Treinamentos A questão do lixo. Tema : O lixo nosso de cada dia.
O Lixo
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O Lixo, Por Ricardo Araujo Pereira
Certo dia, quando trabalhava no JL, fui incumbido de entrevistar uma escritora chamada Adlia Lopes. A primeira pergunta que lhe fiz foi sobre um poema seu de que eu gostava e gosto muitssimo. Chama-se Autobiografia sumria e s tem trs versos: "Os meus gatos / gostam de brincar / com as minhas baratas." O meu objectivo era impressionar a autora com a minha excelente interpretao do poema. Disse-lhe que aqueles versos eram tambm o resumo da minha vida. Os meus gatos, isto , aquilo que em mim felino, arguto, crtico, aquilo que em mim perspicaz - e at cruel - gosta de brincar com as minhas baratas, ou seja, com aquilo que em mim repugnante, negro, rasteiro, vil. E aquela operao potica - que , igualmente, uma operao humorstica - de escarnecer de si prprio era-me to familiar que podia descrever-me de forma to competente como autora do poema. Os olhos de Adlia Lopes humedeceram-se. Fosse qual fosse a noite solitria em que escreveu o poema, estava longe de imaginar que, tanto tempo depois, a sua alma gmea se apresentasse sua frente, compreendendo-a to profundamente. Foi ento que Adlia Lopes falou. Disse o seguinte: "Pois. Bom, comigo, o que se passa que eu tenho gatos. E tenho tambm baratas, na cozinha. E os gatos gostam de ir l brincar com elas." E depois exemplificou, com as mos, o gesto que os gatos faziam com as patinhas. Foi naquele dia, amigo leitor, que eu deixei de me armar em esperto. Tinha citado Fialho de Almeida, tinha usado a expresso "operao potica", e tinha-me visto a mim onde s havia gatos e baratas. Os olhos de Adlia Lopes estavam hmidos, provavelmente, do esforo que a sua proprietria fazia para no rir. No eram s os sacanas dos gatos que escarneciam de mim: a Adlia Lopes tambm. E, desde esse dia, tenho constatado que o mundo inteiro, em geral, me mofa. Vrios filsofos tm reflectido sobre o lixo, sobretudo acerca do modo como a nossa sociedade trata o seu lixo. Eu estou magoado com o modo como a nossa sociedade trata o meu lixo em especial. No me interessa o tratamento que a sociedade d ao seu lixo: a forma como trata o meu humilhante. O lixo de Adlia Lopes gera vida e poemas. O meu lixo no s no gera nada como tem uma falta de personalidade que o amesquinha quase tanto quanto me amesquinha a mim. muito frequente encontrar-me na circunstncia de ter lixo na mo e, quando confrontado com os rtulos que hoje designam as vrias seces dos caixotes do lixo (carto, papel, embalagens, vidro), verificar que o lixo que eu possuo se enquadra, invariavelmente, na categoria dos indiferenciados. Quase todo o meu lixo se caracteriza por uma falta de carcter que s posso ser eu a transmitir-lhe.Eis, afinal, a minha autobiografia sumria: "O meu lixo / to desinteressante / como eu."