O Legado do Guardião

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Conto de terror. Folclore brasileiro. Universo Nova Frequência.

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O Legado do Guardião

Um conto do folclore brasileiro

Anderson Oliveira

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Copyright :: All Rights ReservedRegistered :: 2013-04-14 01:44:23

Title :: O Legado do GuardiãoCategory :: Literatura, Conto, Literatura Brasileira

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O pequeno posto policial de Vale Formoso, no interior de Minas Gerais, vivia deserto. Em uma cidade tão pacata as ocorrências policiais eram quase nulas. O soldado Antônio Valente gostava assim. Quando não ficava de plantão no posto gostava de andar pela cidade, conversando e cumprimentando seus moradores, que conhecia desde a infância.

Hoje era um dia de ficar de plantão. Resolveu se sentar atrás de sua mesa e saborear uma suculenta manga, torcendo para as horas passarem logo e o plantonista noturno, Valdir, vier rendê-lo para poder ir para casa. Já fora o tempo que esperava ansiosamente por uma ocorrência para entrar em ação.

Olhando para fora, via a praça central da cidade. Com o suco da manga a lhe escorrer pelo queixo, Valente viu Verinha cruzar a praça. Um mar de lembranças e emoções passaram por sua cabeça, pois era apaixonado por aquela bela mulher desde sua infância. Na sua adolescência, ele ficou anos fora da cidade e quando voltou ela estava com outro rapaz, que veio a ser seu marido. Valente encarou tudo como paixonite de criança, mas sempre que via Verinha todos os seus sentimentos vinham à tona. Ainda mais agora, quando a jovem senhora estava vindo em sua direção.

— Bom dia. — disse ela com nervosismo na voz.

— Bom dia! — ele respondeu se levantando e limpando o rosto.

— Antônio, preciso da sua ajuda!

— O que houve, Verinha? — se assustou Valente quando uma lágrima caiu pela face da mulher.

— O Henrique, meu filho... ele está sumido desde ontem!

— Venha, sente-se, me conte tudo.

Após acalmar a mulher com um copo d'água, Valente ouviu dela que Henrique, um garoto de oito anos, saiu para escola ontem de manhã e desde então não voltou pra casa. Passou a noite ligando para as mães de todos os amigos de Henrique e a cada não que recebia seu coração ficava aflito. Ligou para a polícia, o Valdir do plantão noturno, muito secamente, disse que precisava aguardar 24 horas

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para poder registrar um desaparecimento. Por isso veio só agora pedir ajuda.

Valente conhecia os procedimentos e sabia que Valdir, apesar da grosseria, estava certo. Mas o policial do turno da noite não tinha visto os olhos desolados de uma mãe que não sabia onde seu filho estava. Valente então resolveu que ia pessoalmente buscar o garoto. Passou um rádio para o outro policial do turno, o Garcia, e marcou encontro ali fora na praça.

Ao lado do posto policial ficava a padaria do seu Teixeira. Lá, Valente ouviu um grupo de operários da Madeireira Fonseca, empresa de grande porte que era alvo de constantes protestos de ambientalistas, que diziam que suas práticas eram ilegais. Enquanto Garcia não chegava com a viatura, prestou atenção da conversa dos trabalhadores.

— Eu sei o que eu vi, Chico! Era uma assombração!

— Larga de conversa, homem!

— Tô falando pro cês! Tão aqui toda a rapaziada que não me deixa mentir! — o homem que falava tomou uma dose de pinga enquanto seus colegas com caras assustadas concordavam com ele. — Aquilo era obra do tinhoso!

— Mas afinal, o que você viu, João? — disse o incrédulo Chico, que parecia ser o superior dos operários, sentado na mesa na calçada da padaria tentando almoçar.

— Bem, ver eu não vi, pois o bicho era muito rápido. — e novamente todos concordaram com João. — Mas todo mundo aqui ouviu aquele assobio diabólico!

— E assombração assobia, João?! — disse rindo Chico. Valente, de onde estava, ficou bem interessado nessa parte da conversa.

— Chamo de assobio, mas era uma espécie de grito que dói nos ouvido!

— Bah, cês ouviram algum macaco daqueles gritadores que a gente vê na TV! Chega de frescura e voltem logo pro batente!

— Não era macaco coisa nenhuma, Chico! Macaco não corre daquele jeito e nem faz isso, ô: — e João mandou trazer uma motosserra totalmente avariada, com sua lâmina entortada e imprestável.

— Que isso, homem! Essa ferramente custa uma nota! — se espantou Chico, se levantando.

— Eu sei, eu sei. Nós a achamos assim, em cima do toco de árvore onde a deixamos. Foi quando ouvimos o assobio e vimos a coisa correr que nem foguete

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pro meio da mata. O Claudiomir aqui, que tava com a espingarda, atirou nele, mas não se pode matar assombração, né?

— Mas eu acho que acertei o desgraçado! — disse Claudiomir, suando bicas.

— Eu não boto meus pé naquela mata outra vez! — disse outro operário. — Isso aí é coisa do demo, e agora que ele tomou um tiro vai querer se vingar de nós! — os outros operários concordaram. Chico pediu calma a todos sem saber o que fazer com aquele bando de caipiras cagões.

Valente pensou em se aproximar e tirar a história à limpo, afinal ouviu falar em depredação ao patrimônio e tiros na mata. Mas quando ia fazer isso, Garcia chegou. A Madeireira teria que esperar. Embarcou com Verinha no veículo e foram até a escola onde Henrique estudava.

Lá Valente interrogou os funcionários e a professora, e descobriu só que viram o menino fazer o caminho de sempre, junto com os colegas e acompanhado por alguns adultos até o ponto de ônibus. As vezes o garoto ia de ônibus até a casa da tia, junto com os dois primos que também estudavam ali. Já se sabia que ontem ele não fez esse caminho.

Com a permissão da professora conversaram com alguns garotos da turma de Henrique. Ainda que assustados, dois meninos, disseram que Henrique estava estranho ontem, estava quieto e com olhar distante. Os garotos contaram que quando o ônibus passava perto da reserva florestal, quando um passageiro ia descer, Henrique desceu também. Muito assustados, os garotos ainda disseram que viram ele se dirigindo para a mata. Depois de ouvir o relado, Valente se despediu da professora e foi com Verinha e Garcia na viatura até a reserva da mata.

Era quatro horas da tarde quando chegaram no local. Vale Formoso tinha uma área de mata preservada — que a Madeireira Fonseca ganhou permissão para explorar — que ocupava mais da metade do território do município. A reserva era cortada pelo rio São Francisco e era temporada de pesca, o que fazia do pedaço onde a viatura foi estacionar um ponto movimentado nessa época. Ali era o ponto mais perto da estrada por onde o ônibus que levava Henrique passava.

Os três desceram do carro e Valente e Garcia foram fazer perguntas aos pescadores. Verinha ficou encostada na viatura, olhava para todos os lados, buscando pelo rosto do filho.

— Verinha... — disse Valente voltando. — Os pescadores disseram que ontem, mais ou menos na hora que o Henrique saiu da escola, viram um grupo de garotos entrando da floresta.

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— Meu Deus, será que--?!

— Não sabemos, Verinha, não sabemos. É estranho, pois não recebemos queixas de outras crianças desaparecidas. Mas vamos fazer uma busca na mata.

— Busca na mata, Valente? — disse Garcia, não muito disposto empreender a demanda.

— Sim, Garcia. Sabe-se lá o que diabos essas crianças foram aprontar. Não devem ter ido longe. Ainda é possível encontrar ao menos algum rastro.

— Eu sei, mas já são quatro horas. Mais duas horas e anoitece.

— Por favor, Antônio! Traga meu Henrique em segurança! — apelou Verinha chorando. Aquele pedido tocou fundo no peito do policial que os protestos de Garcia não iriam adiantar em nada.

— Eu trarei seu filho de volta, Verinha. — disse convicto Valente olhando nos olhos da mulher. Ela assentiu com a cabeça, em silêncio, engolindo um soluço emocionado. Em seguida Valente olhou para Garcia com firmeza. Este, por sua vez, se limitou em ir até a viatura e tirar duas lanternas, facões e cantis. Naquelas bandas, a polícia andava preparada para situações assim. — Se não voltarmos antes do anoitecer, ligue pra alguém vir te buscar.

— Tomem cuidado.

Com todos os equipamentos prontos, os dois policiais entraram na floresta. O único acesso era uma trilha aberta a picadas, muito usada para turismo ecológico antigamente, mas desde que a Madeireira começou suas obras ela só era usada por seus funcionários e uns poucos pesquisadores da faculdade da cidade.

Aquele trecho da mata era cortado por um pequeno córrego, afluente do velho Chico. A trilha seguia um bom trecho paralela a sua margem sul. Valente esperava encontrar Henrique ali perto. Seria um risco tremendo adentrar mais fundo na mata. A área de obras da Madeireira ainda ficava distante por alguns hectares, único lugar onde poderia encontrar alguma alma vivente. Todo o resto da floresta era mata fechada, selvagem e perigosa.

Uma hora se passou e o sol da tarde já ficava obstruído pelas copas das árvores. Os coturnos dos policiais afundavam no solo fofo e úmido naquela parte da trilha há muito abandonada. Suas camisas grudavam no corpo, o suor escorria por suas têmporas. Valente achou melhor descer até a margem do rio, onde além de aproveitar a luz do sol, poderiam reabastecer seus cantis.

Desceram para o norte, e não demorou muito até verem ao longe o córrego calmo e cristalino. Valente olhou aquela paisagem selvagem, piscou os olhos e de

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repente se sentiu estranho. Era como uma lembrança esquecida, um sonho de um passado distante. Era criança, estava com medo, com fome e com frio. Estava perdido, com o rosto molhado de lágrimas e as mãos sujas de terra. Queria voltar para sua mãe, mas não sabia o caminho. Ouvia o barulho do rio, o canto dos pássaros, mas tudo ficou em silêncio quando um assombroso ruído cortou a mata.

Valente sentiu um frio na espinha. Voltou a realidade. Se escorou numa árvore para não cair. A vista estava turva. O que foi isso? Nunca estivera aqui antes na sua infância. Parecia um sonho. Limpou o suor da testa com a mão. Garcia veio acudi-lo.

— O que houve, Valente?

— Não sei. Mas já estou bem. Acho que minha pressão caiu.

— Venha, lave-se no rio, vai se sentir melhor.

Seguindo o conselho do amigo, Valente foi até a margem do rio e com as mãos jogou água no rosto. Garcia fazia o mesmo para aliviar o calor. Após beber um pouco de água, Garcia olhou ao seu lado e estacou.

— Valente, olha isso!

— O que foi?

— São pegadas! Devem ser do garoto. — Apontou Garcia para marcas na terra. Pequenos pés calçados com tênis.

— Santo Deus! Finalmente alguma pista!

— Mas olha só: ele não estava sozinho. — o policial atentou para outras pegadas de pés igualmente pequenos, mas descalços. Cerca de seis outros rastros.

— Os pescadores disseram que viram um grupo de crianças entrar na mata. Henrique estava com eles realmente. O estranho é que ninguém mais denunciou o desaparecimento de crianças além de Verinha.

— Verdade, Valente. Só se...

— O que foi, Garcia?

— Você não vai se lembrar, pois estava de férias, mas ano passado teve um caso sim. Um casal registrou o desaparecimento do garoto de sete anos. Procuramos pelas estradas e nas cidades vizinhas por semanas, mas não encontramos nenhum sinal. Não pensamos em procurar aqui nesse inferno.

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— E que fim levou o caso?

— Foi arquivado. Lembro que a foto do menino está num daqueles cartazes de crianças desaparecidas. Tem muitas crianças naquele cartaz...

— Será que todas essas pegadas...? — Valente não concluiu a frase. A possibilidade que se formou em sua mente era terrível demais para poder acreditar. — Vamos seguir as marcas.

Se levantaram e seguiram os rastros, que iam em direção ao oeste, mais fundo na mata fechada. Andaram alguns passos até que Valente notou algo estranho.

— Olha essa pegada aqui. Esse garoto tá indo na direção oposta.

— Será que ele não passou aqui depois?

— Não sei. Vamos deixa isso pra depois, vamos nos ater ao rastro do Henrique. — Valente disse quando voltaram a entrar na mata fechada.

Era quase seis da tarde e no interior da floresta reinava a penumbra. Garcia acendeu a lanterna. Pisavam em terreno forrado de folhas. As pegadas se transformaram em meros sulcos no solo, indecifráveis.

— Que diabos! — disse Garcia. — Eu odeio esse lugar. Tomara que a madeireira derrube logo tudo isso!

— Para de ser ranzinza, homem. Se essa floresta morrer, o que será dos animais que moram aqui?

— Ora, que morram também. Já tá começando a aparecer insetos e vai saber o que mais tem aqui. Cobras, escorpiões, onça... Melhor eu checar minha arma.

Assim que Garcia sacou o revolver, um zumbido agudo ecoou pelas as árvores. Ambos taparam seus ouvidos e estremeceram. O som ainda ecoou por alguns instantes antes de desaparecer.

— Virgem! O que diabos foi isso?! — disse Garcia apontando a lanterna para o alto, segurando o revolver bem firme na mão direita.

— Não sei. — disse Valente, sem certeza na voz. Na hora se lembrou da conversa dos operários na padaria. A assombração que tinham visto. Não era sujeito de acreditar em crendices. Ainda.

Garcia guardou a arma no coldre. Aproveitou e olhou no seu relógio. — Já são cinco e meia. É melhor a gente voltar.

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Valente demorou responder. Por um lado queria retornar, sair daquela mata inóspita e possivelmente assombrada e voltar para sua casa, mas por outro lado queria encontrar o filho de Verinha. Imaginava a jovem senhora aflita esperando por notícias. Qual seria sua reação quando visse os dois voltando sem o menino? Mas por mais afeto que sentia pela mulher, ele ainda era um profissional e sabia dos riscos de continuar na floresta ao anoitecer. Deveria voltar, organizar uma equipe de busca, convocar policiais das outras cidades. Talvez avisar a polícia florestal. Sabia que o menino não estava sozinho afinal. Alguém iria, de certa forma, cuidar dele.

Sem nada dizer, girou nos calcanhares e iniciou o caminho de volta. Parecia que a noite já tinha caído. O caminho de volta era mais escuro. Uma gota de suor caiu no seu olho. Valente piscou e quando abriu os olhos se viu imerso naquele sonho novamente.

Era um garoto. Estava no banco traseiro de um carro. Se lembrava disso. Quando tinha seis anos foi morar com a avó em outra cidade. Ficou lá por sete anos. Estava na estrada. O carro entrou em um túnel. O túnel ficou completamente escuro. Sentiu medo. Quando um lampejo de claridade surgiu, uma densa floresta se descortinou a sua frente. Não estava no carro, talvez nunca estivera. Estava perdido na mata. Mas não estava sozinho.

— Céus! — disse voltando a si, caindo de joelhos no chão.

— Meu Deus, homem! Passou mal de novo?

Garcia não ouviu resposta. Em vez disso os dois ouviram novamente o assobio. Agora mais perto, mais cortante, penetrando nos ossos e ali ficando por um tempo. Automaticamente Garcia levou a mão na arma e a sacou. Olhou ao redor apontando a arma e a lanterna. Não via nada além de árvores. O que diabos estava acontecendo? O assobio apareceu de novo, agora mais perto ainda. Viu de soslaio um movimento nas árvores. Um sorriso nos lábios. Se lembrou do filme O Predador. Não segurou o dedo no gatilho.

— Não! — gritou Valente quando Garcia atirou. O barulho do tiro fez os pássaros voarem. Um corpo caiu das árvores entre as folhas. Valente foi até Garcia e tirou a arma dele. — O que você fez?! Ficou louco?!

Apontou a lanterna para o corpo caído. Um macaco. Ainda estava respirando.

— Eu pensei que--

A voz de Garcia foi cortada pelo assobio demoníaco. Agora, o acompanhando, um vento gelado tomou o ambiente outrora quente da mata. Valente teve a nítida impressão de sentir uma presença rodear o perímetro. Uma presença terrivelmente familiar.

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— Vamos! Vamos sair daqui! — disse Valente se pondo a correr. Fosse o que fosse o dono do assobio, ele estava muito zangado.

Os dois correram pela trilha que eles mesmos abriram. O vento estranho. O assobio repetitivo e agonizante. Queriam dar o fora dali o quanto antes. Os pés afundando na terra fofa. O suor escorrendo pelo corpo. A mata que não acabava. A trilha havia sumido. As picadas feitas a facão se misturaram ao resto da escura floresta. Estavam perdidos.

— Meu Deus! O que é isso!? — gritou Garcia. Jurava que podia ver um vulto avermelhado entre as árvores os perseguindo.

— Estamos perdidos! — disse Valente para si mesmo, ignorando o outro. Desviando de uma árvore parou bruscamente quando seus pés vacilaram. Uma íngreme encosta. Não se lembrava de ter passado por ali.

— Arf! Arf! Não!! — Garcia vinha atrás e não viu Valente parado. Trombou com o colega e os dois rolaram pela encosta. A arma de Garcia se perdeu entre as folhas caídas. Os dois caíram em terreno lamacento. Valente percebeu a vista escurecer. Sua cabeça doía e não conseguia se levantar. Não ouvia a voz de Garcia.

Apagou.

Abriu os olhos. A noite já cobria a floresta. Nada além do brilho débil da lua minguante se podia ver entre as copas das árvores. Valente se ergueu. Procurou sua lanterna. Sentiu o gosto de sangue na boca. Sua costela doía. Maldição! Quanto tempo ficou desacordado? E o Garcia? Onde ele estava?

Tateou ao seu redor e encontrou uma lanterna. Custosamente a ligou. Seu feixe de luz não ia muito longe. Não havia nada para ver além de troncos e folhas. Apontou a lanterna para seu lado direito. Lá estava Garcia, também desacordado, de costas para ele. Se arrastou até o amigo e o sacudiu.

— Vamos, cara. Precisamos sair daqui. — não houve resposta. — Garcia? Levanta! — sacudiu o homem mais uma vez. — Não. Não pode ser! — levou a mão ao pescoço de Garcia para sentir sua pulsação. Porém antes disso, sentiu um volume áspero e rígido. — Garcia!! — se desesperou. Sem mais delongas, virou o corpo de Garcia. — Jesus! — um galho estava cravado na garganta de Garcia. Ele estava morto.

Valente recuou assustado. Os olhos abertos de Garcia ainda testemunhavam o terror de sua morte. O galho atravessou seu pescoço, deixando respingos de sangue em sua roupa e no rosto. Incidente da queda. Mas Valente não tinha certeza. Se lembrou da criatura que os perseguia. Seu assobio agoniante. Não havia assobio

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agora, mas Valente podia sentir sua presença. Estava sendo observado na escuridão. Era melhor sair dali.

Se levantou e sentiu o joelho. Mesmo assim suportou a dor e mancando deixou o local. Não fazia ideia de que rumo seguir. Só tinha o fraco feixe da lanterna como orientação. Tentou subir a encosta por onde rolara. Mas com seu joelho doendo era praticamente impossível. Resolveu então seguir por onde julgava ser o leste. Em algum momento iria deixar a mata se seguisse pelo leste. De manhã iria providenciar o sepultamento de Garcia e o resgate de Henrique. Pobre garoto. O que será que aconteceu com ele?

— Não! — disse Valente instintivamente quando o maldito assobio ecoou, vindo de todos os lados. A criatura estava vindo. Tentou correr, se escorando nas árvores, com a lanterna tremendo em sua mão. Respiração ofegante. Coração acelerado. Como da última vez. Última vez? Que última vez, homem?

Era criança. Perdido na floresta. O túnel. A escuridão da selva. Não estava sozinho.

Confusão na sua cabeça. O assobio gelando sua espinha. Seu som agudo e dolorido parecia destruir barreiras nas suas memórias que escondiam lembranças proibidas. Tudo voltava a tona, anos confusos da sua infância.

Agora tudo estava claro.

Não tinha passado a infância com sua avó. Morou com ela em outra cidade sim, mas foi na adolescência. Onde estivera dos seis aos treze anos? A floresta. Esta floresta. A criatura o chamou. Estava preso aquele chamado. Seguiu sua voz até a mata. Sentiu medo e fome. Mas ele veio e cuidou dele. Ele o ensinou, o preparou. Anos vivendo nas árvores, entre os bichos, falando com eles. A lei da selva, a lei da mãe natureza. Tudo isso lembrava agora. Pois quando a criatura o devolveu para sua família, tudo foi esquecido. Não ouvia a voz das árvores. Ainda assim, ficou o respeito pelas coisas vivas, a vontade de proteger. Por isso se tornou policial. Foi criado para ser um guardião. Por isso... não! Não era possível! Lembrava do rosto assustado de Garcia. Lembrava do galho em sua mão. Era preciso defender a floresta. A ameaça deveria morrer. Valente se recordou agora. Ele tinha matado Garcia.

— Não! Santo Deus, NÃO!

Uma pedra no caminho o fez tropeçar. Valente caiu de cara no chão. O assobio parou, mas ele o sentia ali, olhando para ele. Valente ergueu a cabeça, não havia luz suficiente, mas a criatura parecia brilhar, envolta no fogo que parecia sair de seus cabelos. Valente conhecia a criatura.

Um metro e vinte. Pele morena de um indígena. Marcas tribais por todo seu

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corpo cintilavam como fogo. Seus cabelos eram vermelhos como brasas. Seu rosto era velho, quase humano, mas com presas e um nariz de porco do mato. Andava curvado. Tinha um ferimento no ombro. Valente se lembrou do operário da madeireira. Ele atirou no guardião, no protetor da floresta. Por isso seu grito agonizante. Ele estava morrendo.

Valente se levantou e ficou de joelhos. Não iria fugir mais. Só queria ver aquele ser assustador. A criatura chegou mais perto e Valente percebeu seus pés torcidos. Virados para trás. As pegadas que iam na direção oposta. A lenda era real.

— Curupira... — balbuciou Valente.

O curupira parecia farejá-lo. Abriu a boca, mas em vez de um grito emitiu seu assobio sinistro. Gesticulou algo incompreensível. Valente percebia agora. Na sua infância fora atraído para a mata para viver com o curupira. Assim como Henrique agora e as outras crianças. Esse curupira iria morrer. Ele escolheu Valente como seu sucessor.

A criatura, de repente, desapareceu de sua vista. Era mais rápida que o olho, mesmo ferida. Valente aguardou em silêncio e no escuro. O que iria acontecer agora?

Um golpe no peito. Valente foi ao chão. Dor. O assobio. Viu o brilho do fogo sobre si. O curupira o atacou.

— Argh! — com suas garras ferinas rasgou suas roupas e sua pele. Valente procurou lutar, mas novos arranhões o repeliam. Buscou sua arma, mas notou que o coldre junto com o cinto não estava mais ali. — O que está... fazendo comigo?! — apelou, mas o curupira não deu atenção.

Sentiu um forte golpe na cabeça. Tonteou. Iria perder a consciência. Seria melhor. Mas antes disso, para seu terror, ouviu quando os ossos dos seus pés foram quebrados. Sentiu quando seus tornozelos foram torcidos. Gritou quando a dor excruciante chegou ao seu cérebro. Seu grito reverberou por toda a floresta.

Fechou os olhos.

A luz do sol feriu sua retina. Aos poucos o brilho leitoso ganhou forma. Folhas verdes e amarelas tentavam esconder um céu azul. O ouvido zumbindo. Gosto de sangue na boca. O que aconteceu?

Valente piscou algumas vezes e ergueu a cabeça. Olhou seu peito nu. Se lembrou de tudo quando viu as feridas no seu corpo. Arregalou os olhos quando ergueu os braços e viu as marcas em sua pele. Linhas tribais ainda sujas de sangue.

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Percebeu que estava nu, deitado no meio da mata. A respiração difícil. Tentou se levantar. Dobrou o joelho e a dor percorreu sua perna. Se ergueu um pouco e viu a causa da dor.

Seus pés estavam torcidos, virados para trás. Seus tornozelos inchados e roxos. Deus do céu! No que Valente havia se transformado?

Nesse instante cinco meninos surgiram no seu campo de visão, saídos das árvores. Seus olhos eram vagos e distantes. Dois deles estavam nus, com o corpo sujo de barro. Outros dois ainda vestiam farrapos. Apenas um ainda estava totalmente vestido, apesar de sujo. Valente reconheceu o garoto. Era Henrique, o filho de Verinha. Estavam todos hipnotizados pelo poder do curupira. Eram acólitos agora. O iriam servir e treinar para um dia serem guardiões das matas. E Valente agora seria seu tutor. Mas sua transformação ainda não estava completa. Ainda era muito humano para aceitar sua sina. Aos poucos iria aceitá-la, assim que seu corpo estivesse totalmente mudado. Não percebia agora, mas já estava dez centímetros mais baixo. Em questão de semanas não iria se lembrar da sua vida como policial. Não iria se lembrar da sua família. Não se lembraria de Verinha. A floresta seria sua casa. Os animais e as árvores seriam sua família. Esses garotos seriam seus protegidos.

Os meninos se aproximaram. Cada um carregou um de seus membros. Henrique levantou sua cabeça. Valente não tentou resistir, estava incrivelmente fraco. E seria inútil. Algo lhe dizia que seu destino agora era irreversível. Verteu uma lágrima. O rosto de Verinha veio em sua mente. Se pudesse ainda fazer algo por ela seria cuidar de seu filho, na medida do possível.

Chorou copiosamente quando os garotos o carregaram para dentro da mata fechada. Queria gritar, mas quando abria a boca o único som que saiu foi um triste, agonizante e horripilante assobio.

FIM