas penas: pega com o

bico uma substância gordurosa

numa glândula perto da cauda

e encera todas as penas. Esse

gesto o isola do ambiente exter­

no. O pingüim vive em bandos

muito grandes. Quando sai da

água, e essa está fria, ele já co­

meu e vai para a terra se esquen­

tar pertinho de outro pingüim.

Por isso, quando alguém encon­

tra um pingüim sozinho na praia,

deve colocar pertinho delegar­

rafas de água quente. Esse cui­

dado evita que ele morra de frio.

ENTREVISTA

27.05.06

• Comentarista

Muitas pessoas se espantaram

com o grau de organização dos

ataques do PCC a São Paulo em

15 de maio passado. Há uma re­

lação direta entre criminalida­

de e nível formal da educação?

• Fernando Sal la, sociólogo

do Núcleo de Estudos

da Violência da USP

- Não. A gente não pode se es­

quecer de que há uma série de

crimes cometidos por pessoas

muito bem posicionadas na so­

ciedade, com altíssimo grau de

escolaridade. Só que esses cri­

mes nem sempre têm visibili­

dade e nem sempre são alvo de

fortes investimentos dos apara-

tos repressivos ou investigati­

vos para o seu desmantelamen­

to. São os crimes do colarinho­

branco, as fraudes financeiras.

Se olharmos para as pessoas

que estão cometendo esses cri­

mes, veremos que são porta­

doras de escolaridade às vezes

muito superior a qualquer ou­

tro tipo de criminoso. Dentro

das prisões, e isso é sabido, há

uma parcela da população que,

em geral, pertence às camadas

pobres. Mas essa camada pobre

vem se escolarizando cada vez

mais. Há pouco tempo conver­

sei com vários presos e percebi

que os com mais escolaridade

têm acesso maior às informa­

ções da sociedade. Têm muito

mais noção dos seus direitos,

das injustiças sociais e de quem

são os responsáveis pela si­

tuação de crise. Enfim, há hoje

um nível, por assim dizer, muito

maior de conscientização da si­

tuação política e social por par­

te dos presos. Isso se manifes­

tou nos episódios de violência

em São Paulo. Os presos sabem

quem são as autoridades peni­

tenciárias, quem é o governa­

dor. Isso é um dado novo.

PROFISSÃO PESQUISA

17.06.06

• Maria Aparecida de Moraes

Silva, socióloga do

Departamento de Geografia

Humana e Regional

da Faculdade de Ciências

e Tecnologia de Presidente

Prudente, da Unesp, e

pesquisadora visitante da USP

- Pesquisar sobre a realidade

do trabalhador rural é algo que

está ligado sobretudo às mi­

nhas origens. Eu nasci no mun­

do rural, e essa afinidade com a

temática advém, portanto, da

minha própria história de vida.

Resido no interior, tenho ao meu

redor uma situação que eu con­

sidero gritante, que é a condi-

Trabalhador rural: exploração

ção do trabalhador rural. Portan­

to, a própria realidade que está

situada no meu contexto seria

para mim, enquanto socióloga,

um verdadeiro laboratório de

pesquisa. A importância dessas

pesquisas não é somente para o

meio acadêmico. Tenho preocu­

pação de fazer com que esses

estudos possam contribuir para

as transformações sociais que

são necessárias. Vejo, por exem­

plo, uma situação de explora­

ção muito grande, sobretudo

nesse momento, em relação

aos trabalhadores rurais, aos

chamados cortadores de cana

que são empregados nas usi­

nas. Nesse sentido1 os meus es­

tudos têm tido uma validade

não somente para os movimen-

tos sociais como também para

ONGs, e também têm chegado

aos meios de comunicação,

como uma forma de conscienti­

zação e de sensibilidade em re­

lação a esses problemas.

NOTA

17.06.06

• Apresentadora

-Relógio do sol, ampulheta, apa­

relhos de corda e marcadores di­

gitais. Ao longo da história o ho­

mem já inventou muitos tipos

de relógio para marcar a passa­

gem do tempo. E o modelo mais

avançado e preciso a que se con­

seguiu chegar é o dos aparelhos

atômicos. O modelo mais recen­

te de relógio atômico acaba de

ser projetado e construído no

Instituto de Física de São Carlos

da USP. O professor Vanderlei

Bagnato, coordenador do pro­

jeto, conta que a estrutura de

construção é a mesma de outros

países que possuem o aparelho,

mas foram conseguidas novas

configurações. Apenas França,

Estados Unidos, Itália e Alema­

nha possuem relógios semelhan­

tes. A versão nacional é o primei­

ro do tipo Fountain na América

do Sul . Esses marcadores de

tempo atrasam um segundo em

mais de 100 milhões de anos.

Relógio atômico: atrasa 1 segundo em 100 milhões de anos

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

26 BIOSSEGURANÇA Ação de promotores e ambientalistas provoca crise na CTNBio

30 POLÍTICAS PÚBLICAS Novo sistema avalia e previne impacto ambiental em parques

CIÊNCIA

42 BIOLOGIA CELULAR Mecanismo de transmissão de bactéria entre insetos auxilia pesquisa de células-tronco e tratamento de doenças tropicais

46 VIROLOGIA Cresce o papel do homem na prevenção de um tipo de câncer comum entre mulheres

50 NUTRIÇÃO Análise de unhas mostra como a alimentação pode variar

54 ECOLOGIA A superfície de uma única folha pode abrigar mais de 600 espécies de bactérias

56 ZOOLOGIA Cidade de São Paulo abriga 433 espécies de animais silvestres, de sabiás a bugios

58 PALEONTOLOGIA Há 15 milhões de anos, planícies alagáveis ocuparam um terço da América do Sul e abrigaram uma fauna mais rica que a da Amazônia

4 • JULHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 125

TECNOLOGIA

72 METALURGIA Pequena empresa produz pós metálicos especiais para a fabrica ção de filtros industriais

76 EDUCAÇÃO Escolas e prefeituras adotam softwares

para crianças com dificuldade de aprendizagem

78 QUÍMICA Alimentação animal monitorada por cápsula ingerida diariamente traz benefícios para as criações

HUMANIDADES

86 HISTÓRIA Estudar os antigos gladiadores ajuda a entender a sociedade atual

90 ECONOMIA País asiático pode tomar lugar que o Brasil guardava para si no mundo globalizado

SEÇÕES

CARTAS . . ...... . .......•.... 6 IMAGEM DO MÊS .......... ... 8 CARTA DA EDITORA ..... .. ... . 9 MEMÓRIA ............•••.. . 10 ESTRATÉGIAS ... .. .. ........ 20 LABORATÓRIO . . ......• . .... 32 SCIELO NOTÍCIAS ............ 62 LINHA DE PRODUÇÃO .. . .. . .. 64 RESENHA .... .............. 94 LIVROS . . ... .. ............. 95 FICÇÃO ..........••........ 96 CLASSIFICADOS .....•....... 98

Capa: ilustração Hélio de Almeida-Mayumi Okuyama sobre foto de John William Banaga/Getty lmages

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l~=============================================================================w=w=w=.=re=v=i=st=a=p=e=s=q u=i=s=a =.f=ap=e=s=p=. b=r

36 CAPA

Extraído da maconha,

canabidiol age

contra ansiedade e out ros

distúrbios mentais

68 GENÉTICA Cana geneticamente

modificada tem propriedade

inseticida apenas quando atacada por inseto

80

O antropólogo

Emilio Moran, da Universidade de Indiana, fala das inevitáveis

mudanças ambientais

globais e da adaptação

dos homens a elas

CIÊNCIA POLÍTICA Apesar do desejo

de alguns, PT e PSDB parecem destinados

a seguir caminhos separados

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c a r ta s@f a pes p. br

Riscos da cesárea

Acompanho todos os finais de se­mana o programa Pesquisa Brasil na Rádio Eldorado AMe também a revis­ta Pesquisa FAPESP- não assidua­mente- pelo site. Em junho, a revista tratou dos perigos da cesariana ("Es­colha errada'; edição 124) . Por coinci­dência, editamos um dos únicos livros para crianças que tratam de parto na­tural (e nesse caso parto domiciliar com a ajuda da parteira e de toda fa­mília), de Naoli Vinaver, uma parteira mexicana bem conhecida no meio. Editamos Nasce um bebê ... Natural­mente (trilíngüe: português, inglês e espanhol) em novembro, por ocasião da II Conferência Internacional sobre Humanização do Parto e Nascimen­to, sob a coordenação da ReHuna, Rede de Humanização do Nascimen­to, que aconteceu no Riocentro no ano passado. No encontro estiveram presentes as maiores autoridades inter­nacionais e nacionais no assunto (Marsden Wagner, Michel Odent, Les­ley Page, Elisabeth Davis, Jan Tritten, Naoli Vinaver, Mario Merialdi, Mar­tha Gonzales, Soo Donne, Chris Mc­court, Laura Uplinger) e todos, sem exceção, fizeram muitos elogios ao Nasce um bebê ... , pois esse tema ainda é tabu no Brasil. Tanto que fizemos uma edição pequena e vendemos me­tade dela no congresso. O restante da edição está em nossos depósitos, pois

6 • JULHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 125

a escola brasileira morre de medo de livros como esse.

lo E M ELONI N ASSAR

Editora de Literatura Infantil e Juvenil Editora Mercuryo Jovem

São Paulo, SP

Avaliação

Fiquei aborrecido ao ler na re­portagem "Publicar não é tudo" de

EMPRESA QUE APÓIA A PESQUISA BRASILEIRA

t' NOVARTIS

Trop Net.org

Pesquisa FAPESP (edição 124) uma inverdade acerca do brilhante físico russo Lev Davidovich Landau. Em sua escala para classificar os físicos a que se refere o artigo, Landau colo­cava em uma classe superior os físi­cos que, segundo ele, seriam dez ve­zes mais importantes para a ciência que aqueles na classe imediatamen­te abaixo, em uma escala que ia de 1 a 5. Assim, um físico "de primeira classe" seria dez vezes mais impor­tante para a ciência que um físico "de segunda classe", cem vezes mais importante que um físico "de ter­ceira classe" e assim por diante. Nesse esquema, Landau colocou Bohr, Heisenberg e Dirac na primei­ra classe, enquanto colocou a si mesmo na "segunda classe e meia"

(considerava-se, portanto, cerca de 30 vezes menos importante para a ciência que seus colegas de primeira classe). Einstein, por estar, na opi­nião de Landau, muito acima dos outros, foi colocado na "classe meia". Só no fim de sua vida Landau sen­tiu-se digno de se considerar um físi­co de segunda classe. Todos sabemos, no entanto, que Landau foi, no mí­nimo, um físico de primeira classe, e poucos hesitariam em dar-lhe um 0,7 em sua própria escala.

J. RI CARDO G. M E DONÇA

São Paulo, SP

Sebastião Witter

Excelente a entrevista com José Sebastião Witter ("Uma vida na sala de aula", edição 124). Parabéns!

Pesquisa Brasil

GISLE E G AMA

Petrolina, PE

Com relação à seção Pesquisa Responde, publicada no anúncio so­bre o programa de rádio Pesquisa Brasil (edição 124), não contesto a in­formação de Cesar Ades, do Instituto de Psicologia da USP, quando ele ex­plica por que as pessoas têm pavor de piolho. Mas minha resposta seria: porque piolho é indício de sujeira, como vários outros animais que se­riam prejudiciais à saúde humana. Raízes históricas nos dizem que, des­de sempre, a falta de higiene repre­sentou um perigo para os homens -e nem há necessidade de apontar exemplos. Não há que comparar o horror ao piolho àquele atribuído a cães - que podem atacar o homem e transmitir moléstias - e aranhas -animais peçonhentas. Nada a ver, portanto, com o piolho, exceto se um pesquisador esclarecer que ele é res­ponsável por alguma moléstia pelo simples fato de estar presente em con-

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tato com o homem. Esses, me parece, são os esclarecimentos que faltaram.

Revista

FLÁVIA DE C ASTRO LI MA

São Carlos, SP

.:NIU#I • =:.=.=--·-·-

~ . .

Tenho agora a oportunidade de fazer um contato com a revista Pes­quisa FAPESP, pelo boletim do novo site, para expressar minha admiração como sua leitora há alguns anos e, so­bretudo, avaliar sua qualidade e oca­ráter científico, os quais a revista al­cançou em sua trajetória histórica. A cada número que recebo, mais reafir­mo o excelente trabalho editorial dos artigos selecionados, atualizados te­maticamente e artisticamente apre­sentados, em favor da satisfação plena do seu leitor. Parabenizo a vocês to­dos, esperando sempre ter em mãos a revista Pesquisa FAPESP.

Correções

MARIA JOSÉ PALO

Vinhedo, SP

Na reportagem "Precisão tupini­quim" (edição 124) o nome correto da pesquisadora identificada como Stella Tavares Miller é Stella Torres Muller.

Na nota "Chips mais eficientes" (edição 124) a palavra inglesa silicon (silício) foi traduzida erroneamente como silicone.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para

o e-mail [email protected], pelo fax OU 3838-4181

ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP,

CEP 05468-901. As carta s poderão ser resumidas

por motivo de espaço e clareza.

Peiijüisa FAPESP

As reportagens de Pesquisa FAPESP retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.

• Números atrasados Preço atual de ca pa da revista acrescido do va lor de pastagem. Tel. (11) 3038-1438

• Assinaturas, renovação e mudança de endereço Ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418 Ou envie um e-mail: [email protected]

• Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fa x (11 ) 3838-4181 ou pelo e-mail : carta [email protected]

• Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em ing lês e espanhol.

• Para anunciar Ligue para: (11 ) 3838-4008

PESQUISA FAPESP 125 • JULHO DE 2006 • 7

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Refúgio dos pássaros

Um sítio arqueológico encontrado no mês passado em Veio, perto de Roma, abriga algumas das mais antigas pinturas da história da civilização ocidental. Trata-se da tumba funerária de um príncipe etrusco decorada com desenhos de aves migratórias e leões, datados do século 7 a.C. Antes deste achado, as pinturas etruscas mais antigas, situadas em Tarquínia, na Toscana, datavam do século 6 a.C. A tumba, localizada num campo de trigo, havia sido pilhada recentemente. Os arqueólogos a encontraram com a ajuda de um saqueador de antiguidades que serviu de informante.

8 • JULHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 125

Page 8: O lado médico da Cannabis

Pesquisa CARLOS VOGT PRESIDENTE

MARCOS MACARI VICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR

CARLOS VOGT. CELSO LAFER, GIOVANNI GUIDO CERRI, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, JOSÉ ARANA VARELA,

JOSÉ TADEU JORGE, MARCOS MACARI, SEDI HtRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

RICARDO RENZO BRENTANI DIRETOR PRESIDENTE

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTÍFICO

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO

PESQUISA FAPESP

CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO).

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO,

JOAQUIM J, DE CAMARGO ENGLER, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO,

RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI

DIRETORA DE REDAÇÃO

MARILUCE MOURA

EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN

EDITORA SÊNIOR

MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

DIRETOR DE ARTE

HÉLIO DE ALMEIDA

EDITORES EXECUTIVOS CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES),

MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA)

EDITORES ESPECIAIS FABRfclO MARQUES, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE),

RICARDO ZORZETTO

EDITORA ASSISTENTE DINORAH ERENO

REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO

CHEFES DE ARTE JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAYUMI OKUYAMA

ARTE FINAL LILIAN QUEIROZ

FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR. MIGUEL BOYAYAN

SECRETARIA DA REDAÇÃO

ANDRESSA MATIAS TEL: (II) 3838-4201

COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), BRAZ. EDUARDO GERAOUE (ON-LINE), ELISA FRANÇA, ERNANE GUIMARÃES NETO, FRANCISCO BICUDO,

GONÇALO JÚNIOR, JAIME PRADES, LAURABEATRIZ, LAURA TEIXEIRA, MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO, MARIA GUIMARÃES,

SANDRO CASTELLI, THIAGO ROMERO (ON-LINE) E YURI VASCONCELOS

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CLAUDIA IZIOUE (COORDENADORA) TEL (11) 3838-4272 PAULA ILIADIS (ASSISTENTE) TEL: (11) 3838-4008

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ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP

t PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL

DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESOUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Carta da Editora

Sob o signo da mudança

As vezes, bons remédios para deli- cados problemas de saúde humana surgem de fontes inesperadas e até

um tanto surpreendentes. Essa é uma entre outras conclusões possíveis da leitura da reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP. Como re- lata a partir da página 36 o editor de ciência, Carlos Fioravanti, pesquisas na Universidade de São Paulo (USP) aca- bam de demonstrar que o canabidiol, uma das substâncias mais abundantes da maconha, é capaz de deter a ansie- dade de modo equivalente a alguns medicamentos sintéticos utilizados há décadas. Aparentemente, ele pode tam- bém reduzir a depressão. Outros estu- dos da mesma universidade trazem evidências preliminares de que o cana- bidiol funciona também como antipsi- cótico e é capaz de tornar mais leves sin- tomas dramáticos da esquizofrenia.

Outras pesquisas já haviam indi- cado alguma eficácia da mesma subs- tância contra leucemia, epilepsia e doenças neurodegenerativas, como o mal de Alzheimer. Ora, considerando tudo isso, é irrecusável a idéia de que a maconha - normalmente tratada ape- nas como uma droga cujo consumo contínuo pode ter efeitos físicos e psi- cológicos perniciosos - se apresenta como campo vastíssimo e promissor de um ramo da pesquisa científica com- prometido acima de tudo com a saúde e o bem-estar dos seres humanos - o de fármacos. E a julgar pelos resultados que têm saído recentemente dos labo- ratórios das universidades brasileiras e de alguns de seus melhores institutos de pesquisa, trata-se de um campo em que o país parece destinado a avançar

MARILUCE MOURA - DIRETORA DE REDAçãO

rapidamente, seja valendo-se de plan- tas, de substâncias em que tem consi- derável know-how acumulado, como o veneno de serpentes, ou talvez mesmo de moléculas sintéticas.

Do reino vegetal, aliás, saem outras boas notícias desta edição. Por exem- plo, o desenvolvimento de uma cana- de-açúcar geneticamente modificada que, quando atacada pela broca-da- cana - e só aí -, funciona como um verdadeiro inseticida, segundo o relato da editora assistente de tecnologia, Di- norah Ereno, a partir da página 68. A broca, uma das principais pragas da cultura da cana, é um inseto que pene- tra no interior da planta e aí vai ca- vando galerias internas por onde escoa boa parte do investimento dos produ- tores. Contra isso, genes promotores entraram na engenharia dessa nova planta com notável capacidade de de- fesa contra os hóspedes indesejáveis.

Vale a pena destacar também nesta edição a entrevista do antropólogo Emí- lio Moran, a partir da página 14, na qual ele fala de forma notavelmente viva das profundas transformações sociais que estão em gestação neste mundo em que vivemos, em decorrência das mudan- ças climáticas globais já em curso. Manejadas com mestria, as palavras de Moran, como dizemos na abertura da entrevista, são capazes de capturar a atenção mesmo do mais cético dos an- tiambientalistas para esse tema das mudanças climáticas, cada vez menos vistas como apenas aborrecidas para quem não é especialista.

Vale a pena conferir.

PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 • 9

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emoria

Movido a paixões

José Leite Lopes, morto aos 87 anos, deixa vasto leque de realizações

NELDSON MARCOLIN

os 68 anos, em 1986, o físico José Leite Lopes recebeu uma homenagem da Universidade Federal de Pernambuco e, ao agradecer, fez um discurso cujo título resumia sua vida e suas paixões, "Pernambuco, ciência e cultura". Os amigos dizem que o estado natal era uma referência constante,

não importava se estivesse em Princeton, Paris, Cidade do México ou Rio de Janeiro. A ciência foi amor à primeira vista, cultivada desde sempre e exercida no mais alto nível. A cultura foi conseqüência de uma vida passada entre homens e mulheres de espírito e algo que ele se empenhou em disseminar onde quer que estivesse. Ao morrer aos 87 anos na manhã de 12 de junho em razão de falência múltipla de órgãos, o físico deixou uma obra científica consistente e um vasto leque de realizações institucionais.

A carreira de Leite Lopes começou a despontar ainda no Recife, onde nasceu, durante seu curso de química industrial na Escola de Engenharia de Pernambuco, concluído em 1939. Influenciado pelo professor Luiz Freire, decidiu estudar física na Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) da Universidade do Brasil, atual Universidade

Acima, Leite Lopes explica predição do bóson neutro em 1958. Ao lado, em foto mais recente

10 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

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Em 1945, com Pauli (centro) e Joseph Jauch (à direita) comemorando o Nobel de Física ganho naquele ano

Com os amigos Celso Furtado (centro) e Luiz Hildebrando Pereira da

Silva (esquerda), em Paris, abril de 1992:

lembranças do exílio

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).Eml942,já formado, começou a trabalhar no Instituto de Biofísica a convite de Carlos Chagas Filho. Mas só por alguns meses, até se transferir, com a ajuda de Chagas, para o estimulante ambiente criado pelo físico ucraniano naturalizado italiano Gleb Wataghin em São Paulo. Na Universidade de São Paulo (USP) se reuniam talentos como Mário Schenberg, Marcello Damy de Souza Santos, César Lattes, Paulus Aulus

Pompéia, Oscar Sala e Roberto Salmeron, entre tantos outros. "Todos vinham para esse ambiente criado por Wataghin. Veio o Lattes, veio muita gente e foram se produzindo coisas novas", contou para Pesquisa FAPESP em entrevista publicada em novembro de 2000 (edição 59).

Lopes era filho de José Ferreira Lopes e Beatriz Coelho Leite. O pai era dono de uma loja de ferragens no Recife. A mãe morreu três dias depois de seu nascimento

atingida pela gripe espanhola, o que levou Leite Lopes e os irmãos Arlindo e Abelardo a serem criados pela avó paterna, Claudina. Quase todos os cursos que o físico fez foram bancados por bolsas conseguidas em indústrias e fundações do Brasil e do exterior - algo importante, dada a falta de recursos da família. Em 1944, Lopes conseguiu mais uma delas, dessa vez do governo norte-americano, e foi para a Universidade de Princeton concluir a pós-graduação iniciada na

USP. Lá assistiu a seminários de alguns dos maiores cientistas da época, como Albert Einstein, o matemático suíço Joseph Maria Jauch e o físico austríaco Wolfgang Pauli (Nobel de 1945), um dos fundadores da mecânica quântica. Dois anos depois doutorou-se sob a orientação do próprio Pauli e, na volta ao Rio, foi nomeado professor de física teórica na FNFi.

Foi nesse período que Leite Lopes se deslocou para o centro da política científica brasileira - e lá permaneceu por várias décadas, sem abandonar a pesquisa e as aulas. Em 1947 e 1948, César Lattes ganhou notoriedade com descobertas sobre o méson pi feitas em colaboração com físicos da Inglaterra, da Itália e dos Estados Unidos. Lattes já pensava em criar um centro de pesquisa em física no Rio e contava com o apoio entusiasmado de Lopes, amigo e interlocutor freqüente. Em 1949 os dois ajudaram, com outros pesquisadores, a fundar o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), com o auxílio de João Alberto Lins e Barros, um dos líderes da Revolução de 30 e, naquele momento, ministro do Itamaraty. Participaram também da articulação para criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 1951.

Nos anos seguintes, Lopes continuou trabalhando e publicando. Em 1953, influenciado pelo artista plástico Adolfo Soares, começou a pintar. Embora não tivesse religião, as catedrais e igrejas barrocas exerciam grande

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fascínio sobre ele e estão presentes em muitas de suas telas. Em 1956 passou uma temporada no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), nos Estados Unidos, onde ficou até 1957. Nesse período, morreu Carmita, sua primeira mulher, com quem teve dois filhos, José Sérgio e Sylvio Ricardo. No ano seguinte, já no Brasil, publicou seus trabalhos mais importantes.

Na entrevista de 2000 à Pesquisa FAPESP, o cientista explicou qual de suas descobertas ele considerava mais significativa: "Fiz um trabalho em 1958 em que propus uma relação entre o bóson e o fóton, e a partir daí uma igualdade entre a interação fraca e a constante eletromagnética que é dada pela carga do elétron. Quando fiz essa hipótese, obtive o valor da massa dos bósons w+ e w-, na ordem de 60 massas do próton. Isso foi novidade, e o C. N. Yang [físico chinês da Universidade de Princeton, Nobel de 1957] não acreditou. Ele achava que a massa do bóson seria apenas um pouco superior à do próton. Propus no mesmo trabalho a existência de um bóson neutro, que hoje se chama Z0 (z-zero), que se devia buscar na interação de elétrons com nêutrons". Esse bóson neutro predito por Lopes só foi descoberto na década de 1980. "Mas pouca gente tinha lido meu trabalho, embora tivesse sido editado na Nuclear Physics, uma publicação importante", disse Lopes.

Um de seus ideais era a disseminação de um forte ensino de física na América Latina. Em 1959 fundou com Marcos Moshinsky, do México,

e Juan José Giambiagi, da Argentina, a Escola Latino-Americana de Física, com atividades anuais, por rotação, nos três países. Também coordenou a comissão de conselheiros convidados para estruturar a física na futura Universidade de Brasília, que começaria a funcionar em 1962, embora não tenha trabalhado lá. Com o golpe militar de 1964, Lopes aceitou o convite para ser professor visitante na Faculdade de Ciências de Orsay, em Paris. Voltou em 1967 para organizar o novo

Com Mário Schenberg (acima), físico e crítico de arte, e César Lattes, um dos mais antigos companheiros de lutas

Instituto de Física da UFRJ. A tranqüilidade não durou muito: em 1969 foi um dos cassados pelo Ato Institucional n° 5. Com sua segunda mulher, Maria Laura, e a filha Ângela, partiu para a Universidade Carnegie Mellon, em Pittsburgh, nos Estados Unidos. Nos anos seguintes deu aulas na Universidade Louis Pasteur, em Estrasburgo, na França, na Universidade Central da Venezuela e no México.

Em 1974, foi abolida uma velha lei que proibia estrangeiros de se tornarem professores titulares em

universidades francesas. A nova lei foi assinada pelo presidente Giscard d'Estaing meses antes do fim do contrato de Lopes como professor associado e a Universidade Louis Pasteur pediu sua promoção a professor titular com contrato permanente. Ocupou a vice-diretoria do Centro de Pesquisas Nucleares, órgão do Centro Nacional de Pesquisa Científica francês (CNRS, na sigla original), onde ficou até 1978. Só voltou de vez ao Brasil em 1986 convidado pelo então ministro da Ciência e Tecnologia, Renato Archer, para dirigir a mesma instituição que ajudou a fundar, o CBPF.

Leite Lopes escreveu 22 livros, mais de 80 artigos científicos e uma centena de textos sobre educação e política científica. "A força que ele tinha para fazer política científica vinha de sua capacidade como cientista", atesta Amélia Hamburger, pesquisadora do Instituto de Física da USP com trabalhos em história da ciência. Amigo de Lopes por 60

12 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

Page 12: O lado médico da Cannabis

Leite Lopes: o poliedro e o albatroz AMOS TROPER*

Girassol, (44 x 36

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I

Sem título, 1979 (46 x 38 cm)

Leite Lopes é uma figura polié- irica, multifacetada.

Físico teórico dos mais brilhantes de sua geração, é também um grande professor que através de seus livros in- fluenciou toda uma geração de cientis- tas. Tem sido, ademais, ao longo de sua vida, agitador cultural e político, com- batendo o bom combate visando à im- plantação de um ambiente de pesqui- sa científica no Brasil - chave para sua verdadeira emancipação nacional.

Leite Lopes é um apóstolo do ho- mem total concebido no Iluminismo, interligando o trabalho científico, po- lítico e artístico numa atividade coe- rente e unificada.

A sua pintura não é um simples pendant de sua atividade científica; antes, se constitui numa parceira entre arte e ciência, visando exaltar a civili- zação e a vida, bradando contra a "de- sespiritualização" moderna e a morte.

A pintura de Leite Lopes possui essencialmente dois leitmotiven - as jangadas e as catedrais que se inter- penetram - a refletirem experiências fundamentais de sua vida: a sua in- fância e adolescência passadas no Re- cife e o seu exílio na maturidade em Estrasburgo.

Nos seus trabalhos abstratos, as cores vivas refletem a luz firme do Re- cife, notando-se aí uma furtiva lem- brança da fase parisiense de seu con- terrâneo Cícero Dias.

Madona, 1954 (55 x 46 cm)

Não se pense que seus quadros se bastam a exibir um colorismo fácil e superficial. No cadinho da impaciên- cia e do desespero, pelo fracasso da sonhada Utopia, Leite Lopes forja uma Obra em que se insinuam maravi- lhas e mistérios do mundo dos vivos, vistos das alturas como por um alba- troz baudelairiano.

* AMOS TROPER é pesquisador do CBPF. O texto consta do catálogo da exposição Construção e desconstrução: o mundo cósmico de Leite Lopes, realizada na Academia Brasileira de Ciências, no Rio de Janeiro, em 2003.

anos, o também físico Roberto Salmeron ressalta a influência exercida por ele sobre a física brasileira. "Entre os físicos de minha geração foi um dos que desempenharam papel extremamente importante, incontestável, no desenvolvimento de nossa física, ainda incipiente quando iniciamos nossas carreiras", testemunha.

De acordo com Salmeron, sua influência se fez sentir em vários aspectos. Como professor, ministrava excelentes cursos e escreveu bons livros didáticos. "Alguns foram os primeiros sobre física moderna escritos em português." Foi também um bom orientador de jovens em início de carreira e como animador de programas de ensino e de pesquisa. "No início das atividades do CBPF, teve papel fundamental no convite a eminentes físicos estrangeiros para passarem temporadas no Brasil e no intercâmbio do instituto com físicos de outros estados brasileiros", conta.

Outro amigo de Lopes, Francisco Caruso, pesquisador do CBPF e editor de José Leite Lopes, idéias e paixões (Editora CBPF, 1999), guardou uma imagem mais pessoal do físico. Em texto publicado na Folha de S.Paulo, Caruso escreveu: "Se devesse defini-lo com apenas um adjetivo, escolheria apaixonado. Sua paixão era transcendente; ultrapassava em muito as fronteiras da ciência, espalhando-se pela educação, pela cultura, pela arte e, por que não dizer, pelas mulheres e pela vida. Foi essa paixão que sempre nutriu seu intelecto vivaz e contagiante".

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Um mundo em mudança FABRíCIO MARQUES E MARILUCE MOURA

uando fala sobre mudanças climáticas globais, o antropólo- go Emilio Moran parece capaz

i^B^^^^B de capturar a atenção até mes- mo do mais cético dos antiam- bientalistas. Talvez porque, em

■S vez de se deter só em números - ^11^ seja de espécies animais e vege-

tais em processo de extinção, seja de graus Celsius a mais ou a menos na temperatura da Terra ou referentes a volumes de determinados gases da atmosfera -, ele or- dene palavras com mestria suficiente para levar o ouvinte a vislumbrar, quase tocar, mundos futuros. São cenários às vezes assustadores que se deixam entrever por entre suas frases, outras vezes menos, mas que carregam sempre aquele quê de desconforto inerente às mudanças ine- vitáveis, em especial às grandes mudanças.

Cubano naturalizado americano, Moran foi um dos primeiros pesquisadores a lançar um olhar de cientista social sobre o debate do aquecimento global, por muito tempo confina- do ao âmbito da meteorologia. Diretor do Cen- tro Antropológico para Treinamento e Pesqui- sa em Mudanças Ambientais Globais da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, ele sugere que a melhor forma de sensibilizar as pessoas para o perigo real dessas mudanças e, assim, provocar transformações em seu com- portamento tradicional é estudar a dimensão humana do fenômeno, tornando cada vez mais interdisciplinar a pesquisa neste campo.

Em conferência realizada no auditório da FAPESP, em dia 8 de junho passado, Moran mostrou que é pouco produtivo o debate sobre o aumento médio da temperatura no planeta. O importante não é a elevação média de 3 ou 4

graus nos próximos 90 anos, mas as mudanças extremas, na forma de enchentes, nevascas e ondas de calor, que deverão varrer o planeta com mais freqüência. Outro exemplo de seu olhar agudo: a idéia de que a ocupação huma- na da Amazônia é a vilã do desmatamento não se sustenta. Isso porque a população da região está concentrada nas cidades e o que se vê nos campos devastados é a pecuária extensiva. Por que a floresta arde? Porque vigora um círculo vicioso no qual pequenos produtores devas- tam para ter terra de graça, lançam-se à pecuá- ria e esperam alguns anos até a terra valorizar- se, para então vendê-la a grandes proprietários.

Um estudioso do Brasil, Moran graduou-se em Literatura Brasileira e fez pós-graduação em Antropologia, nos Estados Unidos. Em 1971 soube por um professor e grande conhe- cedor de América Latina, Charles Wagley, que algo importante estava acontecendo no Brasil - a abertura de uma estrada que rasgaria a maior floresta tropical do planeta. Durante um ano e meio acompanhou o nascimento da ocupação humana na Transamazônica. Nos anos 1990 deu uma guinada na carreira. Seu campo de pes- quisa atual combina métodos de sensoriamen- to remoto com trabalhos de campo na Amazô- nia. Autor de diversos livros sobre a região, participa do Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), coor- denado pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Seu interesse pelo país é mais do que acadêmico. Um de seus sonhos é mudar-se, um dia, para o Brasil, especialmente o Rio de Janeiro. "Sonho em português", diz ele, que deixou Cuba aos 14 anos de idade. A seguir, os principais trechos da entrevista que concedeu a Pesquisa FAPESP:

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■ Eu começaria por lhe perguntar o seguin- te: como apresentar ao público os problemas ligados às mudanças climáticas globais sem que o assunto pareça irremediavelmente aborrecido, de interesse só para especialis- tas? Como colocar no debate uma dimensão mais claramente humana, social, capaz de sensibilizar a sociedade para esse tema? — Eu acho que o ponto de partida tem que ser falar sobre como o clima afeta e sempre afetou a vida de todas as pessoas. Quando alguém sai pela manhã, ao chegar à porta já tem que enfrentar o clima. Pode estar chovendo ou não, pode estar quente ou frio. E de saída isso influi no modo como a pessoa se veste, na escolha sobre sair ou não sair naquele dia. Hoje fala-se muito no aquecimento global, mas em ter- mos de mudança climática global não é isso, na verdade, o mais importante. Por- que esse aquecimento global tem uma mé- dia muito baixa, espera-se um aumento na temperatura de poucos graus, 3,4 ou 5 graus nos próximos 90 anos. E isso nos piores cenários do IPCC [sigla de Painel Internacional de Mudanças Climáticas, no original inglês].

■ E o que então é o mais importante? — São as mudanças extremas de clima, que com certeza vamos ter e que vão resul- tar em diferentes experiências para as pes- soas. Em qualquer lugar no mundo, numa área específica, a alteração pode ser de 10 ou 15 graus, para cima ou para baixo. As mudanças já estão em curso. Sabemos, por exemplo, que El Nino ocorre agora com mais freqüência. Antes aparecia a cada 20 anos, coisa assim, agora esse intervalo já baixou quase para cinco anos e algumas pessoas falam no fenômeno se apresentan- do a intervalos de três a quatro anos daqui a pouco. Em diferentes partes do mundo, como a Amazônia e outras áreas tropicais, vai ter seca com mais freqüência, mais fogo descontrolado... Em outras áreas, como o Rio Grande do Sul, vai ter mais chuva devastadora... Então as médias não traduzem o problema. Lembro de uma discussão com uma climatóloga em Belém do Pará. Relatei que os colonos falaram que já dava para ver, após 20 anos de des- matamento, uma queda na precipitação. E ela me respondeu: "Não é verdade". Aí fomos procurar essa informação no ar- quivo e deu para ver que, na média dos anos, a chuva até tinha aumentado, mas nos dados diários ficava muito claro que ocorrera uma grande mudança - antes não tinha um mês com menos de 100 mi- límetros de chuva e agora, com freqüência, por dois, três, quatro meses observava-se

quase zero de chuva. No ano tinha-se qua- se 100 milímetros mais, só que havia mais chuva do que antes na época chuvosa e quase nada no período seco.

■ Ou seja, havia uma irregularidade muito maior na distribuição das chuvas. — Exato. O que afeta a agricultura seria- mente. E essas divergências de precipita- ção pluviométrica vão aumentar. No mun- do inteiro. E em diferentes partes do país de forma diferente.

■ Mas quais são efetivamente os grandes vilões dessas mudanças globais que se verificam? — Bom, tem uma série de gases que são emitidos, aquecem a atmosfera e criam esse aquecimento. O dióxido de carbono é o principal, mas tem também o metano, que vem dos fertilizantes, por exemplo, e outros - mas esses são os principais. Tem o problema na camada de ozônio, agora mais ou menos estabilizado...

■ E que atividades humanas estão mais vin- culadas às emissões que provocam essas mu- danças climáticas globais? — A principal, em nível global, é o uso de combustíveis fósseis, sem dúvida nenhu- ma. Há, claro, uma variação de país para país. No Brasil, a contribuição do desma- tamento é enorme, não sei exatamente a proporção, mas é quase igual ou maior do que a emissão dos combustíveis fósseis. Toda essa história, no entanto, com seus vilões, começou ainda na Idade Média, com a agricultura na Europa, com os mo- nastérios e os padres nos monastérios des- maiando áreas para agricultura. A Europa toda foi desmatada.

■ E logo se chegava à destruição das flores- tas européias. — Em mil anos acabaram com as florestas da Europa. Delas restaram só poucas manchinhas originais. Depois foi a fase de destruição das florestas dos Estados Uni- dos, no século 19. Em Indiana, onde moro, eram 94% floresta, e em um século isso baixou para 6%. Foi a mesma coisa em Ohio, Pensilvânia, Nova York... O pessoal chegou, colonizou, desmatou tudo, deixou só umas manchinhas onde era mais difícil o acesso. Isso continuou para a frente. No final do século 19, houve uma certa para- da econômica na agricultura, uma transi- ção para a atividade industrial, as cidades começaram a absorver gente liberada pela lavoura, e as fazendas que não eram mui- to bem manejadas, muito econômicas, com boa produção, começaram a falir. Nos anos 1930 entrou em cena a grande

depressão econômica que acabou com es- sas fazendas. As pessoas as abandonaram e os governos começaram a pegá-las para criar reservas florestais.

■ Ou seja, nesse momento houve um certo reflorestamento. — É. No final do século 19 a área de flores- tas baixou até 6% do que havia original- mente e no momento está em 24% em In- diana, e tem outros estados em que ela já é 40% do original, na região de Nova York.

■ Seguindo nessa perspectiva histórica, o desmatamento se intensifica na América do Sul e na América Central, já na segunda metade do século 20, não é isso? — Exatamente. Tudo começa com a ex- pansão econômica mundial promovida por economias como a dos Estados Uni- dos, quando se intensifica a industrializa- ção, mudam os padrões da agricultura, que se mecaniza sempre mais, e passa-se a usar mais combustíveis fósseis na produ- ção de energia. O mundo inteiro entrou numa fase de crescimento econômico rá- pido, mas um crescimento que favorecia uns e desfavorecia outros.

■ Os problemas de desmatamento no Brasil na verdade começam pela Mata Atlântica... — Que já quase já acabou também, não é? Está na mesma faixa de 6%, 5%...

■ O desmatamento da Floresta Amazônica é um problema mais recente. Antes dele, como se encaixa nesse raciocínio mais global a questão das florestas tropicais africanas e a questão das florestas da Ásia? — Bom, as florestas africanas e as da Ásia quase já acabaram também. E a grande preocupação de muitas pessoas que traba- lharam naquela área e a conhecem bem, como uma colega minha que trabalhou por quase 20 anos em Sarawak, Indonésia, e agora mudou para a Amazônia, é que as companhias da Malásia, que são os gran- des madeireiros que acabaram com a flo- resta lá, estão indo para a Amazônia. E se eles entrarem sem controle de governo, sem limites, áreas de proteção ambiental bem protegidas, pode acontecer no Brasil a mesma coisa que na Ásia, porque essas companhias são devastadoras. Elas acaba- ram com a floresta, em Sarawak, até em áreas de difícil acesso. Isso é preocupante.

■ E o que se pode fazer para evitar sua ação daninha? — Tem uma teoria, muito usada agora em alguns círculos, segundo a qual, se um lu- gar que tem muita floresta se torna acessí-

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As mudanças do clima serão extremas. Em áreas específicas, a temperatura poderá oscilar até 15 graus, para cima ou para baixo

vel, a população humana irá atrás dele para usar esse recurso florestal. O governo é o principal ator nessa cena. Ele incentiva o acesso a uma área antes inacessível de floresta para incorporar sua riqueza à ri- queza nacional. No caso do Brasil, cria- ram-se estradas com a intenção de inte- grar a Amazônia ao resto do país, e esse movimento foi seguido por madeireiros, por empresas da área de minério, enfim, houve uma frente de colonização, depois acompanhada por outras ondas econômi- cas. Mas o objetivo principal foi dar aces- so e criar condições para as pessoas pene- trarem naquela floresta.

■ Ao falar da Amazônia, estamos nos situan- do dos anos 1970 para cá. No caso da Mata Atlântica, é muito diferente: são séculos. — Sim, nesta o desmatamento começou em 1500, mas acelerou muito na mesma época, nos anos 1960, começo da era mili- tar. Houve um programa do governo dedi- cado ao crescimento econômico, com uma estratégia de incorporação, cujo lema era "Integrar para não entregar", lembram? Existia uma mentalidade naquele momen- to na América Latina de que sem uma po- lítica de ocupação dessas áreas elas seriam entregues a outros. Não só no Brasil. Os governos do Peru e da Bolívia tinham pro- gramas idênticos de integração nacional.

■ Isso é claro em relação à Amazônia, mas no que se refere à Mata Atlântica o que as políticas de ocupação de territórios virgens daqueles anos têm a ver com a aceleração do desmatamento? Afinal ela estava ali no lito- ral, bem integrada às áreas de ocupação mais antigas do território brasileiro. — Aí já se trata de efeitos do desenvolvi- mento econômico, industrial. Com o au- mento significativo da riqueza no país, muitas pessoas passaram a ter condições de possuir uma segunda casa no campo ou na praia, e ofereceram-se para isso ter- ras antes cobertas pela Mata Atlântica.

■ O discurso do governo brasileiro hoje é de que não existe nenhum tipo de incentivo ofi- cial para a ocupação da Amazônia. E de fato, como política de governo, nada é igual ao que havia na época do regime militar. No entanto, o desmatamento continua, às vezes em ritmo acelerado, às vezes um pouco mais lento, mas o que se diz é que há ali um mo- vimento de expansão econômica que funcio- na naturalmente, sem nenhum tipo de in- centivo, e não se consegue detê-lo. Parece-lhe que é assim mesmo, não há como segurar? — Penso que nessa questão ainda há algu- ma influência daquela ideologia do gover- no militar. Vejam, ela fez um apelo à na- cionalidade, à noção de que essa área grande do Brasil pertencia e tinha que continuar pertencendo ao país. E existe um compromisso de assegurar que toda essa área da Amazônia seja garantida para os brasileiros. Nesse ponto, a ideologia continua como um fator que influi na po- lítica de todos os governantes do Brasil e de todos os seus setores sociais e políticos. Agora, é verdade que já há atores com po- der e dinheiro para atuar independente- mente do governo até. As madeireiras da Malásia estão interessadas naquela área e elas têm ligações e dinheiro para influenciar a política que lhes afeta. Igualmente, os empresários de São Paulo podem influen- ciar a política de crédito para a Amazônia. Diz-se que a maioria do investimento ali é para a agricultura, mas está indo para a pecuária. Então isso já tem uma vida pró- pria, o desmatamento continua, e a pre- sença do governo... infelizmente, continua uma ausência. Só tem presença maior quando ocorre um desastre como o assas- sinato da Irmã Dorothy Stang. Aí chegam 20 mil soldados, ficam por um mês ou dois, depois vão embora. As coisas vão prosseguir assim até a sociedade civil ficar mais consciente de que a riqueza da Ama- zônia seria mais aproveitável no futuro do que no presente, por exemplo, com a ex- ploração farmacológica de sua biodiversi-

dade, com seu valor em termos de prote- ção climática, proteção das águas... a água é o provável objeto de uma grande crise futura, e isso é uma possibilidade para o Brasil e a Amazônia. Essa é uma coisa que tem que ser mais bem estudada, para que se possa manejar melhor e ganhar mais dinheiro com os recursos da Amazônia. Com a devastação se desperdiça a maior parte de seus recursos.

■ Hoje há uma compreensão limitada do verdadeiro potencial desses recursos. — Claro, e como isso pode mudar? Atra- vés de políticas que valorizem uma visão a longo prazo. Só que os governos mudam a cada quatro, cinco, seis anos, é curta a vi- são do político, talvez mais que a de gran- des empresários fixados só no agora.

■ Como manter, ante os problemas anuncia- dos, uma visão não-apocalíptica do futuro em relação às mudanças climáticas globais no planeta e aqui no Brasil em particular? — Eu não sou pessimista porque acho que dá para ver mudanças na maneira como lidamos com os problemas. Em relação à propriedade, por exemplo, já mostrei em meus trabalhos que o colono aprende em 20 anos a proteger a floresta, a deixar uma boa mancha de floresta em cada proprie- dade e até a deixar voltar a floresta sobre áreas menos produtivas. O problema é que se continua a abrir estradas. O programa "Avança, Brasil" [do segundo governo FHC] foi um exemplo de proposta muito semelhante à dos anos 1970. Naquela épo- ca se falava da Perimetral Norte (uma es- trada ao longo da fronteira brasileira para facilitar o movimento militar e proteger o Brasil das invasões de países vizinhos), que foi abandonada por causa da crise do pe- tróleo de 1973. No "Avança, Brasil" eu vi a Perimetral Norte de novo, só que ainda mais extensa. Por isso acho que continua a mesma ideologia, ou seja, a idéia de que para proteger a Amazônia tem que se fazer essa estrada. Mas, ao fazer isso, cria-se uma abertura entre a população que está sem recursos, sem terra, e os especulado- res também. E o maior problema da es- trada não é deixar as pessoas entrarem, mas deixar o recurso sair. Recursos que não ficam com as pessoas ali, que vão para fora e se perdem. Então, quem se beneficia desse investimento do governo? Essa é uma das grandes perguntas. Quem se be- neficia não é o povo: através dos anos que temos pesquisado na Amazônia, nunca observamos, nem no chão nem no espaço, via satélite, mais de 4% da área voltada para agricultura alimentar na Amazônia.

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A maior parte da área está em pasto com menos de uma vaca por hectare. Às vezes, menos até. Esse é um bom aproveitamen- to, tomar 1 hectare de terra, que tinha 280 espécies vegetais - uma quantidade inima- ginável de recursos farmacêuticos e de re- cursos de alimentação para as pessoas -, destruir tudo e colocar uma vaca? Uma vaca magra, aliás, porque na Amazônia elas são magras, com carne que não é de boa qualidade. É isso que na maior parte da Amazônia se está conseguindo.

■ Em sua palestra na FAPESP, você abordou alguns mitos ligados à questão ambiental. Um deles seria "crescimento populacional resulta em intensificação agrícola", coisa que a realidade, segundo sua análise, desmente. Eu gostaria que você falasse um pouco disso. — Em nível global a correlação é possível, mas em nível local não. Porque tem ou- tros fatores que influenciam mais a inten- sificação agrícola. O quê? Por exemplo, políticas do governo com concessão de crédito que facilita a intensificação. Nin- guém intensifica agricultura a menos que seja obrigado pela fome ou seja incentiva- do a substituir a lavoura do braço pela la- voura da tecnologia. E isso está faltando à Amazônia, onde o crédito vai para o pe- cuarista. Quase todo o crédito rural para o pequeno produtor na Amazônia vai para o desmatamento, coisa que já mos- trei em várias áreas de estudo. Não existe uma forma, até agora, de prover tecnolo- gia que facilite o uso mais intensivo da terra para reduzir os desmatamentos. É mais fácil desmatar uma grande área, bo- tar gado nela, esperar que suba o preço da terra... porque o problema é que a terra é de graça na fronteira, e só com o tempo vai ganhando valor. O pequeno produtor investe na lavoura e daqui a 10, 20 anos, ele vende sua propriedade ao grande pro- dutor, porque já colocou uma pastagem, que é o que este quer.

■ Mas insistindo nos mitos... — Olha, sobre a questão da população é preciso considerar o seguinte: quando a população aumenta em área rural, se não há outra opção, a única saída é a tecnolo- gia de intensificação da agricultura para produzir a comida necessária. Mas em muitos casos o que ocorre é outra coisa. Ou seja, se existe a opção de migração da área rural para a área urbana porque tem emprego na cidade, esvazia-se o campo, e aí tem dois caminhos: intensifica-se o ex- tensivo ou intensifica-se com tecnologia, que é o que está ocorrendo muito mais no mundo. Ocorreu nos Estados Unidos, está

ocorrendo no Brasil também. O campo se esvazia, as pessoas vendem a terra, entra o capital, e há possibilidade de produção de soja, arroz, para o mercado mundial. A questão é até que ponto existe emprego na área urbana. Muitas vezes as pessoas da área rural vão para uma cidade pequena por perto. Essas cidades crescem e se dá um processo de concentração urbana. Mas falta desenvolvimento industrial nas cidades pequenas e até nas grandes.

■ Há fatores influentes das mudanças glo- bais em curso que passam ao largo das flores- tas e têm a ver com a produção de areossóis, gases etc. nas cidades, nas áreas de densida- de acentuada. Eu queria aproveitar para perguntar o seguinte: como pesquisar essas mudanças sem ficar preso somente aos da- dos do clima, da extinção das espécies, às aborrecidas projeções cheias de números, e introduzindo aí com força e clareza questões relativas a mudanças populacionais, a mu- danças sociais? Enfim, como tornar essa pes- quisa das mudanças globais tema legítimo de antropólogos, sociólogos, cientistas políti- cos, filósofos etc, que de fato é? — Olha, temos que criar perguntas inte- gradas, que tenham a ver com a interação entre população e fatores climáticos. Por exemplo: como a sociedade age em termos de uso de energia? Tomemos o caso dos hotéis, no Brasil e em outras partes do mundo, que já instalaram em todos os corredores sensores de movimento. As lu- zes ficam apagadas, e quando uma pessoa sai de um quarto aparece só um ponto de luz bem em cima do lugar em que ela se encontra. Ou, se a pessoa caminha pela di- reita, as luzes começam a ser acesas do lado direito e em seguida são desligadas. Bem, não foi feito um estudo sobre se dá lucro ou não instalar esses sensores, sobre o custo/benefício dessa tecnologia... Enfim, falo aí de comportamento, de mudanças culturais, de economia. Nesse caso, com- portamento em relação à luz, à energia, fa- tor importantíssimo nas emissões de gases aquecedores, porque essa energia vem de onde? Do uso de combustíveis fósseis.

■ Aqui no Brasil a matriz é meio diferente. — Eu sei. Metade da energia vem de hi- drelétrica. Mas é a mesma coisa. Pense no custo de uma hidrelétrica, no investimen- to, no custo enorme da biodiversidade, nas imensas áreas perdidas... Alguma coisa tem que botar esse sistema para funcionar: aí queimam-se combustíveis fósseis. A ques- tão é sempre conservar energia o mais possível. Vejamos o caso do uso do carro: há que se pensar num desenho urbano em

que a pessoa de novo possa ir caminhando fazer suas compras, em vez de ir com um carro enorme até o Carrefour. Isso muda também o padrão de emprego. A loja pe- quena perto do bairro da pessoa cria mais emprego do que aquela loja enorme...

■ Na verdade, você está falando de toda uma mudança de mentalidade. — E de comportamento.

■ Mas insisto no seguinte: como fazer, em termos práticos, para que nos estudos cientí- ficos sobre mudanças globais haja uma abordagem integrada dessas questões ligadas a comportamento, mentalidade etc, com aquelas vinculadas a física, química e biolo- gia que as pesquisas ambientais e climatoló- gicas sempre envolvem? — Penso que já hoje, na Europa, nos Esta- dos Unidos, por exemplo, existe uma acei- tação no âmbito das ciências ambientais de que é preciso incluir a parte socioeco- nômica, a parte humana, na pesquisa de clima e mudança global. Há programas apoiados pela NSF [Fundação Nacional de Ciência, dos Estados Unidos] que já faz dez anos seguem essa orientação. Nós, por exemplo, num projeto específico, escolhía- mos três ecossistemas, em 12 países, para comparar esse relacionamento de popula- ção e floresta. E era um projeto que rece- beu muito recurso para pesquisa. Essa pes- quisa de acompanhamento integrado prossegue e os programas têm aumentado.

■ Você podia falar um pouco de sua partici- pação nesses estudos pioneiros que integra- ram ciências exatas, biológicas e sociais. — Na verdade, foram os cientistas de clima que vieram às ciências sociais, em 1988, dentro de um movimento internacional com base em Estocolmo. O convite partiu deles porque se deram conta de que os modelos globais de clima estavam boniti- nhos, mas só que não dava para saber como mudar o comportamento que esta- va por trás dessa mudança climática. Eles sabiam que a mudança era antropogênica, antrópica, como se diz mais no Brasil.

■ Em termos institucionais, de quem foi a iniciativa em 1988? — Foi do Programa Internacional da Geos- fera-Biosfera Atmosfera, comitê de coor- denação científica de que agora [o pes- quisador brasileiro] Carlos Nobre é o chairman. Os cientistas sociais convidados eram de uma organização baseada em Pa- ris. Eles sugeriram a outros grupos que se movimentassem para aproveitar a opor- tunidade de interagir com climatólogos,

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Temos intere; como espécie do planeta, er sobreviver. Er temos de pen de forma cria como mudar e onde mudar

geólogos etc. Começaram programas em vários países e se criou o Programa Inter- nacional de Dimensões Humanas. Que foi baseado na Suíça, em Genebra, e depois mudou para Bonn, Alemanha.

■ Ainda nesse âmbito das mudanças sociais versus mudanças climáticas, você falou em sua palestra sobre futuras adaptações, mu- danças de cultivos, por exemplo, que certa- mente deverão ocorrer pelo mundo afora. Trata-se de convencer empresários, agricul- tores a substituir suas plantações por ques- tão da mudança climática? — Sim, é uma coisa inevitável. Se determi- nada cultura não cresce em dadas condi- ções de chuva e temperatura, não se pode plantar isso. E, se quiser plantar, vai ter que ir mais ao sul, comprar a terra do outro. Mas chega um ponto em que já se atingiu a fronteira, tem o Uruguai, no Sul do Bra- sil, e aí? Há um problema econômico e um problema político muito sério.

■ E você vê isso ocorrendo em escala mundial. — Sim, há um modelo climático nos Esta- dos Unidos que já mostra que a fronteira do milho vai ter que mudar uns 3 graus de latitude em direção ao norte.

mEa ciência deve ajudar com algumas mo- delagens que dêem suporte para os planeja- dores de política. Mas você dizia que aqui te- mos problemas com os modelos para as áreas tropicais. — Em parte, mais para a Amazônia. Em São Paulo é ótima a informação sobre o clima. Já na Amazônia, em centenas de quilômetros não tem uma estação meteo- rológica. Mas a ciência pode ajudar muito mais. Pode sugerir que em dado regime de chuva, de temperatura, a melhor opção agronômica é x ou y. E aí entra a Embrapa. Agora, isso tem mercado? Aí entra o eco- nomista. Na verdade, a maior parte da ali- mentação é muito restrita ainda em ter- mos de espécies, e tem um monte de

outras coisas já pesquisadas, comidas boas para o futuro da humanidade que ainda estão só nos livros de ciência.

■ Você enxerga efetivamente o mundo em processo de mudança: do clima, dageopolíti- ca, do comportamento, da dieta... — Lógico. Porque se ele não muda com a mudança climática, então quando vai mu- dar esse comportamento? Acho que quem não muda não se adapta às mudanças, de- saparece. Tem muitos ecólogos radicais, que falam "eu não me preocupo, porque o mundo vai continuar". Às vezes acrescen- tam "sem a humanidade". Porque se ela não se adapta às mudanças, se não reco- nhece com antecedência essa situação, não vai sobreviver. Ora, mas temos interesse, como uma espécie desse planeta, em so- breviver, não é? Então temos que pensar de forma criativa como mudar, onde mudar. Temos uma característica de não mudar mais que o necessário. E já fizemos um in- vestimento tão grande em cultura, em eco- nomia, em infra-estrutura, que não quere- mos mudar além do necessário. O que se quer saber com alguma certeza é qual mu- dança é necessária. Aí está o problema, no momento. Há divergências ainda na pes- quisa... Mas temos de agir.

■ Como você vê a questão proposta por Car- los Nobre, durante sua palestra na FAPESP, de que o futuro da humanidade é incompatí- vel com o hábito de comer carne, de andar de automóvel... isso não soa como um exagero? — Talvez, mas acho um ponto importan- te colocar isso. Vivemos bem sem o carro antes - por que agora é tão essencial o carro? Porque temos criado sistemas de assentamento urbano que dificultam o transporte. Podemos criar situações que favoreçam usar os pés também. Ou bici- cleta... Na Dinamarca, Suécia, todo mun- do usa, até velhinhos de 80 anos. E têm preferência esse modo de transporte nas cidades. Muitas coisas são possíveis.

■ Como ser otimista nesse sentido quando o país que mais produz emissões nocivas se mantém numa posição extremamente con- servadora, sem admitir de nenhuma forma entrar nos protocolos globais de redução das emissões? E estamos falando do país que de- tém a liderança da economia mundial. — Sou um grande crítico dessa posição dos Estados Unidos. Isso é ligado a um go- verno. Seria diferente se o presidente fosse Al Gore. E tudo pode mudar daqui a dois, três anos. Existe um movimento forte con- servacionista nos Estados Unidos também.

■ Voltemos à mudança de modelo econômi- co, modelo social, mudança na cultura con- temporânea que você vislumbra. —Veja, o comportamento atual não é sus- tentável e vai acabar com o planeta, com certeza. Então, temos que criar opções... Por exemplo, a índia está num momento fundamental. Será o país mais populoso do mundo daqui a 30 anos. Vai passar a China. A índia tem culturas tradicionais, não consumistas, muito conservadoras. Mas também tem um movimento rapidís- simo, hoje em dia, de consumo louco, des- controlado. Então esse é um momento de luta cultural na Índia entre as culturas tradicionais, que muitos diriam atrasa- das, e a nova classe média, que quer con- sumir tudo o que não teve até agora. Se a Índia for pelo modelo americano, e a Chi- na também, aí acabou o planeta. Ninguém sabe o que vai ocorrer com o triplo do CO2 que temos hoje. Temos modelos para o dobro, o que vai ocorrer com certeza. O triplo é provável, pela falta de atenção de grandes países, como Japão e Estados Uni- dos, em mudar o comportamento.

■ Que cenário isso projeta? — Se não fizermos nada, uma grande par- te da Antártida vai derreter. O nível do mar vai subir, a metade da Flórida vai ficar embaixo d'água, o que, em termos econô- micos, é uma coisa enorme. Londres você esquece. Manhattan também vai ser inun- dada. Seria um desastre econômico, por- que a maior parte da riqueza do mundo, em todos os países, está na costa. Se o comportamento não mudar, será esse o futuro. Se em 40 anos não mudarmos nada, existe uma grande possibilidade de que o padrão de mistura de água fria e quente nos oceanos, que mantém a tem- peratura mundial, seja quebrado, como já aconteceu há milhares de anos, esfriando algumas partes do mundo e esquentando outras. Esse tipo de mudança pode ocorrer de novo. Temos que começar a mudar já. Já deveríamos ter começado. •

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f POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

Ganha cada vez mais adep- tos o recurso de dar recom- pensas financeiras a pesqui- sadores que publicam artigos de impacto. O go- verno da Coréia do Sul aca- ba de instituir um prêmio de US$ 3 mil para quem emplacar um estudo em re- vistas de primeira grande- za. "O objetivo é aumentar o moral dos nossos cientis- tas", disse à revista Nature Young Nam Lim, do Minis- tério da Ciência e Tecnolo- gia do país. Na China, o prêmio varia de acordo com a instituição. A Uni-

versidade Agrícola Chinesa, em Pequim, chega a pagar US$ 50 mil por artigo de prestígio. Um pesquisador do Paquistão pode receber um bônus anual de US$ 1 mil a US$ 20 mil, segundo uma equação que avalia a importância dos seus arti- gos publicados no ano an- terior. Críticos desse expe- diente advertem que mais produção não significa me- lhor desempenho. "Tenta- se publicar a qualquer custo e o que se vê são artigos re- petitivos e até mal embasa- dos", diz o físico paquista-

nês Pervez Hoodbhoy. Ou- tros dizem que o dinheiro diminui os feitos científi- cos. "Bons artigos são pro- duto de suor, alegrias e tris- tezas. Os bônus apequenam o esforço" diz o biólogo sul- coreano Sunyoung Kim. Peter Cotgreave, diretor do grupo Campanha para as Ciências e Engenharias no Reino Unido, lembra que o crivo das publicações é ri- goroso e não há risco de manipulação. "Só ganha bônus quem é bom o bas- tante para entrar numa Na- ture ou numa Science." •

■ Correndo atrás da bomba

Dois laboratórios nacionais norte-americanos, o Lawren- ce Livermore, em San Francis- co, e o de Los Alamos, no Novo México, disputam a primazia de criar uma nova arma nuclear para o país, a primeira desde a Guerra Fria. Um comitê fe- deral avaliará os projetos e apontará o vencedor. "Te- nho gente trabalhando nisso até nos finais de semana", disse à agência Associated Press Joseph Martz, chefe da equipe de Los Alamos. De- fensores do projeto dizem que

os Estados Unidos perderão sua capacidade de "dissuasão estratégica" em 15 anos, a me- nos que substituam o arsenal

ogivas mais confiáveis. Críti- cos dizem que o plano pode minar os esforços para impe- dir a proliferação de armas

de 6 mil bombas velhas por atômicas em outros países.

■ Unidos pelos pólos

Reunidos em Edimburgo, na Escócia, cientistas e autorida- des de 45 países prometeram dar apoio político e financeiro ao mais ambicioso estudo das regiões polares nos últimos 50 anos, durante o Ano Polar In- ternacional, previsto para o período 2007-2008. Os parti- cipantes da Reunião Consulti- va do Tratado Antártico dis- seram que as pesquisas que ocorrerão durante o ano "au- mentarão o conhecimento so- bre a Antártida e fornecerão uma melhor compreensão dos principais sistemas terres-

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três, oceânicos e atmosféricos que controlam o planeta". O Ano Polar já foi realizado em 1882-83,1932-33 e 1957-58, é uma iniciativa da Organiza- ção Meteorológica Mundial e do Conselho Internacional de Ciência. •

■ De volta ao cinturão verde

Um grupo de 23 nações africa- nas lançaram em Trípoli, na Lí- bia, um programa para for- mar redes de pesquisa nas áreas de desertificação e agri- cultura. As delegações tam- bém aprovaram planos para implementar o Projeto Cintu- rão Verde do Norte da África, que busca deter a desertifica- ção por meio do plantio de árvores numa faixa de 5 qui- lômetros da Mauritânia, no oeste, até Djibouti, a leste. Mi- chel Malagnoux, especialista

das Nações Unidas, lembrou que desde os anos 1970 houve esforços para criar barreiras florestais, mas a maioria se deu em pequena escala. A búlgara Svetla Rousseva, especialista em erosão, diz que o projeto será um bom ponto de parti-

■ Das castas às cotas

A idéia de ampliar a política de cotas que busca resgatar as castas marginalizadas da índia causou um grande racha nu- ma comissão instituída para

trabalhos insalubres - con- quistaram uma reserva de 22,5% de cargos públicos e de vagas nas escolas. Nos anos 1990, um segundo grupo de castas discriminadas, embora não submetidas ao ostracis- mo, foi beneficiado por outra

da. "O segredo é ser uma ini- ciativa de longo percurso am- parada em políticas sobre o uso do solo", afirmou à agên- cia de notícias SciDev.Net. •

estimular o desenvolvimento do país. Desde 1950 os cha- mados intocáveis - grupos so- ciais tão marginalizados que só eram autorizados a ocupar

cota de 27% das mesmas va- gas. Em maio, o ministro do Desenvolvimento dos Recur- sos Humanos, Arjun Singh, anunciou a criação de cotas nos postos de trabalho no setor privado e em universidades. Singh delegou à Comissão Na- cional do Conhecimento a ta- refa de estabelecer meios para alcançar a meta. Dos oito mem- bros da comissão, seis repro- varam a idéia. Anant Koppar, presidente da Câmara de Co- mércio e Indústria de Banga- lore, disse ao jornal Ásia Times que o sistema de cotas minaria a produtividade das empresas. "Simplesmente deixaríamos de ser competitivos", diz. •

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Estratégias Mundo

Mercosul da ciência

Ministros e autoridades da área de ciência e tecnologia de países sul-americanos de- cidiram, no dia 30 de maio, lançar um programa de inte- gração em ciência, tecnologia e inovação para o período de 2006 a 2010. Batizado de De- claração de Buenos Aires, o compromisso foi firmado na capital argentina pelos repre- sentantes do Mercosul (Ar- gentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) e os cinco Estados associados (Venezuela, Chile, Peru, Colômbia e Equador). "O conhecimento científico e tecnológico deve ser utilizado apropriadamente como recur- so para alcançar as melhores soluções sociais e desenvolver uma produção com maior valor agregado", diz a declara- ção. Os signatários acertaram um prazo de 90 dias para ela- borar as linhas gerais do pro- grama, incluindo-se as neces- sidades de financiamento e as prioridades estratégicas. Um dos objetivos é fortalecer cen- tros de excelência regionais e formar redes que contribuam para elevar o nível das pesqui-

sas em biotecnologia, nano- tecnologia, novos materiais, energia, tecnologia de infor- mação, desenvolvimento sus- tentável e infra-estrutura. •

■ Europa aposta em células-t ronco

Pesquisas com células-tron- co embrionárias poderão ser financiadas com verbas da União Européia. A decisão foi tomada pelo Parlamento eu- ropeu no dia 15 de junho, apesar da oposição de depu- tados verdes e democratas- cristãos. O orçamento para o período de 2007 a 2013 prevê gastos de € 50 milhões para projetos com células-tronco. O dinheiro não poderá ser usado em clonagem de em- briões humanos para fins re- produtivos. O deputado ale- mão social-democrata Norbert Glante comemorou a decisão. "A pesquisa com células-tron- co extraídas de embriões é um pressuposto para a cura de doenças degenerativas", disse ao serviço de notícias Deutsche Welle. •

dup.esrin.esa.int/ionia/wfa/index.asp Imagens de satélites atualizadas a cada seis horas mostram um mapa de incêndios na superfície do planeta.

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Projetos sobre política externa

■ Mobilização no Rio de Janeiro

Um polêmico projeto de lei movimenta a comunidade científica do Rio de Janeiro. O texto, que proíbe o uso de animais em pesquisas, foi aprovado em março pela Câ- mara Municipal, mas vetado no mês seguinte pelo prefeito César Maia. A proposta, de autoria do vereador Cláudio Cavalcanti, está de volta à Câmara, onde os vereadores deverão decidir nas próximas semanas se derrubam o veto. A proposta prevê uma multa a quem descumprir a lei em R$ 2 mil por animal. Reinci- dências podem levar à perda de alvará de funcionamento dos laboratórios. O impasse deixou em alerta represen- tantes de instituições de pes- quisa como a Fundação Os- waldo Cruz (Fiocruz) e as universidades Federal e Es- tadual do Rio de Janeiro. A Fiocruz divulgou uma carta aberta afirmando que, "se ex- periências com animais fos- sem proibidas, todos os es- forços para descobrir vacinas para a dengue, a Aids, a malá- ria, a leishmaniose e mais uma série de pesquisas que

O Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e o Mi- nistério das Relações Exte- riores (MRE) lançaram um edital no valor de R$ 4 mi- lhões para apoiar projetos no âmbito do Programa Renato Archer de Apoio à Pesquisa em Relações In- ternacionais. Os temas são Paz e Segurança Interna-

cional; Estudos sobre Pólos de Poder; América do Sul; Desenvolvimento, Ciência e Inovação; Normatividade e Governança Internacio- nal. Os projetos deverão ser liderados por pesquisado- res vinculados a cursos de pós-graduação em Rela- ções Internacionais avalia- dos pela Capes. Redes de

pesquisa poderão ser for- madas com a participação de pesquisadores de outras áreas. As propostas deve- rão ser submetidas ao Con- selho Nacional de Desen- volvimento Científico e Tecnológico (CNPq) até o dia 14 de agosto, no ende- reço http://efomento.cnpq. br/efomento. •

visam controlar outras doen- ças seriam jogados no lixo". A fundação convidou os ve- readores para visitar sua se- de e ver de que forma é feita a experimentação animal. O secretário estadual de Ciên- cia, Tecnologia e Inovação do Rio, Wanderley Souza, pes- quisador da UFRJ, foi categó- rico: "Se a lei entrar em vigor, a ciência médica no municí- pio vai parar". •

■ Os destaques da comunicação

O Prêmio Luiz Beltrão de Ciên- cias da Comunicação, conce- dido anualmente pela Socie- dade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comu- nicação (Intercom), anunciou os vencedores da edição de 2006. Na categoria Maturida- de Acadêmica, a laureada foi Adísia Sá, pioneira do ensino

e da pesquisa em Comunica- ção no Ceará. Como Lideran- ça Emergente, o vencedor foi Elias Machado, presidente da Sociedade Brasileira dos Pes- quisadores em Jornalismo. O Programa Cadernos de Co- municação, da Secretaria Es- pecial de Comunicação da Prefeitura do Rio de Janeiro, foi premiado como Grupo Inovador. Na categoria Insti- tuição Paradigmática, houve dois ganhadores: a Empresa Brasileira de Pesquisa Agro- pecuária (Embrapa) e a Fa- culdade de Comunicação da PUC-Minas. Em 2005, o ven- cedor nesta categoria foi a FAPESP, em reconhecimen- to aos esforços para dissemi- nar os resultados das pesqui- sas científicas. A entrega dos diplomas será realizada na noite de 7 de setembro, em Brasília. •

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■Ttj Resgate das doenças esquecidas

■ Mais dois anos no Cern

Os estudos brasileiros reali- zados no Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern) estão garantidos por mais dois anos, graças a uma dota- ção de R$ 2,4 milhões libera- da pela Financiadora de Estu- dos e Projetos (Finep). O laboratório na Suíça é o maior do mundo na área de física de altas energias. "O apoio não cobre todas as necessidades, mas dará conforto aos pesqui- sadores e consolidará a posi- ção do Brasil no cenário in- ternacional", disse Carlos Alberto Aragão de Carvalho, diretor de desenvolvimento científico e tecnológico da Fi- nep. A física de altas energias é uma área multidisciplinar que

O Ministério da Saúde vai destinar R$ 20 milhões para a pesquisa das chamadas doenças negligenciadas, como a dengue, a doença de Chagas, a hanseníase, as leishmanioses, a malária e a tuberculose, que atingem sobretudo os países pobres e, por isso, raramente são alvo da curiosidade e dos

requer o desenvolvimento de sistemas complexos de acele- ração e detecção de partícu- las. "Hoje a única maneira de o país participar de pesquisas de ponta é por meio de cola- borações", disse Carvalho. Os pesquisadores beneficiados são das universidades Federal (UFRJ) e Estadual (UERJ) do Rio de Janeiro e do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF/MCT).

investimentos dos laborató- rios farmacêuticos. O edital foi lançado pelo Conselho Nacional de Desenvolvi- mento Científico e Tecnoló- gico (CNPq) e as inscrições podem ser feitas até 16 de julho. Serão contemplados projetos de pesquisa rela- cionados às doenças, que abordem temas como ten-

■ FAPESP tem novo conselheiro

José Tadeu Jorge, reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é o novo integrante do Conselho Superior da FAPESP para um mandato de seis anos. A no- meação, assinada pelo gover- nador de São Paulo, Cláudio Lembo, foi publicada pelo Diário Oficial do Estado no

dências epidemiológicas, bioinformática, estrutura- ção de bancos de dados, va- cinas e mobilização social. Podem concorrer grupos de universidades ou institui- ções de pesquisa públicas ou privadas. Mais informa- ções no site www.cnpq.br/ servicos/editais/ct/2006/ edital_0252006.htm. •

dia 22 de junho. Ele substituiu Nilson Dias Vieira Júnior, cujo mandato terminou dia 28 de junho. O reitor integra- va a lista tríplice resultante da eleição a partir da indicação dos candidatos dos institutos de pesquisa e das instituições de ensino superior do Estado de São Paulo. Engenheiro de alimentos, professor titular da Faculdade de Engenharia Agrícola da Unicamp (Fea-

Espécies que habitam o Parque Marinho dos Abrolhos, na costa da Bahia: biodiversidade única no Atlântico Sul

24 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

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gri), Tadeu Jorge foi vice-rei- tor, pró-reitor de desenvolvi- mento universitário, diretor da Feagri, diretor executivo da Fundação de Desenvolvimen- to da Unicamp e diretor téc- nico da Fundação de Desen- volvimento Tecnológico. •

■ Estudos sobre a Amazônia

Estão abertas até o dia 25 de agosto as inscrições para o Prêmio Professor Samuel Benchimol, voltado para estu- dos sobre a Amazônia. Po- dem concorrer autores de es- tudos e pesquisas sobre as perspectivas econômicas, tec- nológicas, ambientais e soci- ais para o desenvolvimento sustentável da região amazô-

nica, com prêmios de R$ 65 mil em cada uma dessas qua- tro áreas. O prêmio foi insti- tuído pelo Ministério do De- senvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic) em 2004, em parceria com a Con-

federação Nacional da Indús- tria (CNI) e o Serviço Brasilei- ro de Apoio às Micro e Peque- nas Empresas (Sebrae). As inscrições podem ser feitas no endereço www.amazonia.de- senvolvimento.gov.br. •

Proteção do tesouro Uma zona de amortecimen- to foi estabelecida em torno do Parque Nacional Mari- nho dos Abrolhos pelo Ins- tituto Nacional do Meio Ambiente e Recursos Natu- rais Renováveis (Ibama). A medida determina restri- ções a atividades, como a exploração de petróleo e gás natural e a anunciada insta- lação de grandes fazendas de camarão, que possam trazer impacto à ecologia da região. Com cerca de 56 mil

quilômetros quadrados na costa sul da Bahia, a região compreende um mosaico de ambientes marinhos e costeiros tangidos pela Mata Atlântica, incluindo recifes de coral, fundos de algas, manguezais, praias e restin- gas. Na área, há espécies co- mo o coral-cérebro, além de crustáceos, moluscos, tarta- rugas e mamíferos marinhos ameaçados de extinção, como as baleias jubarte. A riqueza é pouco conhecida

pelos pesquisadores. Um in- ventário da biodiversida- de de Abrolhos, que acaba de ser publicado pela ONG Conservation International, revela que os níveis de en- demismo (proporção de es- pécies encontradas somente ali) chegam a ser até quatro vezes maiores do que no Caribe. A listagem da fauna e da flora de Abrolhos é re- sultado de uma expedição de 18 dias realizada em fe- vereiro de 2000. •

■ Vitamina para a pós-graduação

O Ministério da Educação anunciou a criação da Escola de Altos Estudos, voltada para estimular a presença brasi- leira no circuito acadêmico internacional. Gerenciada pela Coordenação de Aperfei- çoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), a nova ins- tituição vai promover o in- tercâmbio de docentes e pes- quisadores de alto nível com o objetivo de reforçar os pro- gramas de pós-graduação stricto sensu no Brasil. "Não se trata de uma escola física, mas da vinda ao país de gran- des nomes da ciência inter- nacional para fortalecer o in- tercâmbio educacional e científico brasileiro", disse o ministro da Educação, Fer- nando Haddad. A Escola vai organizar cursos de curta du- ração em parceria com pro- gramas de pós-graduação de instituições nacionais, que poderão oferecê-los a seus alunos, além de sugerir nomes de docentes e pesquisadores reconhecidos internacional- mente para ministrá-los. O Brasil já tem acordos de inter- câmbio nessa área com mais de 30 países. "O fomento será complementado com essa ação e os programas de pós- graduação poderão matricu- lar seus alunos nos cursos", diz Fernando Haddad. •

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A POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

BIOSSEGURANÇA

Embaraços e escaramuças

Ação de ambientalistas e procuradores tumultua aCTNBioeabre crise com pesquisadores

FABRíCIO MARQUES

ma guerra de nervos contaminou as reuniões mensais da nova Co- missão Técnica Nacio- nal de Biossegurança (CTNBio), o órgão co- legiado do governo fe- deral incumbido de dar pareceres sobre a segu- rança dos organismos geneticamente modifi- cados, os OGMs. De

um lado, há um grupo de membros que anda bastante contrariado com o ritmo e a agenda da comissão. São pesquisa- dores escolhidos por notório saber cien- tífico, ligados a diversas instituições de pesquisa ou representam ministérios como o da Ciência e Tecnologia e o da Agricultura. Eles se queixam que as reu- niões destinam tempo demais a assun- tos burocráticos e filigranas jurídicas, além de discussões intermináveis acerca de temas secundários, e até agora nem

se passou perto de questões essenciais, como as autorizações para pesquisas de OGMs, que há anos esperam a vez na CTNBio. Do lado oposto, perfila-se um grupo de membros ligados aos ministé- rios do Meio Ambiente e do Desenvol- vimento Agrário e a entidades de defesa dos consumidores. Embora minoritá- rio, esse grupo está conseguindo con- trolar o trabalho da comissão, lançando mão nas reuniões de artifícios jurídicos e de questões de ordem. "A comissão deve ser rigorosa e restritiva. Ela existe para zelar pela biossegurança, não para promover a tecnologia, como fazem abertamente muitos membros. Eles é que não estão no fórum adequado", afir- ma Rubens Onofre Nodari, gerente de recursos genéticos do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e professor de fitotecnia da Universidade Federal de Santa Catarina. "A lei consagra o princí- pio de precaução e é isso que nós esta- mos defendendo. Se a legislação não for

cumprida, o trabalho da comissão pode ser contestado na Justiça", diz Nodari.

"Risco zero" - O engenheiro agrôno- mo Edilson Paiva, que faz parte da cota de três especialistas da área vegetal com assento na comissão, contra-argumenta: "É claro que a comissão precisa ser rigo- rosa, mas não pode ser seu objetivo atra- sar o desenvolvimento e a utilização da tecnologia exigindo certeza absoluta e risco zero, como alguns membros estão fazendo". Pesquisador da Embrapa Mi- lho e Sorgo, unidade da Empresa Brasi- leira de Pesquisa Agropecuária em Sete Lagoas (MG), Paiva considera despropo- sitadas as discussões de temas técnicos já abordados pela comissão anteriormente que, com freqüência, são reconduzidos à pauta sem a justificativa de algum fato novo. Cita como exemplo o isolamento de milho transgênico em liberações con- troladas. Anteriormente, a CTNBio ha- via definido a opção de fazer o isola-

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Ambientalistas protestam contra milho transgênico na Alemanha: opiniões polarizadas

mento temporal - não se poderia plan- tar no local por até 30 dias depois da germinação - ou então de espaço - na- da ao redor num raio de 300 metros. Agora isso voltou à baila com a tese de que ambos os isolamentos devam ser adotados ao mesmo tempo. "Isso não traz segurança extra do ponto de vista de biossegurança e dificulta fisicamente a logística na hora de instalar experimen- tos no campo", afirma Paiva. Ao adotar esse procedimento, uma única planta de milho transgênico no campo estaria imobilizando uma área experimental de cerca de 30 hectares, ou 30 campos de futebol, por um período de seis meses. Isso inviabilizaria, do ponto de vista de disponibilidade de áreas, esse tipo de ati- vidade na maioria das unidades de pes- quisa que possuem programas de me- lhoramento genético de milho no Brasil.

"Há mais de 200 pedidos de autoriza- ção para pesquisa à espera de definição", diz Paiva. "Quem será responsabilizado

pelo atraso tecnológico que isso está im- pondo ao país? Já fomos ultrapassados pela Argentina, China e índia na área de biotecnologia vegetal. Quem será res- ponsabilizado pelo prejuízo causado aos agricultores e ao meio ambiente pelo fato de ter sido impedido o uso de uma tecnologia mais racional e segura?" questiona. Rubens Nodari já protocolou um recurso pedindo a destituição de Paiva da comissão, por suas declarações críticas acerca dos rumos da CTNBio. Para Geraldo Deffune Gonçalves de Oli- veira, especialista em agricultura fami- liar com assento na comissão, as críticas dos pesquisadores são exageradas. "Não vejo por que colegas devam irritar-se se o que buscamos é sempre a solução dentro da legalidade. Não somos nós os sectários", diz.

Uma das causas da crise da CTNBio é estrutural. Em sua nova configuração, a comissão tem 27 membros, 12 deles especialistas de notório saber científico,

três de cada uma destas áreas: saúde hu- mana, animal, vegetal e ambiente. Tam- bém participam representantes de nove ministérios e outros seis especialistas nas áreas de defesa do consumidor, saú- de, ambiente, biotecnologia, agricultura familiar e saúde do trabalhador. O pro- blema é que, além dos 27 titulares com direito a voto, também há 27 suplentes com direito a voz. Isso conspira contra a produtividade das reuniões.

"O resultado é uma espécie de assem- bléia com mais de 50 pessoas, com muitas delas querendo falar de todos os assuntos ou levantando questões de ordem", diz Carlos Augusto Pereira, pesquisador do Instituto Butantan. Em sua encarnação anterior, a CTNBio era bem mais enxu- ta. Tinha apenas 13 membros titulares. "O papel dos membros é fazer uma aná- lise técnica dos projetos, mas se gasta muito tempo tratando de assuntos bu- rocráticos, que poderiam ser resolvidos pela secretaria da comissão, ou de ques-

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toes jurídicas que nós simplesmente não da CTNBio. "A comissão nao está cons- temos elementos para analisar", afirma Pereira. Segundo ele, já se avançou no sentido de dividir os grupos em subco- missões temáticas, cujos membros, em- bora só se reúnam uma vez por mês, já conseguem adiantar o trabalho e aparar arestas por e-mail. "Mas falta estabele- cer uma sistemática que otimize o traba- lho da CTNBio de modo a usar seus membros de forma mais produtiva. É frustrante gastar tempo para vir a Brasí- lia e ver que o trabalho está aquém de nossa competência."

Mareio de Castro Silva Filho, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP, vê uma outra origem do dissenso. "O governo federal tem uma posição ambivalente em relação aos transgênicos e isso se revela na posição dos membros indica- dos por diferentes ministérios", afirma. "Entre os especialistas, não há posições fechadas em re- lação aos transgênicos, mas a polarização é muito mais visível entre os membros indicados pelo governo."

A invasão de demandas jurí- dicas na comissão é a principal causa de contrariedade. O Mi- nistério Público Federal (MPF) outor- gou a si a função de órgão externo com poderes de fiscalização e controle da CTNBio. Em decisão inédita, a 4a Câ- mara de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural do MPF determinou que uma procuradora, Maria Soares Cordioli, participasse das reuniões ordinárias mensais da CTNBio. A decisão é ampa- rada pela Lei do Ministério Público, mas nunca, desde a criação da CTNBio, em 1995, havia sido levada à prática. A pre- sença da procuradora causou reações dos pesquisadores, irritados com a in- terferência de alguém de fora da acade- mia numa comissão que deveria ser eminentemente técnica.

A decisão de indicar um promotor foi tomada no dia 15 de fevereiro, dia em que a CTNBio retomou suas ativi- dades. O presidente do órgão, Walter Colli, foi eleito no dia 16. Mas a promo- tora só apareceu na reunião de maio, deflagrando um debate interno que pa- ralisou os trabalhos. Diante da reação, Maria Cordioli explicou que não estava ali para "interferir, mas para contribuir" com a "transparência e a democracia"

ciente de seu papel", disse Maria Cordio- li ao jornal Valor Econômico. "Não é só dizer se um produto será autorizado cientificamente, mas também tem que avaliar o viés ambiental, trabalhista e dos direitos do consumidor." Um dos primeiros atos da procuradora foi exi- gir que os membros assinassem uma declaração de conflitos de interesses, sob pena de perderem os mandatos. É certo que esse assunto deveria ter sido tratado nas primeiras reuniões da nova CTNBio, mas acabou relegado diante de demandas mais importantes e do ex- cesso de trabalho represado. Seguiu-se, então, um debate sobre o tipo de decla- ração que deveria ser assinado.

ubens Nodari, o representante do Ministério do Meio Ambien- te, exigia uma declaração leo- nina, em que os membros, de antemão, se declarassem inca- pazes de avaliar processos mes- mo com relação distante com universidades, institutos de pesquisa ou empresas interes- sadas no assunto. Depois de muito debate, o caso foi à vota- ção e acabou prevalecendo o

modelo que funciona em agências de fomento, em que o membro se com- promete a declarar, antes de avaliar um processo ou votar, se tem interesses vinculados ao caso.

Falta de objetividade - A interferência do Ministério Público produziu uma baixa. No mês passado, o vice-presi- dente da CTNBio, Horácio Schneider, professor da Universidade Federal do Pará, demitiu-se. Schneider alegou mo- tivos pessoais: as viagens mensais de Bragança, no Pará, até Brasília toma- vam-lhe muito tempo e ele precisava preparar sua investidura como presi- dente da Sociedade Brasileira de Gené- tica. Mas, em sua carta de demissão, Schneider se referiu às "tensas e intermi- náveis reuniões mensais, que não se es- gotam". E criticou a falta de objetividade da comissão. O presidente da CTNBio, Walter Colli, que é professor do Institu- to de Química da USP, não quis se pro- nunciar sobre os problemas, alegando que precisa manter a isenção.

A Comissão Técnica Nacional de Bios- segurança foi criada em 1995 e teve suas

Soja, canola e algodão transgênicos: posição do governo brasileiro é ambivalente

atividades suspensas em 1998, por força de uma liminar judicial, concedida à en- tidade ambientalista Greenpeace e ao Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), que suspendia sua competência de emitir pareceres conclusivos. O pomo da discórdia foi a liberação para plantio da soja transgênica Roundup Ready, da Monsanto, considerada segura para o consumo e o plantio. Apesar da liminar, a soja transgênica conquistou espaço no Rio Grande do Sul, contra- bandeada da Argentina, e não restou opção ao governo federal além de libe- rar o plantio por medida provisória ano a ano. Em 2004, antes mesmo da sanção da Lei de Biossegurança, a CTNBio re- cuperou na Justiça poderes para delibe- rar sobre transgênicos. Com isso, libe- rou o uso de sementes de algodão com até 1% de OGMs e o plantio e a comer- cialização da variedade Bollgard, de al- godão resistente a insetos, da Monsanto, além da importação de 370 mil tonela- das de milho transgênico da Argentina.

Na esteira da nova Lei de Biossegu- rança, sancionada em 2005, a CTNBio foi recriada com uma nova configuração e começou a funcionar em fevereiro. Ta-

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refas não faltavam. A fila de espera, em fevereiro, tinha 398 processos: sete pedi- dos de liberação comercial de organis- mos geneticamente modificados, quatro novos projetos de pesquisa e outros 52 pedidos de liberação de pesquisa da casa de vegetação para o ambiente exteri- or e 41 solicitações de importações, entre outras solicitações ainda não analisadas. Mas, de lá para cá, os dois grupos dedi- caram-se a medidas consensuais, como a concessão de certificado de qualidade em biossegurança (CQB) para pesqui- sas de baixíssimo risco, ou a tarefas pre- liminares, como reavaliar as instruções normativas que norteiam o trabalho da comissão. Uma dessas instruções busca determinar a classificação de organis- mos geneticamente modificados de bai- xo, médio e alto risco.

O grupo ligado ao Ministério do Meio Ambiente e aos órgãos de defesa do consumidor havia preferido uma proposta segundo a qual, quando um gene de risco alto for instalado num or- ganismo de risco baixíssimo, o produto deve ser classificado como de risco má- ximo. Já os pesquisadores, com conhe- cimento no assunto, afirmam que, se

isso passar, ninguém vai trabalhar com OGMs no país. Na reunião de 21 de junho, o impasse foi superado e houve consenso a favor da proposta mais flexível e racional.

Os grupos também aproveitaram para medir forças, e ficou claro que os contrários aos transgênicos, embora em minoria, têm peso para bloquear pro- postas com as quais não concordem. Quando há disputa, o placar em geral é de 14 a 7, uma vez que o representante

| do Ministério das Relações Exteriores | ainda não foi indicado (embora conte 1 para obtenção de quorum qualificado) 5 e sempre há alguma ausência. Com esse | placar, seria possível impedir a liberação o de comercialização de transgênicos, uma

vez que se exige maioria de dois terços, ou 18 votos, para a aprovação. Mas ne- nhum caso foi submetido até agora ao escrutínio da comissão.

"O problema é que essas discussões não levam em conta o muito que se fez nos anos anteriores e se tenta reavaliar coisas que já estavam mais do que dis- cutidas", afirma Edilson Paiva. Por exem- plo: o MMA exige que seja rediscutida a aprovação do algodão Bollgard, aprova- do por 12 votos contra 1 pela CTNBio em 2005. A consultoria jurídica do Mi- nistério da Ciência e Tecnologia já emi- tiu dois pareceres afirmando que não é o caso de submeter novamente a voto, uma vez que não houve "mudança no conhecimento" no assunto, como reza a lei que criou a CTNBio.

Equilíbrio - O debate pega fogo do lado de fora da comissão. Gabriel Fernandes, assessor técnico da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (Aspta), atacou a CTNBio em artigo di- vulgado na internet. "Obscurantismo, na verdade, é acreditar por princípio que os transgênicos são inerentemente seguros e evitar, de todas as formas, que esses produtos sejam submetidos a tes- tes rigorosos, independentes e de médio e longo prazos." Reginaldo Minaré, dire- tor jurídico da Associação Nacional de Biossegurança (Anbio), ressaltou, tam- bém em artigo, que não foi encontrada nenhuma falha no trabalho de avalia- ção de risco feito pela comissão que te- nha provocado danos sanitários ou am- bientais. "A batalha não é no sentido de melhorar a garantia da avaliação de ris- co dos OGMs, mas de criar dificuldades ao funcionamento da CTNBio para mi- nar a motivação de vários de seus mem- bros", afirma.

Para Mareio de Castro Silva Filho, professor da Esalq, o desafio dos mem- bros da CTNBio é manter o equilíbrio nas próximas reuniões e não permitir que a polarização paralise os trabalhos. "Temos de nos concentrar nas questões técnicas, investir no que é consensual e, quando for necessário resolver no voto, não perder a serenidade", diz. •

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O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

POLÍTICAS PUBLICAS

Uma equipe de pesqui- sadores paulistas criou um novo método para avaliar, prevenir e gerir os impactos causados pela visitação às uni- dades de conservação, como os parques esta- duais, a partir de um tipo de monitoramen- to mais simples e de implementação gra-

dual. O sistema é mais apropriado ao pessoal e à estrutura de campo do que os métodos mais usados no país e no mun- do, como o Limite Aceitável de Câmbio (LAC), Capacidade de Carga (CC) e Manejo do Impacto do Visitante.

O modelo inclui sete itens básicos, que devem ser observados ao longo das trilhas em que as pessoas caminham para ir de um lugar a outro. Entre os itens está a largura da própria trilha. Caso as me- didas desse percurso se alarguem no de- correr do tempo, pode ser sinal de que há visitantes demais passando ali, por exemplo. O aparecimento de trilhas se- cundárias (não planejadas) também é sinal de impacto. Além desses, integram a lista a ocorrência de danos à vegeta- ção, rochas ou construções; o simples aparecimento de lixo; a existência de plantas especiais; o nível de satisfação dos visitantes; e acidentes envolvendo pessoas e animais.

A coleta de dados varia de acordo com a informação buscada, com a área e época da medida, mas basicamente o fiscal observa o entorno e registra as in- formações em uma planilha. Em alguns casos, como na ocorrência de lixo, além de recolher o que encontrar, ele deve contabilizar tudo e analisar o material, para depois pesquisar por que os visi- tantes não estão usando as lixeiras, por exemplo. Toda a informação deve ir para um programa de computador desenvol- vido durante o projeto, cuja finalidade é funcionar como um banco de dados.

Segundo o coordenador da pesquisa, José Carlos Barbieri, professor da Funda- ção Getúlio Vargas de São Paulo, em comparação com os outros sistemas esse monitoramento é mais completo. "Ele avalia e gerencia o impacto, além de su- gerir a sensibilização do visitante, diferen- temente do Capacidade de Carga e do Limite Aceitável de Câmbio", explica. O novo sistema, para cada item a ser obser- vado, permite reunir sugestões de ações que os administradores do parque de- vem implementar para minorar os pro- blemas. Por exemplo, caso ocorra algum acidente envolvendo gente e bicho, o mé- todo determina que se estudem os riscos que culminaram no fato e se faça algu- ma mudança na infra-estrutura da unida- de, a fim de prevenir novos acidentes.

Além disso, o novo sistema é mais objetivo porque elimina critérios consi-

Passeio monitorado Novo sistema avalia e previne impacto ambiental em parques

derados secundários na hora de obser- var os impactos das visitas. O pH do solo e da água, por exemplo, é um tipo de informação pedido pelos sistemas LAC e Manejo do Impacto do Visitante que merece análise mais complexa, pois "o pH não está vinculado exclusiva- mente à visitação", afirma Barbieri. "O solo pode estar com o pH alterado por causa de uma fábrica poluidora nas pro- ximidades do parque".

Soluções rápidas - Outra dificuldade que o novo sistema pretende resolver diz respeito à sua implementação. Ele propõe que os próprios funcionários das unidades de conservação o utilizem para que os problemas sejam soluciona- dos mais prontamente. Também ocorre, em outros casos, que os monitoramen- tos sejam muito complexos e exijam a contratação de pessoal externo especia- lizado. Com um método já preesta- belecido, isso muda. Além de tornar a

Parque da Cantareira:

trilhas não planejadas é

sinal de danos

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avaliação mais cara, pode demorar até que o parque tenha os resultados, e ain- da mais para reagir a eles.

Além dos indicadores básicos, pode haver itens específicos de avaliação para cada parque, de acordo com o seu uso, o que pode aprimorar o monitoramento de cada unidade. No Parque Estadual In- tervales, no sudoeste de São Paulo, os pro- blemas de drenagem da água da chuva foram um desses itens. Ali chove durante um terço do ano e os visitantes, ao se des- viarem das poças, podem alargar a trilha. Por outro lado, o grau de compactação do solo, que sinaliza maior ou menor im- pacto em áreas mais selvagens como o Intervales, é um critério que não serve para o Parque Estadual da Cantareira, a 10 quilômetros da cidade de São Paulo. Lá, em uma trilha específica, o público não se preocupa com o tipo de calçado usado nas caminhadas e há quem vá até de sandálias havaianas. Algumas trilhas do parque são inclusive asfaltadas. "Mais

O PROJETO

Proposição de políticas públicas a partir de modelos de avaliação e gestão de impactos socioambientais da visitação pública nas unidades de conservação do estado de São Paulo

MODALIDADE Programa de Políticas Públicas

COORDENADOR JOSé CARLOS BARBIERI - Fundação Getúlio Vargas

INVESTIMENTO R$ 95.423,19 (FAPESP)

compactação do solo que isso impossí- vel", afirma Paul Dale, coordenador técni- co do projeto e do Programa de Ecoturis- mo da Fundação Florestal, órgão ligado à Secretaria de Meio Ambiente do estado de São Paulo.

A informação coletada com os visi- tantes é um dos principais itens para o

monitoramento, que busca saber se suas expectativas foram atendidas. Afinal, en- tre as funções das unidades de conserva- ção está o seu uso público.

A cobrança de ingresso é importante para a manutenção financeira das unida- des. Assim, é normal que se queira incen- tivar o aumento da visitação. Mas, como os impactos sobre o local são uma carac- terística inerente à visitação, entende-se que o monitoramento é fundamental. "Trata-se de garantir que as unidades con- tinuem com o ambiente conservado, com os impactos em níveis adequados", diz Dale. Nas cinco unidades que integraram a pesquisa - além da Cantareira e Inter- vales, os parques estaduais de Campos do Jordão e da Ilha de Anchieta e a Estação Ecológica Juréia-Itatins - foram treinadas cerca de 120 pessoas. Em algumas delas, o método continua sendo usado, mesmo após o fim do projeto. O objetivo é trans- formá-lo no sistema de monitoramento de todos os parques de São Paulo. •

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CIÊNCIA

■ Tênis novo causa infecções

Contagiada pelos jogos da Copa, a rapaziada resolve es- trear o tênis novo e tentar os mesmos espetáculos ofereci- dos por um Ronaldinho ou um Beckham. Além do risco da frustração por se manter distante dos ídolos - e das eventuais distensões muscula- res -, há outro perigo: as bo- lhas causadas pelo calçado novo podem gerar infecções graves. Um estudo publicado em junho no British Medicai Journal descreve dois casos de uma síndrome que surgiu em crianças depois de jogar fute- bol com tênis novos. As duas ficaram com bolhas na pele sobre o tendão de Aquiles, em razão da fricção do pé com o tênis. As bolhas continham bactérias Staphylococcus au- reus, que, em um dos casos, expressou o gene da síndrome do choque tóxico (TSS1). Um dos jogadores, ou melhor, uma jogadora, de 13 anos, com bolhas sobre os dois ten- dões, foi hospitalizada depois de ter febre, vômitos, diarréia e queda de pressão arterial. Saiu do hospital com uma re- ceita de antibióticos. No ou- tro caso - um garoto de 11

0 hormônio do vinho As uvas usadas para fazer os ti- f pos de vinho tinto de amplo

\ desse estudo, publicado na % Chemistry & Industry. Pensa- 1

consumo podem conter altos va-se até recentemente que a | níveis de melatonina, um melatonina era produzida so- s

hormônio que induz ao mente pelos animais - até ser sono, de acordo com o tra- descoberta em plantas, possi- balho de uma equipe da ^^ velmente com propriedades Universidade de Milão, Itá- antioxidantes. Marcello dis- lia. A descoberta da melato- se ter encontrado melatoni- nina na casca da uva explica na na casca das uvas das va- por que tantos de nós relaxa- y riedades Nebbolo, Merlot, mos gradativamente depois ^H ^w Cabernet Sauvignon, Sangio- de um gole, seguido por outro, ^^^j mf ̂ vesse e Croatina. Richard Wurt- por outro e por outro. Poderia w^^T man, neurologista do Instituto de também ajudar a regular o ritmo cir- I Tecnologia de Massachusetts, Estados cadiano, que determina os padrões de Unidos, não está convencido. Para ele sono e vigília, do mesmo modo que a ainda é preciso saber se os compos- melatonina produzida pela tos descobertos são mesmo glândula pineal, segundo Iri- melatonina - ou algo muito ti Marcello, coordenador

anos - com uma bolha ape- nas no tendão direito, tam- bém apresentou febre, vômi- to, diarréia e erupções de pele. No hospital, seu estado pio- rou e sua pressão caiu. •

■ Respiração denuncia presa

Quando os morcegos hema- tófagos entram voando em uma caverna ou percorrem um pasto à noite, como iden-

tificam a fonte de alimento, que também pode estar em movimento? Pelo som da res- piração, concluíram pesquisa- dores alemães, estudando morcegos da espécie Desmo- dus rotundus. Um experimen- to conduzido por Udo Groe- ger e Lutz Wiegrebe, da Universidade Ludwig-Maxi- milians, de Munique, Alema- nha, mostrou que morcegos- vampiros ou hematófagos, que se alimentam exclusiva-

parecido.

mente de sangue, inclusive humano, reconhecem sons gravados da respiração huma- na muito melhor que as pró- prias pessoas. Os morcegos- vampiros, que se alimentam da mesma presa por várias noites seguidas, devem usar os sons da respiração para iden- tificar a presa do mesmo modo que os humanos usam a voz para se reconhecerem. •

■ Rapidez para ver imagens eróticas

Em um estudo feito na Uni- versidade de Washington, Es- tados Unidos, o cérebro das mulheres reagiu mais rapida- mente diante de imagens eró- ticas do que de outros tipos de cenas. Diante de casais par- cialmente vestidos em poses sensuais, o cérebro das 264 mulheres que participaram como voluntárias desse ex- perimento era acionado em média em 160 milissegun- dos, uma resposta 20% mais

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rápida do que quando viam cenas de esquiadores na água ou de uma pessoa penteando cachorros. As 55 imagens mu- davam a intervalos de 12 a 18 segundos e cada uma per- manecia na tela de um com- putador por seis segundos. "Acreditávamos que tanto as imagens prazerosas quanto

as incômodas acionariam uma resposta rápida, mas as cenas eróticas sempre dispa- ravam respostas mais inten- sas", comentou Andrey Ano- khin, coordenador desse trabalho, publicado na Brain Research. Outro pressuposto que dançou: as mulheres têm respostas tão intensas e rápi- das quanto as que brotam no cérebro masculino diante de imagens eróticas (pensava-se que seriam mais lentas). Esse trabalho sugere que grupos distintos de neurônios podem estar envolvidos no processa- mento de imagens eróticas, além de ajudar a entender e a tratar distúrbios psiquiátri- cos e sexuais associados a um deficiente processamento de sinais visuais. •

■ Diversidade e resistência

Ambientes contendo muitas espécies diferentes de plantas são não só mais produtivos, mas também resistem melhor e por mais tempo a variações extremas de clima e pestes, de acordo com um estudo - o primeiro a reunir dados expe- rimentais para confirmar um debate de pelo menos 50 anos sobre o impacto da biodiver- sidade sobre a estabilidade dos ecossistemas. As conclusões,

publicadas em maio na Natu- re, resultam de 12 anos de ex- perimentos realizados por

uma equipe coordenada por David Tilman, ecólogo da Universidade de Minnesota, Estados Unidos, em 168 áreas de uma das 26 reservas de ve- getação natural mantidas pela National Science Foundation (NSF) no interior do Alasca. A pesquisa mostra que ecos- sistemas contendo muitas es- pécies diferentes de plantas são 240% mais produtivos que aqueles com uma única espécie. Segundo Tilman, a volta da biodiversidade pode ser a chave para nutrir a cres- cente população mundial do planeta e para recuperar am- bientes degradados. •

Vulcão do Havaí: fumaça com água

Nem toda água do mar está no mar. As profun- dezas da Terra guardam o equivalente a 10% do 1,3 trilhão de quilôme- tros cúbicos da água dos oceanos, mares e baías, estimaram geólogos in- gleses da Universidade de Manchester. Eles en- contraram água do mar em amostras de gás vul- cânico proveniente do manto, região abaixo da crosta, reforçando a teo-

ria de que a água do mar mergulha pelo interior do planeta (Nature, 11 de maio). Os resultados ajudam a explicar por que vulcões oceânicos como os do Havaí, que trazem material da re- gião em que o manto en- contra o núcleo terrestre, carregam uma quantida- de de água maior que os vulcões dos quais emerge magma de áreas mais pró- ximas à superfície. •

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*0

Antigos ceramistas do Pará

■ Fonte ambulante de alergia

Quem tem alergia começa logo a espirrar ou tossir assim que entra em um carro. Pare- ce ter alergia ao próprio car- ro. Mas não. Quase metade dos automóveis é também de- pósito ambulante de proteí- na de ácaros ou de pêlos de cães e gatos que põem em ebulição os mecanismos de defesa do corpo humano. Re- sultados: espirros, nariz es- correndo, coceira no olho. Em uma palavra, alergia. O acúmulo dessas proteínas, chamadas alérgenos, revela um pouco dos hábitos dos proprietários dos carros, con- cluiu Ernesto Taketomi com sua equipe da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Minas Gerais. Munidos de um aspirador de pó portátil, os pesquisadores coletaram amostras de poeira do banco do motorista e do passagei- ro de 60 carros de passeio e de 60 táxis. A poeira dos tá- xis continha mais alérgenos de ácaros que os automó- veis particulares. Em quatro de cada dez táxis havia pro- teínas de ácaros em concen- trações elevadas o suficiente para causar alergia, problema observado em apenas 5% dos

Começou em 2000 o levan- tamento sobre o potencial arqueológico da serra do Sossego, no município pa- raense de Canaã dos Cara- jás, que seria atingido por um projeto de exploração de cobre da Companhia Vale do Rio Doce. Em seis anos os pesquisadores do Museu Paraense Emílio Goeldi coletaram 30 mil fragmentos cerâmicos - o mais antigo de 2 mil anos e o mais recente de cerca de 500 anos. A partir desses

carros de passeio, de acordo com o artigo publicado no Journal of Investigational Al- lergology and Clinicai Immu- nology. A razão dessa diferença é que em Uberlândia, como

vestígios, incluindo lâminas de machado de pedra, pin- gentes de pedra, pilões e ur- nas funerárias, os arqueó- logos concluíram que essa região do sudeste do Pará fora habitada por horticul- tores da tradição ceramis- ta tupi-guarani, de formas mais simples se compara- das com as marajoara e ta- pajônica. Os arqueólogos, cujo trabalho ajudou a sal- var quatro sítios arqueo- lógicos, trabalharam com os educadores, que criaram

em muitas cidades do interior, os taxistas estacionam seus carros à sombra com os vi- dros abertos para manter a temperatura interna amena, criando um ambiente favorá-

Nos bancos: proteínas de ácaros e de pêlos de animais

um projeto de educação patrimonial, com pesquisa sociocultural, exposições, oficina de artes, visitas e distribuição de livros. Deu tão certo que os moradores e artesãos locais, por meio de uma carta com 170 assi- naturas, pediram a conti- nuidade do trabalho. Já os artesãos do município vi- zinho de Parauapebas so- licitaram que os pesqui- sadores do Museu Goeldi comecem a trabalhar tam- bém por lá. •

vel à proliferação dos ácaros. Já os donos dos veículos de passeio não se importam em parar o carro sob sol forte - o calor ajuda a eliminar os áca- ros. O problema com os car- ros de uso privado é outro: em metade deles o nível de uma proteína encontrada no pêlo de cães era elevado a ponto de deixar alerta o siste- ma de defesa ou mesmo dis- parar uma crise alérgica. A contaminação do veículo, cla- ro, está associada à presença de um animal de estimação em casa. Mesmo que o dono não o leve para passear de carro, como constatou a equi- pe de Taketomi em um estu- do anterior. •

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■ Intoxicações em alta escala

No Mato Grosso do Sul os agrotóxicos estão eliminando mais do que as pragas agríco- las. Estão matando os traba- lhadores rurais, segundo es- tudo publicado na Science of the Total Environment. Nesse trabalho Maria Celina Rece- na e Dario Pires, da Universi- dade Federal do Mato Grosso do Sul, e Eloisa Dutra Caldas, da Universidade de Brasília, analisaram 1.355 casos de en- venenamento por defensivos agrícola registrados no estado de 1992 a 2002. Encontraram dados alarmantes: em 37% dos casos, a intoxicação foi intencional. Embora os casos de envenenamento no Mato Grosso do Sul representem só 2,4% das intoxicações por pesticidas no país, a propor- ção de mortes ali é de 13%, quatro vezes superior à mé- dia nacional. Os mais atingi- dos são os homens, com ida- de entre 20 e 50 anos. A taxa mais elevada de intoxicação foi encontrada na região da capital, Campo Grande, pro- vavelmente porque ali o re- gistro das intoxicações é mais preciso do que no restante do estado - estima-se que para cada caso de envenenamento registrado no país existam ou- tros 50 não-identificados. A segunda região mais afetada é a de Dourados, pólo agrí-

cola e segunda maior produ- tora no Mato Grosso do Sul de algodão, cultura que con- some quase 80% dos agrotó- xicos usados no Brasil. O país é o terceiro maior consumi- dor de defensivos agrícolas do mundo. •

■ Células-tronco restauram fígado

Radicado nos Estados Unidos desde 1962, o médico brasi- leiro Nelson Fausto conse- guiu isolar uma linhagem estável de células-tronco de

fígados fetais humanos. Im- plantadas em camundongos com imunodeficiências e da- nos agudos no fígados, elas se diferenciaram em outros ti- pos de células, como hepató- citos e células ductais biliares, e restabeleceram parte do ór- gão que havia sido danifica- da. Mas ainda há muito a fa- zer em laboratório antes que essa técnica experimental pos- sa ser adotada em procedi- mentos médicos com seres humanos, alerta Fausto, chefe do Departamento de Patolo- gia da Universidade de Washi- ngton, em Seatle, e autor prin- cipal do estudo publicado na revista PNAS detalhando os resultados. •

As cicatrizes sociais do câncer Quem sobrevive a um cân- cer nem sempre está livre de marcas que podem ir além das cicatrizes de uma cirurgia. Os tumores, em especial os detectados em estágio avançado, podem afetar a vida econômica e social de quem superou a doença e dos que estão à sua volta, por incapacitar as pessoas para o trabalho e reduzir a renda familiar. A equipe de Luiz Paulo Ko- walski, do Hospital do Câncer A. C. Camargo, em São Paulo, entrevistou 301 pessoas que haviam tido tumor de boca, faringe ou laringe e estavam livres do problema havia pelo me- nos dois anos. Um terço dos entrevistados se tor- nou inapto para o trabalho mesmo após superar esses tipos de tumor. A renda fa- miliar caiu muito em 42% dos casos. O principal fator de risco associado à inca- pacitação para o trabalho

foi a baixa escolaridade: 80% dos entrevistados não haviam completado o ensi- no médio. Duas hipóteses ajudam a compreender es- ses resultados, detalhados nos Archives of Otolaryngo- logy - Head and Neck Sur- gery. Pessoas com nível so- ciocultural mais elevado estariam mais bem pre- paradas para lidar com o câncer e suas seqüe- las. Outra explicação: Sè**»

as pessoas com me- nor escolaridade ge- ralmente trabalham em atividades que exi- -», gem força física, redu- zida pela enfermidade. Para os autores desse estu- do, os resultados podem mostrar quem precisaria passar por uma reabilita- ção mais intensiva para facilitar a volta ao trabalho. Se a reabilitação não desse certo, essas pessoas deve- riam receber um suporte social mais abrangente. •

Cabeça de soldado, 1504-1505,

obra inacabada de Leonardo da Vinci

PESQUISA FAPESP125 ■ JULHO DE 2006 ■ 35

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O CAPA

FARMACOLOGIA

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cerebral Extraído da maconha, canabidiol age contra ansiedade e outros distúrbios mentais

CARLOS FIORAVANTI

Page 36: O lado médico da Cannabis

m um laboratório excepcional- mente amplo do segundo andar de um casarão de estilo neoclássi- co pintado de ocre, de cujas jane- las se pode apreciar o jardim re- pleto de árvores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, novos estudos fundamentam os potenciais usos médicos do cana- bidiol, uma das substâncias mais abundantes de uma planta que

desperta paixões, delírios doces ou tristes recorda- ções, críticas enfurecidas e, nos últimos tempos, um crescente interesse científico: a maconha. Como demonstrado por meio de experimentos com animais realizados pela equipe de Francisco Guimarães, o canabidiol detém a ansiedade de modo equivalente a medicamentos sintéticos utili- zados há décadas e, de acordo com os resultados preliminares de um dos estudos em andamento, pode também reduzir a depressão. Como outros estudos haviam indicado, o canabidiol pode fun- cionar também contra leucemia, epilepsia e doen- ças neurodegenerativas como o mal de Alzheimer.

PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 37

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Em outro laboratório da USP de Ri- base de dois medicamentos, um nos Es- beirão Preto, no quarto andar do Hospi- tal das Clínicas, atrás do casarão que já foi a sede de uma fazenda de café, Antô- nio Zuardi encontrou evidências de que esse composto pode funcionar também como antipsicótico e aplacar os sinto- mas mais graves da esquizofrenia, como os delírios e a dificuldade de reconhecer o próprio corpo. Zuardi deve começar neste mês os testes em portadores de transtorno bipolar do humor, antes cha- mado de psicose maníaco-depressiva, já que o canabidiol poderia atuar contra a intensa aceleração do pensamento e ou- tros sintomas psicóticos que acompa- nham esse tipo de distúrbio mental.

Em paralelo, pesquisas realizadas principalmente nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Austrália mos- tram que o canabidiol pode pro- teger o sistema nervoso central, ampliando a sobrevida de neurô- nios, além de ajudar a deter infla- mações e a controlar a pressão arterial. Há indicações de que o canabidiol possa ainda bloquear o crescimento de tumores no cé- rebro, abrindo perspectivas de que esse composto químico - que na- da tem a ver com os efeitos típi- cos da maconha - possa ser utili- zado sozinho ou em combinação com o mais estudado dos constituintes da famosa planta, o delta-9-tetraidro- canabinol ou, para encurtar, THC.

Igualmente versátil, mas com alguns efeitos colaterais que poderiam ser ame- nizados pelo canabidiol, o THC já é a

tados Unidos e outro no Reino Unido, ambos indicados para conter a náusea e o vômito do tratamento quimioterápico contra o câncer. Os franceses, observan- do um dos fenômenos resultantes do consumo da Cannabis sativa — a fome intensa, chamada de larica por quem tem alguma familiaridade com a planta -, criaram uma categoria de medica- mentos que bloqueia as moléculas de superfície nas quais o THC se liga, aju- dando assim as pessoas a perder peso, de acordo com os testes já feitos. A GW Pharmaceuticals, sediada na Inglater- ra, combinou o canabidiol e o THC em proporções iguais em um medicamen- to aprovado no Canadá em 2005 contra dores resultantes da esclerose múltipla.

s artigos científicos que relatam os efeitos do canabidiol e do THC, fundamentando o desen- volvimento de novos medica- mentos, inevitavelmente reme- tem às pesquisas pioneiras que começaram a ser feitas há 30 anos por uma equipe da Univer- sidade Federal de São Paulo (Uni- fesp) coordenada pelo professor Elisaldo Carlini, da qual Zuardi fez parte. As descobertas têm au- mentado o conhecimento sobre

a planta também chamada de erva-do- diabo em razão de seu poder entorpe- cente: trata-se, afinal, da droga ilícita mais consumida no mundo. Segundo o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), 6,9% da

população brasileira já utilizou a maco- nha pelo menos uma vez na vida - um resultado abaixo dos Estados Unidos (34,2%), do Reino Unido (25%) ou do Chile (19,7%). Seu impacto social, no entanto, pode não ser tão intenso quan- to se imagina. De acordo com o Cebrid, o número de dependentes atingiria 1% da população do país, o equivalente a cerca de 450 mil pessoas. Das 55 mil in- ternações hospitalares causadas por drogas registradas em 2005, apenas 1,3% estavam associadas à maconha e 90% ao álcool.

Fibras nas caravelas - Originária da Ásia, de folhas alongadas e recortadas, a Cannabis sativa pode atingir 3 metros de altura. Seu caule fornecia uma fibra natural bastante resistente, o cânhamo, usado nas velas das embarcações por- tuguesas que chegaram a Salvador em 1500. Algumas décadas mais tarde che- gariam as sementes de cânhamo, es- condidas nas bonecas de pano amarra- das nas pontas das tangas dos escravos negros, de acordo com o livro Cannabis sativa L. e substâncias canabinóides em medicina, editado pelo Cebrid.

No início do século passado, o câ- nhamo deixou de ser usado à medida que suas equivalentes sintéticas começa- ram a ser produzidas. Mais tarde criou- se uma associação entre o hábito de fu- mar as folhas e as flores dessa planta com as classes mais baixas da população e com a loucura. Essas relações hoje são vistas com restrições por pesquisadores como Franjo Grotnhermen, do Instituto

Os efeitos prejudiciais da Cannabis Evidentemente as potenciais indicações médicas da

Cannabis sativa não justificam seu uso recreacional, marcado por uma série de efeitos deletérios sobre o or- ganismo. Olhos avermelhados, boca seca e coração ace- lerado são só os primeiros sinais. O hábito de fumar ma- conha pode provocar nos homens uma diminuição da testosterona, hormônio que dá massa muscular, deixa a voz mais grossa e aciona a produção de espermatozói- des; nas mulheres, as alterações hormonais podem até inibir a ovulação. A fumaça, por ser irritante, pode afe- tar os pulmões e gerar problemas respiratórios - o mais

comum é a bronquite. Em paralelo à sensação de calma, relaxamento e vontade de rir, o uso contínuo pode pro- vocar tremor, sudorese, angústia e medo de perder o controle mental - é a má viagem ou bad trip, como os usuários chamam. As perdas temporárias da capacida- de de percepção do espaço, da memória de curto prazo e do pensamento abstrato podem prejudicar o desem- penho de atividades que exigem atenção e concentração, como estudar ou dirigir. O uso contínuo pode ainda despertar ou agravar doenças psíquicas. Mais informa- ções: Cebrid (www.unifesp.br/dpsicobio/cebrid).

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A Cannabis sativa em um desenho de 1887 de Franz Eugen Kõhler: utilizada há 6 mil anos

Nova, da Alemanha, que demonstra quão inconsistentes elas são em um ar- tigo publicado na edião de 15 de maio deste ano da revista médica Lancet.

A imagem negativa da planta que se tornou um ícone da rebeldia começou a se desfazer há cerca de 40 anos com a identificação da estrutura química de seus componentes e a descoberta de como poderiam funcionar no organis- mo. As pesquisas sobre os efeitos da planta começou a ganhar legitimidade principalmente com a descoberta das moléculas da superfície das células ner- vosas, chamadas receptores CB1 e CB2, às quais o THC se ligaria. Surgiu então uma pergunta torturante: o sistema ner- voso teria um mecanismo natural para lidar com o THC? A dúvida só se desfez quando Raphael Mechoulam, da Uni- versidade de Jerusalém, em Israel, isolou uma molécula muito semelhante ao princípio ativo da maconha, que ga- nhou o nome de anandamida — em sânscrito, "ananda" significa bem-aven- turança. Seria apenas o primeiro dos endocanabinóides, mensageiros quími- cos produzidos quando as células ner- vosas são estimuladas e consumidos em poucos segundos.

Contra insetos - Além do THC, a maconha contém outras 65 substân- cias chamadas canabinóides, que po- dem exercer algum efeito sobre os neu- rônios - a maioria delas foi muito pouco estudada. Algumas delas têm efeitos opostos entre si, como o pró- prio canabidiol, que inibe a ação do THC. Ambos apresentam uma estru- tura química muito parecida e se for- mam nas pequenas glândulas que re- cobrem principalmente as folhas e as flores femininas da Cannabis. Quando essas frágeis glândulas se rompem, é li- berada uma resina de alto poder entor- pecente, conhecida como haxixe, que para a planta deve funcionar como de- fesa contra insetos.

Responsável pelos efeitos mais co- nhecidos da maconha, como a sedação e a euforia, o THC tem tido amplas apli- cações médicas: mostrou-se capaz de

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aplacar dores, enjôos e processos infla- matórios, além de estimular o apetite. Tamanha versatilidade explica por que essa planta começou a ser cultivada e utilizada com finalidades médicas na China há cerca de 6 mil anos. Seu uso terapêutico atingiu um clímax no final do século 19, quando era fácil obter ex- tratos de qualidade, até diminuir drasti- camente nas primeiras décadas do sé- culo passado, "em grande parte pela dificuldade na obtenção de resultados consistentes de amostras da planta com diferentes potências", escreve Zuardi em um artigo a ser publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria.

Contra dores - Estudos feitos no Bra- sil, nos Estados Unidos e na Inglater- ra indicam que o THC pode ajudar a amenizar problemas de saúde como Aids, dores da artrite, esclerose múlti- pla e insônia. "Não há mais jus- tificativa ética para os médicos deixarem de receitar o THC", comenta Carlini, pioneiro no Brasil do estudo sobre os efeitos da maconha. Um dos trabalhos mais recentes, realizado por uma equipe do Imperial College London e publicado em maio na Anesthesiology, indica que o ex- trato da Cannabis — uma mis- tura de canabinóides, predomi- nando o THC - ajuda a aliviar dores que surgem depois de cirurgias com efeitos colaterais mínimos em bai- xas doses; doses mais altas causaram náusea e taquicardia.

O THC isolado apresenta outros efeitos indesejados, como o riso frouxo e as gargalhadas descontroladas, que podem durar duas ou três horas, de acordo com a descrição de uma edição de 1888 do Formulário eguia médico, de Pedro Luiz Napoleão Chernoviz, que Carlini retira da estante e lê com cuida- do - ali estão também usos hoje pouco mencionados, como o tratamento de bronquite crônica e diferentes tipos de falta de ar ou dispnéia. Ele próprio, em um artigo de revisão publicado em 2004 na Toxicon, menciona outros riscos: o THC pode também reduzir a capacida- de de discriminar intervalos de tempo e distâncias, a vigilância, a memória e a habilidade de trabalhos mentais e gerar pensamentos desconectados, ansiedade, reações de pânico, delírios ou alucina-

ções. Já o canabidiol até agora só apre- sentou um efeito colateral, a sedação, em doses muito altas.

É por essas razões que o canabidiol poderá ser adotado em um primeiro momento para reduzir os efeitos inde- sejados do THC - uma possibilidade que fortalece o trabalho desenvolvido desde 1998 pela GW Pharmaceuticals com o Sativex, medicamento que com- bina os dois compostos em proporções iguais. A aliança entre as duas substân- cias irmãs poderá ir além da esclerose múltipla, a doença para a qual o Sativex já foi aprovado para uso médico pelo governo canadense. Nos Estados Uni- dos, a Agência de Alimentos e Medi- camentos (FDA, na sigla em inglês) o qualificou como nova droga sob inves- tigação (IND), permitindo o início dos testes em busca de alternativas para re- duzir a dor de pessoas com câncer.

ara mostrar os mecanismos pe- los quais a combinação de cana- bidiol e THC poderiam agir e evitar os efeitos indesejados do uso isolado do THC, em um ar- tigo publicado em 2005 na re- vista Medicai Hypotheses, Ethan Russo, pesquisador da GW e das universidades de Washington e de Montana, ambas nos Estados Unidos, apóia-se na rica safra de trabalhos produzidos entre 1970

e 1985 no laboratório da Unifesp dirigi- do por Carlini e ainda hoje muito men- cionados nos estudos exploratórios so- bre a Cannabis sativa. Carlini e seu então aluno de doutorado Jomar Medeiros Cunha, hoje professor titular na Univer- sidade Federal de Uberlândia, em Mi- nas Gerais, haviam demonstrado que o canabidiol reduzia pela metade as con-

Participação do glutamato e do oxido nítrico na físiopatogenia de distúrbios psiquiátricos

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR FRANCISCO SILVEIRA GUIMARãES - USP

INVESTIMENTO R$ 501.016,74 (FAPESP)

vulsões de portadores de epilepsia. Foi também Carlini que mostrou em ani- mais que o canabidiol às vezes ampliava e outras vezes bloqueava o efeito do THC. Somente em 1990 é que Guima- rães, na USP de Ribeirão Preto, resolveu esse mistério demonstrando que os re- sultados conflitantes observados em modelos animais de ansiedade com o canabidiol poderiam ser explicados pela dose: doses baixas produzem efeitos an- siolíticos, enquanto doses altas, não.

Ousadia - Quando passou pelo labora- tório de Carlini, entre 1976 e 1980, para fazer seu doutorado sob a orientação de Isaac Karniol, Zuardi fez algo ousa- do: testou os dois compostos em oito voluntários saudáveis, que conheciam a maconha apenas de ouvir falar. A cada semana, eles recebiam placebo, canabi- diol, THC, uma mistura de canabidiol com THC ou diazepam, um ansiolítico bastante conhecido, que servia como controle ativo. O THC, sozinho, pro- duzia ansiedade e sintomas psicóticos como as intensas alterações de pensa- mento, que diminuíam bastante quan- do o participante do estudo recebia também canabidiol. "Foi a primeira indicação dos possíveis efeitos ansiolí- ticos e antipsicóticos do canabidiol", conta Zuardi.

Há dois anos seu aluno José Alexan- dre Crippa coordenou um experimento que demonstrou por meio de imagens do sistema nervoso que o canabidiol ativa as regiões do encéfalo associadas à ansiedade, nas quais aumentou o flu- xo sangüíneo. Também ajudando a aprofundar e explicar os estudos feitos há 25 anos, Leonardo Resstel, Fabrício Moreira e Sâmia Joca, no laboratório de Guimarães, em um trabalho aceito para publicação na Behavioral Brain Research, mostraram que o canabidiol pode funcionar tão bem quanto o dia- zepam para reduzir o medo condicio- nado em ratos.

Os estudos com esquizofrenia estão menos maduros. Em 1995 Zuardi tra- tou uma mulher de 19 anos que padecia de sérios efeitos colaterais com o halope- ridol e outros medicamentos indicados contra esquizofrenia. Nesse caso o cana- bidiol funcionou bem. Mas em outro teste, com três participantes resistentes ao tratamento convencional, o canabi- diol trouxe apenas ganhos modestos, in-

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Da ciência à produção: dos laboratórios da GW (acima) sai o Sativex, com THC e canabidiol, já aprovado no Canadá

dicando que as pessoas resistentes a ou- tros medicamentos também não apre- sentam uma boa resposta a esse compo- nente da Cannabis sativa.

Mesmo assim há boas perspectivas. Um artigo de revisão publicado no iní- cio do ano no Brazilian Journal and Bio- logical Research propõe que o canabidiol possa trazer benefícios a portadores de esquizofrenia que não apresentem resis- tência a outros medicamentos. Com uma vantagem: sem causar a rigidez muscular e os tremores que podem sur- gir com os antipsicóticos normalmente utilizados. "O haloperidol ativa duas re- giões do sistema nervoso, as áreas lím- bicas e os núcleos da base, levando à manutenção de uma postura anormal",

observa Guimarães, "enquanto o cana- bidiol ativa apenas as áreas límbicas". Os resultados iniciais de um teste com de- zenas de pessoas coordenado por Mar- kus Leweke, da Universidade de Kõln, da Alemanha, indicam que o canabidiol pode atuar tão bem quanto a amisul- prida, outro antipsicótico bastante em- pregado.

"Oportunidade valiosa" - Se algumas portas se abrem, outras, porém, se fe- cham. A FDA soltou no final de abril uma declaração que proibia qualquer uso médico da maconha, reforçando a divisão entre o governo federal e os 11 estados norte-americanos que já haviam aprovado o uso da droga para aliviar do-

res. O comunicado gerou protestos ao argumentar que não havia evidências da segurança e eficácia do emprego medici- nal da maconha, embora o próprio Ins- tituto de Medicina dos Estados Unidos tivesse recomendado em 1999 que o uso da planta contra náusea, perda de apetite e ansiedade fosse estudado mais intensi- vamente, diante dos resultados positivos que já haviam sido obtidos. "Cientifica- mente", diz Guimarães, "não há como justificar essas restrições".

Mas ele aposta: dessas pesquisas sur- girão outros medicamentos. Em um estu- do publicado em 2005 na Drugs of the Future, Leonora Long, Daniel Malone e David Taylor, da universidade australiana de Monash, sustentam que a exploração dos constituintes da maconha como o ca- nabidiol representa "uma oportunidade clínica valiosa". Certamente as oportu- nidades de aproveitamento das pesqui- sas feitas no Brasil seriam mais claras se não houvesse um vácuo tão grande en- tre as universidades e as indústrias.

Para os cientistas está começando um novo ciclo de uso dos derivados da Cannabis como medicamento. "Um uso mais consistente que no passado", asse- gura Zuardi. "As estruturas dos compos- tos químicos são agora conhecidas, os mecanismos de ação no sistema nervo- so estão sendo elucidados e a efetivida- de e segurança do tratamento estão sen- do cientificamente provadas." •

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Q CIÊNCIA

BIOLOGIA CELULAR

Herança materna Mecanismo de transmissão de bactéria da mãe para a prole de insetos auxilia pesquisa de células-tronco e tratamento de doenças tropicais

e uma pesquisa sobre uma bactéria que sob o microscópio se parece com um grão de arroz emergiram informações que ajudam a entender a propagação de infecções e expli- cam um pouco melhor o desenvol- vimento das células-tronco, a espe- rança da medicina contemporânea por originarem outros tipos de célu- las. Além disso, algumas conclusões podem ser úteis para combater doen- ças tropicais como a dengue e a ele-

fantíase. As perspectivas que agora parecem tão am- plas nasceram de uma pergunta puramente científica: Como a bactéria Wolbachia pode ter se tornado um dos microorganismos mais bem-sucedidos do plane- ta, a ponto de disseminar-se entre milhões de espé- cies de artrópodes, incluindo insetos, aranhas e crus- táceos, além de vermes como a lombriga? A aranha que cai da cortina ou a mosca que entra pela janela provavelmente carregam milhares de bactérias do gê- nero Wolbachia.

O biólogo brasileiro Horácio Frydman carregava essa dúvida em 2002 quando bateu à porta de um dos laboratórios da Universidade de Princeton, Esta- dos Unidos, coordenado por Eric Wieschaus, um dos ganhadores do Prêmio Nobel de Medicina em 1995 por ter descoberto os genes e os mecanismos que con- trolam o desenvolvimento embrionário - ele traba- lhara com a mosca-das-frutas, Drosophila melanogas- ter, mas esses princípios se aplicam também a organismos superiores, incluindo os seres humanos. Frydman contou-lhe que havia feito o mestrado no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) com Roberto Santelli e doutorado na Univer- sidade Johns Hopkins com Allan Spradling, respeita- do especialista em células-tronco, e que pretendia es- tudar a Wolbachia em Drosophila. Wieschaus nunca tinha ouvido falar em Wolbachia, mas gostou da pro- posta e deu-lhe um ano para mostrar resultados; se não conseguisse, Frydman teria de abandonar seu projeto próprio e começar a trabalhar em uma das li- nhas de pesquisa em andamento no laboratório.

Frydman trabalhou avidamente - e conseguiu. Primeiramente, desenvolveu algumas técnicas de mi- croscopia que lhe permitiram visualizar as bactérias no interior da Drosophila e, pouco a pouco, elucidar como elas se instalam no organismo hospedeiro e são depois transmitidas. Quando injetada no abdômen de uma mosca, essa bactéria demora 15 dias para atravessar membranas e tecidos musculares e chegar aos ovários do inseto, que têm o aspecto de um cacho de bananas. Mas por que os ovários, e não os intesti-

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Modelo iluminado Após embasar os estudos em genética, a Drosophila melanogaster mostra que pode ensinar muito sobre a transmissão de parasitas e o desenvolvimento de células-tronco. Todas as células desta mosca têm uma proteína fluorescente verde, que facilita a identificação de tecidos transplantados.

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nos, o coração ou o cérebro, como ou- tros parasitas? Porque nos ovários - ou melhor, em um de seus compartimen- tos, o germário - é que estão as células- tronco somáticas, que originam a casca do ovo e outras estruturas que vão pro- teger o embrião, e as células-tronco ger- minativas, que originam as células se- xuais ou gametas. As células-tronco, ao se dividirem, originam diferentes tipos de células, de acordo com o tecido em que se formam.

as a bactéria não as in- fecta diretamente. An- tes - e essa foi a desco- berta mais notável -, a Wolbachia se acumula em um microambien- te do germário chama- do nicho, que fornece proteínas e estímulos essenciais à manuten- ção e à multiplicação das células-tronco. Co- mo Frydman demons-

trou produzindo e analisando imagens como as que ilustram esta reportagem, a Wolbachia também usufrui desse espa- ço, como se tivesse chegado à casa ma- terna depois de uma longa viagem e pudesse finalmente estabelecer-se, ali- mentar-se e multiplicar-se. Só então sai e infecta as células somáticas e as ger- minativas. "Dezoito dias depois da in- fecção inicial", conta ele, "todas as célu- las germinativas estão infectadas com Wolbachia". A partir do nicho, a bactéria pode se infiltrar nas células que formam o ovo e propagar-se nas gerações se- guintes.

Frydman demonstrou que a chama- da transferência ou infecção vertical - da mãe para os filhos - foi bem-sucedi- da quando coletou os ovos das moscas em que havia injetado bactérias e verifi- cou que as gerações seguintes também estavam infectadas. Era uma prova de que a Drosophila - um inseto de 2 a 3 milímetros ao qual a maioria das pes- soas não costuma dar nenhuma aten- ção, mas é considerado um dos melho- res modelos de estudo para a genética por multiplicar-se rapidamente e apre- sentar cromossomos que podem ser manipulados com relativa facilidade - também pode ensinar muito sobre a transmissão de parasitas. Publicado na na Nature de 25 de maio, esse trabalho é

a primeira demonstração do mecanis- mo de transmissão dessa bactéria de um organismo para outro e o primeiro rela- to de uma bactéria infectando especifi- camente o nicho da célula-tronco.

Casa materna - Mas por que a Wolba- chia conquista primeiramente o nicho? "É um artifício extremamente vantajoso, que explica como essa bactéria se tor- nou tão onipresente", diz o biólogo de 40 anos, que atualmente trabalha como pesquisador associado na Universidade de Princeton, mas deseja um dia retor- nar ao Brasil. "O nicho é uma estrutura permanente do ovário dos insetos, per- mitindo que a população de bactérias que o ocupam se renove, amplifique e espalhe. Curiosamente, é a mesma es- tratégia de que as células-tronco se va- lem ao formarem os tecidos." Spradling,

seu ex-orientador de doutorado, insistia há pelo menos seis anos na importância do nicho, um conceito emprestado da ecologia para designar uma região que, embora de localização e constituição ainda hoje imprecisas, definiria as ca- racterísticas fundamentais das células- tronco. O nicho também controlaria a taxa de divisão e o processo de diferen- ciação em outros tipos de células. A identidade que as células-tronco pudes- sem assumir dependeria, portanto, do ambiente em que vivessem.

No início essas idéias atraíram ape- nas olhares desconfiados. No entanto, uma série de pesquisas feitas nos últi- mos anos demonstrou que diversos ti- pos de células-tronco, de insetos a hu- manos, realmente dependem do nicho em que vivem. Uma reportagem publi- cada no ano passado na Nature mos-

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trou como as idéias de Spradling e de outros pioneiros agora são aceitas - o nicho tornou-se objeto de intensa pes- quisa. Hoje se sabe que células já dife- renciadas podem regredir ao estágio de células-tronco se recolocadas no nicho, como se fossem adultos que voltassem a se comportar como crianças ao regres- sarem à casa materna.

"A Wolbachia deve encontrar algo especial no nicho, que ainda não sabe- mos o que é", diz Frydman. Por essa ra- zão ele acredita que essa bactéria poderia se tornar uma ferramenta para estudar o nicho e entender melhor o desenvolvi- mento e as potenciais aplicações médi- cas das células-tronco. Não seria a pri- meira vez que os biólogos se aliam com parasitas: muito do conhecimento so- bre o esqueleto celular resultou do estu- do da Listeria, outra bactéria que vive

no interior das célu- las. Desta vez, porém, não seria nada trivial, já que cada órgão - fí- gado, ossos ou cérebro - deve abrigar nichos específicos e populações distintas de células-tronco. "Em muitos órgãos, por falta de marcadores específicos, é impossível diferenciar o nicho e as célu- las-tronco das outras células", diz.

Mesmo assim, o conhecimento so- bre as estratégias de sobrevivência dessa bactéria pode ajudar a combater doen- ças tropicais transmitidas por insetos ou por vermes. Uma equipe da Universi- dade de Queensland, na Austrália, rece- berá US$ 10 milhões da Fundação Bill e Melinda Gates para deter a propaga- ção do vírus da dengue na África inter- vindo nas populações de Wolbachia que se instalam nos mosquitos transmisso-

res. A pesquisa com Wolbachia também oferece novas perspectivas

de tratamento para doenças como a ele- fantíase, enfermidade que atinge 120 milhões de pessoas em 80 países, ca- racterizada pelo entupimento dos va- sos linfáticos e pelo inchaço descomu- nal das pernas ou dos órgãos genitais. Como se descobriu recentemente, as cé- lulas germinativas dos vermes que a provocam estão repletas de Wolbachia. Portanto, os antibióticos, em associação com os vermífugos, podem ser bastante úteis. Os primeiros testes mostraram que os vermes se tornam estéreis e tam- bém morrem quando as bactérias são destruídas pelos antibióticos. •

CARLOS FIORAVANTI

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O CIÊNCIA

VIROLOGIA

Homens na berlinda Mais atenção à saúde sexual masculina pode ajudar a conter disseminação de vírus ligado ao câncer de útero

FRANCISCO BICUDO

ILUSTRAçõES HéLIO DE ALMEIDA

D

Page 46: O lado médico da Cannabis

O Instituto Nacional do Câncer (Inca) estima que 19.260 brasileiras serão afetadas em 2006 pelo câncer de colo de útero, o mais comum entre as mu- lheres depois do câncer de mama. No mundo todo a doença, mais freqüente entre os 35 e os 45 anos, atinge cerca de 470 mil mulheres por ano - e mata metade delas. "No Brasil provoca mais mortes na população feminina do que a Aids", alerta a bióloga Luisa Lina Vil- la, do Instituto Ludwig de Pesquisas so-

bre o Câncer. A melhor forma de combater o problema é incentivar a realização de exames ginecológicos pre- ventivos, já que esse tumor é provocado por alguns ti- pos do papilomavírus humano, o HPV. Transmitidos quase sempre por via sexual, esses vírus se instalam na vagina e nos tecidos da entrada do útero, onde desen- cadeiam lesões. Ainda este ano a possibilidade de con- trole do câncer de colo de útero deve se ampliar com a chegada de uma vacina preventiva ao mercado in- ternacional. É um avanço significativo que re- força as estratégias de combate ao vírus fo- cadas nas mulheres.

Mas as vacinas não serão suficien- tes. Para o controle mais eficiente da disseminação do HPV é preciso le- var em consideração um ator que apenas recente- mente passa

a ser percebido com a devida atenção: o homem, a

um só tempo vítima e responsável pela transmissão do HPV. "Se não incluirmos os par-

ceiros nesse processo, é possível que a mesma mulher, depois de ter eliminado o vírus, volte a se infectar", avi- sa Luisa. Ela participou de um estudo coordenado pela Universidade de Caxias do Sul, publicado em fe- vereiro no Brazilian Journal of Medicai and Biological Research, que analisou a relação entre o HPV e a po- pulação masculina.

Os resultados mostram que, dos 99 homens avalia- dos, todos parceiros de mulheres com câncer de colo de útero, 54 apresentavam material genético do vírus - destes, apenas 28% haviam desenvolvido lesões evi- dentes, como verrugas no pênis. Ainda não é pos- sível saber o caminho original da contaminação, se do homem para a mulher ou o oposto, mas o traba- lho indica uma situação perigosa, já que eles não têm o hábito de fazer exames para detectar a infecção. Em

geral o médico só é procurado depois que surgem as verrugas, chamadas cristas de galo, encontradas em 3% a 5% dos homens.

O estudo confirma ainda que o sexo masculino, embora em menor escala, pode sofrer as conseqüên- cias da infecção pelo vírus - às vezes bem graves. No limite, é possível que lesões leves se transformem em câncer de pênis. É verdade que esse tipo de tumor atinge apenas dois de cada 100 mil homens anual- mente. "Mas é um fantasma que precisa ser conheci- do com mais detalhes", reconhece Luisa, responsável pela coordenação no Brasil dos estudos que resultaram na primeira vacina de prevenção contra o HPV a che- gar ao mercado.

Chamada de quadrivalente, essa vacina foi apro- vada no início de junho pela Food and Drug Admi- nistration (FDA), agência norte-americana que con- trola a liberação de medicamentos. Ela protege contra quatro tipos de HPV -o 16eo 18, responsáveis por pelo menos 70% dos casos de câncer de colo de úte- ro, além do 6 e do 11, relacionados a 90% das verru-

gas genitais nos homens e nas mulheres. "São conhecidos mais de 100 tipos de

HPV, capazes de provocar proble- mas simples, como as verrugas

genitais, e outros gravíssimos, como os cânceres invasivos", explica Luisa. Até o final des- te ano, uma segunda vacina preventiva deve chegar ao mercado europeu - a biva-

lente, que leva esse nome por atuar exclusivamente contra os

tipos 16 e 18 do vírus. Garantidos para as mulheres, os

benefícios das duas vacinas para a popu- lação masculina ainda precisam ser confirma-

dos. Enquanto os resultados não emergem, a saída é buscar estratégias de combate ao HPV que incluam esse grupo, uma tarefa nada fácil. Primeiro, seria pre- ciso superar um tabu cultural: admitir que o órgão se- xual masculino, símbolo de virilidade, não é invulne- rável. "Os homens ficam sempre repetindo 'não é comigo, não tenho nada, para que fazer exames?'", diz Luisa. A tarefa seguinte: encontrar alternativas ao exa- me de peniscopia, que usa uma lente de aumento para detectar sinais deixados pelo vírus em quem já foi in- fectado. "Dependendo da região do pênis de onde é retirado o material para análise, o resultado dá nega- tivo. Mas o HPV pode estar em outro ponto do órgão genital", explica Cecília Maria Roteli-Martins, médica dos hospitais Nove de Julho e Leonor Mendes de Bar- ras, ambos em São Paulo, e uma das participantes dos estudos feitos no Brasil sobre a vacina bivalen- te. Outro problema é que a peniscopia pode indicar contaminação por HPV quando, de fato, ela não

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ocorreu - resultado conhecido como falso-positivo, que pode levar à realização desnecessária de exames como a biópsia, em que se retira uma pequena amos- tra de tecido do pênis.

Na opinião de Cecília, o fundamental é educar os homens para usarem preservativos, além de ampliar estudos sobre a população masculina. "É uma tendên- cia que começa a se manifestar", comemora Cecília. Atenta a essa necessidade, Luisa iniciou, em parceria com equipes dos Estados Unidos e do México, um tra- balho que envolve 3 mil homens com idade entre 18 e 45 anos para avaliar os impactos do HPV sobre a po- pulação masculina. Os primeiros resultados deverão ser conhecidos até o final do ano.

Se no caso dos homens a trajetória está ape- nas começando, a caminhada em relação ao segmento feminino chega a um momento es- pecial. Os testes clínicos mostram que a vacina quadrivalente protege tanto contra o desenvol- vimento de verrugas como o do câncer de colo de útero, sem efeitos colaterais importantes. A proteção pode se estender por um período de cinco anos. Os estudos envolveram cerca de 18 mil mulheres, com idade entre 16 e 25 anos, em 33 países - dentre eles Brasil, Estados Unidos, Alemanha e Canadá. Os resultados foram divulgados em abril, em Paris, durante o congresso da European Research Organization on Genital Infection and Neo- plasia (Eurogin). No Brasil, a expectativa é de que o produto, produzido pelo laboratório norte-americano MerckSharp & Dhome, seja liberado até dezembro pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Cinturão anti-HPV - Também chamada de partícu- la semelhante a vírus (VLP, na sigla em inglês), a va- cina estimula e engana o organismo humano. A estra- tégia é simples: insere-se em um vetor o gene LI, responsável pela produção da principal proteína da cápsula do HPV. Esse vetor, em geral um vírus, in- fecta a levedura de cerveja, Saccharomyces cerevisae, e se apropria dos sistemas de multiplicação do ma- terial genético. Graças à engenharia genética é possí- vel extrair da levedura cópias do gene LI sem o ma- terial genético do vetor viral, ou seja, um vírus vazio e inofensivo. Eis a vacina, aplicada nas mulheres em três doses ao longo de seis meses. "Como ela imita o HPV, o corpo entende que é hora de combater o inva- sor", explica Luisa. Mulheres que recebem a vacina chegam a produzir 50 vezes mais anticorpos que as não-vacinadas. Quando o HPV penetra no corpo, em geral próximo à entrada do útero, aumenta a concen- tração de anticorpos nessa região, formando um cin- turão que evita a instalação do vírus e as infecções.

A vacina bivalente segue a mesma lógica de atua- ção. Mas sua produção usa um vetor diferente: um baculovírus, vírus que infecta insetos. Nesse caso, os estudos, financiados pelo laboratório GlaxoSmith- Kline, sediado na Bélgica, envolveram cerca de 18 mil mulheres, em mais de 25 países. Eles indicam que a

proteção, a exemplo do verificado com a quadriva- lente, é de 100% e sem efeitos colaterais - melhor ainda, pode se estender por dez anos. O pedido de co- mercialização da vacina bivalente foi feito em mar- ço à European Agency for the Evaluation of Medicinal Products (Emea), órgão similar ao FDA.

Diante de um cenário onde duas vacinas se apre- sentam como garantia de prevenção, Cecília trabalha com a idéia de complementaridade. "Serão duas alter- nativas eficazes e teremos a prerrogativa de fazer op- ções, seguindo as especifícidades de cada população e os tipos de vírus mais encontrados", avalia.

chegada dessas vacinas ao mercado intensifica o debate sobre qual faixa etária deverá ser alvo de campanhas de vacinação. Nos Estados Unidos a vacina foi aprovada para mulheres de 9 a 26 anos. Para as pesquisadoras brasilei- ras, o ideal é que seja atingida a população fe- minina que ainda não iniciou a vida sexual - e não se deixou contaminar pelo HPV. "Acredi- to que esse procedimento deva envolver pré- adolescentes e adolescentes, na faixa dos 10 aos 15 anos", imagina Luisa. O Censo 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE) estima que existam aproximadamente 9 mi- lhões de brasileiras nessa faixa etária.

Mas há um obstáculo: o custo das vacinas, que pode torná-las inacessíveis à maioria das brasileiras - para se ter uma idéia, as três doses da vacina quadriva- lente devem sair nos Estados Unidos por US$ 360. "A vacina é uma alternativa de prevenção promissora, que pode fracassar por causa dos custos elevados", ad- mite Luisa. "Meu desafio é incentivar negociações en- tre governo e iniciativa privada com o objetivo de tornar viável a incorporação das vacinas às políticas públicas de combate ao HPV", afirma a bióloga que há 25 anos investiga formas de detectar e combater o vírus. Na opi- nião de Luisa, o governo teria de tomar uma decisão política e transformar o combate ao câncer de colo de útero em prioridade, a exemplo do que aconteceu nos anos 1990 com o tratamento da Aids. "Estamos falan- do de investimentos em saúde pública", reforça.

Mesmo assim se questiona se esse investimento não seria elevado em relação à população potencialmente beneficiada, já que a vacina teria efeitos apenas para as mulheres ainda não infectadas por HPV. "É importan- te, mas teria ação específica e não cobriria toda a popu- lação", diz Marcos André Félix da Silva, da Divisão de Atenção Oncológica do Inca. Luisa insiste: "Continua- mos gastando com tratamento ou canalizamos esses recursos para prevenção?". Afinal, mesmo para as mu- lheres que já iniciaram a vida sexual, a vacina quadriva- lente pode trazer benefícios, segundo Luisa. Se a mulher tiver apenas um dos tipos do vírus - o 6, por exemplo - e receber a vacina, ficará protegida contra os outros três (11,16 e 18). Ainda que ela já tenha sido infectada pelos quatro tipos, há indícios de que terá 30% menos chance de desenvolver lesões precursoras do câncer.

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"É uma vacina universal", define a pesquisadora do Ludwig. E possivelmente também funcione para os homens. A expectativa é de que testes em anda- mento confirmem até 2007 a eficácia da vacina para proteger também os homens da infecção por HPV. Mas o xeque-mate virá - se vier - com uma vacina curativa, capaz de destruir tumores já desenvolvidos. Luisa trabalha no desenvolvimento dessa vacina em parceria com pesquisadores da Universidade do Colo- rado, Estados Unidos, com financiamento da Fundação Bill e Melinda Gates. A idéia é desativar as proteínas E6 e E7 do vírus, com maior potencial cancerígeno, e provocar uma reação intensa do sistema de defesa que elimine as células cancerosas. Ainda em fase ini- cial, os experimentos com animais de laboratório vêm mostrando resultados animadores.

Prevenção e tratamento - Enquanto aguardam a liberação das vacinas preventivas no país, as especia- listas reforçam a necessidade de intensificar o com- bate ao HPV por meio do acompanhamento gine- cologia) preventivo e da realização de exames como o papanicolau, que indica a presença de lesões e pode ser feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Depen- dendo do diagnóstico, por exemplo, suspeita de cân- cer, a mulher é encaminhada para um segundo teste chamado colposcopia para confirmar o local e a ex- tensão da lesão antes de definir o tratamento - nos ca- sos mais graves, uma cirurgia para extração do útero. Em 2005, o Ministério da Saúde realizou 11,5 milhões de exames de papanicolau e 1 milhão de colposco- pias. "São procedimentos eficientes para a detecção precoce de verrugas e tumores", afirma Félix da Silva. "Mas a cobertura é muito baixa. Calcula-se que ape- nas 15% das brasileiras façam a prevenção regular- mente", diz Luisa.

A aversão das brasileiras àquilo que deveria ser rotina é explicada, em parte, pela desinformação e pelo desconforto causado pelo exame da região geni- tal. Também há casos de pacientes que procuram os postos de saúde, fazem a coleta de material para análi- se e nunca retornam para buscar os resultados. "Mu- lheres que vivem nas cidades são contempladas, o que não acontece no meio rural", completa Cecília. Estudo do Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo divulga- do em maio contesta a eficácia desse procedimento padrão - papanicolau, seguido de colposcopia - em determinadas situações. Em um primeiro momento, 90% das 60 jovens grávidas com idade entre 12 e 18 anos não tinham o HPV. Mas a realização de um exa- me mais sensível, conhecido como a captura híbrida, revelou que 51% delas apresentavam o DNA do vírus. "Por causa dos custos", observa o médico Waldemir Rezende, da Divisão de Obstetrícia do Instituto Cen- tral do HC e orientador da pesquisa, "a captura não pode ser incorporada à rede pública como rotina". Na opinião de Luisa, esse teste não deveria ser usado de modo indiscriminado, pois detecta muitas in- fecções não associadas ao câncer de útero. •

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O CIÊNCIA

NUTRIÇÃO

Dieta na ponta dos dedos

Análise de unhas mostra como a alimentação pode variar

MARIA GUIMARãES

uando você corta as unhas, nem imagina que está jogando fora um registro do que comeu há uns seis meses. E se tem cabelos compridos... cada fio conta os últimos anos da sua vida. Essa história pode ser desven- dada com ajuda dos isótopos está- veis. É o que fazem pesquisadores como Gabriela Bielefeld Nardoto e Luiz Antônio Martinelli, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da Universidade de São Pau- lo (USP) em Piracicaba, que utilizam

essa técnica para descrever aspectos diversos da vida das pessoas e outros seres vivos.

Os pesquisadores estavam curiosos em investigar como a "cultura de supermercado" alterou os hábitos alimentares de populações urbanas. Para isso, reco- lheram pedacinhos de unhas pelo mundo afora: Esta- dos Unidos, Europa, Amazônia e Região Sudeste do Brasil. Os resultados estão em artigo que será publica- do no American Journal ofPhysical Anthropology em setembro, mas já está disponível na edição eletrônica do periódico.

Sua expectativa era encontrar uma dieta homogê- nea entre áreas distantes, como resultado da globaliza- ção alimentar. Mas não é isso que se vê. As análises fei- tas pelo grupo de Piracicaba mostram que a partir da informação contida nos fragmentos de unhas é pos- sível distinguir o que a pessoa andou comendo e onde: no Sudeste brasileiro, em pequenas comunidades amazônicas, nos Estados Unidos ou na Europa. Além

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disso, Gabriela se surpreendeu em en- contrar diferenças marcantes dentro da região amazônica: "A população de San- tarém já tem uma dieta completamente modificada em relação à região". Os da- dos mostram que, com freqüência, os alimentos vendidos em Santarém são inclusive produzidos no Sudeste.

segredo contido nas unhas está nos isóto- pos estáveis, elemen- tos químicos iguais em número de prótons, mas com quantidades diferentes de nêutrons. Isso faz com que o mes- mo elemento - como oxigênio, hidrogênio, carbono ou nitrogênio - possa ser mais leve

ou mais pesado, conforme o número de nêutrons em seus átomos. Os isótopos estáveis, ao contrário dos radioativos, mantêm a mesma constituição ao lon- go do tempo. Para o nitrogênio, por exemplo, o isótopo mais comum é o 14N, que se lê "nitrogênio-14". Mas na natureza existe também sua forma mais pesada, o 15N.

"Diferenças no sinal isotópico do carbono e do nitrogênio presente nas unhas de pessoas vivendo em diferen- tes regiões persistem apesar da cultura de supermercado", explica Gabriela. A pesquisadora acrescenta que grande parte da diferença em isótopos de ni- trogênio observada entre partes mais e menos desenvolvidas da América se deve ao uso de fertilizante, que é seis ve- zes maior nos Estados Unidos em rela- ção ao Brasil.

"Você é o que você come, mais três partes por mil" é o lema dos especia- listas em ecologia isotópica. Ou seja, se um animal herbívoro tem uma propor- ção de 7%o (partes por mil) de 15N em relação a 14N, seu predador terá 10%o. As proporções entre isótopos mais e menos comuns, para diversos elemen- tos químicos, formam a "assinatura iso- tópica" de um indivíduo num dado momento.

Variação regional - "O nitrogênio varia conforme o nível trófico e o uso de fer- tilizantes; já o carbono reflete o tipo de planta consumida, C3 ou C4", explica a pesquisadora. Plantas C4 são as da fa-

mília das gramíneas, como milho e cana-de-açúcar; as demais são chama- das C3, de acordo com o tipo de fotos- síntese que realizam. A população do Sudeste brasileiro tem mais 13C (carbo- no-13) em suas unhas devido ao maior consumo de plantas C4. Segundo a pes- quisadora, esse resultado reflete a ali- mentação do gado, que no Brasil tem mais acesso a pasto. A pecuária em con- finamento, disseminada nos Estados Unidos, produz carne com uma pro- porção menor de 13C. Em ambos os paí- ses, vegetarianos apresentam valores mais baixos para os dois elementos, em relação aos onívoros da mesma região. Além disso, outra surpresa foi verificar que os brasileiros não comem mais car- ne do que os norte-americanos.

As diferenças em relação à dieta eu- ropéia são também marcantes. "Eles apresentam uma assinatura de carbo- no-13 ainda mais baixa do que os nor- te-americanos", diz Gabriela. Segundo ela, isso ocorre porque o consumo dire- to de milho não faz parte da cultura eu-

ropéia, e o açúcar é feito de beterraba em vez de cana.

Amazônia - Como parte de outro pro- jeto de pesquisa, Gabriela fez trabalho de campo na região de Santarém, no Pará, onde a convivência lhe deu a pos- sibilidade de recolher fragmentos de unhas de habitantes desta cidade e de pequenas comunidades a cerca de 80 quilômetros dali. Para conseguir que a população cedesse amostras, a pesquisa- dora teve antes que conquistar sua con- fiança. Em outras áreas amazônicas ela não teve a mesma recepção. "As pessoas achavam que era bruxaria, ou que eu iria extrair DNA e encontrar seus filhos espalhados pelo mundo", conta.

A alteração na dieta dos santarenos é marcante. Apesar de viverem perto da confluência dos rios Amazonas e Tapa- jós, eles consomem pouco peixe. Sua proteína tem origem sobretudo em frango, mais barato que carne bovina. As proporções de isótopos em suas unhas são iguais às de habitantes do

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Redesenhando os hábitos alimentares a partir dos teores de isótopos das unhas: moradores de Santarém, no Pará, comem hoje menos peixe e mais frango, como no Sudeste

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Sudeste brasileiro, o que mostra que a cultura de supermercado teve impacto importante em padronizar sua dieta com outras áreas urbanas do país.

Já fora da cidade a situação é dife- rente. Gabriela colheu amostras de três comunidades: São Jorge, na floresta; Ja- maraquá, perto do rio Tapajós; e Socor- ro, às margens do Lago Grande. Nesses vilarejos, a alimentação dos habitantes depende de suas plantações - milho, mandioca e arroz - e de caça ou pesca. Periodicamente, um representante vai à cidade buscar necessidades básicas, como feijão e açúcar. Os isótopos indi- cam que somente a população ribeiri- nha tem o hábito de comer peixe. Os habitantes de Socorro também pescam, além de caçar. Já a comunidade de São Jorge, a alguns quilômetros da água, não inclui peixe em sua dieta.

Outros usos - Isótopos de carbono e nitrogênio são utilizados para inferir die- tas antigas, tanto animais como huma- nas. É possível, por exemplo, conferir o

conteúdo isotópico de ossos de múmias ou fósseis, e daí ter uma idéia do que co- miam. Gabriela conta que são poucos os estudos feitos em humanos contem- porâneos. No entanto, eles são essen- ciais como referência para interpretar dados históricos. Os pesquisadores de Piracicaba usaram questionários para avaliar a dieta das pessoas que cederam suas amostras de unha. Por comparação dos dados, viram que a análise de isóto- pos estáveis é confiável. Múmias não respondem a questionários, mas o tra- balho de Gabriela mostra que é possível inferir sua dieta a partir de análise dos isótopos estáveis.

A aplicação mais disseminada da análise de isótopos estáveis se dá em vários ramos da ecologia. Suas propor- ções em vários tecidos - penas, sangue, músculo - de aves migratórias permi- tem inferir a rota percorrida pelos ani- mais e os alimentos consumidos em cada local. Os isótopos integrados nas penas dizem respeito aos nutrientes disponí- veis quando elas foram produzidas. Já o

sangue traz informações imediatas. As- sim, os pesquisadores têm acesso a his- tórias de espécies que não têm outra forma de contá-las.

Espécies pouco eloqüentes são tam- bém as plantas. Rafael Oliveira, outro integrante do Cena, quer saber como as plantas da Mata Atlântica bebem água - pelas raízes ou pelas folhas. Em regiões de altitude há muita água disponível na forma de neblina, que de acordo com pesquisa recente pode ser absorvida pe- las folhas. É possível distinguir essa água da que vem do solo, pois as gotículas que formam a neblina têm uma proporção maior de isótopos leves de oxigênio. Nes- te caso, proporções isotópicas podem ajudar a revelar uma forma pouco co- nhecida de absorção de água por plantas.

À medida que a tecnologia avança, mais e mais informações são extraídas dos isótopos estáveis presentes nos mais diversos recantos da natureza. Agora você sabe que da próxima vez que cor- tar as unhas estará jogando fora parte do registro de sua história. •

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T CIÊNCIA

ECOLOGIA

Comunidades invisíveis A superfície de uma única folha pode abrigar mais de 600 espécies de bactérias

s folhagens das árvores formam um reservatório imen- so, desconhecido e extremamente diversificado de mi- croorganismos. Uma equipe da Universidade de São Paulo (USP) chegou a essa conclusão após verificar que na superfície de uma simples folha de uma árvore da Mata Atlântica podem viver centenas de espécies de bactérias organizadas em comunidades. Uma projeção preliminar sugere que uma árvore toda pode abrigar um número de espécies de bactérias milhões de vezes maior que o organismo humano: no intestino vivem milhões de bactérias que representam de 300 a mil espé- cies. Uma estimativa feita a partir desse estudo sugere

que possa ser algo entre 2 milhões e 13 milhões o total de novas espécies de bactérias vivendo na superfície das folhas das cerca de 20 mil espécies de plantas da Mata Atlântica, sem considerar as raízes, caules e outras partes do vegetal. Conhecer com pre- cisão essa diversidade seria um avanço e tanto para os estudos sobre esse grupo de organismos, por si o maior e mais diversifi- cado de todos, já que 1 tonelada de solo pode conter 4 milhões de espécies, enquanto nos oceanos vivem outros 2 milhões.

Mas esse trabalho, publicado em 30 de junho na Science, não só delineia a dimensão de uma categoria de organismos que não era levada em conta nos levantamentos sobre a riqueza bioló- gica de um ambiente - normalmente se consideram apenas ani- mais e vegetais. O estudo coordenado por Márcio Lambais, com a participação de Juliano Cury, Ricardo Büll e Ricardo Rodri- gues, todos da Escola Superior de Agronomia Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, além de David Crowley, da Universidade da Ca- lifórnia, Estados Unidos, chama a atenção também para a pers- pectiva de interação entre as plantas e as comunidades de bacté- rias - comunidade é um conjunto de populações de organismos quaisquer que interagem entre si e com o ambiente. "Vários atributos da planta podem na verdade ser uma conseqüência da interação com os microorganismos", diz Rodrigues. Em termos mais simples: um composto químico que ajuda a planta a se de- fender do ataque de pragas pode ser o resultado dessa convivên- cia com os milhões de hóspedes invisíveis a olho nu.

Já se sabia que as folhas abrigavam uma variedade elevada de microorganismos, mas os pesquisadores não imaginavam que

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encontrariam valores tão surpreenden- tes quando começaram a estudar a di- versidade microbiana da superfície das folhas de nove espécies de árvores da Estação Ecológica de Caetetus, em Gá- lia, interior paulista. Feito o panorama da diversidade, por meio de análises moleculares, aprofundaram os resulta- dos comparando três espécies de plan- tas: a catuaba ou catiguá (Trichilia cati- gua), de cuja casca se extrai uma tintura usada como afrodisíaco e contra reuma- tismo, o catiguá-vermelho {Trichilia clausenii) e a gabiroba (Campomanesia xanthocarpa).

Foi quando constataram que em cada folha pode viver um mínimo de 95 e um máximo de 671 espécies de bac- térias. Outro dado que impressiona: qua- se não havia espécies em comum entre as plantas. "Aparentemente existem co- munidades de bactérias típicas para cada espécie de árvore", comenta Lam- bais. A partir desse levantamento, desen- volvido no projeto Parcelas Permanentes, vinculado ao programa Biota-FAPESP, abriu-se uma nova e imensa frente de estudos. Os pesquisadores agora se lan- çam perguntas sobre como plantas e bactérias podem interagir, que tipos de benefícios mútuos poderiam surgir dessa interação e se uma mesma espécie de planta, em ambientes ou localidades diferentes, pode abrigar as mesmas co- munidades de bactérias. As respostas devem tomar mais alguns bons anos de trabalho. •

CARLOS FIORAVANTI

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O CIÊNCIA

ZOOLOGIA

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A vida selvagem na

metrópole s milhares de ruas da cidade de São Paulo guardam muito mais vida selvagem do que as pombas brancas, negras ou cinzentas que descansam nos fios dos postes e dis- putam migalhas de

^^^^^^™ pão nas calçadas, atra- palhando os pedestres apressados. As pombas são apenas uma das 433 espé- cies de animais silvestres que se espa- lham pelo pouco de verde da metrópole, segundo o mais recente levantamento da fauna do município, divulgado no início de junho pela Secretaria Munici- pal do Verde e Meio Ambiente (SVMA).

Ao longo de 12 anos a equipe coor- denada pela bióloga Anelisa de Almei- da Magalhães, da divisão de fauna da SVMA, encontrou 258 espécies de aves, 58 de mamíferos, 37 de répteis, 2 de crus- táceos, 2 de aranhas e 40 de anfíbios nas 48 áreas verdes que resistem entre o concreto e o asfalto da cidade. É prová- vel que a maioria dos paulistanos não saiba diferenciar o pombo doméstico de outro tipo de pombo, a juriti, nem te- nha notado nos jardins dos prédios os sabiás-laranjeira, de peito avermelhado e canto pausado e triste.

Mas quem se interessa em apre- ciar a fauna silvestre paulistana não precisa sair da cidade. No Parque do Ibirapuera, o mais conhecido e um dos maiores da capital, há 142 espécies de aves, das mais facilmente identificáveis como a garça-branca- grande (Ardea alba) e o barulhento que- ro-quero (Vanellus chilensis) às mais ra- ras como o pica-pau-de-cabeça-amarela (Celeus flavescens) ou o cardeal [Paroa- ria coronata), com seu garboso topete vermelho. Entre as 134 espécies que ha- bitam o Parque do Carmo, na Zona Les- te da capital, vive a maria-faceira (Syrig- ma sibilatrix), de face azulada e dorso

acinzentado, o marreco irerê {Dendro- cygna viduata) e a coruja-orelhuda (Rhi- noptynx clamator), além de outras 114 espécies de aves.

Com um pouco de sorte, o visitante pode até deparar com o caxinguelê (Sciu- rus ingrami), a versão nacional dos es- quilos do hemisfério Norte, ou ainda um veado-catingueiro {Mazama goua- zoubira), hoje ameaçado de extinção. No extremo sul da metrópole, onde os prédios e as casas ainda não se impuse- ram completamente à vegetação natural, a equipe de Anelisa encontrou rastros de um mamífero bem maior: a temida suçuarana ou onça-parda {Puma conco-

lor capricornensis), também sob risco de desaparecer da natureza.

Não é por acaso que as aves são o grupo mais abundante, encontrado mesmo onde a concentração de prédios é elevada e o verde não passa de suaves pinceladas no cenário. Uma compara- ção entre as aves de dez parques da capi- tal aponta uma explicação. As espécies predominantes nessas áreas são as me- nos exigentes com relação ao tipo de ali- mento disponível: elas se alimentam tanto de frutos e sementes como de in- setos. "Nesses dez parques, 60% das es- pécies têm uma dieta bastante variada, fato que pode favorecer a adaptação de-

Ao centro, a coruja-orelhuda, raridade das matas paulistanas

Sabiá-laranjeira, voando pelas ruas da cidade, e o esquilo caxinguelê, escondido nas áreas verdes mais distantes

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Cidade de São Paulo abriga 433 espécies de animais silvestres, de sabiás a bugios

Socó-grande, comum

nos lagos dos pargues

Ias ao ambiente modificado pela pre- sença humana", diz a bióloga Marina Somenzari, autora do estudo.

Mais do que guiar o olhar dos pau- listanos entre as alamedas dos bosques da capital o levantamento da fauna sil- vestre do município deve auxiliar o tra- balho dos biólogos e veterinários da SVMA. Afinal, é a secretaria que admi- nistra o principal pronto-socorro da fauna silvestre de São Paulo: o Viveiro Manequinho Lopes, protegido em uma área de acesso restrito do Parque do Ibi- rapuera, onde a bugio Binha e outros 23 companheiros de pelagem castanho- avermelhada passam uma temporada

enquanto não chega o momento de re- tornar para a natureza. "Esse inventário é fundamental para orientar a reintro- dução desses animais em seu ambiente natural", afirma Vilma Geraldi, direto- ra da divisão de fauna da secretaria, que administra o viveiro cujo nome home- nageia o funcionário público Manuel Lopes de Oliveira, que na década de 1920 plantou centenas de eucaliptos no Ibirapuera para drenar o terreno panta- noso e permitir a criação do parque.

Ali todos os meses chegam cerca de 170 animais - bugios, sagüis, canários, tartarugas, entre outros - trazidos pela população, por bombeiros ou resgatados por agentes da polícia florestal em ope- rações de combate ao tráfico de animais silvestres. Só no estado de São Paulo fo- ram apreendidos no ano passado 30 mil animais silvestres, uma população dez vezes maior que a do zoológico paulista- no, o maior da América Latina.

"Para devolver esses animais ao am- biente a que pertencem era necessário primeiro conhecer como as diferentes es- pécies se distribuem pelas áreas verdes de São Paulo", explica Anelisa, que há 12 anos trabalha na identificação da fauna

silvestre do município, tarefa que não se encerra com a pu-

blicação do inventário. •

RICARDO ZORZETTO

Sagüi-de-tufo-preto, sob risco de extinção,

e lavadeira-mascarada, restrita aos pargues

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O CIÊNCIA

PALEONTOLOGIA

0 SUPERPRNTRNHL SUL-AMERICANO

Há 10 milhões de anos planícies alagáveis ocuparam um terço da América do Sul

RICARDO ZORZETTO

ILUSTRAÇÕES SANDRO CASTELLI

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istas do alto, as copas das árvores se fun- dem e tornam a paisagem da Amazônia um amplo tapete verde que acolhe a maior variedade de plantas e animais do mun- do. Mas as centenas de milhares - talvez milhões — de espécies de insetos, peixes, aves e outros seres que hoje vivem ali são apenas o que restou de uma fauna que já foi muito mais rica e dominou entre 13 milhões e 6 milhões de anos atrás uma área da América do Sul que vai da Vene- zuela, no norte, ao Uruguai e à Argentina,

no sul. Naquele tempo, os continentes já haviam assumi- do a forma e a posição atuais e o cenário sul-americano era bem diferente: rios suntuosos de águas calmas cortavam uma planície de quase mil quilômetros de largura que se alongava por 6 mil quilômetros em direção ao sul, pon- tuada por lagos, pântanos e campos de capim, além de es- parsas florestas. Essa área que corresponde a um terço da América do Sul - ou mesmo a toda a Europa - era um imenso pantanal, possivelmente 20 vezes maior que o mato-grossense, hoje a maior área alagável do planeta.

"Vivia por ali uma variedade espetacular de espécies de animais, provavelmente extintos por causa de alterações no clima e no relevo do continente nos últimos 5 milhões de

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anos", afirma o paleontólogo Ma- rio Alberto Cozzuol, da Pontifí- cia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Nos próximos me- ses sai no Journal of South Ame- rican Earth Sciences um artigo de Cozzuol com uma das mais abrangentes reconstituições do cenário e de parte da fauna sul- americana do final do período geológico Mioceno, entre 13 mi- lhões e 6 milhões de anos atrás. É impressionante a variedade de formas que os animais exibiam em meio àqueles lagos, pântanos e florestas.

Fósseis de jacarés e crocodilos en- contrados no Brasil, na Venezuela, na Colômbia, no Peru e na Argentina dão uma idéia dessa diversidade. Só na re- gião do atual Acre devem ter convivido 17 espécies desses répteis de pele espes- sa coberta de placas duras - hoje exis- tem apenas quatro por ali. Nos rios e la- gos do pantanal sul-americano havia jacarés como Caiman brevirostris, espé- cie extinta de quase 2 metros de com- primento e um crânio largo e achatado de 30 centímetros. Por ali também caça- vam predadores muito maiores, a exemplo do Purusaurus brasiliensis, um jacaré de quase 15 metros de compri- mento que, com mandíbulas de mais de 1 metro repleta de dentes afiados, podia abocanhar de uma só vez uma capivara que distraída bebia água.

ma família em especial chama a atenção por sua aparência e comportamento: a Nettosuchi- dae, com crocodilos de crânio achatado, dentes frágeis e foci- nho longo. Eles se diferencia- vam dos demais por se alimen- tar de modo passivo: em vez de perseguir peixes, tartarugas ou mesmo pequenos mamíferos, os crocodilos dessa família - como Mourasuchus amazonen-

sis, descoberto em 1964 pelo paleontólo- go gaúcho Llewellyn Ivor Price - abriam a bocarra de quase 1 metro e enchiam de água um papo semelhante ao de um pe- licano. Em seguida cerravam os dentes e expeliam a água, retendo moluscos, crustáceos e pequenos peixes. "As três espécies conhecidas de Mourasuchus vi- veram exclusivamente na América do Sul, entre 15 milhões e 6 milhões de anos atrás", diz Cozzuol.

Tamanha variedade de predadores, segundo o paleontólogo, só sobrevive- ria em um ambiente com fartura de ali- mento - e comida aparentemente não faltou no pantanal sul-americano. Nas duas últimas décadas paleontólogos tra- balhando no sudoeste da Amazônia brasileira, na Venezuela, no Peru, na

Colômbia e na Argentina identificaram quase 200 gêneros de répteis, aves e ma- míferos que viveram entre 15 milhões e 5 milhões de anos atrás. Como em taxo- nomia, a ciência da classificação dos se- res vivos, gênero é o nível de organização que agrupa espécies com características em comum, os 200 gêneros da fauna do Mioceno sul-americano indicam a exis- tência de uma variedade ainda maior. "Essa diversidade", explica Cozzuol, "su- gere que esse pantanal foi um ambiente estável por muito tempo, capaz de pro- duzir alimento suficiente para manter essa fauna por milhões de anos".

Roedor gigante - A fauna terrestre da re- gião era complexa, com grupos de ani- mais de todos os níveis da cadeia ali- mentar, dos que comem apenas vegetais aos que se alimentam de outros ani- mais, e as mais variadas formas e di- mensões. Entre os mamíferos, havia car- nívoros do gênero Cyonasua, parentes distantes dos quatis de longos dentes afiados, e roedores pequenos como os coelhos ou verdadeiros ratões, cujo exemplo máximo é o Phoberomys pat- tersoni. Parente extinto das pacas e pa- caranas encontradas na Amazônia, o Phoberomys foi o maior roedor do mun-

do: tinha 700 quilos e era duas vezes maior que a anta, o maior

mamífero terrestre sul-americano.

Mourasuchus amazonensis: água filtrada com os dentes

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Nesse período houve uma grande diversificação dos primatas no mundo todo, inclusive o surgimento dos pri- meiros ancestrais dos seres humanos. Na América do Sul, Cozzuol e o antropólo- go norte-americano Richard Kay, da Universidade Duke, identificaram duas novas espécies de primatas: o macaco Solimoea acrensis, de pouco mais de meio metro de altura e semelhante ao macaco-aranha, e o Acrecebus fraileyi, pa- rente distante do macaco-prego.

O que explica a convivência de ani- mais tão diferentes entre si é a heteroge- neidade da paisagem de rios e lagos in- tercalados por campos e florestas. "Só esse cenário variado permitiria o surgi- mento de espécies tão distintas", afirma Cozzuol. "Essa paisagem deve ter per- manecido estável por alguns milhares de anos, tempo suficiente para a diversi- ficação das espécies", explica. Até uns 13 milhões de anos atrás a área sobre a qual se assentou o pantanal sul-americano era uma imensa planície que se esparra- mava por parte da Venezuela, da Ama- zônia brasileira, da Colômbia, do Peru, da Bolívia, do Uruguai e da Argentina, com um sistema hidrográfico bem dis- tinto do atual.

Naquele tempo o rio Amazonas ain- da não havia se formado e terrenos mais elevados a oeste de Manaus, pró- ximo ao curso do rio Purus, formavam uma barreira natural e impediam o es-

Gyrinodon: herbívoro do porte de um rinoceronte

coamento das águas das chuvas e da cordilheira dos Andes para leste. A água embaciada nessa planície corria para o oceano por apenas dois caminhos es- treitos. Pela bacia hidrográfica que ori- ginaria o rio Orenoco, as águas do pan- tanal sul-americano escapavam para o norte e chegavam à baía de Maracaibo, no litoral venezuelano. Ao sul, alcança- vam o oceano Atlântico por meio da rede hidrográfica que originaria o rio da Prata milhões de anos mais tarde.

Montanhas em crescimento - Essa rede de rios e lagos começou a se mo- dificar há 11 milhões de anos, quando a cordilheira dos Andes começou a crescer no leste da Colômbia. Quase ao mesmo tempo o oceano Atlântico, que se estendia do atual rio da Prata ao sul da Bolívia, ocupando o centro-sul do Brasil, recuou. Os sedimentos das cadeias de montanhas colombianas e peruana nutriram a vegetação da planí- cie e ajudaram a alterar o curso dos rios e lagos, que em poucas dezenas de anos se transformavam em pântanos. Os pântanos, por sua vez, pouco a pouco viravam terrenos secos nos quais ger- minavam campos e cresciam florestas. "Essa deposição contínua de sedimen- tos impedia que os rios se encaixassem num canal estável e que se formassem grandes florestas", explica Cozzuol. Ao mesmo tempo essa rede hidrográfica

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em constante mutação manteve a cone- xão entre o norte e o sul do continente.

Aperfeiçoado em cooperação com o geólogo Edgardo Latrubesse, da Univer- sidade Federal de Goiás, esse cenário começou a ser montado há 20 anos, quando Cozzuol estudava na Universi- dade Nacional de La Plata os mamíferos aquáticos que viveram no norte da Ar- gentina entre 9 milhões e 6 milhões de anos atrás. Foi quando esse paleontó- logo argentino, que há dez anos trocou sua terra natal pelo Brasil, encontrou exemplares de botos e golfinhos distin- tos dos que haviam sido achados não muito longe dali, na Patagônia. Já se imaginava que esses animais poderiam ter migrado do norte da América do Sul, não se sabia que essas duas regiões haviam sido conectadas por rios e la- gos. "Faltava conhecer a fauna que havia vivido no norte da América do Sul durante o Mioceno, entre 13 mi- lhões e 6 milhões de anos atrás", diz Cozzuol. A oportunidade de ouro sur- giu com o anúncio de uma vaga para pesquisador na Universidade Federal de Rondônia em 1995.

De lá para cá Cozzuol percorreu o in- terior do Acre durante o período em que os rios baixam. Por um motivo ób- vio: é quando ficam expostas em suas barrancas montanhas de sedimentos que preservam os fósseis do Mioceno sob a floresta. Também visitou sítios pa- leontológicos na Venezuela e no Peru e analisou fósseis guardados nos museus Bernardino Rivadávia e La Plata, na Ar- gentina, e na coleção paleontológica da

Universidade Federal do Acre, reu- nida por Alceu Ranzi, Jean Bo-

quentin-Villanueva e Jonas de Souza Filho. A compa- ração entre os exemplares encontrados nesses países revelou que a fauna que viveu no Acre no Mioce- no, da qual se conhecem uns 40 gêneros, é muito

semelhante à da Argenti- na, da qual há 130 gêneros identificados. "A fauna en- contrada no Acre apenas parece ser mais pobre", diz Cozzuol. "A busca de mais fósseis deve mos- trar que essa fauna é até mais diversa que a ar- gentina."

Page 61: O lado médico da Cannabis

Biblioteca de

Revistas Científicas disponível na internet

www.scielo.org

A Coleção SciELO Brasil ganhou mais dez periódicos científicos brasileiros. Os títulos aprovados são: Summa Phytopathologica, Revista Brasileira de Coloproctologia, Revista Brasileira de Fisioterapia, Revista Brasileira de Terapia Intensiva, Revista Matéria, Estudos Econômicos (São Paulo), Perspectivas em Ciência da Informação, Psicologia Clínica, Revista Brasileira de Educação Médica, Sociedade e Estado. Além desses, outros sete periódicos da área de ciências humanas foram selecionados pelos membros em reuniões anteriores e estão sendo preparados para serem publicados no site SciELO Brasil: Nova Economia, Revista de Administração Pública, Revista Brasileira de Educação Especial, Revista Brasileira de Estudos de População e Revista do Departamento de Psicologia - L/FE.

■ Medicina

Fotografia dermatológica

A tecnologia digital promoveu a populariza- ção do registro fotográfico em diversas áreas médicas. A dermatologia, por ser uma especia- lidade com importante componente visual, vem absorvendo os benefícios dessa ferramenta na prática clínica e na pesquisa. É o que mostra o artigo "Fundamentos da fotografia digital em dermatologia", escrito por Hélio Miot, professor da Faculdade de Medicina de Botucatu da Uni- versidade Estadual Paulista (Unesp), Maurício Paixão, da Faculdade de Medicina da Universi- dade de São Paulo (USP), e Francisco Paschoal, da Faculdade de Medicina do ABC. Além de orientar os profissionais não familiarizados com essa tecnologia, oferecendo noções para o me- lhor uso do equipamento de fotografia digital, o artigo mostra que a fotografia dermatológica, ao contrário da fotografia artística, valoriza ele- mentos de realidade e verossimilhança, ou seja, que permitam o reconhecimento das lesões do- cumentadas com fidelidade. "A tecnologia digital veio para reduzir custos, aumentar a versatilida- de e a produtividade e proporcionar a populari- zação do uso de fotografia nas especialidades médicas", relatam os autores. O estudo mostra também que a popularização da fotografia digi- tal favoreceu o aumento do número de docu- mentações na prática dermatológica. Na seção de fotografia do Departamento de Dermatolo- gia da Unesp, por exemplo, a adoção da tecno- logia digital proporcionou um incremento de mais de 80% no número de fotografias anuais de pacientes. "Há o entendimento de que a ima- gem da lesão do paciente documentada durante a consulta, por representar informação clínica real, compõe parte do seu prontuário médico. Seu registro, uso, modificação ou exposição de- vem ser autorizados pelo paciente ou responsá- vel legal", diz. A fotografia digital tornou-se uma ferramenta importante na quantificação de va- riáveis em pesquisa aplicada.

ANAIS BRASILEIROS DE DERMATOLOGIA - VOL. 81 - N° 2 - Rio DE JANEIRO - MAR./ABRIL 2006

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0365-

05962006000200010&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Biologia

Borboletas do Planalto Central

Os pesquisado- res Eduardo de Oliveira Emery e Carlos Pinheiro, do Instituto de Biologia da Uni- versidade de Bra- sília (UnB), e Keith Brown Tr., do Museu de His- tória Natural da Universidade Estadual de Cam- pinas (Unicamp), apresentam em "As borbole- tas (Lepidoptera, Papilionoidea) do Distrito Federal, Brasil" uma listagem atualizada com 504 espécies e 506 subespécies de borboletas Pa- pilionoidea observadas nas últimas quatro déca- das. "O Distrito Federal vem passando por um intenso processo de urbanização, pela implanta- ção de atividades agrícolas e outras econômicas que levam inexoravelmente à destruição do há- bitat natural", justificam. "A necessidade de uma lista atualizada de espécies é fundamental para a avaliação e o monitoramento da perda em bio- diversidade de borboletas." São apresentados dados da bibliografia, de coletas pessoais e de outras coleções entomológicas. Aspectos relacio- nados à ocorrência de espécies ameaçadas e à conservação da fauna de borboletas no Distrito Federal são também discutidos. O estudo mos- tra ainda que o fato de ocorrer em áreas prote- gidas, por si só, não garante que determinada espécie esteja protegida. Com a urbanização, muitas das unidades de conservação vêm sendo transformadas em "ilhas de vegetação", geogra- ficamente isoladas de outras unidades. Os efei- tos do isolamento sobre as populações locais, como a interrupção do fluxo gênico, pode ser fa- tal para a maioria das espécies. "Entretanto, o grande número de Papilionoidea demonstra cla- ramente a riqueza de espécies desta região dos cerrados brasileiros."

REVISTA BRASILEIRA DE ENTOMOLOGIA - N° 1 - SãO PAULO - JAN./MAR. 2006

VOL. 50 -

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0085

56262006000100013&lng=ptS,nrm=isoStlng=pt

62 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

Page 62: O lado médico da Cannabis

■ Economia

Transferência de renda

Fazer uma estimativa dos aspectos distributivos da Previdência brasileira, tendo como base as contribui- ções efetuadas e os benefícios recebidos pelos indiví- duos. Este é o objetivo do artigo "Uma estimativa dos aspectos distributivos da Previdência Social no Brasil", de Luís Eduardo Afonso, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e Reynaldo Fernandes, da Faculdade de Econo- mia, Administração e Contabilidade (FEA), da Uni- versidade de São Paulo (USP). O trabalho, que tem como base cálculos das Taxas Internas de Retorno (TIRs) proporcionadas pelas contribuições e benefícios previdenciários, computou todos os benefícios e con- tribuições no período 1976-1999. "Nos últimos anos, de forma similar ao que ocorreu em países como Esta- dos Unidos, Inglaterra, Alemanha e Argentina, a Previ- dência Social ganhou relevância na agenda político- econômica do Brasil", garantem os autores. "Tornou-se consensual a visão do equacionamento adequado da questão previdenciária como um dos pilares para a organização das contas públicas." Duas questões fun- damentais sobre as características e as funções da Pre- vidência Social brasileira são tratadas no artigo. A pri- meira é quanto ao valor dos benefícios: serão eles de fato tão reduzidos quanto concebido usualmente? A segunda é quanto ao caráter distributivo: seria a Previ- dência injusta com seus segurados? Para responder a essas questões, duas hipóteses são analisadas. A pri- meira é que o sistema previdenciário brasileiro não paga benefícios tão baixos quanto se costuma apre- goar. E a segunda é que a existência das organizações previdenciárias pode ser vantajosa para alguns grupos, particularmente aqueles com renda mais baixa. De modo oposto, para as faixas de renda mais elevadas, os ganhos parecem ser menores. Os grupos com menor nível de educação apresentam taxas de retorno mais elevadas. Essas taxas também são diferentes conforme as regiões do país. Além disso, como indivíduos de ní- vel educacional mais baixo devem ter rendimentos in- feriores em relação aos demais, há evidências de que os grupos mais pobres estão obtendo uma remuneração mais elevada por suas contribuições previdenciárias. Para todos os níveis educacionais, os retornos obtidos pelos moradores da Região Nordeste são claramente mais elevados que os das demais regiões. As taxas da Região Sudeste são, em geral, as mais baixas e as das Regiões Sul, Norte e Centro-Oeste estão em um nível intermediário. "Se considerarmos que a Região Nor- deste apresenta a menor renda per capita do país, então o sistema previdenciário brasileiro funciona como um mecanismo de transferência de renda das regiões mais ricas para as mais pobres."

REVISTA BRASILEIRA DE ECONOMIA - VOL. 59 - N° 3 - Rio DE JANEIRO - JUL./SET. 2005

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-

71402005000300001S,lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Nutrição

Condutas da alimentação

Conhecer pensa- mentos, sentimentos e comportamentos em relação à dieta de mulheres portadoras de diabetes tipo 2 foi a meta de Denise Pé- res e Laércio Franco, da Faculdade de Me- dicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), e Manoel dos Santos, da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto (USP). "O comportamento alimentar da mulher portadora de diabetes tipo 2 é bastante com- plexo e precisa ser compreendido à luz dos aspectos psicológicos, biológicos, sociais, culturais, psicológicos e econômicos para maior eficácia das intervenções edu- cativas", apontam. Cumprir a dieta adequada é parte fundamental no tratamento do diabetes e vários estu- dos têm apontado um baixo seguimento dos pacientes à dieta recomendada. Os pesquisadores realizaram um estudo descritivo exploratório, de natureza qualitativa, onde foram entrevistadas oito mulheres portadoras de diabetes tipo 2 em uma Unidade Básica de Saúde do município de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Os resultados, descritos no artigo "Comportamento ali- mentar em mulheres portadoras de diabetes tipo 2", evidenciaram dificuldade no seguimento da dieta pres- crita, em função dos diversos significados associados, tais como a perda do prazer de comer e beber, da auto- nomia e da liberdade para se alimentar. "Seguir a dieta adquire caráter extremamente aversivo e cerceador, ten- do representação de que realizá-la traz prejuízos à saú- de", aponta os autores. A freqüente ausência de sinto- mas foi citada como um dos aspectos que dificultam o seguimento da dieta. Outra dificuldade foi tocar, olhar e manipular os alimentos durante o seu preparo e não poder ingeri-los. Os alimentos doces despontaram como algo extremamente desejado. "Transgressão e de- sejo alimentar estão igualmente presentes na vida das pessoas entrevistadas. Seguir o padrão dietético reco- mendado implica tristeza, e o ato de comer, muitas ve- zes, vem acompanhado de medo, culpa e revolta", afir- mam. Os dados revelaram que o ato de comer está diretamente relacionado aos aspectos emocionais. Por conta disso, os pesquisadores acreditam que apenas ofe- recer informações não é estratégia suficiente para a ins- talação de mudanças nos hábitos alimentares. "O enfo- que da abordagem educativa não deve se restringir apenas à transmissão de conhecimentos, é importante englobar também os aspectos subjetivos", recomendam.

REVISTA DE SAüDE PUBLICA - VOL. 40 - N° 2 - SãO PAULO

- ABRIL - 2006

www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-

89102006000200018&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 63

Page 63: O lado médico da Cannabis

TECNOLOGIA

Robô para testar nadadeiras i(D2 O"

■ Dessalinização com nanotubos

Pesquisadores do Laboratório Nacional Lawrence Livermo- re (LNLL), dos Estados Uni- dos, criaram uma membrana feita com nanotubos de car- bono e silício que poderá, en- tre outras coisas, ser empre- gada de forma mais eficiente para fazer a dessalinização da água do mar. A descoberta é importante porque menos de 1% das reservas de água do planeta está disponível para consumo humano. A dessali- nização, acreditam os pes- quisadores, é uma das rotas mais promissoras. Bilhões de nanotubos, tubos ocos forma- dos por folhas com a espes- sura de átomos de carbono, transformam-se nos poros das membranas. De tão finos, eles permitem a passagem si- multânea de apenas seis mo- léculas de água, bloqueando partículas maiores. Atualmen- te, a retirada do sal da água do mar é feita pelo processo de

Na época dos dinossauros, répteis gigantes chamados plesiossauros se deslocavam no mar usando quatro na- dadeiras. O tempo passou, eles foram extintos, e os ani- mais que tomaram o lugar deles, como tartarugas, pin- güins e focas, utilizam apenas dois dos quatro membros como propulsores durante o nado. Para compreender a locomoção de animais vi- vos e extintos, pesquisado- res da Universidade Vassar, nos Estados Unidos, junto com a empresa Nekton Re- search, desenvolveram um robô subaquático chamado Madeleine. As simulações revelaram que a velocidade não aumentou quando as quatro nadadeiras foram acionadas. Aparentemente, os propulsores dianteiros criam uma turbulência que interfere na eficiência dos traseiros. O gasto energéti- co também foi maior quan- do todos os membros fun- cionaram.

osmose reversa, que utiliza membranas menos permeá- veis a altas pressões. Estima- se que o novo método, ainda

Madeleine em testes no fundo de uma piscina

• Plesiossauro usava quatro nadadeiras

sem data para chegar ao mer- cado, possa reduzir os custos de energia no processo de dessalinização em até 75%. •

Moléculas no interior de um nanotubo

■ Laser sem luz e com ultra-som

Criado há pouco mais de 40 anos, o laser, sigla para Light Amplification by Stimulated Emission of Radiation (ou am- plificação de luz por emissão estimulada de radiação), foi responsável por importantes avanços tecnológicos e hoje está integrado ao nosso coti- diano com aplicações que vão dos consultórios dentários aos sistemas de comunicação por fibra óptica. A novidade ago- ra, anunciada por cientistas da Universidade de Illinois e da Universidade de Michigan,

64 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

Page 64: O lado médico da Cannabis

ambas nos Estados Unidos, é a criação do uaser, um apare- lho similar ao laser, mas que, em vez de emitir feixes de luz, produz ondas de ultra-som. O novo equipamento poderá ser utilizado para estudar a dinâ- mica do laser e para detectar alterações delicadas em novos materiais ou em películas e materiais supercondutores. Por enquanto o uaser lembra mais um "laser aleatório", mas, segundo os inventores, nada impede que, no futuro, o apa- relho possa gerar um feixe es- treito e direcional como os la- sers atuais. •

■ Energia solar para 8 mil casas

A maior central de energia so- lar do mundo está sendo construída na cidade de Ser-

pa, em Portugal, localizada a 200 quilômetros da capital Lisboa. Quando ficar pronta no início de 2007, ela terá 11 megawatts de potência, o sufi- ciente para suprir 8 mil casas de energia elétrica. Serão 52 mil módulos fotovoltaicos de captação de energia solar ins- talados num campo de 60 hectares (1 hectare é igual a 10 mil metros quadrados, medi-

da próxima à de um campo de futebol oficial, de 12 mil m2). Produzida numa parce- ria entre as norte-americanas GE Energy e PowerLight e a portuguesa Catavento, a cen- tral vai custar US$ 75 milhões e evitará que 30 mil toneladas anuais de emissões de gases nocivos originários da quei- ma de combustíveis fósseis como carvão e diesel sejam

Carro com cinco combustíveis Os brasileiros já estão acos- tumados com os veículos bicombustíveis que possi- bilitam encher o tanque com gasolina ou álcool (etanol), ou ainda os dois ao mesmo tempo, em dife- rentes proporções. Mas isso talvez possa ser apenas o começo. Em junho, em Pa- ris, na França, a Volvo apre- sentou uma perua, da série V70, que funciona com cinco combustíveis: gasoli- na, etanol, com 85% de eta-

nol e 15% de gasolina, gás metano, oriundo da de- composição do lixo ou do esgoto também chamado de biogás, gás natural vei- cular e um combustível chamado de hythane (de- senvolvido pela empresa norte-americana Hidrogen), composto de 10% de hi- drogênio e 90% de metano. O veículo apresentado como protótipo foi uma das atra- ções da edição 2006 da Mi- chelin Challenge Bibendum

(nome do boneco símbolo dessa fabricante de pneus), uma mostra de veículos em que são apresentadas solu- ções tecnológicas alternati- vas de combustíveis. Outras montadoras, como Ford, Fiat, General Motors, Peuge- ot, Honda, Toyota e Renault, também apresentaram mo- delos híbridos ou não de pro- pulsão elétrica, com baterias recarregáveis, etanol e célu- las a combustível, que funcio- nam com hidrogênio. •

lançados na atmosfera. A tec- nologia utilizada é a Power Track, da PowerLight, em que os painéis solares acompa- nham automaticamente a po- sição do Sol ao longo do dia, tornando o sistema mais efi- ciente. Atualmente, a maior central de energia solar está situada na Alemanha e tem potência de 5 megawatts (veja Pesquisa FAPESP n° 109). •

■ Hidrogênio do doce e do sensor

O uso do hidrogênio como combustível ganhou mais dois avanços tecnológicos que po- dem acelerar a adoção desse gás em geradores de energia e nos automóveis. Pesquisadores da Universidade de Birming- ham, na Inglaterra, consegui- ram gerar, em laboratório, hi- drogênio a partir de resíduos da fabricação de doces e con- feitos. Bactérias colocadas num reator junto com essa biomas- sa consumiram o açúcar pre- sente nela e produziram hi- drogênio em forma de gás. O outro avanço saiu dos labora- tórios da Universidade da Fló- rida, nos Estados Unidos, onde pesquisadores desenvolveram um sensor para detectar vaza- mentos de hidrogênio, um gás invisível, inodoro e explosivo em altas concentrações. A no- vidade do sensor é que ele produz sua própria energia a partir de pequenas vibrações do local onde está instalado. Isso significa que futuras ver- sões do sensor poderão fun- cionar ininterruptamente sem uso de baterias quando afixa- das em carros, geladeiras e qualquer equipamento que produza uma vibração míni- ma. O próximo passo é testar o sensor nos laboratórios da agência espacial norte-ameri- cana (Nasa), que financia as pesquisas. •

PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 65

Page 65: O lado médico da Cannabis

MO 00. O"

■ Gestão da água do Tietê

Um estudo integrado dos sis- temas aquático e terrestre do reservatório de Barra Bonita, no rio Tietê, um dos maiores do estado de São Paulo, apon- tou que no período de 1990 a 2002 houve degradação da qualidade da água devido a al- terações no uso e cobertura da terra e ao aumento popu- lacional de 29,06% decorren- te de loteamentos implanta- dos em áreas inadequadas. A bacia hidrográfica da região é constituída por parte das ba- cias dos rios Piracicaba-Capi- vari-Jundiaí e Tietê-Sorocaba, que correspondem a cerca de 19 mil quilômetros quadra- dos. Imagens de satélite, da- dos cartográficos, da produ- ção agrícola municipal, de densidade demográfica, além de informações limnológicas (da água doce), pluviométri- cas e fluviométricas (altura das águas), foram utilizados na tese de doutorado de Ra- chel Bardy Prado na Escola de

Calêndula

antas secas com qualidade Um secador de plantas com controle automático da temperatura foi desenvolvi- do na Universidade Federal de Viçosa (UFV) pelo grupo de pesquisa em Pré-Proces- samento de Plantas Medici- nais, Aromáticas e Condi- mentares, coordenado pelo professor Evandro de Cas- tro Melo. Com isso, não há necessidade da presença constante de um operador durante o processo de seca-

Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo. Foi realizado ainda um traba- lho de verificação terrestre em 98 pontos da bacia. "Nesse es- tudo, bem como nas campa-

gem, que pode levar de três a quatro horas. Basta colo- car no painel a temperatura desejada para a secagem da planta que um sensor se en- carrega dos ajustes necessá- rios à variação da tempera- tura e da umidade relativa do ar que ocorrem durante o processo. Outra novidade do equipamento consiste de um sistema de reaproveita- mento de ar quente. Em vez de ser jogado fora, o ar en-

nhas para coleta de água em setembro e dezembro de 2002, foi possível observar, nas proximidades do reserva- tório, fontes e indicativos de poluição da água, como culti-

tra novamente no circuito, resultando em economia de energia. O secador a gás, que trabalha com até 300 quilos de folhas verdes, foi desenvolvido como parte de um estudo que avaliou a in- fluência da temperatura na qualidade das plantas medi- cinais. "A secagem é impor- tante porque se o produto for transportado úmido perde o princípio ativo", diz Castro Melo. •

vo de cana-de-açúcar, locais de exploração de areia e áreas de pastagem", diz Rachel. Planejar a ocupação das ter- ras, adotar técnicas de manejo adequado do solo e da água e

66 ■ JULHO DE 2006 - PESQUISA FAPESP 125

Page 66: O lado médico da Cannabis

Camomila

recuperar matas ciliares são algumas das soluções pro- postas para o gerenciamento de recursos hídricos. •

■ Empresas de base tecnológica

O livro "Gestão de pequenas e médias empresas de base tec- nológica", de Antônio Valério Netto, sócio-fundador da em- presa Cientistas Associados De- senvolvimento Tecnológico, de São Carlos (SP), mostra que esse segmento empresarial po- de se tornar um agente de mu- danças, capaz de introduzir inovações na estrutura indus- trial e agregar valor aos pro- dutos a partir do conhecimen- to científico. O autor aponta que um dos principais fatores para o fortalecimento das em-

gestão de pequenas e médias

empresas

presas de base tecnológica é possuir mão-de-obra qualifi- cada tanto na área técnica co- mo na de negócios. Editado pela Manole em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empre- sas (Sebrae), o livro sugere es- tratégias para que as empresas consigam desenvolver mais produtos e serviços. •

■ Caminhos da inovação

Um país que é a 14a potência econômica do mundo, possui a maior e mais diversificada indústria da América Latina, além de contar com uma in- fra-estrutura científica e tecno- lógica respeitável e um grande número de pesquisadores, doutores e engenheiros. Mes-

mo com todos esses fatores positivos, por que o Brasil não consegue ser uma potência tecnológica? Essa é uma das perguntas que o livro "Inova- ção, como vencer esse desafio empresarial", da Clio Editora, tenta responder e aprofundar. Os textos, sob coordenação do professor Roberto Sbragia, da Faculdade de Economia, Ad- ministração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, contaram com a participação do Fórum de Líderes, organi- zação empresarial com mais de mil representantes em todo o país. A redação foi baseada

contrário do que imagina o consumidor, ele não é estéril e pode estar contaminado pela bactéria Bacillus cereus, capaz de produzir toxinas responsá- veis por infecções alimentares. Pesquisa conduzida na Facul- dade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Jaboticabal, pelo professor Os- waldo Durival Rossi Júnior, financiada pela FAPESP, avali- ou as características microbi- ológicas e físico-químicas do leite UAT ao longo do proces- so de produção e prazo de va- lidade para descobrir as fontes

Agentes de mudança Reflexão e rumos

em 65 artigos publicados por empresários, acadêmicos, espe- cialistas e realizada por consul- tores do Programa de Gestão Tecnológica da Fundação Ins- tituto de Administração (PGT/ FIA). O texto realça a necessi- dade de inovar das empresas, destaca o papel do Estado na inovação e mostra como usar a infra-estrutura científica e tec- nológica existente no país. •

■ Bactéria resiste ao calor

Um estudo feito com leite bra- sileiro produzido pelo proces- so de ultra alta-temperatura (UAT), mais conhecido como longa-vida, mostrou que, ao

de contaminação e possíveis alterações do produto. "A bac- téria na embalagem longa-vi- da é a mesma que está no leite cru", diz Rossi Júnior. O pro- cessamento tecnológico com altas temperaturas não elimi- na o microorganismo patogê- nico. Por isso é essencial cui- dar da qualidade do produto na fase inicial do processo, principalmente na obtenção. Quando o leite é consumido logo após ser aberto, a bactéria não causa nenhum problema, porque a quantidade encon- trada por mililitro é pequena. Mas se ficar aberto, mesmo na geladeira, ela consegue se mul- tiplicar e aí reside o perigo pa- ra o consumidor. •

PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 67

Page 67: O lado médico da Cannabis

Q TECNOLOGIA

GENÉTICA

Inteligência vegetal Cana geneticamente modificada tem propriedade inseticida apenas quando atacada por inseto

DlNORAH ERENO

ma das principais pragas que atacam a cultura da cana-de- açúcar é a broca-da-cana (Dia- traea saccharalis), um inseto que penetra no interior da planta e cava galerias internas, causando grandes prejuízos aos produtores. Para controlar esse inimigo de forma efetiva, pesquisadores da Escola Supe- rior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universi-

dade de São Paulo (USP), da cidade de Piracica- ba, conseguiram, por meio de modificação ge- nética, chegar a uma cana que libera proteínas com atividade inseticida apenas quando ataca- da pela broca-da-cana.

O caminho para produzir uma planta com essas características começou com um detalha- do estudo e uma caracterização de genes da cana-de-açúcar para saber quais eram ativados exclusivamente por insetos. Cumprida essa eta- pa, era preciso então descobrir a seqüência de DNA que ativava esses genes, os chamados pro- motores, que permitem a expressão do gene no momento em que há necessidade. "Um gene sem promotor é um gene inativo, um pseudo- gene", diz o professor Márcio de Castro Silva Filho, do Laboratório de Biologia Molecular

de Plantas, do Departamento de Genética da Esalq, coordenador da pesquisa.

Para expressar novos genes na cultura da cana, com potencial sobre a broca, os pesquisa- dores recorreram ao Departamento de Agricul- tura dos Estados Unidos, que possui vários pro- motores patenteados. Em 1998, época do início da pesquisa, não existiam promotores de cana disponíveis no Brasil. Os pesquisadores brasilei- ros assinaram um termo em que se compro- metiam a usar a seqüência de promotores ape- nas para pesquisa em laboratório. "Quando recebemos o material, começamos a fazer cons- truções gênicas, ou seja, colocamos os promo- tores atrás dos genes responsáveis por aumentar as defesas da planta contra a broca, diz Silva Fi- lho. Dessa forma, os pesquisadores consegui- ram gerar plantas consideradas transgênicas que expressavam as proteínas de defesa. E com isso conseguiram provar que as plantas associa- das aos promotores realmente possuíam uma resistência maior contra o ataque da broca, principal responsável, junto com outras pragas dos canaviais, por prejuízos de cerca de US$ 500 milhões por ano aos produtores brasileiros. Essa cana é considerada transgênica, embora os promotores sejam da própria espécie, porque foram isolados do genoma da planta e introdu- zidos nela posteriormente.

68 ■ JULHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 125

Page 68: O lado médico da Cannabis

Cana transgênica testada na casa de vegetação

PESQUISA FAPESP125 ■ JULHO DE 2006 ■ 69

Page 69: O lado médico da Cannabis

O ciclo da broca no canavial começa com as mariposas, que colocam peque- nos ovos na parte de baixo das folhas. Quando os ovos eclodem saem minús- culas larvas, de cerca de 1 a 2 milímetros, que caminham em direção à região pró- xima ao colmo (caule) da planta, onde penetram e se alimentam da polpa car- nuda e doce. Dentro da cana, as larvas vão mudando de fase, até atingir cerca de 3 a 4 centímetros, quando saem da planta, transformam-se nova- mente em mariposas e dão iní- cio a um novo ciclo de vida do inseto. As galerias feitas por esses insetos mastigadores ocupam praticamente todo o interior da planta, provocando diminuição da massa vegetal e falhas na ger- minação, entre outros danos.

Os furos abertos pelas bre- cas também são porta de entra- da para fungos que causam a podridão vermelha, doença res- ponsável pela diminuição na produção de sacarose. Quando a matéria-prima se destina à produção de álcool, o pro- blema é ainda mais grave, pois os mi- croorganismos invasores contaminam o caldo e concorrem com as leveduras na fermentação.

Para combater a broca-da-cana as grandes usinas sucroalcooleiras produ- zem em seus laboratórios pequenas ves- pas (Cotesiaflavipes), liberadas no campo para parasitar as lagartas. Os pequenos produtores não têm como fazer o con- trole biológico porque não há produção suficiente de vespas em escala comer- cial, sem contar que elas têm de ser libe- radas na plantação nas condições ideais de temperatura e quantidade para surtir efeito. E a partir do momento em que a broca penetra na cana as perdas são ine- vitáveis, porque nessa fase não dá mais para recorrer ao controle biológico nem ao químico, devido ao alto custo dos in- seticidas e à baixa eficiência dos produ- tos, incapazes de atingir as lagartas no interior da planta.

Promotores específicos - Após con- firmar que as plantas com os promoto- res tinham a resistência aumentada con- tra a praga, os pesquisadores se viram diante de um novo desafio. Eles precisa- vam descobrir novas seqüências de DNA ainda não patenteadas que fizes- sem os genes expressarem a defesa con-

tra ataques de insetos. E, além disso, queriam promotores específicos, distin- tos daqueles descobertos pelos norte- americanos e cedidos para a pesquisa, chamados de promotores constitutivos, que se expressam o tempo todo ao lon- go do ciclo de vida da cana. "É esse tipo de promotor que vem sendo utilizado pelas empresas de biotecnologia nas plantas transgênicas com resistência a in- setos", diz Silva Filho.

pesquisa realizada na Esalq ti- nha, desde o início, o objetivo de identificar na cana promoto- res de genes que eram ativados apenas quando a planta fosse atacada pela lagarta. Depois de três anos de estudo, os pesquisa- dores conseguiram descobrir o promotor que controla a ex- pressão de defesa do gene, bati- zado de sugarina. Na seqüência foi feito um trabalho de clona-

gem do promotor e depositado no Ins- tituto Nacional da Propriedade Indus- trial (INPI) um pedido de patente com o apoio da FAPESP, por meio do Pro- grama de Apoio à Propriedade Intelec- tual (Papi).

"O promotor da sugarina tem um grande potencial biotecnológico, por- que acreditamos que ele funcione de maneira semelhante a outras plantas parentes da cana, como milho e arroz", diz Silva Filho. Se a planta não for ataca- da pelo inseto, ela é igual a uma planta convencional, que não passou por ne- nhuma modificação genética, de uma forma diferente das variedades de milho e algodão transgênicos resistentes a in-

setos, liberados para comercialização na Argentina, na China e nos Estados Uni- dos, que utilizam basicamente genes isolados de uma bactéria de solo cha- mada Bacillus thuringiensis (BT). Essas plantas produzem uma toxina, derivada de um gene bacteriano, durante todo o ciclo da planta, mesmo se não estiver sendo atacada.

A diferença da cana da Esalq com outras plantas transgênicas foi compro- vada em vários experimentos que avalia- ram as situações em que o gene de defe- sa se expressava. Um deles consistia em fazer um ferimento na planta, como um rasgo na folha, por exemplo. "Normal- mente, boa parte dos genes de defesa que são ativados por insetos também entra em ação quando ocorre um feri- mento", diz Silva Filho. No caso da cana modificada com o promotor da sugari- na, a planta responde apenas ao inseto. Os pesquisadores ainda não sabem com certeza como a planta consegue saber que a lesão é causada por um inseto e não por um ferimento. Eles ainda estão tentando caracterizar quais as moléculas envolvidas nessa resposta específica. Uma das hipóteses é que as substâncias presentes na saliva do inseto possam ati- var a expressão dos genes.

Para entender essa relação tão pró- xima entre planta e inseto herbívoro os pesquisadores iniciaram em 1998 uma extensa pesquisa, finalizada em 2002 e também financiada pela FAPESP, na modalidade Projeto Temático. "Come- çamos a fazer uma abordagem dos dois lados", diz Silva Filho. De um lado, a pesquisa buscava entender os mecanis- mos de defesa que a planta usa contra o

OS PROJETOS

1. Caracterização bioquímk entomológica e molécula interação entre inibidores de proteinases digestivas e insetos da ordem Lepidóptera

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MODALIDl 1. Projf 2. Linh

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à Prc

,DE ?to Temático a Regular de Auxílio squisa rama de Aapoio jpriedade Intelectual (Papi)

2. Interação planta-inseto: um processo co-evolutivo

COORDENADOR MáRCIO DE CASTRO SILVA FILHO - USP

adaptativas distintas

3. Patenteamento de um promotor de cana-de-açc induzido por insetos herbívoros

car

INVESTIMENTO 1. R$ 198.265,10 e US$ 139.201,90

(FAPESP) 2. R$ 108.250,00 e US$ 6.000,00

(FAPESP) 3. R$ 6.000,00 (FAPESP)

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inseto para evitar que ele a utilize como alimento ou hospedeiro. E são muitos mecanismos, já que ela não pode sair do lugar para se defender. Por outro lado, os insetos também têm suas es- tratégias para enganar a defesa das plantas. As estratégias utilizadas por cada um dos oponentes são fundamen- tais para avançar nos métodos de ob- tenção de maior produtividade no campo. Afinal, tanto os insetos como as plantas estão em um processo de evolu- ção conjunta que data de centenas de milhares de anos.

Resposta tardia - A partir desse Proje- to Temático, uma nova linha de pesqui- sa foi iniciada no laboratório da Esalq envolvendo a interação entre planta e inseto. E resultou no isolamento e ca- racterização do promotor da sugarina, trabalho que foi tese de doutorado de Patrícia Pompermayer, orientada por Silva Filho e uma das co-autoras da pa- tente. Encerrada essa etapa, a pesquisa agora está na fase de detalhamento do mecanismo de atuação do promotor da cana, estudo que está sendo conduzido por Anne Hackbart de Medeiros, tam- bém sob orientação de Silva Filho e ou- tra co-autora da patente. "Vimos nessa fase que o pico de ativação do gene é de cerca de 24 horas após o ataque da bro- ca", diz Silva Filho. Algumas plantas res- pondem imediatamente, outras mais tardiamente, como é o caso da sugarina. Essa aparente demora na ativação do mecanismo de defesa está sendo estu- dada pelo grupo.

Ao mesmo tempo em que os pes- quisadores finalizam os estudos da su- garina, eles se preparam para solicitar à Comissão Técnica Nacional de Biosse- gurança (CTNBio), órgão governamen- tal que controla o plantio de transgêni- cos no país, autorização para levar os experimentos com as mudas que já es- tão preparadas na casa de vegetação para o campo, em uma área dentro da Esalq. Nessas condições, será possível saber se o promotor ativa a expressão de defesa da planta também quando ocorre o ataque da cigarrinha-da-raiz {Mahanarva fimbriola), um inseto su- gador que teve seus índices de infestação aumentados em razão da colheita mecâ- nica - no final do processo a máquina deixa no campo uma camada de palha, ideal para a proliferação dessa praga. •

PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 71

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T TECNOLOGIA

METALURGIA

Conhecimento e oportunidade

Pesquisadores criam empresa que usa pós metálicos para a produção de filtros industriais

YURI VASCONCELOS

*'■*>'--

uem visita as acanhadas ins- talações da empresa Brats, estabelecida em uma casa de três pavimentos numa mo- vimentada rua do bairro do Rio Pequeno, na zona Oeste de São Paulo, não vislumbra as inovações tecnológicas que são desenvolvidas ali dentro. A empresa está se transformando numa das principais fabricantes nacio-

nais de filtros de aço inoxidável e de pós metá- licos especiais, produtos inéditos no país ou com processo de fabricação dominado por pou- cas empresas. Criada há pouco mais de quatro anos, em abril de 2002, a Brats é um bom exemplo de como o elevado conhecimento científico de seus sócios, aliado ao senso de oportunidade, pode ren- der frutos e se transformar num negócio lucrativo.

A empresa foi fundada por cinco pesquisadores com formação em metalurgia do pó e elaboração de metais e ligas. Três deles fazem parte do quadro do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT) e os outros dois são ex-pesquisadores do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) do Ministério da Ciência e Tecnologia. "Resolvemos nos juntar para criar uma empresa focada no desenvolvimento de novas tecnologias na área de metalurgia do pó. E, para isso, usamos todo o know-how ad- quirido em mais de duas décadas de pesquisas", conta o en- genheiro metalurgista Lúcio Salgado, ex-pesquisador do IPT e doutorado pelo Ipen, um dos fundadores da Brats.

O começo da empreitada não foi nada fácil. Com poucos recursos para investir, a saída encontrada foi instalar a Brats

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Discos porosos são usados em vários equipamentos das indústrias químicas e siderúrqicas

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numa pequena sala do Centro Incuba- dor de Empresas Tecnológicas (Cietec), localizado no prédio do Ipen na Cidade Universitária em São Paulo, onde a em- presa permaneceu por um ano e meio, até ser transferida para a sede atual. Se- gundo Salgado, também foi fundamen- tal para o início e a sobrevivência do empreendimento ter obtido recursos da FAPESP, por meio do Programa Inova- ção Tecnológica em Pequenas Empre- sas (Pipe), para o desenvolvimento de filtros sinterizados (processo de produ- zir um material por conformação de pós por compactação e aquecimento em altas temperaturas) de aço inoxidá- vel de alto desempenho. Essas peças, até então não produzidas no Brasil, foram a primeira aposta da empresa, que, poste- riormente, teve três outros projetos do Pipe aprovados pela FAPESP.

iltros de aço inoxidável são elementos porosos feitos a partir da pren- sagem de pós metáli- cos. Eles são colocados numa matriz, no for- mato do filtro a ser produzido, e compac-

Jtados numa prensa mecânica ou hidráuli- ca. Em seguida, são aquecidos - ou sinteri-

zados - em um forno a vácuo a uma tem- peratura próxima a 1.300°C (Celsius), equivalente a três quartos da tempera- tura de fusão da liga metálica. Esses fil- tros porosos são empregados na fabrica- ção de sistemas de separação sólido-gás, sólido-líquido ou gás-líquido, como purgadores, difusores, atenuadores e borbulhadores. Seus principais usuários são indústrias químicas, petroquímicas, siderúrgicas, alimentícias, automotivas e mecânicas. O carro-chefe da Brats é um filtro cilíndrico tipo corta-chamas. Com cerca de 3 centímetros de altura, é uma peça fundamental em maçaricos de acetileno, usados para corte e solda- gem de chapas metálicas.

Responsável por 60% do faturamen- to da Brats, que no ano passado atingiu R$ 400 mil, a peça precisava ser impor- tada dos Estados Unidos e Europa, já que por aqui eram fabricados filtros de bronze, que não atendiam às especifica- ções necessárias para uso em maçaricos. O filtro funciona como um mecanismo

Filtros cilíndricos corta-chamas: uso em maçaricos

de segurança, impedindo que o refluxo da chama para dentro do maçarico en- tre em contato com o acetileno, um gás inflamável, e provoque a explosão do ci- lindro. A demanda nacional por essa peça é de 10 mil unidades por mês e a Brats já conquistou metade do merca- do. Ela fornece para seis pequenos fa- bricantes de maçaricos, além da Ther- madyne, uma das maiores do setor e que antes comprava a peça de uma em- presa norte-americana. "Nosso produto tem as mesmas especificações técnicas e é cerca de 10% mais barato que o im- portado. Além disso, como estamos no Brasil, prestamos assistência técnica imediata e podemos resolver problemas logísticos de nossos clientes com mais facilidade", diz Salgado.

Pó de titânio - Outra inovação da Brats é a produção de pó de titânio ob- tido por um processo conhecido como hidretação-desidretação, que consiste basicamente na hidrogenação (adicio- nar hidrogênio), moagem e desidroge- nação do material. A hidrogenação é feita para fragilizar as barras de titânio e assim poder transformá-las em pó na etapa de moagem. Em seguida, o pó é colocado num forno a vácuo e aqueci-

do a cerca de 900°C para retirada do hi- drogênio. "Esse processo só é domina- do no Brasil por institutos de pesquisa. Somos a primeira empresa a empregá- lo comercialmente", diz Salgado. As duas principais aplicações dos pós de titânio, segundo o pesquisador, são o revestimento de implantes ortopédicos ou dentários por plasma (um tipo de gás) - ainda em desenvolvimento - e o jateamento de superfícies de implantes dentários. Esse jateamento é necessário para tornar a peça mais rugosa e facili- tar sua integração ao osso da boca. Des- de o ano passado, o pó é vendido para fabricantes de implantes odontológi- cos. "Nossa inovação foi usar o pó de ti- tânio, que é um elemento biocompatí- vel, para desbastar implantes dentários, algo que ninguém tinha feito antes", destaca Salgado.

A partir de janeiro do próximo ano, a empresa pretende ampliar sua linha de produtos dando início à comerciali- zação dos chamados filtros metálicos do tipo cartucho, que são produzidos a partir de placas planas de aço inoxidá- vel. Com o formato de um tubo em di- ferentes tamanhos, eles fazem parte da estrutura de catalisadores (uma espécie de filtro de gases) instalados dentro de

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Pós metálicos: matéria-prima para filtros de aço

reatores usados por indústrias petroquí- micas e usinas de álcool. Hoje esses fil- tros, ainda em fase de desenvolvimento, não são fabricados no Brasil e seu valor agregado é muito alto. Quando a Brats começar a produzi-los, acredita Salgado, o faturamento da empresa deverá dar um grande salto. "Assim como os filtros cilíndricos para maçarico, esse produto também é inédito no país e representa-

OS PROJETOS

7. Produção de peças porosas em ligas de alto desempenho

2. Utilização de pós de titânio obtidos pela rota HDH

MODALIDADE Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe)

COORDENADORES 1. FRANCISCO AMBROZIO FILHO -

Ipen/Brats 2. REJANE APARECIDA NOGUEIRA -

Ipen/Brats

INVESTIMENTOS 1. R$ 306.088,50 e U$ 22.254,00

(FAPESP) 2. R$ 415.880,00 (FAPESP)

rá uma substituição de importação", afirma o engenheiro metalurgista Fran- cisco Ambrozio Filho, ex-pesquisador do Ipen e outro sócio da Brats.

Nova fábrica - O sucesso obtido pelos produtos lançados pela empresa fez com que seus donos decidissem ampliar suas instalações. Para isso, construíram uma nova sede, no município de Caja- mar, prevista para ser inaugurada em setembro deste ano. Dos R$ 150 mil in- vestidos na construção da fábrica, dois terços foram recursos da empresa e o restante veio do Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe), promo- vido pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), em parceria com a FAPESP. A Brats também recebeu US$ 150 mil do Pappe para a compra de um forno de sinterização. Desde sua cria- ção, a empresa mantém parceria com o Ipen para utilizar a infra-estrutura do instituto. "Começamos numa sala de 25 metros quadrados no Cietec, passamos para o galpão atual, com 150 metros quadrados, e agora vamos para um es- paço duas vezes maior", afirma Salgado.

A amplidão espacial da nova sede é fundamental para os planos de expan- são da Brats, que pretende iniciar a pro-

dução dos pós metálicos utilizados como matéria-prima de seus filtros. "Hoje precisamos importar o pó de aço inox, que custa em torno de US$ 20,00 o quilo, mas em Cajamar nós mesmos poderemos fabricá-lo", diz o pesquisa- dor. Com isso, o custo de produção dos filtros de aço inoxidável poderá cair sen- sivelmente, dando condições para que os produtos da empresa tenham com- petitividade internacional. "Quando passarmos a produzir o pó metálico, se- remos a única empresa do mundo a do- minar todo o ciclo de produção de fil- tros de aço inoxidável. A verticalização da cadeia produtiva vai permitir que passemos a exportar nossos produtos. Esta é a nossa próxima meta, prevista para 2007", diz Ambrozio Filho.

Os pós serão produzidos a partir de uma metodologia conhecida como ato- mização com uso de água, um processo semelhante à pulverização. "Já domina- mos esse processo e faltam apenas ajus- tar pequenos detalhes para o início de produção em escala comercial", diz o pesquisador. O primeiro passo é fundir a matéria-prima à base de ferro e, em seguida, escorrer o metal por uma es- pécie de panela vazada. Com uso de um dispositivo chamado bocal de atomiza- ção, o filete líquido é bombardeado por um jato de água de alta pressão, levando à pulverização e à produção do pó. Para controlar o tamanho e a morfologia das partículas, basta ficar atento a parâme- tros como pressão e vazão da água, tem- peratura do metal líquido e diâmetro do filete. A produção interna vai trazer outra vantagem à Brats, que é produzir pós com a granulometria desejada.

A planta de Cajamar terá capacidade para produzir 7 toneladas de pós metá- licos por mês, trabalhando em um úni- co turno. Como atualmente a demanda interna da empresa é de apenas 1 tone- lada por ano, a intenção dos executivos da Brats é diversificar a produção, fabri- cando também outros tipos de pós, como ligas de níquel, ferro e cobre, e passar a fornecer para empresas que consomem esses produtos, como indús- trias químicas e fabricantes de eletrodos de solda. "Com a mudança para a nova sede em Cajamar e o início da produção de pós-metálicos, passaremos a ser auto-suficientes. Depois de quatro anos de batalha, iremos atingir a maturida- de", diz Salgado. •

PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 75

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T TECNOLOGIA

EDUCAÇÃO

Abordagem divertida Escolas e prefeituras adotam softwares para crianças com dificuldades de aprendizagem

rianças em idade esco- lar com dificuldades de aprendizagem ocasio- nadas por problemas neurológicos como hi-

S^B peratividade, distúrbios v V de atenção, impulsivi-

dade e dislexia - dis- função que acarreta problemas de en- tendimento da leitura e da escrita -, quando não recebem o devido acom- panhamento em sala de aula são candi- datas a entrar no círculo vicioso de re- petência e desistência. Como a escola é a primeira vivência de socialização da criança, essa etapa precisa ser trabalha- da adequadamente, como propõe o pro- jeto Ensinando o Cérebro (Enscer). A pesquisa é o desdobramento de um es- tudo iniciado em 1997 que tinha como foco crianças portadoras de deficiência mental, conduzido pela empresa Eina, de Jundiaí, um dos primeiros na moda- lidade Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empre- sas (Pipe) financiados pela FAPESP (veja Pes- quisa FAPESP n° 61).

Testado e colocado em prática na Associa- ção dos Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) do município, o es- tudo resultou no lan- çamento de um CD- ROM com recursos audiovisuais em 2001. Os estudos também foram transformados em dois livros, O cére- bro, um breve relato da sua função e O cérebro na escola. "Durante o

desenvolvimento do projeto vimos que o enfoque poderia ser ampliado para outras crianças e começamos a traba- lhar também com a rede pública e esco- las particulares", diz o médico Armando Freitas da Rocha, sócio da Eina, coor- denador do Enscer e professor visitante do Departamento de Patologia da Fa- culdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

Nessa ampliação o foco recaiu so- bre alunos com dificuldades de apren- dizagem e distúrbios de comportamen- to. Para poder atender às necessidades das crianças, foi desenvolvido um siste- ma que engloba capacitação dos profes- sores, atendimento neuropedagógico feito por médicos, psicólogos e fisiote- rapeutas e materiais de apoio, como softwares, desenvolvidos pela equipe multidisciplinar.

O software original também evoluiu e resultou em uma série que tem como protagonistas dois personagens, Jucá e

f ^ OS PROJETOS

Enscer - Sistema informatizado e integr para ensino e avaliaçã do progresso pedagóg neural de crianças por de deficiência mental

ado 0 ico e tadoras

Um est o deser neuroc matricL ensino de Mog

jdo sobre wolvimento ignitivo das crianças liadas no fundamental na cidade i das Cruzes

MODALIDADE Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe)

MODALIDADE Ensino Público

COORDENADOR ARMANDO FREITAS DA ROCHA - Eina/USP

4

COORDENADOR ARMANDO FREITAS DA ROCHA - Eina/USP

INVESTIMENTO R$ 176.992,00 (FAPESP)

INVESTIMENTO R$ 164.389,77 (FAPESP)

Laura, que ensinam a fazer cálculos arit- méticos com exercícios divididos em dois módulos, contar e calcular, e três níveis de complexidade, além de trabalhar a leitura e a escrita com exercícios que uti- lizam muitas imagens, associações e que- bra-cabeça. E deu origem ainda a um portal na internet (www.enscer.com.br), financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecno- lógico (CNPq), que serve como instru- mento de apoio para professores e pro- fissionais envolvidos no projeto e conta com referências bibliográficas, softwares e informações sobre o programa.

Mapa cerebral - Pelo portal também é possível fazer diagnósticos de alunos com problemas de aprendizado. O pro- fessor preenche uma série de informa- ções, que são analisadas pela equipe res- ponsável pelo projeto. A partir dessa avaliação são indicadas atividades para as crianças fazerem com o auxílio dos

softwares. "Esse é um processo de refina- mento de caracteriza- ção da criança, para podermos trabalhar os problemas", diz Rocha. Caso seja necessário fazer um diagnóstico ou avaliação mais de- talhados, os pesquisa- dores podem recorrer a mais uma ferramen- ta, um mapa cerebral que aponta as áreas envolvidas na execu- ção de tarefas feitas no computador pelo alu- no, registradas por ele- trodos. As informações

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Page 76: O lado médico da Cannabis

são processadas por um sistema desen- volvido pelos pesquisadores durante o projeto dirigido para deficientes mentais.

"Uma das primeiras escolas a adotar o projeto foi o Colégio Clip, de Guaru- lhos, para fazer a inclusão adequada das crianças portadoras de deficiências neu- rológicas", diz Rocha. Quando o proje- to teve início, em 2002, o colégio era pequeno. Hoje, com o crescimento do número de alunos, foi criado no mesmo local um segundo colégio, onde são apli- cadas as técnicas do Enscer e as crianças têm o acompanhamento de diversos outros profissionais. Dependendo do grau de deficiência neurológica da crian- ça, ela consegue acompanhar a classe re- gular até um determinado ponto. Com o passar do tempo, a diferença de idade e de cognição (aquisição de conhecimen- to) cria uma defasagem entre os alu- nos regulares e os chamados especiais. "Quando chega essa fase, os especiais vão para o segundo colégio, mas conti- nuam a fazer interações com o colégio original, porque a inclusão tem que ser feita com respeito, provendo a criança daquilo que ela precisa para se desen- volver", diz Rocha.

Existem também os casos de crian- ças que fazem o caminho inverso, como as portadoras de paralisia cerebral. Elas precisam ser preparadas para a inclu- são, mas o principal problema delas não é cognitivo, e sim de ordem motora. Por isso esses alunos precisam desenvolver principalmente as habilidades motoras antes de ir para o colégio regular. O co- légio que abriga o projeto Enscer traba- lha também com crianças com deficiên- cias de aprendizagem que precisam de um reforço extra. Na prática, os dois co- légios operam em conjunto.

Redes municipais - Além do Colégio Clip, o programa está sendo aplicado em escolas da rede municipal de Mogi das Cruzes e de Guarulhos. Em Mogi são duas escolas, situadas dentro de conjun- tos habitacionais, que participam do Enscer desde 2003. Um desses conjun- tos abriga pessoas que foram desaloja- das de seis favelas e transferidas para uma região periférica da cidade, completa- mente isolada. "É uma comunidade que, além de todos os problemas de agressi- vidade inerentes à própria condição em que vive, ainda se fecha", diz Rocha.

O outro conjunto habitacional tam- bém abriga pessoas que moravam em favelas, mas está inserido em um bairro grande de Mogi, portanto, com perfil populacional distinto. Inicialmente, o tra- balho consistiu em preparar os profes- sores para evitar que as crianças oriun- das da favela fossem marginalizadas dentro da escola. Cumprida essa etapa inicial, de inclusão do aluno na escola, a equipe do Enscer passou a fazer as ava- liações dos alunos. Depois de feitos os diagnósticos, os profissionais do projeto trabalham junto com o professor.

A prefeitura de Guarulhos também adotou desde 2003 o sistema Enscer em todas as escolas da rede que possuem la- boratórios de informática. A partir de 2006 o projeto foi implementado em quatro escolas da rede pública que rece- beram laboratórios de informática com o apoio do programa Ensino Público, da FAPESP. Nesse projeto, a avaliação dos 400 alunos participantes conta com um amplo sistema de informações que engloba desde o período de gravidez da mãe, a composição da família até o de- senvolvimento escolar. Todos esses da- dos são cruzados e avaliados por um software desenvolvido pelos pesquisado- res do Enscer. Além de acompanhar os alunos via internet, a equipe também faz reuniões periódicas com os profes- sores nas escolas. A medida que o pro- jeto avança outros progressos têm sido obtidos nas escolas públicas de Guaru- lhos. Um deles é o acesso desses alunos a práticas esportivas em alguns clubes da cidade, que cederam horários para a prefeitura em troca de dívidas com os cofres públicos. •

DlNORAH ERENO

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T TECNOLOGIA

QUÍMICA

Cápsula

Alimentação animal monitorada por substância química inerte traz benefícios para as criações

MARCOS DE OLIVEIRA

aber a quantidade de alimen- to ingerido por um animal de criação e o quanto ele ab- sorve em termos de nutrien- tes é a promessa de um no- vo produto químico prestes a ser lançado no mercado. Com apenas uma cápsula

diária de hidroxifenilpropano, que recebeu a marca comercial de Lipe, os animais poderão ter sua ali- mentação mais bem monitorada, desde as rações até aquela encontrada no pasto. Já aprovado em bovinos, suínos, carneiros, coelhos, aves, eqüinos e até em peixes, o produto também foi eficiente em ratos de laboratório. Esse resultado permite que, nos próximos meses, o Lipe possa ser testado em seres humanos. "Esse é o sonho de todo nutricio- nista e objeto de pesquisas em todo o mundo", diz a química Eloísa de Oliveira Simões Saliba, profes- sora da Escola de Veterinária da Universidade Fe- deral de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora da pesquisa. Os testes em humanos serão realizados com apoio do curso de Nutrição da universidade.

A pesquisadora chegou à formulação final do Lipe depois de 16 anos de pesquisa que incluíram mestrado, doutorado e pós-doutorado. O estudo

começou com a lignina, uma molécula conhecida como polímero orgânico existente nas plantas. "A partir dela, nós produzimos uma lignina sintética, purificada e enriquecida com outros agrupamentos químicos", diz Eloísa. Com alguns testes positivos em mãos, ela encaminhou, por meio da UFMG, o depósito de patentes no Brasil e no exterior.

Eloísa, para produzir o produto comercialmen- te, fundou uma empresa, a P2S2, na Inova, a incu- badora de empresas da UFMG, junto com seus co- legas de pesquisa, professores Norberto Mário Rodriguez, da Veterinária, e Dorila Pilo Veloso, do Departamento de Química da mesma universida- de. "Por enquanto estamos fornecendo o Lipe apenas para pesquisadores em nutrição animal da Embrapa (a Empresa Brasileira de Pesquisa Agro- pecuária), da Universidade Federal de Viçosa (UFV), da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), na Paraíba, da Universidade Fe- deral do Ceará (UFC) e da Universidade Nacional do Sul e do Instituto Nacional de Tecnologia Ani- mal, ambos da Argentina", diz Eloísa.

Marcador biológico - Os pesquisadores estão tes- tando o Lipe em outros animais como cães, ga- tos e búfalos. Em todos, a análise da digestão e da

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Marcador biológico traz informações sobre a digestão e a guantidade de alimento consumido

quantidade de alimento ingerido se dá a partir das fezes. Em 24 horas depois de administrado, o produto passa a funcio- nar como um marcador biológico que não é absorvido pelo sistema digestivo e se mistura ao alimento. A análise dos re- sultados é feita por meio de espectrosco- pia de luz infravermelha. Essa técnica usa a emissão dessa radiação eletromagnéti- ca diretamente numa amostra de bolo fecal. A proporção da absorção de luz é variável para cada tipo de nutriente, como proteínas, vitaminas, matéria seca, car- boidratos etc. Essa variação é analisada por um software que vai determinar e exibir o resultado da quantidade e da di- gestão de cada alimento, dependendo sempre da concentração do Lipe. Se exis- tir um índice maior dessa substância no alimento, é possível que ele tenha sido mais bem digerido pelo animal.

A análise é feita nos espectrômetros, que são aparelhos comuns em universi- dades e centros de pesquisa, usados nor- malmente para análise de substâncias orgânicas. A forma como isso vai ser fei-

to ainda está em estudo pela empresa. Outra vantagem do Lipe, segundo a pes- quisadora, é que ele é totalmente inerte, não causando nenhum tipo de efeito co- lateral. "Um produto usado com a mes- ma finalidade em animais, no Brasil e no exterior, o oxido crômico, se mostrou cancerígeno e está sendo abandonado."

Alternativos e baratos - Entre os ob- jetivos do Lipe, segundo a pesquisadora, está o seu uso para ajudar na elaboração da alimentação de animais. "Será possí- vel oferecer alimentos alternativos e de- terminar a digestibilidade e o consumo de sub-produtos industriais, como a tor- ta de mamona, por exemplo, disponí- vel de forma barata e em grande quan- tidade com a produção do biodiesel." Para ela, essa é uma forma de diminuir os gastos com a alimentação animal e, conseqüentemente, os custos de produ- ção, além de até melhorar a nutrição dos animais.

Cada grama do Lipe custa R$ 15,00, sendo que uma cápsula possui 0,5 gra-

ma e são necessárias apenas quatro cáp- sulas por animal testado. Eloísa prepa- ra a P2S2, que possui dois funcionários, para a produção comercial a partir des- te segundo semestre. O Lipe vai se tornar mais conhecido da comunidade científi- ca a partir da próxima reunião anual da Sociedade Brasileira de Zootecnia, que ocorrerá entre 24 e 28 de julho em João Pessoa, na Paraíba, quando nove traba- lhos científicos sobre o uso do produto, em várias espécies de animais, serão apresentados.

Para montar a empresa e prosseguir nas pesquisas, a P2S2 recebeu financia- mento do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Ministério de Ciência e Tecnologia. O próximo passo da em- presa será o início dos testes em huma- nos. "Com o Lipe provavelmente será possível analisar a absorção de alimen- tos individualmente, em cada organis- mo, e ajudar na elaboração de cardápios e dietas", espera Eloísa. •

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~ HUMANIDADES

CIÊNCIA POLíTICA

Separadosno nascimento

Apesar do desejo de alguns,PT e PSDB parecem destinadosa seguir caminhos distintos

CARLOS HAAG

m "Cimos': conto de Primeiras estórias, deGuimarães Rosa, o mineiro narra o sofri-mento do Menino entristecido pela doen-ça da mãe. Certa manhã, ele vê, no jar-dim, um tucano, que volta todos os dias.A beleza emplumada, acredita o garoto,passava a ele fluidos positivos para a mãeque, um dia, melhora. O Menino acredi-ta com o coração que o milagre fora feitopor sua parceria com o pássaro. Ilusão bo-

nita? "Há, na literatura especializada, duas certezas sobreo PSDB: sua criação, em 1988, teria ocorrido por motivosideológicos, uma insatisfação de alguns parlamentares coma aliança que o PMDB (partido em que estavam) cultiva-va com a direita. A outra é que a aliança que o PSDB seloucom o PFL, a partir da eleição de 1994, foi pragmática, oque teria descaracterizado sua orientação ideológica': ex-plica Celso Roma, cientista político da USP e um dos pou-cos a estudar as estruturas do partido tucano.

"Em verdade, o surgimento do PSDB da cisão com oPMDB teve mais relação com objetivos pragmáticos-elei-torais do que com questões ideológicas. Quanto à sua evo-lução, ao contrário, a aliança com o PFL pode ser explica-da mais por motivos ideológicos do que pragmáticos",afirma. Numa eleição em que, pela terceira vez consecuti-va, haverá uma polarização entre PT e PSDB e que muitosquestionam algumas escolhas feitas pelos tucanos, é im-portante entender como funciona a dinâmica interna doPSDB, pois, como nota Roma, "muito de sua evolução e

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PESQUISA FAPESP 125 • JULHO DE 2006 • 81

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funcionamento pode ser entendido apartir da análise de sua origem e estru-tura organizacional" Se os especialistas,muitas vezes, se enganam em suas análi-ses sobre o partido, o que se pode dizerdos eleitores? "Eles tenderiam a fazeruso dos partidos como atalho para re-duzir o custo da decisão eleitoral, emespecial em contextos multipartidárioscomo o brasileiro", observa a cientistapolítica da Universidade de São Paulo(USP) Maria D'Alva Kinzo, coordenado-ra do Projeto Temático Partidose representação política: o impactodospartidos na estruturação da es-colha eleitoral no Brasil, financia-do pela FAPESP, que analisa co-mo os partidos se organizampara buscar apoio nas urnas ecomo isso se constitui em baliza-mento para a escolha pelo voto.

No entanto, os eleitores bra-sileiros têm dificuldade paraidentificar os partidos comoatores políticos distintos. "Numasituação de intensa fragmentação e faltade nitidez do sistema partidário, em de-corrência da prática de todo o tipo dealianças eleitorais, é difícil para o eleitorfixar a imagem dos partidos, distinguirseus líderes e propostas e estabelecer leal-dade partidária", avisa. A pesquisado-ra revela que partidos como o PFL e oPSDB, que estiveram rio governo federalpor um longo período, têm apresentadotaxas insignificantes de lealdade parti-dária, ao contrário, por exemplo, do PT,que, ao lado do PMDB (em menor pro-porção), conseguiu fixar sua imagem ecriar laços com uma porção significati-va do eleitorado. "Foi surpreendente apequena proporção de entrevistados quesabiam a que partido pertencia o entãopresidente da República, Fernando Hen-rique Cardoso: apenas 29% responde-ram certo:'

"O contraste entre PT e PSDB estámarcado desde as suas origens. Assim,chama a atenção que, apesar de o siste-ma partidário atual reunir dezenas delegendas, apenas duas surjam comoprotagonistas desse pleito. Para conse-guirem essa façanha, esses partidos per-correram caminhos bem diferentes': ob-serva Roma. O PSDB surgiu em 1988,

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resultado de uma cisão coletiva de par-lamentares do PMDB que se autode-no minavam a ala mais progressista e àesquerda da legenda. "Embora se intitu-lasse como social-democrata, ao contrá-rio dos partidos social-democratas clás-sicos europeus, que se originaramarticulados às massas trabalhadoras eaos sindicatos, o PSDB teve uma origemexclusivamente parlamentar, já tendoem sua composição políticos influentesno cenário nacional", lembra.

ara o cientista político, há umavalorização excessiva do aspectoideológico como variável expli-cativa da fundação do partidotucano, em particular a quemostra o seu surgimento comoresultado da discordância desuas lideranças sobre aliançascom partidos de direita (como acandidatura de João Leiva paraa prefeitura de São Paulo, den-tro do PMDB, que postulava a

ligação com políticos conservadores doPFL e Iânio Quadros) ou a rejeição daprorrogação do mandato presidencial(leia-se a distensão do grupo com oPMDB durante a Constituinte de 1988que discutia a duração do mandato deJosé Sarney). "Mas, seis anos após suafundação, o PSDB construiu uma alian-ça de centro-direita para chegar ao poderfederal e dois anos mais tarde dobrou aduração do mandato presidencial. As-sim, explicações ideológicas são incon-sistentes, visto que o próprio PSDB ado-tou estratégias de ação que repudiavapouco tempo depois de seu nascimen-to", explica o pesquisador.

Sarney - Para Roma, o que valeu foimesmo o pragmatismo: o governo Sar-ney concedera pouquíssimo espaçopolítico aos futuros tucanos; eles fo-ram excluídos do processo sucessório àPresidência da República; abria-se ummercado de eleitores de centro que es-tavam descontentes com os rumos to-mados pelo governo. Como lembra osociólogo da USP Brasílio Sallum [r., aNova República acabou por se tornarum sistema instável de dominação po-lítica, em que não se articulavam bem

a dimensão institucional, a esfera so-ciopolítica e as condições econômicas.Tentando renovar a estratégia desen-volvimentista, o governo Sarney en-frentou condições externas adversasque drenavam o capital em vez de tra-zê-lo para o Brasil. "As dificuldades deestabilizar uma nova forma de Esta-do estimularam o crescimento na elitebrasileira de um novo projeto políti-co. Sentindo-se insegura com as inicia-tivas reformistas da Nova República,em particular as políticas heterodoxasde estabilização monetária, as idéiaseconômicas liberais passaram a se tor-nar relevantes para ela': analisa SallumJr. Segundo ele, embora o liberalismoeconômico só tenha se tornado politi-camente hegemônico nos anos 1990,essa hegemonia começou a ser social-mente construída na segunda metade dadécada de 1980 e rapidamente chegouao eleitor mediano. Havia demanda.

Cisão - "Dessa forma, a origem doPSDB pode ser explicada por suaorientação mais pragmática eleitoral.Tratou-se da cisão de um grupo de de-putados federais e senadores que acre-ditavam somente ter possibilidade deconquistar cargos no governo federal,principalmente a Presidência, aprovei-tando-se do capital político acumuladopelo PMDB, mas por meio de outropartido", avalia Roma. Para o cientistapolítico, a orientação programática li-beral estava estabelecida desde a ori-gem do partido e não se sustentaria odiscurso apologético da "guinada à di-reita': abandonando o projeto social-democrata, como custo que o partidoteve de pagar para chegar ao governopor meio da aliança com o PFL. Já noseu manifesto de 1988, havia a intençãodeclarada de romper com o caráter na-cionalista e estatizante do Estado bra-sileiro e a negativa do recém-nascidopartido em conduzir negociações detrabalhadores rurais e urbanos, bemcomo intervir em suas reivindicações,que deveriam ser deixadas livres entrepatrões e empregados. Com relação aosproblemas sociais, a suposição era queestes seriam resolvidos em decorrênciada estabilidade monetária, da austeri-

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dade fiscal, da descentralização da ad-ministração pública e do crescimentosustentável como panacéia.

"A construção da identidade pro-gramática do PSDB revela um dilemaideológico entre se declarar social-de-mocrata, de um lado, e apresentar umprograma de governo orientado por te-ses liberais, de outro. O discurso social-democrata, porém, foi fundamental noprocesso de mobilização de filiados emilitantes, o que conferiu um viés deesquerda na sua origem. A tônica libe-ral do seu programa de governo, poroutro lado, predominou como concep-ção ideológica de seus membros diri-gentes com cargos eletivos", diz Roma.O mesmo, afirma, valeu para a estratégiade alianças adotadas pelo PSDB que,em 1994, coligou-se com partidos dedireita e ascendeu ao poder, traduzin-do essa concepção em política concre-ta. "Tanto mais quando o ministro Sér-gio Motta, no qual é difícil distinguir olado sério do lado bufão, anunciou queo projeto político do PSDB é ficar 20anos no poder", afirmou certa vez o fa-lecido economista Roberto Campos.Para Sallum [r., o momento oferecia afortuna, a situação da Nova República,bem aproveitada pela virtú de liderançaspolíticas. "A referência à fortuna e à vir-tú permite retomar cum grana salis aidéia de 'momento maquiaveliano', deIohn Poccok, que enfatiza o papel daliderança na manipulação criativa dasoportunidades legadas pela fortunapara fazer prevalecer os interesses dacomunidade política ameaça da pelaconfrontação com interesses partícula-ristas, reconstruindo assim o Estado."

União - Assim, como avalia Roma, aunião com o PFL não representou umaruptura no seu programa original nemuma descaracterização de sua essênciaideológica. "Na verdade, é possível atémesmo perceber o contrário, ou seja, amudança de posicionamento do PFL nogoverno FHC em relação às funções doEstado': Era impossível, desde o início,qualquer aliança com a esquerda, do PTou PDT. ''A coligação do PSDB compartidos à direita seguiu muito mais cri-térios de afinidades programáticas do

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que critérios pragmáticos. Prevaleceu avisão das lideranças nacionais do PSDBna adoção dessa estratégia eleitoral egovernamental", explica. Para tanto, foifundamental o modelo adotado de or-ganização interna, que permitiu a umpequeno grupo decidir o rumo que se-ria tomado pelo partido, apesar da exis-tência de dissidências em seu interior.

"No caso do PSDB, por causa de suaorigem e pelas estratégias adotadas aolongo de sua evolução histórica, for-mou-se uma estrutura organizacionalpropícia a ações autônomas das lideran-ças." A primeira delas é a ausência deinstâncias internas de veto efetivo para aação da militância. Segundo Roma, opartido dá pouca atenção à estrutura in-terna e concentra o processo de-cisório nas mãos dos líderes,com os filiados tendo pouco ounenhuma decisão. O pesquisa-dor lembra que os partidos, emgeral, se organizam para chegarao poder. Os tucanos, ao con-trário, chegaram ao poder e ain-da estão tentando se organizar.Para ele, o PSDB acostumou-se,nesse processo pouco democrá-tico interno, a ter decisões unâ-nimes, a não ter vida interna nopartido, como se fosse semprepossível haver unanimidade em tudo.Daí, observa, a celeuma provocada coma dicotomia Serra-Alckmim. "Não con-seguem fazer com que haja um proces-so decisório, que as prévias sejam reali-zadas normalmente de modo que asdisputas sejam resolvidas:' Roma notaque o PSDB é um partido com uma vi-são eminentemente consensual da po-lítica, que detesta conflito de qualquerorigem, sendo sempre a favor de posi-ções políticas que tenham base técnica,o que, reconhece o pesquisador, é mui-to difícil de ocorrer na prática. Sempreprocurando dividir o custo do governo,consciente da fragilidade de sua estrutu-ra partidária, adotada na sua fundação,o partido concentra a tomada de deci-sões em uma cúpula.

Assim, ainda que o estatuto tucanopreveja: divisão de poderes entre os es-calões do partido; participação demo-crática de seus filiados, com poder de

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veto; punição de parlamentares indisci-plinados; e núcleos de base municipalque deveriam viabilizar vínculos entre opartido e a sociedade e os movimentossociais, "a organização interna efetiva éradicalmente distinta da prevista nesteestatuto e, no plano empírico, não é pos-sível observar nenhum dos pontos cita-dos': nota o pesquisador. "Conseqüente-mente, a entrada de filiados no PSDBestá bastante associada à obtenção devantagens geradas por pertencer a umpartido que conquistou a Presidência daRepública e o governo dos principais es-tados da federação': pondera Roma. Issopode, inclusive, ser verificado no desen-volvimento histórico da atuação do par-tido no Parlamento.

cientista político delimita doismomentos claros e antagôni-cos. O primeiro, que se iniciacom sua fundação e se encerrano impeachment de Collor, ca-racteriza-se pelo distanciamen-to do governo federal. "Duran-te os governos Sarney e Collor,o PSDB não apoiou o Executi-vo no Congresso Nacional. Osdeputados federais peessedebis-tas votaram mais próximos aospartidos de esquerda, entre eles

o PT:' No segundo momento, com par-ticipação no governo Itamar Franco econtinuando no mandato de FHC, no-ta-se a ascensão dos tucanos a posiçõesde poder e uma reviravolta em suasposturas parlamentares. "O partido al-terou sua posição no Congresso Nacionalde oposição a situação. Em outras pa-lavras, o processo de parlamentarizaçãodo partido iniciou -se na primeira fase dagestão Itamar, na qual o partido apro-vou 87,2% dos encaminhamentos do lí-der do governo e indicou seis partidári-os para ocuparem pastas ministeriais:'

Para Roma, o pragmatismo que estána raiz do PSDB redundou numa estru-tura organizacional com pouca demo-cracia interna e concentração de podernas mãos de um cardinalato, cujo poderabsoluto permitiu que o partido pudessepassar por cima de obstáculos internos,mesmo quando os rumos seguidos iamde encontro ao seu espectro ideológico

pregado. "Isso significou a adoção deuma estratégia que combinasse os obje-tivos de chegar ao poder político e im-plementar o seu programa de governo.Dessa forma, sua estratégia de alianças,traçada a partir de 1994 do topo de suadireção, representou um alto grau de ra-cionalidade de suas lideranças nacio-nais:' No entanto, conclui o pesquisador,essa fraca organização partidária favore-ceu a tomada racional de decisões, pro-duzindo maior eficiência eleitoral e ca-pacidade governamental. "Mantendofracos vínculos com a sociedade civil, de-monstrada pela origem exclusivamenteparlamentar e pela falta de articulação eorganização dos interesses de associa-ções representativas, suas lideranças po-dem atuar na arena governamental e nacompetição eleitoral com maior auto-nomia decisória." Delira quem imaginauma ligação entre PSDB e PT.

"A organização petista surgiu forado jogo eleitoral e parlamentar, a partirda articulação de interesses de setoresorganizados da sociedade civil, sobretu-do sindicalistas, parte da Igreja Católica,intelectuais e parlamentares de esquer-da, enquanto o PSDB foi criado dentrodo Congresso Nacional para disputa daeleição presidencial de 1989': diz o cien-tista político. Ainda, o PT optou por umaorganização interna que instituiu regrasinternas que incentivam a participaçãoe a disciplina de seus filiados, já queabrem a eles a chance de participar doprocesso de tomada de decisão partidá-ria, na contramão do PSDB, que preferiuuma estrutura mais descentralizada ecom líderes dotados de grande autono-mia de decisão, escolha feita para evitaro suposto "engessamento burocrático"partidário. Assim, os tucanos não enfren-tam resistências intestinas, como os líde-res petistas, na hora de indicarem candi-datos ou firmarem coligações ou alianças.

Disputa - Em termos programáticos,observa Roma, os dois travam uma dis-puta acirrada, mas que hoje sofreu al-terações sutis. O PSDB volta-se para aruptura do modelo nacionalista-desen-volvimentista, adotado no Brasil porVargas a partir de 1930, e prefere afas-tar-se de conflitos entre capital e traba-

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lho, bem como adotar políticas sociaismais universalistas, baseadas em resulta-dos indiretos de políticas monetárias. Jáo PT é mais intervencionista, acreditan-do que a solução dos problemas sociaisestaria no desenvolvimento sustentado,e não, como os tucanos acreditam, nadesregulamentação da economia, na re-forma do Estado e na abertura da eco-nomia ao mercado internacional. Mas osopostos acabaram se encontrando numponto: a doutrina petista agora incluiem seu programa o compromisso coma estabilidade da moeda e com o supe-rávit primário, um sinal de moderaçãodas antigas posturas radicais do partido."Qualquer que seja o resultado, a de-mocracia avança em qualidade quandosuas eleições se balizam por partidoscomprometidos com programas dis-tintos, de modo que as preferências damaior parte do eleitorado estejam re-presentadas no governo. Só assim oseleitores poderão estabelecer vínculosmais fortes e de longo prazo com suaslegendas", diz Roma, ressaltando os re-sultados da pesquisa de Maria Kinzo.''A coerência entre retórica e prática éfundamental para que os eleitores con-solidem lealdades partidárias. O PT e oPSDB parecem estar na vanguarda des-se movimento", avalia o pesquisador.

Mais: ambos seriam os partidos bra-sileiros dotados do que o cientista polí-tico Iairo Nicolau, do Instituto Univer-sitário de Pesquisas do Rio de Janeiro(Iuperj), chama de "vocação presiden-cial': "Essa vocação foi desenvolvida emquatro disputas presidenciais e forçouesses dois partidos a formular propostaspara o país, a criar redes mais orgânicascom o mundo intelectual e a criar pro-cessos decisórios no plano nacional",observa. "Por outro lado, PMDB e PFL,dois partidos com força nas eleições mu-nicipais e no Congresso, ao se recusa-rem a disputar efetivamente a Presidên-cia, acabaram cada vez operando maiscomo uma confederação de liderançasestaduais (e, em cada estado, como con-federação de lideranças locais)." Se foi aimaginação do Menino ou a força daave emplumada que salvou a mãe doen-te, cabe aos eleitores decidir esse dilemarosiano nas urnas em outubro. •

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O HUMANIDADES

i Sangue Estudar os antigos gladiadores ajuda a entender a sociedade atual

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ai

ão e circo: esse é o imperador dos chavões, usado para ata- car da Copa do Mundo ao presidente da República, um símbolo de um povo "idio- tizado" e clientelista, que se deixa vender por pouco. Da direita à esquerda, a imagem, vinda dos tempos romanos, serve como forma de fustigar políticos, na maioria das ve- zes sem que o atacante se dê

conta do menosprezo aos cidadãos, oculto na frase, roubada de seu contexto, uma das Sátiras do poeta Juvenal (67 d.C.-130 d.C). Para combater um clichê, nada melhor do que ou- tro (com perdão do filósofo Santayana, o seu criador): "Aqueles que não lembram o passado estão condenados a repeti-lo". "Deslocado do seu contexto, a máxima de Juvenal nos remete à tentadora possibilidade de ver os romanos como desinteressados pelos acontecimentos políticos e amantes dos prazeres de acesso fá- cil", observa Renata Garraffoni, autora da tese de doutorado Técnica e destreza nas arenas romanas: uma leitura da gladiatura no apogeu do império, defendida na Unicamp.

"Mais do que reforçar a idéia do gosto pelo pão e circo, sexo e violência, é necessário criar alternativas para a idéia predominante de uma massa manipulada pela elite e ressaltar as dis- tintas formas de relações sociais na Roma an- tiga, que são criativas, únicas e surpreenden- tes", explica. Aqueles que não estudam direito o passado estão condenados a repetir a mesma besteira. "A idéia do pão e circo só valoriza um único aspecto dos munera (os jogos de gladia- dores na arena), isto é, o de manipulação po- lítica. Falou-se de ociosidade, parasitismo do Estado, violência e prazeres, mas pouco se dis- se sobre o cotidiano dessas pessoas que com- bateram, o que nos leva a pensar nos limites dessas interpretações que aprisionam a diver- sidade dos sujeitos, impedindo que sejam agentes de sua história", avisa Renata. A pes- quisadora, falando do passado, revela como os historiadores, com a visão moderna do sécu-

lo 19, mostram a população romana desmo- ralizada e decadente, o "povinho" que podia ser controlado ao bel-prazer do governante, pois preferia assistir a jogos do que trabalhar.

Curiosamente, o mesmo preconceito per- meia as críticas modernas, que tratam a po- pulação da mesma maneira "idiotizada". "No século 19, quando o historiador alemão Frie- dlãnder emprega o trecho de Juvenal sobre pa- nem et circenses para analisar o aspecto cultural dessa sociedade, o faz a partir de sua experiên- cia, ou seja, em um contexto de desenvolvi- mento capitalista em que se valoriza o traba- lho ao máximo e apresenta-se o ócio como uma potencial ameaça à ordem estabelecida", explica. "No próprio texto, ele compara os marginalizados romanos com os modernos, revelando mais a preocupação moderna com o desemprego e a revolta que acometiam as cidades de seu momento do que o conceito romano em si." Para Renata, a expressão nas- ceu da análise de um texto antigo a partir da ótica burguesa, generalizando uma imagem satírica antiga e convertendo-a em uma catego- ria analítica que foi se cristalizando na historio- grafia como conceito. E, nas mentes de muitos, uma imagem eterna do povo como "massa abrutalhada".

Arenas - Renata avalia que num momento histórico em que a violência é questionada e tida como algo a ser extirpado, em que a paz social é almejada e a proteção aos animais e à natureza criam novos estilos de vida, pensar que, numa época, centenas de homens e ani- mais eram mortos nas arenas causa desconfor- to em nosso mundo contemporâneo. Parado- xalmente, o que nos enoja também pode servir como forma de identificação e estímulo. "Em geral, os perfis dos gladiadores não têm funda- mento histórico, mas são inspirados em con- dutas morais da sociedade capitalista, em que predomina a universalização de valores con- temporâneos como a vitória, a felicidade como conseqüência da realização profissio- nal e sucesso financeiro, e estes são enviados ao passado para comprovar como, desde a Anti-

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Mosaico com gladiadores de Pompéia, do século 1 d.C.

guidade, já estavam inerentes à índole do homem", lembra a historiadora. Quem eram eles?

Os munera tinham a sua origem nos ritos de sacrifício para o espírito dos mortos para o que, acredita- va-se, era preciso oferecer sangue. Foram introduzidos em Roma, de origem etrusca, em 264 a.C, quando os filhos de Junius Bru- tus honraram seu pai, morto, com três pares de gladiadores em combate. Em 65 a.C, César, para homenagear o pai, morto 20 anos antes, juntou 320 pares de lutadores em trajes de prata e só não trouxe mais deles porque o Senado condenou o excesso. Assim, durante a República, os jogos eram fi- nanciados por particulares e, aos pou- cos, o significado religioso deu lugar à exibição de riqueza e poder, o que susci- tou um caráter abertamente político às lutas. Os imperadores, percebendo o potencial, logo tomaram para si a exclu- sividade na organização do munera, a ponto de o poeta Tertuliano ironizar que o evento "passou de homenagem aos mortos para glorificação dos vivos". En-

tre os lutadores, havia de escravos cri- minosos a homens livres e mulheres, in- cluindo, muitas vezes, nobres patrícios, senadores e até imperadores.

princípio não era a sangria des- lavada, mas a exibição da virtus, do valor, da capacidade de um gladiador vencer, em condições de igualdade, seu oponente de forma justa. Tampouco todas as justas levavam à morte. A pes- quisadora conta que, ao estudar lápides em Pompéia, descobriu- se que muitos dentre eles mor- riam em idade avançada, já aposentados das arenas. "Ao

contrário do que se vê em filmes, as lu- tas não se destinavam à mera diversão do povo, nem a luta era até a morte. Es- ses espetáculos foram importantes na afirmação da cidadania romana", revela o arqueólogo da USP Pedro Paulo Funa- ri. "Era sempre a luta da civilização con- tra a barbárie, o humano contra o ani- mal, o justo contra o injusto, um meio público de mostrar que a sociedade do- mina as forças da natureza e da perver- são social." Ao final de um combate, o

perdedor tirava o capacete e oferecia o pescoço ao vencedor, que, no entanto, não tinha poder de morte sobre ele.

"A decisão não estava, tampouco, nas mãos do imperador, mas na multi- dão, a testemunhar um ato de soberania popular que só teria equivalência, no mundo moderno, com os referendos ou plebiscitos, em que todos se manifestam. Se nas eleições as mulheres não podiam votar, na arena todos podiam dar a sua palavra, uma prerrogativa que a cidada- nia moderna só atingiria no século 20", observa Funari. Abaixar o polegar (que, ao contrário do senso comum, significa- va poupar o perdedor, num movimen- to que imitava o guardar da espada) ou levantá-lo (apontando para a garganta, indicando que se deveria matar o venci- do) não eram meros caprichos, mas obe- deciam a um senso de humanitas roma- no, para quem o principal quesito para poupar o perdedor era que ele tivesse mostrado grande valentia. "Em toda parte, em cidades grandes ou pequenas, no Mediterrâneo ou nas fronteiras, a arena representava um lugar de afirma- ção da cidadania e da justiça, em que a palavra final estava nas mãos daqueles

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que ali se reuniam, homens e mulheres, ricos ou pobres", diz o historiador.

O próprio Juvenal, apesar de contu- maz hiperbólico em suas Sátiras, pensa- va o mesmo. Quando diz que "o povo concedia comando, honra, legiões" e "agora se limita e deseja ansioso duas coisas: pão e circo", em verdade o poeta está desenvolvendo um raciocínio críti- co sobre aqueles que pedem coisas vãs aos deuses, quando seria melhor que desejassem virtude. "Nesse sentido, po- demos supor que a imagem degradada da plebe se encontra em um contexto mais amplo para compor um texto ao mesmo tempo divertido e moral. Assim, acreditamos que a crítica de Juvenal não está no otium (o ócio), valor que era apreciado pela aristocracia da qual ele fazia parte, mas sim nos prazeres mun- danos que, em excesso, impedem o ci- dadão de ter participação ativa em seu universo social", analisa Renata. O que o século 19 interpretou a seu modo, o 20 repetiu e o 21 papagueia, muitas vezes reunindo o ideal de que o cristianismo "salvou" o povo degenerado romano dessa vida profana, nefasta e violenta.

Populares - No substrato de tudo está a posição elitista da visão negativa das ca- madas populares que ainda permanece viva entre nós. "A ênfase se dá naqueles que organizam o evento e, quando se desloca o olhar para essas camadas po- bres, elas são interpretadas como um coro único de vozes. Mesmo que seja para contestar ou exigir os seus di- reitos, as camadas populares são re- tratadas de forma homogênea, sintetizada, quase sempre na oposição povo/governan- te. Comenta-se mui- to pouco a figura daqueles em que todos os olhares convergiam, os gladiadores", lem- bra a pesquisadora. Outro ponto importante de mau entendimento é o aspecto material dos jogos e lutas: a arena. A historiadora alerta que tomamos como parâmetro os anfiteatros que restaram, de pedra (eram, em geral, de madeira), em especial o Amphitea- trum Flavium, o Coliseu, construído apenas em 80 d.C, séculos depois do início da prática dos munem. A partir

do tamanho do prédio, avisa, tendemos a supervalorizar a grandiosidade dos es- petáculos e a imaginar banhos de san- gue igualmente colossais.

"Cinco séculos separam o primeiro do último combate presenciado pelos romanos. Assim, eles são fenômenos his- tóricos, construídos e reinterpretados de maneiras diferentes ao longo do período em que ocorreram", afirma. "Nem sem- pre o gladiador perecia e, mesmo que viesse a morrer em combate, as relações entre morte e sangue, nessa sociedade, divergem da nossa. Um estudo sobre os munem tem de levar em conta que estes se desenvolveram num ambiente escra- vocrata e altamente militarizado." Logo, os anfiteatros e suas extensões expressam e constituem cotidianamente estes va- lores. "Os espetáculos romanos podiam

Elmo de um lutador, do século 1 d.C, encontrado em Pompéia

ser analisados como uma espécie de co- municação entre os indivíduos que pro- porciona o sentimento de participar da construção da ordem do mundo." Havia até mesmo a "briga de torcidas", que revelavam, no conflito entre os especta- dores dos jogos, as próprias contradições sociais da sociedade romana. Nada mais longe do que a suposta passividade do pão e circo.

Apesar de ter lá seus críticos, em particular nas classes mais intelectuali- zadas, as lutas eram valorizadas também por cabeças pensantes por seu resultado na psique do povo romano. "Ao assisti- rem publicamente às punições na arena, os cidadãos se sentiam assegurados de que a ordem social fora restaurada. As- sim, os jogos reafirmavam a ordem mo- ral e política das coisas e a morte de criminosos e animais era o restabeleci- mento real e simbólico de uma socie- dade sob ameaça. Na arena, a civilização triunfava sobre a barbárie", explica a his- toriadora alemã Cordelia Ewigleben, autora do livro Gladiators and Caesars. "O gladiador demonstrava o poder de superar a morte e inspirava no públi- co as virtudes de coragem e disciplina. Aquele que não sabia lutar e morrer com coragem desonrava a sociedade que tentava redimi-lo e redimir-se. Daí a pouca simpatia pelos lutadores que va- lorizavam demais a sua vida", conta.

Nesse contexto, ao testemunhar como homens enfrentavam a necessi-

dade de morte, ao ver o que mais temiam, os romanos confronta- vam a sua própria mortalidade e triunfavam. A ordem das coisas

se equilibrava e a morte era vencida; afinal,

ao lutar brava- mente e com argúcia, o gla- diador poderia demonstrar va-

lor suficiente para ganhar sua salvação. Ao

morrer sem protestar, ele igualmente a adquiria. Numa so-

ciedade em que três entre cada cin- co pessoas morriam antes de com-

pletar 20 anos e em que as chances de um gladiador profissional ser morto

eram de uma em dez, isso não era pouca coisa. Com ou sem pão. •

CARLOS HAAG

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HUMANIDADES

ECONOMIA

Desfile de moda à chinesa: país antes miserável começa a cobrar sua parte no bolo

Negócios da China

País asiático pode tomar lugar que o Brasil guardava para si no mundo globalizado

GONçALO JúNIOR

0 chamado "bonde da histó- ria" para o século 21 já partiu da China faz tempo, com es- cala na índia. E viaja em alta velocidade. O Brasil, ao que parece, está próximo de per- dê-lo se não correr rumo a alguma estação. Com essas

palavras faz o alerta o ex-embaixador Amaury Porto de Oliveira, membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (Gacint) da Univer- sidade de São Paulo (USP) e considerado uma das maiores autoridades em China no país. Conferen- cista e autor de dezenas de artigos sobre o tema, Oliveira acredita que o extraordinário crescimen- to da economia chinesa nos últimos 25 anos, numa média de 9% a 10% ao ano, não é um fenô- meno passageiro e deve ser uma preocupação tan- to para potências como Estados Unidos e União Européia quanto para os emergentes - Brasil e América Latina.

Parece fundamental, na sua opinião, levantar a questão e tentar compreendê-la imediatamente para o Brasil não ficar distante do processo. Se- gundo o embaixador, o mundo vive hoje um pro- blema de civilização, um momento dos mais rele- vantes de transformação tanto econômica quanto geopolítica. Se, no século passado, enquanto o Ocidente - Estados Unidos e Europa - progrediu e dominou a economia mundial, países como Chi- na e índia que ficaram para trás, com uma massa rural miserável, agora começam a cobrar sua par- te no bolo. Assim, o que o mundo passa hoje vai di- recionar toda a economia nos próximos cem anos.

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Oliveira aposta que três países ape- nas vão sobressair na segunda metade do século: Estados Unidos, China e índia. E será uma realidade bem dife- rente daquela do século 20. Principal- mente para as potências ocidentais. "A questão é que precisa haver um equilí- brio planetário, não dá para todos che- garem ao nível de consumo dos Estados Unidos, a não ser que colonizemos o mais rápido possível Marte e Júpiter", diz. Como isso não é possível, alguém vai ter de ceder e pagar parte da conta. "Não adianta orquestrar embargos con- tra os asiáticos, pois eles vão entrar com contrabando", ressalta Oliveira.

A confusão que os emergentes asiáti- cos têm causado em analistas e econo- mistas internacionais e o posicionamen- to do Brasil no contexto da economia internacional são assuntos que come- çam a se transformar numa preocupa- ção para os acadêmicos brasi- leiros. O volume de teses ainda é pequeno, mas a movimen- tação se mostra expressiva.

Uma tese de doutorado, defendida na USP, por exem- plo, acaba de ser editada em livro: China - Infra-estrutu- ras e crescimento econômico (Editora Anita Garibaldi), de Elias Jabbor, professor cola- borador do Núcleo de Estu- dos Asiáticos do Departamento de Geo- ciências do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (CFCH-UFSC). A obra tem apresentação de Armen Mamigo- nian e prefácio de Luiz Gonzaga de Mel- lo Belluzzo. Em 2004, Luciana Acioly da Silva defendeu na Universidade de Cam- pinas o doutorado em economia Brasil, China e índia: o investimento direto ex- terno nos anos 90, com orientação de Belluzzo.

Além de vários artigos publicados sobre a China, Belluzzo, que é professor titular aposentado da Unicamp, orien- tou informalmente a tese de Jabbor. Bel- luzzo entende que China e índia seguem dois estilos diferentes de crescimento. A primeira, com uma trajetória mais recente, mudou-se para a economia de mercado, com reformas experimentais e originais, porém numa transição muito lenta. A índia tem a política mais fecha- da, com fluxo de investimento interna- cional em sua indústria ainda muito es-

casso. Os indianos têm vantagens, como contar com elites científica e intelectual muito sofisticadas, acumuladas ao lon- go de décadas.

Enquanto a índia concentrou sua integração com serviços, a China tor- nou-se um centro manufatureiro glo- bal. Os chineses, explica Belluzzo, mo- dernizaram suas empresas estatais por meio de investimentos em infra-estru- tura, o que lhes dá melhorias relativas nas áreas de energia e transportes - suas rodovias e ferrovias são bastante mo- dernas. Ao mesmo tempo, usam vanta- gens da mão-de-obra barata, gestão de balanço de pagamentos muito estrita e controle da entrada e saída de capitais. Sua gestão macroeconômica também se destaca, uma vez que é executada pela burocracia do partido comunista. "Essa combinação esdrúxula deixa os econo- mistas perplexos."

m aspecto apontado por ele para esse sucesso foi que os chineses se mostraram im- placáveis na acumulação de reserva de capitais - aproxi- ma-se de US$ 1 trilhão -, o que dá mais flexibilidade e es- paço para fazer ajustes, mes- mo no caso de uma desacele- ração da economia americana. Ajudaria nesse aspecto a inte-

gração que a China desenvolve com ou- tros países asiáticos - para onde os ame- ricanos transferiram boa parte de sua produção manufatureira -, região em que sua economia pode se mover.

Senso comum - Elias Jabbor tira da China a lição de que há a necessidade, para qualquer país, de um Estado nacio- nal - e com visão estratégica - forte para a condução dos seus destinos. Ele ressal- ta que os chineses não acreditam na efi- ciência estática do mercado e na dinâ- mica da "mão invisível" do mercado. Muito pelo contrário. Enfrentam os de- safios da globalização com concepções, métodos e objetivos que desmentem o senso comum do final do ciclo do Esta- do-nação e de políticas indutoras de de- senvolvimento. "Aliás, este é o principal fator de confusão de economistas e 'es- pecialistas' em China, pois a maioria é educada para estranhar e desmoralizar qualquer experiência de poder centrada na presença de um Estado nacional pla-

nificador e detentor dos elementos cru- ciais do processo de acumulação."

O pesquisador conclui ainda que, a partir de dados comparativos, é possível demonstrar o desastre que foi o Con- senso de Washington para países como o Brasil: entre 1998 e 2005, a China in- vestiu US$ 800 bilhões em infra-estru- tura. O maior país da América Latina, com estrangulamentos no setor datados do início da década de 1980, não pas- sou no mesmo período dos US$ 18 bi- lhões, ou 2,2% do montante chinês. "Sem falar que, para o caso brasileiro, as condições para o enfrentamento do nó infra-estrutural já estavam dadas no fi- nal da década de 1970 com a implanta- ção no governo Geisel de uma indústria mecânica pesada."

Tal enfrentamento foi inviabilizado, de acordo com ele, por sucessivas políti- cas de "estabilização" financeira dos úl- timos governos, de "combate à inflação" pela via da compressão de demanda, pela abertura comercial e pelo aborta- mento de um capitalismo financeiro brasileiro. "A China fez exatamente o oposto, e os números estão à disposição para comprovar e confundir ainda mais os economistas e 'especialistas'", afirma.

O pesquisador é otimista quanto ao novo ordenamento econômico mun- dial encabeçado pela China, que vai di- recionar não somente as forças econô- micas, mas também políticas. A rapidez com que a China se industrializa pode beneficiar toda a economia mundial, principalmente a dos países periféricos. De um lado, o crescimento chinês cria demanda efetiva para esses. De outro, serve de amortecimento, no âmbito de cada nação, de políticas e de idéias do tipo neoliberal. "Afinal, o formato chi- nês é um contraponto concreto a este modelo importado do centro à perife- ria. Este movimento já está ocorrendo na África Subsaariana, na América Lati- na (vide exemplos de Cuba, Bolívia e Venezuela) e na Ásia."

Por esse raciocínio, Jabbor argu- menta que a China planifica seu co- mércio exterior de forma que mantém déficits comerciais com toda a periferia do sistema e superávits com o centro. Tanto que, no ano passado, baixou a zero as alíquotas de importação dos 35 países mais pobres do mundo. "Isto é um movimento puramente político que vai alterar substancialmente a cor-

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relação de forças no âmbito mundial no futuro."

Ao entrelaçar política, economia, filosofia, história e geografia, "a ascensão chinesa é algo na- tural, pois, por séculos, a Chi- na foi o país mais desenvol- vido do mundo, possui uma civilização milenar, tem um território com mais de 9 mi- lhões de quilômetros quadra- dos, um poder estatal con- solidado e uma sociedade mediada por filosofias (taoís- mo e confucionismo) de cu- nho civilizatório e tolerante para com outros povos".

Brasil - Nesse cenário, resta ao Brasil trabalhar duro para não ficar atrás. Por enquanto, diz Amaury Olivei- ra, assim como Austrália e África, a América Latina tem sido im- . portante para alimentar a fome V de matéria-prima da indústria chinesa. Principalmente mi- nerais (minério de ferro) e vegetais (soja). "A idéia de que o Brasil poderia me- lhorar sua presença no mercado externo com pro- dutos de valor mais agregado infelizmente não está se concreti- zando", lamenta. "Estamos fora do mundo, parados, enquanto tudo muda numa velocidade espantosa."

Para Belluzzo, o país tem, desde a década de 1980, promovido um ajusta- mento inadequado de sua economia às mudanças internacionais. Como resul- tado, teve desempenho "desastroso" do ponto de vista da manufatura. O qua- dro, afirma ele, é de estagnação e quase regressão, pois o Brasil não cresceu em tecnologia e os investimentos na indús- tria foram pífios. "Não há projeto para esse segmento, tanto nos anos 1990 quanto agora não compreendemos que a sustentação da taxa de dólar competi- tiva é fundamental. A verdade é que tive- mos duas desvalorizações catastróficas, a taxa de câmbio valorizada desestimula a exportação e os que competem interna- mente com o que vem de fora." Assim,

Guaraná made in China: 'Estamos fora do mundo",

diz Amaury Oliveira

mesmo num quadro de recuperação, o país ainda deve sentir por muito tempo essas conseqüências.

lias Jabbor observa que é co- mum colocar a culpa do fra- casso brasileiro nos chineses, com assertivas de "mão-de- obra escrava" e outras. Nada mais superficial, na sua opi- nião. A primeira questão a ser levantada é histórica. Há mais de 3 mil anos a China assen- tou em seu território as cha- madas bases para uma divisão

social do trabalho. Isso fez do comércio algo normal para os chineses há milê- nios. "Temos de ter clareza de que não

estamos lidando com 'aprendizes de feiticeiro',

como se diz, e, sim, com pessoas qualificadas,

de altíssimo nível e que aprenderam

com Sun Tzu que uma guer- ra pode ser ga- nha sem neces-

sitar dar um único tiro. Ou compreen- demos a história milenar chinesa, ou não conseguimos sair da superfície."

Ao mesmo tempo, é preciso refletir se é possível fazer comércio com uma nação milenar a partir de opções inter- nas brasileiras, como liberdade, fluxo de capitais, câmbio flutuante e outras aber- rações. Jabbor questiona se será possível ter uma parceria estratégica com um país agressivo comercialmente como a China, sem que o Brasil tenha a mínima capacidade de planejar seu comércio ex- terior e de financiar exportações ou ex- portar capitais. "É bom que se diga que existe um verdadeiro descompasso en- tre a política externa brasileira e a polí- tica econômica adotada, e o superávit comercial chinês para com o Brasil veri- ficado no primeiro trimestre deste ano - US$ 90 milhões de déficit com a China - é a expressão disso."

Idealismo - Na sua opinião, é idealismo acreditar que o país possa ter uma polí- tica externa soberana e independente sem que o Estado tenha condições de transformar essa política em ações con- cretas de fato. Dentre essas medidas, ele destaca planificação do comércio exte- rior, financiamento de exportações, pla- nejamento de déficits comerciais com os países vizinhos, exportações de capitais, um câmbio que iniba importações pre- datórias e otimize exportações etc. "Logo, o erro central está na opção em matéria de política econômica que nos foi imposta na década de 1990, que le- vou uma nação como a nossa, que cons- truiu o metrô mais moderno do mundo [de São Paulo] com equipamentos fa- bricados no Brasil, a importar trilhos, vagões e locomotivas da China, da Co- réia, da Espanha."

O pesquisador sugere que uma par- ceria estratégica com a China deva ser um verdadeiro casamento de projetos nacionais e que, além do comércio, pos- sa dar grandes contribuições no equilí- brio de forças no mundo. "Infelizmen- te, o Brasil - com todos os avanços verificados no atual governo - não tem se mostrado à altura do desafio que o mundo lhe impõe." Para que uma idéia se transforme em força material, acres- centa, é necessário que tal idéia seja to- talmente absorvida pelo conjunto da população brasileira. Enquanto isso, o tempo urge. •

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Resenha

O gigante anão Pesquisa questiona o mito do Estado brasileiro inchado

CARLOS HAAG

E em é preciso ter um grande projeto polí- tico. Para angariar votos basta falar, rai-

vosamente, do tamanho imenso do Estado brasilei- ro, de sua ineficiência e de como tudo seria melhor se as instituições de mercado tivessem a liberdade dese- jada. Mas a retórica nem sempre vem acompanhada de fatos e números concretos. Desconfiado, o cientis- ta político Wanderley Guilherme dos Santos escara- funchou dados e seu último livro, O ex-Leviatã brasi- leiro, traz revelações capazes de abalar as crenças de um neoliberal com o mínimo de senso crítico. Partin- do do pressuposto de que o Estado nacional foi mon- tado por Vargas (daí o entusiasmo liberal em decretar o fim do legado varguista na última década), Santos revela a importância do aparato legado por Getúlio no desenvolvimento econômico e social do país e, pas- mem, mostra que somos não apenas um Estado me- nor em números relativos e absolutos do que boa par- te de seus "colegas", mas com uma rara eficiência. "Desde 1984 que insuspeitos relatórios de agências in- ternacionais produzem dados comprovando que o Brasil possui um Estado mais para sovina do que para perdulário", escreve. Para Santos, o pseudogigantismo estatal é uma névoa que distorce a questão essencial: o Estado brasileiro estava onde não devia ao preço de não estar ali onde a responsabilidade social de um Es- tado moderno comandaria. "O ex-Leviatã (leia-se, o Estado varguista) operou preferencialmente segundo uma lógica privada e oligarquizante em benefício de poucos. Muito concretamente, isso quer dizer que a natureza das políticas governamentais obedece ao mo- delo em que seus custos são genericamente distribuí- dos (toda a população paga por ele), enquanto os be- nefícios são consumidos por uma minoria." É dessa maneira que se desmontou a obra de Vargas. "É na percepção do Estado como anão socialmente precon- ceituoso e impotente, antes do que como gigante, que está a origem da sonegação do conflito", avisa Santos. O que nos restou, segundo ele, seria um Estado regu- lar, antes que produtor, um novo Leviatã, um Leviatã disfarçado, um malicioso Leviatã contemporâneo,

O ex-Leviatã brasileiro: do voto disperso ao clienteiismo concentrado

Wanderley Guilherme dos Santos

Civilização Brasileira 278 páginas R$ 38,90

sucessor da era Vargas, putati- vamente extinta. Engana-se também, avisa Santos, quem atribui as mazelas nacionais ao excesso de funcionários públicos, vistos, há muito, como modelos de mediocri- dade. "A participação do fun- cionalismo público brasileiro no emprego total continua significativamente baixa, mes- mo quando se tomam todos os níveis de governo. No caso

brasileiro, o federal, estadual e municipal", observa o cientista político. Para os que pregam o clienteiismo político, Santos retruca com dados. "O excesso de pes- soal na administração pública, particularmente no que concerne ao governo central, se localiza nas ocupações mais modestas: pessoal de limpeza, vigias, ascensoris- tas, porteiros. Se os funcionários públicos devessem suas posições à troca por votos e, inversamente, se os eleitores só escolhessem candidatos em retorno de fa- vores recebidos, seria difícil a interpretação de resulta- dos da pesquisa recente", pondera. Santos até admite o clienteiismo brasileiro, mas ressalva que ele se encon- tra confinado à periferia do sistema eleitoral, com es- cassa eficácia causai sobre o desempenho da máquina do governo. A troca, então, teria sido duvidosa e o en- tusiasmo pelo enterrro da herança varguista um engo- do? "Para evitar o Leviatã hobbesiano, despudorado ou franco, ou o clienteiismo distributivo, o risco con- temporâneo está embebido na possibilidade de que, sob disfarce de uma poliarquia frugal, consolidem-se as algemas de cristal de um Leviatã disfarçado mante- nedor da ordem de um clienteiismo concentrado. O trajeto foi memorável." Sem dúvida. E cruel. Segundo o pesquisador, injetou-se na sociedade uma ânsia pelo surgimento de forças organizadas, alheias ao poder formal, como forma de colocar obstáculos no supos- to caminho expansionista do Estado. O problema, lembra ele, é que essas instituições já chegam "vicia- das" na privatização, na predação do Estado. "Os gru- pos de interesse do Brasil ambicionariam barrar a ten- dência à monopolização decisória do Estado, não para torná-lo plural, democrático e acessível à diversidade dos grupos sociais, fortes ou fracos, mas para substi- tuir o monopólio do poder estatal pela oligarquia de um sistema fechado de poderosos grupos de interesse. O sorriso do velhinho está cada vez mais cínico.

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Livros

Esquerda brasileira e tradição republicana Estudos de conjuntura sobre a era FHC-Lula

Luiz Werneck Vianna Editora Revan 232 páginas, R$ 38,00

Reunindo artigos e entrevistas, o pesquisador do Iuperj traça um painel dos últimos 12 anos da política brasileira, dos anos de Fernando Henrique Cardoso até a posse de Lula. O livro discute as mudanças, tão celebradas, que se observaram dentro do PT e do PSDB no cenário atual.

Editora Revan (21) 2502-7495 www.revan.com.br

30 História da psicanálise - São Paulo (1920-1969) Carmen Valladares de Oliveira Editora Escuta/FAPESP 364 páginas, R$ 40,00

Com prefácio da psicanalista Élisabeth Roudinesco, esse estudo, lançado

■ MTCJB_.JB em pleno aniversário de 150 anos de Freud, é inovador pela sua análise

histórica do desenvolvimento da psicanálise na maior metrópole brasileira, desde os anos 1920 até o seu apogeu, em finais dos anos 1960. Estão em jogo duas vertentes que se opunham, a médica, dos primeiros momentos, e a terapêutica, que acabou prevalecendo nos anos mais recentes. O livro traz um bom trabalho de pesquisa em arquivos e muitas entrevistas com analistas. Escuta (11) 3865-8950 www.editoraescuta.com.br

Moradores de rua: uma questão social? Camila Giorgetti Editora PUC-SP/FAPESP 292 páginas, R$ 40,50

Originada da tese de doutorado "Entre o higienismo e a cidadania", essa análise revela o dualismo com que se trata a

questão dos moradores de rua. Por um lado, tem-se o preconceito positivo e o negativo sobre eles e, por outro, de que forma institucional, a partir desses dois tipos de preconceito, a sociedade trata desse problema muito sério nos dias atuais nas grandes cidades, comparando Paris e São Paulo.

Editora PUC (11) 3670-8085 www.pucsp.br/educ

rf&L u,?C??

As revoluções do poder Eunice Ostrensky Alameda 344 páginas, R$ 44,00

No princípio do pensamento político moderno estava a Revolução de 1640, na Inglaterra, e é a partir desse evento, fundamental para a criação de novos

parâmetros filosóficos, que Eunice Ostrensky nos mostra que a teoria política nasce não do trabalho de gabinete de poucos filósofos, mas da linguagem ordinária, das idéias populares. Vendo a filosofia política como um combate, a autora parte do princípio de que ela, mais do que tentativa de representar o real, é um discurso.

Alameda (11) 3862-0850 www.alamedaeditorial.com.br

St "

VENTANDO CAUNAVAIS

Inventando carnavais O surgimento do Carnaval carioca no século XIX e outras questões carnavalescas

Felipe Ferreira Editora UFRJ 360 páginas, R$ 48,00

J0MK | O Carnaval pode ter um longa história, remontando aos tempos da

Antigüidade, mas a sua forma atual foi definida mais recentemente, no século 19, a partir de influências as mais díspares. O autor elenca, entre elas: a Paris tão ostentória, que os brasileiros adoravam imitar; Nice com sua força magnética de atrair turistas; e, por fim, o Rio de Janeiro com sua ambivalente liberalidade social. A junção desses elementos formou o que hoje conhecemos. Editora UFRJ (21) 2542-7646 www.editora.ufrj.br

Electronic samba_ A música brasileira no contexto das tendências internacionais

Adonay Ariza Annablume/ FAPESP 364 páginas, R$ 48,00

Essa é uma análise de misturas as mais modernas. Em especial, de como

se dão os processos musicais de mistura, os fluxos de influência entre jazz, samba, bossa nova, tropicália, manifestações regionais das mais diferentes e música eletrônica. Esse amálgama de estilos diversos, embalados em formas técnicas da modernidade, é, segundo o autor, a característica mais central da música de nossos tempos no Brasil. Annablume (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

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Ficção

Disputa acadêmica

ma mulher caminha contemplando a decaden- te sociedade de seu tempo. Cesária, que no pas- sado plantara lavouras, imerge em investigação e lembranças, falando a si sem pausas:

- Decadente porque aqui embaixo ninguém nem mesmo tenta usar a razão; porque as torres em que meus antigos concorrentes se empoleiram têm um chão instá- vel e ficam todas deformadas com o passar dos anos; porque essas duas formas de existência, a do comercian- te do rés-do-chão e a daqueles que só descem para culti- var sua lavoura e passam a maior parte do tempo a olhar de cima de suas corroídas e mal-acabadas construções, não convivem senão como sátira uma da outra, senão como negociações em que um quer prejudicar o outro, senão como classes inimigas. Quando estudávamos o cultivo e tínhamos o objetivo de formar criaturas, eu e minha maior adversária acirrávamos nossas divergên- cias e tivemos eu uma filha, ela um filho. Minha cria nasceu deficiente e minha incapacidade de produzir ali- mento que ela absorvesse determinou sua morte. Desis- ti do estudo e da criação; tornei-me uma comerciante. Mas o mundo não se resume a isso; ainda há muitas ou- tras coisas a fazer.

O comércio leva a mulher a um reencontro inespera- do, porém previsível: sua antiga adversária ainda cultiva, mas agora também negocia. A comerciante visita uma pequena torre, ladeada por campos verdes de arbustos e uma estufa que reluz ao reflexo do sol.

Bate à porta da torrezinha com seus documentos de comerciante e ensaia sua verve profissional habitual. Saudada com brevidade pela interlocutora, ela entra.

— Pois minha velha colega também negocia? — Mesmo assim não abandonei a criação.

Cesária e Nemésia tratam de produtos humanos que nada têm a ver com a arte do cultivo.

— Se tu levasses a sério o estudo a que te dedicas, não comprarias meus produtos. Nisso ao menos não tento uma falsa aparência de purismo.

ERNANE GUIMARãES NETO

— Bem sabes que tanto o cultivo despreocupado quanto caprichos ainda mais nobres que sempre almeja- mos não existem senão mediante concessão dessa socie- dade que outrora tanto atacamos. Sobe comigo.

Do andar superior da torre, as adversárias contem- plam a plantação de Nemésia.

— Vês? Apesar de toda a contaminação do solo no entorno, consigo cultivar. Oxalá meu labor atinja um florescimento comparável ao dos venerados mestres an- tigos. Que tal o jovem musculoso que agora trabalha com a enxada? É meu filho.

— Não vou tentar argumentar contra a visível con- sistência de tua obra.

— Vem comigo à estufa; lá negociaremos.

Na iluminada estufa, cujo brilho Cesária nunca al- cançara em seu tempo de estudos, as mulheres tratam não de qualidades intrínsecas distintivas dos produtos ou de sua funcionalidade, mas de preço.

O negócio tem uma pausa com a chegada do espadaú- do filho de Nemésia, que precisa de auxílio técnico da mãe.

— Meu filho, tu deves continuar teu trabalho placi- damente. Tens plantado raízes fortes, difíceis de arrancar; isso é bom. Essa enxada que fiz para ti tem resistido a muito trabalho, não?

— Sim, mãe, cuidaste bem de minhas ferramentas e de minhas mãos, especialmente no começo, quando eu ainda não sabia trabalhar e tinha bolhas.

— As mãos de teu filho são fortes e íntegras, a lida não as parece ter danificado. Atrevo-me a dizer que são belas.

— Belas?! — estranhou Nemésia. Argumentando a necessidade de uma visita posterior

para concluir a negociação, a visitante acompanha o ra- paz estufa afora.

— Não negarei a mim mesma a oportunidade de ver a criatura de minha adversária trabalhando — pen- sa a mulher, que se demora a deixar a propriedade, ocu- pada em observar a lida do rapaz.

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O reflexo dos braços nus do rapagão, em ritmados e eficientes movimentos com suas ferramentas, nela susci- ta uma experiência estética.

— Não devo confiar em minhas sensações. Não me posso permitir mais que investigar a funcionalidade des- sa criatura.

Quando retoma sua rotina, Cesária emprega tempo em buscar falhas na criação daquele homem, sem chegar a conclusão.

— Ele sorriu para mim, que sou inimiga do sistema de sua própria mãe! — lembra-se enquanto se dirige à nova visita.

Ao chegar à propriedade da antiga opositora, sua co- gitação é interrompida pela praxe. Antes de qualquer comércio, no entanto, e enquanto procura pelo brilho da bem-cuidada lâmina da enxada do moço lavrador, a mulher é surpreendida pela ordem:

— Quero que venhas comer meu filho. — Cabe notar que "comer", de acordo com a prática

lingüística estabelecida nesta região, assume dois significa- dos: ingerir ou possuir sexualmente. A que fazes referência?

— Descobre. Passando da postura de conferência a uma paralisia

contemplativa, Cesária faz como nos velhos tempos: preo- cupa-se da questão teórica antes de considerar sua pró- pria existência e seu interesse no caso.

Cesária revisa lentamente a torre e dá pouca relevân- cia às rachaduras das escuras paredes internas da cons- trução enquanto caminha seguida pela adversária, que tão-somente orienta:

— À estufa. — Esta pequena torre não parecia tão escura na úl-

tima ocasião. Meu julgamento me trai? — considera mudamente. Tenta inferir o que encontrará: — Nenhuma mãe deve gostar de ver seu filho envolvido com seus ad- versários. Matar o próprio filho, no entanto, parece ain- da menos provável. Ele é forte, talvez ela queira que me violente. Há de ser alguma armadilha.

Um perfume adocicado torna mais atraente a dúvida. — Estou certa de que terei de lutar com todas as mi-

nhas forças contra esta que me guia e sua cria, que me parecera tão estimável. Tentarei usá-lo em meu favor, contra sua própria mãe.

Ao ar livre, ela exclama à interlocutora, que porta grave semblante:

— Mas a estufa ainda brilha! — e não obtém resposta. O perfume adocicado, mais intenso dentro da estu-

fa, não é o de flores, mas o de carne humana sofisticada- mente preparada para o consumo e posta à mesa. I

Desmembrada, a cria tem suas virtudes expostas com magnificência pela criadora. Apresentado em pratos dida- ticamente dispostos, o sistema revela suas funcionalidades.

— Contempla a força destas fibras musculares. — Parecem-me consistentes. — Gostaria de ver negares a pureza destes pés em

que sempre se sustentou minha obra mais bem-acabada. —Tua cria deu passos seguros e equilibrados, bem o vejo. — Experimenta este coração: eis um sabor "belo", se é

que te atreves a perscrutar tão profundamente o problema. — Não temo um adversário que me ensina. Depois de uma pausa analítica, Cesária continua: — Como pode um cadáver cheirar tão bem? — Para mim, o odor é horrendo. Esta carne tem gos-

to podre. — Por que mataste teu filho? — Porque trocáveis sorrisos, aproximando-vos. Con-

trariada, resolvi abortar. Come. Não recusa o banquete. Vai embora se sentindo forta-

lecida, enquanto sua adversária a considera envenenada.

ERNANE GUIMARãES NETO fez graduação e iniciação cientí- fica em Filosofia na FFLCH-USP. Autor de Caprichos de do- res (Massao Ohno Editor, 1998), mantém o site www.geoci- ties.com/alegorista.

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