O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote

9
8/18/2019 O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote http://slidepdf.com/reader/full/o-lima-barreto-que-nos-olha-por-beatriz-resende-revista-serrote 1/9 07/01/2016 O Li ma Bar reto que nos ol ha – por Beatr iz Resende | r evi sta ser rote http://www.revistaserrote.com.br/2016/01/o-lima-barreto-que-nos-olha-beatriz-resende/ 1/9 O Lima Barreto que nos olha por BEATRIZ RESENDE O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha. GEORGES DIDI-HUBERMAN Lima Barreto em sua última passagem pelo hospital (1919) Noite de Natal de 1919. O escritor Lima Barreto (1881 – 1922) é levado, delirante, ao Hospício Nacional de Alienados, o antigo Hospício Pedro II que mudara de nome com a República. Recebe um uniforme, na verdade um pijama, é identificado e fotografado. Por uns bons 20 anos procurei por essa foto, mesmo não sabendo se ela realmente existia. Nunca percebi bem o porquê, mas, como parte de minhas pesquisas sobre o autor, parecia ser preciso ver o registro oficial dessa entrada no mundo da loucura, descrita por ele mesmo no grande momento de sua obra que é o Diário do hospício . Talvez porque nunca me recuperara completamente da emoção experimentada ao ler, na Biblioteca Nacional, escrito a lápis, no verso das folhas já usadas que conseguira da dire ção do hospício, o relato dos três meses que o autor passou entre os loucos, desvalidos ou criminosos recolhidos ao edifício que mais se assemelhava a um palácio, na praia da Sau dade, antigo nome da praia Vermelha, naquele tempo em que o prédio ficava bem em frente ao mar. As referências feitas ao recolhimento em A vida de Lima Barreto , preciosa biografia de Francisco de Assis Barbosa, não se mostravam suficientes. Ainda faltavam peças. Em 2004, depois de acabar o trabalho de organização e comentário do conjunto de crônicas do autor, enquanto a editora preparava os dois volumes de Toda crônica , tentei mais uma vez encontrar o livro de registros do hospício no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no campus da praia Vermelha. Deve fazer algum sentido que o prédio do século XIX, construído para ser o Hospício Pedro II, tenha passado a abrigar em meados do século XX a reitoria da Universidade do Brasil e depois parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituições totais? Ainda não seria daquela vez que encontraria a prova material do que tinha sido relatado no diário, que me defrontaria com o registro da época, com documentos que se pretendiam, por pertencerem ao mundo da ciência, objetivos. Os livros tinham, ao que parece, saído em viagem. Pouco depois, no entanto, uma servidora da biblioteca do Instituto de Psiquiatria, para onde o material tinha sido levado, entrou em contato comigo dizendo que encontrara o que eu procurava. Peças da memória da Psiquiatria, como máquina de eletrochoques, negativos em vidro e os livros de registro começavam a se organizar, ainda bastante precariamente naquele ano, na biblioteca. 1 2

Transcript of O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote

Page 1: O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote

8/18/2019 O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote

http://slidepdf.com/reader/full/o-lima-barreto-que-nos-olha-por-beatriz-resende-revista-serrote 1/9

07/01/2016 O Li ma Bar reto que nos ol ha – por Beatr iz Resende | r evi sta ser rote

http://www.revistaserrote.com.br/2016/01/o-lima-barreto-que-nos-olha-beatriz-resende/ 1/9

O Lima Barreto que nos olha

por BEATRIZ RESENDE

O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha.

GEORGES DIDI-HUBERMAN

Lima Barreto em sua última passagem pelo hospital (1919)

Noite de Natal de 1919. O escritor Lima Barreto (1881 – 1922) é levado, delirante, ao Hospício Nacional de Alienados, o antigo Hospício Pedro II que

mudara de nome com a República. Recebe um uniforme, na verdade um pijama, é identificado e fotografado.

Por uns bons 20 anos procurei por essa foto, mesmo não sabendo se ela realmente existia. Nunca percebi bem o porquê, mas, como parte de minhaspesquisas sobre o autor, parecia ser preciso ver o registro oficial dessa entrada no mundo da loucura, descrita por ele mesmo no grande momento de sua

obra que é o Diário do hospício . Talvez porque nunca me recuperara completamente da emoção experimentada ao ler, na Biblioteca Nacional, escrito a

lápis, no verso das folhas já usadas que conseguira da dire  ção do hospício, o relato dos três meses que o autor passou entre os loucos, desvalidos ou

criminosos recolhidos ao edifício que mais se assemelhava a um palácio, na praia da Sau  dade, antigo nome da praia Vermelha, naquele tempo em que o

prédio ficava bem em frente ao mar. As referências feitas ao recolhimento em A vida de Lima Barreto , preciosa biografia de Francisco de Assis Barbosa,

não se mostravam suficientes. Ainda faltavam peças.

Em 2004, depois de acabar o trabalho de organização e comentário do conjunto de crônicas do autor, enquanto a editora preparava os dois volumes de

Toda crônica , tentei mais uma vez encontrar o livro de registros do hospício no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no

campus da praia Vermelha. Deve fazer algum sentido que o prédio do século XIX, construído para ser o Hospício Pedro II, tenha passado a abrigar em

meados do século XX a reitoria da Universidade do Brasil e depois parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituições totais?

Ainda não seria daquela vez que encontraria a prova material do que tinha sido relatado no diário, que me defrontaria com o registro da época, com

documentos que se pretendiam, por pertencerem ao mundo da ciência, objetivos. Os livros tinham, ao que parece, saído em viagem. Pouco depois, noentanto, uma servidora da biblioteca do Instituto de Psiquiatria, para onde o material tinha sido levado, entrou em contato comigo dizendo que

encontrara o que eu procurava. Peças da memória da Psiquiatria, como máquina de eletrochoques, negativos em vidro e os livros de registro começavam a

se organizar, ainda bastante precariamente naquele ano, na biblioteca.

1

2

Page 2: O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote

8/18/2019 O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote

http://slidepdf.com/reader/full/o-lima-barreto-que-nos-olha-por-beatriz-resende-revista-serrote 2/9

07/01/2016 O Li ma Bar reto que nos ol ha – por Beatr iz Resende | r evi sta ser rote

http://www.revistaserrote.com.br/2016/01/o-lima-barreto-que-nos-olha-beatriz-resende/ 2/9

Lima Barreto em sua primeira internação, em 1914

Fui correndo, ansiosa, como que atendendo a algum tipo e chamado. E lá estavam, o registro e a foto, que nunca tinham aparecido diante dos olhos de

alguém fora da instituição. Por alguma razão, nem mesmo o biógrafo tivera acesso à imagem em suas vastas pesquisas. Em seguida, chamei um fotógrafo,

que não só registrou a imagem do interno como, inoculado também pelo que de mágico parecia haver naqueles livros mantidos como secretos, reproduziu

outras páginas – incluindo a anamnese feita pelo médico e outros documentos de internação, além da imagem de outros internos, fotos que seriam

também importantes para compreendermos o processo de recolhimento.

Seis anos depois, em setembro de 2010, a pesquisadora Daniela Birman voltou ao mesmo espaço da instituição e con  seguiu encontrar o livro de registro

anterior, de 1914, com a documentação da primeira entrada do escritor no Hospício Nacional e a foto dele aos 33 anos.

Completava-se, assim, a parca iconografia de um dos maio  res escritores da literatura brasileira.

 

NAS OBR S COMPLET S, A CONSTRUÇÃO DE UM AUTOR

O reconhecimento em vida da importância do escritor foi, como se sabe, escasso e polêmico. Triste fim de Policarpo Quaresma  foi publicado em folhetins

do Jornal do Commer  

cio entre agosto e outubro de 1911. Em livro só apareceu em 1916, editado pela Revista dos Tribunais , graças à boa vontade e Félix

Pacheco e pago pelo próprio autor: “Tomei dinheiro aqui e dali, inclusive do Santos (Noronha Santos), que me emprestou 300 mil-réis, e o Benedito

imprimiu-o”. Parte do dinheiro fora obtida em empréstimos de agiotas do Ministério da Guerra, onde trabalhava.

Os contos iam sendo publicados em revistas diversas; as crônicas, responsáveis pelo reconhecimento que recebe sobretudo como jornalista, enviadas para

jornais diversos. A colaboração no A.B.C., fixa entre 1918 e 1919, foi interrom  pida depois de o semanário publicar um artigo ofensivo aos negros. As

crônicas de mais forte teor político frequen temente eram escritas a convite de editores de publicações menores e efêmeras, como Astrojildo Pereira. Nos

últimos anos de vida, manteve uma intensa colaboração para a Careta .

3

Page 3: O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote

8/18/2019 O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote

http://slidepdf.com/reader/full/o-lima-barreto-que-nos-olha-por-beatriz-resende-revista-serrote 3/9

07/01/2016 O Li ma Bar reto que nos ol ha – por Beatr iz Resende | r evi sta ser rote

http://www.revistaserrote.com.br/2016/01/o-lima-barreto-que-nos-olha-beatriz-resende/ 3/9

Lima Barreto em 1909, ano de lançamento de “Recordações do escrivão Isaías Caminha”

Afonso Henriques de Lima Barreto só será mesmo incorpo rado à chamada história da literatura brasileira, ao elenco de escritores brasileiros tidos como

dignos de serem estudados e, assim, ao cânone da literatura brasileira, a partir da publicação, em 1956, pela editora Brasiliense, das Obras completas ,

orga nizadas por Francisco de Assis Barbosa com a colaboração de Antônio Houaiss e M. Cavalcanti Proença. Em 1952, Assis Barbosa publicara a primeira

edição da biografia, realizada após vários anos de pesquisa.

É importante refazer esse percurso por sua relevância, já naquela época, como método de estudo, como abordagem de uma obra na perspectiva

multidisciplinar, hoje reconhecida como fundamental. Ao biógrafo de Lima, historiador de origem, juntaram-se filólogos, críticos literários e jornalistas

na leitura e preparação dos textos. O conjunto do que, naquele momento, foi considerado “obras completas” – na verdade, pouco se pôde acrescentar a

ele entre descobertas e resgates de textos de lá para cá – abarcava romances (inclusive o inacabado Cemitério dos vivos ), contos, crônicas (algumas delas

sob a forma de resenhas de livros) e editoriais, mas também escritos de origem diversa, como o Diário do hospício , transcrito do original manuscrito, e o

Diário íntimo , compilado a partir de cadernetas variadas. Os manuscritos foram encontrados na casa do escritor alguns anos após sua morte, sob a guarda

amorosa da irmã.

Vale notar, a propósito, a absoluta convicção de Lima Barreto sobre a importância de sua própria obra. Organizara pessoalmente todo o material,

incluindo a listagem dos livros de sua biblioteca – nada acanhada para uma pequena casa de subúrbio, com títulos em inglês e francês – e os amarrados derecortes a que chamou “Retalhos” – reunindo material tirado de revistas e jornais, inclusive os que chegavam a Todos os Santos vindos do exterior.

No processo de legitimação do autor de que aqui tratamos, três aspectos merecem destaque e podem ser ativados como formas desejáveis de pesquisa no

campo literário. Primeiro, a noção de arquivo, hoje tão importante para os estudos literários. É do arquivo do escritor que parte a pesquisa inicial e se

torna possível a edição dos volumes das Obras completas . Por arquivo de escritor, entendemos hoje, além dos textos literários em si, elementos de uma

rede textual mais ampla, registros de contextos discursivos que envolvem produção e recepção, acervo privado e documentos de circulação pública.

Fazem parte ainda do acervo fotografias e, em certos casos, objetos e pertences diversos.

Em seguida, o cruzamento de saberes e a troca de metodologias disciplinares que resultaram no deslocamento de um historiador de seu campo ori  ginal e

possibilitaram seu encontro com outros especialistas e intelectuais de atuação profissional diversa todos mobilizados em torno de um mesmo obje tivo, a

produção de um autor, aqui resultado desses múltiplos olhares que se voltaram para os textos.

Finalmente, a concepção tão contemporânea da não hierarquização de gêneros e práticas literárias, um conceito aberto para além dos limites que,

durante tantos anos, reduziram o conceito de literatura. Apresentava-se ao público, assim, uma obra em que, como afirma Jacques Rancière, “tudo fala”,

abolindo-se hierarquias da ordem representativa.

“Não existem temas nobres e temas vulgares, muito menos episódios narrativos importantes e episódios descritivos acessórios”, escreve Rancière.

“Porque não há coisa alguma que não carregue em si a potên  cia da linguagem. Tudo está em pé de igualdade, tudo é igual  mente importante, igualmente

significativo.”

Essa forma de pensar a arte, que assume a destruição de categorias, fronteiras e hierarquias, constitui um regime estético definido pelo conjunto de

4

Page 4: O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote

8/18/2019 O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote

http://slidepdf.com/reader/full/o-lima-barreto-que-nos-olha-por-beatriz-resende-revista-serrote 4/9

07/01/2016 O Li ma Bar reto que nos ol ha – por Beatr iz Resende | r evi sta ser rote

http://www.revistaserrote.com.br/2016/01/o-lima-barreto-que-nos-olha-beatriz-resende/ 4/9

relações entre ver, fazer e dizer. É essa transformação que permite combinações inéditas, a partir da ruptura de um certo número de fronteiras como as

que separam as artes entre si, as formas de arte, as formas de vida, a arte pura da arte aplicada, a arte da não arte, o narrativo do descritivo e do simbólico.

Ao crítico literário, ao pesquisador, cabe, ao que me parece, sobretudo um trabalho de cartografia que atravessa todas essas formas de manifestação,

formando um sistema de possíveis.

Para pesquisadores de gerações posteriores, dentre os quais se destacam Nicolau Sevcenko e Antonio Arnoni Prado, ficou logo claro que era impossível

conhecer realmente o escritor, perceber sua importância no quadro da literatura brasileira e na formação mesma da República que vivemos, se não

relacionássemos sua obra de ficção a seus outros escritos como as crônicas, diários, registros íntimos.

Essa noção de arquivo, para a qual as pesquisas de Georges Didi-Huberman têm sido contribuição provocadora, se impõe, portanto, como proposta de

pesquisa evocando novas tarefas, inclusive as de recuperação, ordenação e classificação nada fáceis entre nós, no Brasil de curta memória. Trata-se de

“uma história que já podemos dizer fantasmal ”, conforme escreve Didi-Huberman sobre Aby Warburg, “no sentido de que nela o arquivo é considerado o vestígio material do rumor dos mortos”.

 

UMA TRAJETÓRIA PRECARIAMENTE DOCUMENTADA

Ao menos até recentemente, antes da difusão massiva da fo tografia digital e de sua circulação nas redes sociais, a situação familiar e econômica de um

escritor poderia ser avaliada a partir do seu álbum de retratos. As fotobiografias são, por isso, quase sempre reveladoras: nelas temos o autor criança, no

co légio, ao se formar, casando-se, recebendo prêmios. Cerimô nias e diversos rituais burgueses revelam origem e formação do escritor, e são mais

frequentes quando se referem àqueles que foram destinados a encontrar, sem maiores dificuldades, a fama. A falta desse tipo de fotos pode evidenciar

pobreza, dificuldades encontradas, escassez de apoios que costumam alavancar uma carreira. No campo da literatura, se quisermos avaliar a posição de

um autor no cânone de uma época, nada melhor do que visitar sua fotobiografia.

Órfão de mãe desde muito pequeno, criado por um pai que cedo enlouquece, não há qualquer registro fotográfico da infância ou da juventude de Lima

Barreto, personagem que logo deixa a zona sul da cidade onde nascera, muda-se para um bairro que à época era quase um não-lugar, a Ilha do Gover-

nador, para finalmente ir viver a maior parte da vida em uma chácara em Todos os Santos, acessível ao centro da cidade uni camente pelos trens da

Central.

A mais agradável das fotos que se conhece é identificada por seu biógrafo como sendo de 1909, ano da edição de Recordações do escrivão Isaías Caminha ,

primeiro romance do autor que vai a público, impresso em Portugal, também à custa do autor. A imagem é de um jovem simpático, sentado com as pernas

cruzadas, um meio sorriso no rosto bem escanhoado, vestindo terno completo, com colete, gravata e colarinho engomado. Quase elegante, não fosse um

botão do colete que se abre na altura da cintura.

A foto seguinte, publicada em jornal em 1910, o surpreende, atento e devidamente engravatado, como integrante do júri a chamada Primavera de Sangue,

conflito entre estudantes e a brigada policial no largo de São Francisco, que resultou na morte de dois jovens assassinados pelo militar conhecido como

tenente Wanderley. A mão no queixo e o rosto erguido e desafiante o distinguem dos demais membros do júri. Da participação neste e em outros júris, o

escritor falará em diversas de suas crônicas.

A terceira e última das fotos até há pouco conhecidas, reproduzida ad nauseam , saiu na edição comemorativa de um ano de A Estação Teatral , publicaçãocom a qual contri  buía com certa regularidade. Em texto veiculado na edição e 15 de julho de 1911, com o título “Alguns reparos”, o autor comenta a

edição e a foto: “Dessa forma, não foi possível dar-lhes um medíocre artigo; entretanto, viram meu retrato, não foi? Tirei-o de surpresa, senão teria

cortado o cabelo e pedido emprestada uma outra pigmentação para que a cousa saísse mais decente.”

A essas fotos pouco conhecidas juntam-se algumas caricaturas ou desenhos, inclusive um feito pelo irmão, Carlindo. Das realizadas em vida até as mais

recen  tes, como a de Cássio Loredano para os volumes de Toda crônica , variam a representação do cabelo, mais ou menos crespo, e a do nariz, que vai de

afilado a exagera  damente largo.

As fotos de Lima Barreto não só são poucas como deixam de existir justamente a partir do momento em que começa a se impor, ainda que a duras penas,

como escritor e como jornalista. É como se houvesse uma desistência da imagem, o que vai ser retomado ao lermos as fotos do hospício.

Se as fotos são escassas, as imagens que o escritor constrói de si mesmo são frequentes em crônicas, na corres  pondência e nos diários, mas também nas

obras de ficção. Nas muitas identificações que faz de si próprio, são quatro os temas dominantes, sem que haja exatamente uma hierarquia entre eles.

Constante é a discussão de sua identidade de escritor, inclusive a relação conturbada com o meio literário em que vive. Em crônica de 28 de junho de

1911, afirma: “Eu quero ser escritor porque quero e estou disposto a tomar na vida o lugar que colimei. Queimei os meus navios, deixei tudo, por essa

coisa de letras.” E, mais adiante, no mesmo texto da Gazeta da Tarde , escreve: “Não quero aqui fazer minha biografia; basta, penso eu, que lhes diga que

abandonei todos os caminhos, por esse das letras; e o fiz conscientemente, superiormente, sem nada de mais forte que me desviasse de qualquer outra

ambição”.

Desde o início do diário até o final da vida, em tex  tos diversos, com repercussões em sua ficção, aparecem a cor e as discriminações por racismo de que é

 vítima. “Eu, mulato ou negro, como queiram, estou condenado a ser sempre tomado por contínuo”, anota ele no Diário íntimo . “Entretanto, não me

agasto, minha vida será sempre cheia desse desgosto, e ele far-me-á grande. […] É triste não ser branco.”

Visto como consequência das dificuldades objetivas da vida e do contraste entre os sonhos e a realidade vivida com sofrimentos diversos, o alcoolismo e

seu efeito devastador aparecem desde cedo. No mesmo diário, são os retratos mais dolorosos que de si pinta: “Tinha levado todo o mês a beber, sobretudo

parati. Bebedeira sobre bebedeira, declarada ou não. Comendo pouco e dormindo sabe Deus como. Andei porco, imundo. […] Se não deixar de beber

cachaça, não tenho vergonha.”

5

6

7

8

9

10

Page 5: O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote

8/18/2019 O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote

http://slidepdf.com/reader/full/o-lima-barreto-que-nos-olha-por-beatriz-resende-revista-serrote 5/9

07/01/2016 O Li ma Bar reto que nos ol ha – por Beatr iz Resende | r evi sta ser rote

http://www.revistaserrote.com.br/2016/01/o-lima-barreto-que-nos-olha-beatriz-resende/ 5/9

No canto inferior direito da foto, Lima Barreto, com a mão no queixo, participa do júri da chamada Primavera de Sangue,

em 1910

À bebida se liga, assim, o tema da loucura. Ainda que loucos frequentem sua ficção – e em especial Triste fim de Policarpo Quaresma –, nesses

autorretratos a loucura está associada, com razão, ao alcoolismo.

Lima sempre viveu entre loucos, ele mesmo chegou a dizer isso, o que terá certamente inspirado o interesse e a simpatia por esses excluídos. Ainda

menino, foi viver no entorno o hospício da ilha do Governador, onde o pai, João Henri  ques, trabalhou por anos, até enlouquecer. A família se muda,

então, para a casa de Todos os Santos, onde o pai, sempre emente, morre dois dias depois de Lima Barreto. É assim que o hospício da praia Vermelhasurgirá em sua obra anos antes da primeira internação.

Triste fim de Policarpo Quaresma foi publicado em 1911, três anos antes, portanto, de Lima ter sido recolhido pela primeira vez ao hospício – em agosto

de 1914. Toda a narrativa em torno da internação do personagem merece destaque e impressiona a quantos se dedicam ao estudo do autor, por ser dos

melhores exemplos de que, por vezes, é a vida que imita a arte.

É minuciosa a descrição do suntuoso prédio construído para abrigar loucos e outros rejeitados pela sociedade. As escadarias, as estátuas que ladeiam a

entrada, as colunas, os azulejos do interior, a tristeza dos internos, o terror mesmo que o ambiente infundia nos que entravam no hospício da praia da

Saudade, tudo parece familiar ao autor. Mas ainda não era, de fato.

No romance, é tão assustadora aquela casa “meio hospital, meio prisão, com seu alto gradil, suas janelas gradea  das, a se estender por uns centos de

metros, em face ao mar imenso e verde”, que poucos tinham coragem de visitar o major. Não parecerá menos assustadora quando o autor lá der entrada,

levado à força.

Chegamos, então, na primeira internação no hospício. Em 1914, Lima Barreto já publicara Recordações do escrivão Isaías Caminha , editara a revista

Floreal , escrevera contos como “A Nova Califórnia” e “O homem que sabia javanês” e tinha o Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá pronto. No jornal A Voz 

do Trabalhador , defendera publicamente o anarquismo em crônica na qual criticava duramente a política brasileira, vendo nos anarquistas os que falavam

“da humanidade para a humanidade, do gênero humano para o gênero humano”. Mas nem a fama nem o reconhecimento da crítica tinham chegado.

A primeira página do livro de “observações clínicas” traz a identificação o interno junto com a foto. Quando estive na biblioteca do Instituto de

Psiquiatria pela primeira vez, espantei-me com a sequência de fotos de alta qualidade, material que ainda merece pesquisa e estudo, que podem ren  der

muito. Cheguei a pensar que a decisão de fotografar os que davam entrada à casa fosse iniciativa iluminada de Juliano Moreira, que dirigiu o hospício por

tantos anos. Juntaria, assim, técnica e ciência. Pode até ser, mas folheando o livro logo constatei que a fotografia era instrumento de identificação quase

indispensável, já que muitos não sabiam quem eram, ou se atribuíam outras identidades. A foto servia, então, para o posterior reconhecimento do

interno.

No registro de Lima Barreto, logo depois do nome, a identificação que se segue é a cor, revelando a importância perversa que se atribuía a essa infor -

mação. E a cor anotada é “branca”. Fica aí evidenciado o quanto a questão da cor é discursiva, construída, mais do que natural. A cor branca lançadaparece ser uma espécie de cerimônia ou deferência do médico que o recebe diante da informação seguinte, profissão: empregado público. A idade vem

corrigida, de 34 para 33 anos. A anamnese é longa, relatando o protesto do interno contra o “sequestro” que sofrera, a afirmação de que tinha dois livros

publicados, os comentários sobre autores de sua preferência, como Chateaubriand – e o médico anota o comentário irônico do depoente – “católico

elegante” e outros, como Balzac e Taine.

Os tremores constatados, na língua e nas extremidades digitais, confir  mam o diagnóstico lançado na mesma primeira folha: alcoolismo. Consultando os

Page 6: O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote

8/18/2019 O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote

http://slidepdf.com/reader/full/o-lima-barreto-que-nos-olha-por-beatriz-resende-revista-serrote 6/9

07/01/2016 O Li ma Bar reto que nos ol ha – por Beatr iz Resende | r evi sta ser rote

http://www.revistaserrote.com.br/2016/01/o-lima-barreto-que-nos-olha-beatriz-resende/ 6/9

diversos livros, constata-se uma recorrência entre a identidade e o diagnóstico. Dentre os recolhidos havia crianças, às vezes tão pequenas que

precisavam subir num banco para serem fotografadas. São portadoras de “idiotice”. Os velhos apresentam “demência senil”, as mulheres, quase todas,

são histéricas, e os que mais frequentemente recebem o diagnóstico de “alcoolismo” são operários.

Pouco antes da internação, abrindo o diário de 1914 em 20 de abril, Lima anota: “Hoje, pus-me a ler velhos números do Mercure de France . Lembro-me

bem que os lia antes de escrever o meu primeiro livro. Publiquei-o em 1909. Até hoje nada adiantei. Não tenho editor, não tenho jornais, não tenho nada.

O maior desalento me invade. Tenho sinistros pensamentos. Ponho-me a beber; paro. Voltam eles e também um tédio da minha vida doméstica, do meu

 viver quotidiano, e bebo. Uma bebedeira puxa outra e lá vem a melancolia. Que círculo vicioso! Despeço-me de um por um dos meus sonhos.”

Olhemos a foto.

Diante do rosto ainda moço e saudável de Lima Barreto, não sentimos pena. Mesmo chocados – o registro foto 

gráfico de uma violência cometida contraalguém choca sempre, mesmo que não seja essa a intenção da foto –, não sentimos comiseração ou dor. É mais provável que partilhemos com o interno

de uma raiva surda, impotente. O longo caminho percorrido desde Guaratiba, onde fora recolhido, até a praia Vermelha parece ter curado a bebedeira.

Não há traços de delírio, exceto talvez pelos olhos com dificuldade em se abrir completamente, num olhar sampaco. Mesmo assim, Lima olha firme para a

câmera, com os lábios duros. Mais que um paciente, pode parecer um revolucionário diante do pelotão incumbido de fuzilá -lo. Lembremos do campo

semântico que cerca a palavra “câmera”, como mostra Susan Sontag: máquina que aponta e dispara. Mesmo o traje que lhe fora entregue ao recolherem

suas roupas tem, na foto, um ar antes de uniforme do que de pijama de hospital.

Na fotografia, o autor que narrara a loucura de Policarpo Quaresma está mais magro e talvez pareça mesmo mais moço do que na imagem divulgada anos

antes pela Estação Teatral . Há beleza nesse mulato claro carregado de mágoa contra todos, de raiva pelos que se encontram diante dele. A escura barba

por fazer e os cabelos bastante crespos discor dam da cor branca anotada.

Logo em seguida aos dois meses que passa no hospício, a produção de crônicas sofrerá um intervalo expressivo. Pouco será escrito neste ano, e quando

 volta a escrever para jornais os temas são especialmente cidade e política nacional. Das humilhações sofridas na ocasião só falará no relato da segunda

permanência, feito no diário que man 

teve no hospício. Produz, porém, o conto longo, um de seus melhores, “Como o ‘homem’ chegou”, narrativaalegórica de um jovem que tinha a mania de astronomia, trocando a terra pelo céu, passando a se dedicar ao estudo da matemática, dos cálculos, com tal

afinco que só podia ser doido. Os homens de juízo decidem que deve ser levado ao hospício. Esse tipo de narrativa, beirando o fantástico, é incomum na

obra de Lima.

Outro raro exemplo é o também excelente “Dentes negros e cabelos azuis”. No conto, para transportar o manso Fernando desde Manaus, onde olhava as

estrelas, ao hospício da praia da Saudade, no Rio de Janeiro, os “doutores” servem-se de um carro-forte, masmorra de ferro. Por quatro anos o carro se

arrasta com o homem dentro. Como não havia autorização para abrir a prisão ambulante, o aviso dos urubus é ignorado e o exame do paciente só irá

acon tecer no necrotério.

Na noite de Natal de 1919, Lima Barreto está de volta ao hospício da praia da Saudade. Em 25 de dezembro, os médicos de plantão parecem estar menos

disponíveis que os colegas de 1914. O registro é breve e lacônico. A cor é parda e a profissão declarada, “jornalista”. Ser funcionário público não adiantara

grande coisa na primeira experiência, quem sabe ser jornalista não lhe garantiria melhor sorte? De todo modo, em 1918, em razão das sucessivas

internações por razões psiquiátricas, fora con  siderado inválido para o serviço público e aposentado. A situação não lhe parecera de todo ruim e, em

crônica do início do ano, escreve: “Aposentado como estou, com relações muito tênues com o Estado, sinto-me completa 

mente livre e feliz, podendo falarsem rebuços sobre tudo o que julgar contrário aos interesses do país”.

Olhemos a fotografia colada ao registro, tendo em mente a epígrafe de Georges Didi-Huberman: “Cada coisa a ver, por mais exposta, por mais neutra de

aparência que seja, torna-se inelutável , quando uma perda a suporta – ainda que pelo viés de uma simples associação de ideias, as constrangedoras, ou de

um jogo de linguagem – e desse ponto nos olha, nos concerne, nos persegue”. Persegui dos e comovidos pela imagem de sofrimento – a imagem nunca é

uma realidade simples –, não é difícil imaginar o pote até aqui de mágoas que o interno carregava, e por que vai intitular Marginália ou Bagatelas os livros

que deixa organizados reunindo contos e artigos.

O jovem disposto a enfrentar o mundo na internação anterior se fora. É difícil identificar no homem diante do fotógrafo alguém com apenas 38 anos. A

roupa de hospital parece mais pobre, indigente. A cabeça se inclina, caída de lado, impedindo o olhar frontal e desafiante de quem resistira ao sequestro

policial anos antes. O cabelo está crescido, mostrando um desleixo anterior ao internamento. Do todo emana um desalento doloroso, abandono,

desistência.

Se houvesse uma legenda para a foto, esta seria o registro que faz ao iniciar as anotações do diário do hospício que mantém durante esse período dereclusão, no dia 4 de janeiro, lembrando-se da internação anterior, as duas motivadas pela mesma razão, o delírio causado pelo abuso do álcool: “Estou

seguro de que não voltarei a ele pela terceira vez; senão saio dele para o São João Batista, que é próximo”, escreve, referindo-se ao cemitério do bairro

carioca de Botafogo.

 

NO FIM DA VIDA, O OLHAR PARA DENTRO

Difícil ler uma fotografia que nos impacta sem se lembrar de A câmara clara.  Naquele que seria seu último livro publicado em vida, Roland Barthes

ressalta que seu ponto de vista é o de um amador, para quem é impossível tratar da experiência fotográfica “como fotografia-segundo-o-fotográfo”, só

dispondo de duas experiências: “A do sujeito olhado e a do sujeito que olha”. Nas fotos que analisa, Barthes reco  nhece sempre um punctum , um

pormenor que chama a atenção, um objeto parcial. “O punctum de uma fotografia é esse acaso que nela me fere (mas também me mortifica, me

apunhala).” E, mais, “o punctum é um suplemento: é aquilo que acrescento à foto e que, no entanto, já está lá”. Na foto de Lima, o punctum é talvez o

olhar perdido, recusando-se, ao contrário da foto de 1914, a olhar quem o foto  grafa. É para dentro que o interno parece olhar, olha e não vê. É um olhar

que não mira adiante, mas olha para dentro, refugiando-se daquela mesma realidade de que obsessivamente costumava se ocupar.

O que se vê na foto identificadora é também descrito na curta anamnese: “É um indivíduo precocemente envelhecido, de olhar amortecido, fáceis de

bebedor, regularmente nutrido. Perfeitamente orientado no tempo, lugar e meio, confessa desde logo fazer uso, em larga escala, e parati: compreende ser

um vício muito prejudicial, porém, apesar de enormes esforços, não consegue deixar a bebida.” É dura a observação que se segue: “Indivíduo de cultura

intelectual, diz-se escritor, tendo já quatro roman  ces editados, e é atual colaborador da Careta”. A palavra o recolhido ao hospício não merece crédito, e o

11

12

13

14 

15

Page 7: O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote

8/18/2019 O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote

http://slidepdf.com/reader/full/o-lima-barreto-que-nos-olha-por-beatriz-resende-revista-serrote 7/9

07/01/2016 O Li ma Bar reto que nos ol ha – por Beatr iz Resende | r evi sta ser rote

http://www.revistaserrote.com.br/2016/01/o-lima-barreto-que-nos-olha-beatriz-resende/ 7/9

desconhecimento de sua obra pelo médico coloca em dúvida a própria condição revelada de escritor. Em A ordem do discurso , Michel Foucault nos lembra

que o louco é aquele cujo discurso não pode circular como os outros, não tem verdade nem importância, não pode testemunhar em justiça, embora o pior

dos criminosos possa fazê-lo.

Durante suas pesquisas sobre o escritor, Francisco de Assis Barbosa pediu, diversas vezes, informações a quem com ele tivera a oportunidade de conviver.

O escritor Ribeiro Couto envia por carta depoimento emocionante sobre Lima Barreto, tão importante que, mesmo longo, merece ser reproduzido.

 

Meus contatos com ele foram, sobretudo, na Associação de Imprensa (em frente ao teatro Lírico), na livraria Schettino e na rua, à porta de outras livrarias

ou de um botequim. Isso entre 1918 e 1920. (Na Associação de Imprensa o amigo do Lima era o Noronha Santos.) Eu, com 20 anos, tendo lido o Isaías 

Caminha , Policarpo Quaresma e o Gonzaga de Sá , não podia compreender como aquele grande escritor, de tão puro estilo, tão natural, precisamente o“antimulato” em matéria de estilo, fosse o mesmo “Lima” – “O Lima, não sabe?” – de barba por fazer, chapéu de palhinha encardida, camisa suja e

manchada no peito, roupa coçada, mal cheirosa, com morrinha que não se sabia se era de vômitos da véspera ou suor azedo. Como tanta grandeza e tanta

pureza podiam viver sob aquela crosta áspera de mulataço ver  melho? A vermelhidão do Lima impressionava-me também; eu ficava sem saber se era

álcool ou febre. E, no andar, uma calma perfeita, como para dominar a tendência do cambaleio. “Então, Lima Barreto, como vai?” Na verdade, ele me dava

pouca confiança, salvo quando estava bêbedo.

Nessa última foto de sua vida, comparada às anteriores, Lima Barreto traz mais fortes as marcas atribuídas ao mulato: o cabelo maior está mais crespo, o

nariz mais largo, mas os lábios são finos. É como um pardo que, entre delírios, declara ser escritor que o interno é recebido. A essa segunda internação,

mais longa, documen tada no diário escrito no hospício, é frequentemente atri buída uma recepção melhor. No dia seguinte à entrada, é transferido para a

seção Calmeil, enfermaria onde fora criado um sistema de open door , ou seja, os pacientes tinham mais liberdade de circular pela instituição, o que foi

importante para Lima no uso da biblioteca. No diário, Lima registra a simpatia do diretor, em quem destaca a doçura, a paciência e a simplicidade. Não

menciona, porém, que uma das razões da simpatia poderia estar no fato de Juliano Moreira ser, também ele, mulato de origem pobre. Quanto aos outrosmédicos, lhe parecem todos de “ciência muito curta”, arrogantes. Mesmo o sofisticado Humberto Gotuzzo, introdutor da psicanálise no Brasil, o fez

“arrepiar de medo”.

Dentre a correspondência reunida por Chico Barbosa, consta uma carta datada de 1º de outubro de 1952 do então diretor da Colônia Juliano Moreira,

instituição que sucedeu ao Hospício Nacional. O racismo implícito nas observações do diretor, 30 anos depois, ao tratar do “caso Lima Barreto”, mostra

bem o que o escritor deve ter vivido em 1919. Diz o dr. Heitor Pérez:

Pode o estudioso chegar a interpretação diversa da sua para explicar o “caso Lima Barreto”, deixando de lado o conceito nitidamente adleriano do

sentimento de inferioridade (racial, de cor) que o sr. adota, e seguir a exegese freudiana, buscando na impotência sexual de Lima Barreto o “ primum 

movens ” do seu fracasso, da sua toxicomania; a doença, o alcoolismo, assim considerando, seria a “cobertura” para mascarar a sua realidade: a sua

timidez sexual, a sua incapacidade de amar concretamente. O sentimento de “cor”, esse ele o superou através da literatura, onde se desforra de várias

maneiras, sentimento que leva mesmo a exibir aquilo que é proibido do mulato – uma atitude paranoide (supervalorização dos seus dotes intelec  tuais,

egofilia, autojulgamento megalômano, ressentimento etc.). Assim, a interpretação psicanalítica global definiria o bifronte Lima Barreto: alcoolismo como

“fuga” da timidez, da incapacidade sexual, amorosa, e, literatura, agressiva, irônica, “brutal”, cheia de “charges”, como superação do sentimento deinferioridade étnico-social.

 

Ao final da carta, a mesma convicção da inferioridade dos não brancos se estende a Juliano Moreira, apesar da admiração que tinha pelo mestre, quando

comenta: “Foi o mesmo Juliano, cuja grandeza de caráter e cuja grandeza de espírito resistiram à pobreza, à inferioridade de cor, à doença e ao

ostracismo”.

Ao sair do hospício, pouco tempo de vida resta ao escri  tor, que morre jovem, aos 41 anos. O trabalho como cro  nista, colaborando regularmente para a

Careta , se intensi  fica. A combatividade dos textos tratará dos limites a que a noção de pátria pode levar na percepção de quem afirma: “Não sou

nacionalista”. A vida no centro da cidade, as articu  lações políticas, o papel do congresso continuam ocupando sua atenção. De sua própria imagem ocupa-

se pouco, mas exibe certo orgulho por seu esbodegado figurino.

O que há de novo neste momento em que o abalo sofrido pela saúde provoca frequente confinamento em Todos os Santos é o surgimento de uma

simpatia pela vizinhança suburbana anteriormente pouco tolerada. Até mesmo o carnaval começa a ser visto com alguma simpatia. Os bailes e

divertimentos suburbanos merecem sua atenção.

O autor tenta recriar ficcionalmente a experiência que vivera no romance Cemitério dos vivos , que fica, porém, inacabado. Talvez tenha preferido deixá-

lo assim. Nenhuma ficção narraria o período de internação como o fizeram as anotações redigidas no próprio espaço da dor.

Ao final da vida quer retomar o que teria sido o grande projeto de vida, o Germinal negro. Contenta-se em finalizar o romance Clara dos Anjos.

A primeira versão de Clara dos Anjos é o conto publicado em Histórias e sonhos , coletânea organizada pelo próprio autor em 1920. O romance só sairá

como folhetim após sua morte, de janeiro de 1923 a maio de 1924. A primeira edição em livro é de 1948.

De toda a vasta obra de Lima Barreto, Clara dos Anjos , romance que a cada leitura me agrada mais, me parece ser o que mais equívocos provocou. A forma

mais livre, mais moderna, mais coloquial, influenciada talvez pela linguagem do jornalismo que praticava intensamente, foi considerada falha de estilo ou

rigor. Foi também a que mais fortemente fez surgir preconceitos, alguns ocultos sob a força da inteligência de críticos que, no entanto, não podiam fugir

completamente às ideias de seu tempo em relação não apenas ao tema da raça, mas também ao comportamento de mulheres.A narrativa passa-se, com exceção de um único capítulo, nos subúrbios do Rio de Janeiro, para além dos limites traçados pela linha férrea dos trens da

Central. Algumas são áreas mais próximas do centro da cidade, o Méier e o Engenho de Dentro, onde habita uma classe média próxima ao operariado,

formada por funcionários públicos ou pequenos negociantes. Em outras, mais distantes, ficavam as moradias de operários, funcionários ainda mais

subalternos ou simplesmente aqueles que a modernização do país introduzida pela República tornara pobres. É onde Lima Barreto vai morrer.

16

 

17

Page 8: O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote

8/18/2019 O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote

http://slidepdf.com/reader/full/o-lima-barreto-que-nos-olha-por-beatriz-resende-revista-serrote 8/9

07/01/2016 O Li ma Bar reto que nos ol ha – por Beatr iz Resende | r evi sta ser rote

http://www.revistaserrote.com.br/2016/01/o-lima-barreto-que-nos-olha-beatriz-resende/ 8/9

O final do romance é o diálogo entre “a jovem mulata de porte elegante e sonhadora” e a mãe, que se encerra com a frase: “– Nós não somos nada nesta

 vida”. Uma despedida.

Muito poderia ter sido feito, mas a morte precoce o surpreende com um colapso quando, deitado, lia a Revue des Deux Mondes . Também de sua despedida

não haverá qualquer imagem. As fotos do hospício são realmente as últimas.

Essa carência de registro lembra, por contraste, as diversas fotos do enterro de Machado de Assis, em setembro de 1908. Dessas, a mais impressionante é a

que registra a saída do corpo da sede da Academia Brasileira de Letras, fun dada por ele. À porta do Petit Trianon, os acadêmicos acompanham o caixão,

circundados pela multidão. A imagem de Euclides da Cunha, ao fundo, com um olhar perdido em outra direção, é um punctum . Transtornado ou enlou-

quecido, parecia preparar-se para buscar a morte no ano seguinte.

Morto, Lima Barreto fará a última viagem de trem, deixando o subúrbio para dirigir-se a Botafogo. O caixão terá que parar na estação da Central e dali serlevado para o cemitério de São João Batista, um dos poucos luxos de sua vida. Consta que o empréstimo feito pelos amigos para cus tear o enterro foi pago

com a venda da biblioteca do escritor.

Se não ficaram fotos, fica, ainda uma vez, uma crônica, a de Eneias Ferraz para O País , publicada em 20 de novembro de 1922. Mais um documento

precioso do arquivo do escritor, texto que vale, certamente, por uma foto.

Ao longo das ruas suburbanas, de dentro dos jardins modestos, às esquinas, à porta dos bote quins, surgia, a cada momento, toda uma foule anônima e

 vária que se ia incorporando atrás do seu caixão, silenciosamente. Eram pretos em mangas de camisa, rapazes estudantes, um bando de crianças da

 vizinhança (muitos eram afilhados do escritor), comerciantes do bairro, carregadores em tamancos, empregados da estrada, botequineiros e até

borrachos, com o rosto lavado em lágrimas, berrando, com o sentimentalismo assustado das crianças, o nome do compa  nheiro de vício e de tantas horas

silenciosas, vividas à mesa de todas essas tabernas.

Voltemos ainda uma vez às duas fotos, por tanto tempo desconhecidas, esquecidas, rejeitadas, guardadas talvez em algum carro-forte destinado a

transportar loucos. Estiveram elas realmente perdidas por todo esse tempo ou nós é que não as suportamos olhar?

Beatriz Resende é ensaísta e pesquisadora de vasto espectro de interesses. Professora titular da Faculdade de Letras da uFRJ, é autora de Lima Barreto e o 

Rio de Janeiro em fragmentos (Autêntica, 2015), Apontamentos de crítica cultural (Aeroplano, 2000) e Contemporâneos – Expressões da literatura brasi  

leira no século XXI (Casa da Palavra, 2008). Organizou, dentre outras, as coletâneas Cocaína, literatura e outros companheiros de viagem (Casa da

Palavra, 2006) e Possibilidades da nova escrita literária no Brasil (Revan, 2014).

Assista também ao vídeo sobre as imagens de Lima Barreto.

NOTAS:

1. Francisco de Assis Barbosa, A vida de Lima Barreto . 8. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

2. Lima Barreto, Toda crônica . Organização de Beatriz Rezende e Rachel Valença. Rio de Janeiro: Agir, 2004.

3. Lima Barreto, Diário íntimo , in : Obras completas, v. xiv. São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 181.

4. Jacques Rancière, O inconsciente estético. São Paulo: Editora 34, 2009, p. 37.5. Georges Didi-Huberman, A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby 

Warburg . Rio de Janeiro: Contraponto/MAR, 2013, p. 35.

6. Lima Barreto, Impressões de leitura , in : Obras completas , op. cit., p. 277.

7. Ver: Antonio Arnoni Prado, “Autorretrato”, in Lima Barreto: uma autobiografia literária . São Paulo: Editora 34,

2012. Nesse texto, Arnoni faz uso não apenas dos trechos de diários e cartas, mas também de obras de ficção.

8. Lima Barreto, “Esta minha letra”, in : Lima Barreto, Toda crônica , cit., p. 90.

9. Idem , Diário íntimo, op. cit., p. 52.

10. Ibidem, p. 193.

11. Ibidem , p. 171.12. “Quem será afinal”, in : Lima Barreto, Toda crônica , cit., p. 450.

13. Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha . Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 33.

14. Roland Barthes, A câmara clara. Lisboa: Edições 70, 1981.

15. Lima Barreto, Diário íntimo, op. cit., p. 52.

16. Coleção Francisco de Assis Barbosa, Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Agradeço a Cristina Antunes

pela ajuda gentil e competente na pesquisa e por disponibilizar as cartas aqui citadas.

17. Documento da Coleção Francisco de Assis Barbosa, Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.

18. Crônica de Eneias Ferraz que faz parte da coleção Lima Barreto da Fundação Biblioteca Nacional e é citada por

Francisco Assis Barbosa em A vida de Lima Barreto , op. cit., p. 359.

Uma resposta a O Lima Barreto que nos olha – por Beatriz Resende

18

Vauluizo Bezerra Rodrigues

 disse: 

Page 9: O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote

8/18/2019 O Lima Barreto Que Nos Olha – Por Beatriz Resende _ Revista Serrote

http://slidepdf.com/reader/full/o-lima-barreto-que-nos-olha-por-beatriz-resende-revista-serrote 9/9

07/01/2016 O Li ma Bar reto que nos ol ha – por Beatr iz Resende | r evi sta ser rote

http://www revistaserrote com br/2016/01/o lima barreto que nos olha beatriz resende/ 9/9

6 de janeiro de 2016 às 22:05

Trabalhos como este, parecem me conduzir para a ideia de ações épico silenciosas. A construção obsessiva de uma entidade

autoral tão importante como Lima Barreto, é como se fosse a reorganização e preenchimento de “DNAs ” que se refletem no

corpo da cultura brasileira. É prazer e honra tomar consciência de seu trabalho, Sra. Beatriz Resende. Parabéns.

Responder