O Lugar de Deus Na Arte Contemporânea (1) _ Secretariado Nacional Da Pastoral Da Cultura

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O lugar de Deus na arte contemporânea (1) La ricotta (fotograma) | Pier Paolo Pasolini | 1962 | D.R. 1. Se o "vento"sopra onde quer, não faz sentido perguntar se há um lugar para ele: o vento não espera um lugar, ele abre lugares. A forma de sentirmos, escutarmos ou vermos o "vento"é que poderá ser mais ou menos atenta. Ele surpreende-nos nos sítios mais inesperados. Nas margens e nos baldios afastados dos preconceitos bem arrumados e seguros. Subvertendo as certezas dos lugares espectáveis ou pretensamente dignos para a revelação, com a potencialidade destrutiva de convenções que o cristianismo implica. Esta é mesmo uma provocação que alguns artistas, de forma consciente ou não, parecem fazer: até onde nos pode levar a radicalidade do cristianismo? Neste ensaio, analisarei algumas tendências artísticas recentes que resultam em obras ancoradas no acontecimento cristão, de forma mais ou menos explícita. Espero mostrar que muitas obras de arte contemporânea não estão afastadas do cristianismo, como uma leitura superficial e os lugares comuns do discurso habitual, popular ou académico, parecem fazer crer. Ao explorar esta ressonância e reverberação religiosa cristã em obras de arte contemporâneas, encontramos, pelo menos, dois modelos possíveis: uma via negativa e uma via antropológico-crística. Uma via mais “espiritualista” e outra

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Arte e fé

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O lugar de Deus na arte contemporânea (1)

La ricotta (fotograma) | Pier Paolo Pasolini | 1962 | D.R.

1.

Se o "vento"sopra onde quer, não faz sentido perguntar se há um lugar para ele: ovento não espera um lugar, ele abre lugares. A forma de sentirmos, escutarmos ouvermos o "vento"é que poderá ser mais ou menos atenta. Ele surpreende-nos nossítios mais inesperados. Nas margens e nos baldios afastados dos preconceitosbem arrumados e seguros. Subvertendo as certezas dos lugares espectáveis oupretensamente dignos para a revelação, com a potencialidade destrutiva deconvenções que o cristianismo implica. Esta é mesmo uma provocação que algunsartistas, de forma consciente ou não, parecem fazer: até onde nos pode levar aradicalidade do cristianismo?

Neste ensaio, analisarei algumas tendências artísticas recentes que resultam emobras ancoradas no acontecimento cristão, de forma mais ou menos explícita.Espero mostrar que muitas obras de arte contemporânea não estão afastadas docristianismo, como uma leitura superficial e os lugares comuns do discursohabitual, popular ou académico, parecem fazer crer.

Ao explorar esta ressonância e reverberação religiosa cristã em obras de artecontemporâneas, encontramos, pelo menos, dois modelos possíveis: uma vianegativa e uma via antropológico-crística. Uma via mais “espiritualista” e outra

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mais “incarnada”. Uma mais “limpa” e outra mais “suja”. Por já ter escrito sobre aprimeira via, neste ensaio, irei concentrar-me nesta via cristã mais “impura”. Umapergunta servir-nos-à de guia: o que é o cristianismo em arte?

 

2.

O interesse pelo fenómeno religioso no meio artístico, e a sua relevância hoje, ficapatente nas edições recentes que a este tema foram dedicadas por revistas de arteespecializadas; publicações e seminários académicos; no título de obras de arte oude exposições; na recorrente utilização de espaços de culto para expôr; em grandesexposições monográficas dedicadas a este tema – sobre o sagrado ou o espiritual naarte moderna e contemporânea, sobre o chamanismo, sobre o iconoclasmo...

No âmbito da reflexão estética, é de sublinhar o interesse que a questão da"imagem"tem levantado nos últimos anos – e a consciência da influência datradição cristã e da teologia da incarnação e da imaginação na Bíblia e nos Padresda Igreja. Nesse sentido, reconhece-se na importância contemporânea da imagem– e da arte, podemos dizê-lo –, uma dívida em relação à reflexão teológica: àvitória, nos debates bizantinos, dos iconófilos sobre os iconoclastas, comomostrou Marie-José Mondzain. É nesse debate teológico que estão as raízes danossa relação contemporânea com a imagem e com a arte.

 

3.

É necessário esclarecer que, por um lado, não me ocuparei de obras destinadas aoculto (o que designamos por arte sacra), delimitando a análise ao “mundo da artecontemporânea”. Por outro lado, não interrogarei a fé ou convicções religiosas dosartistas. A “medição” da fé de um artista (ou de um arquiteto, ou de um escritor...),o julgamento da piedade das suas intenções como garante de qualidade estética eespiritual da sua obra, é uma falácia a que regressaremos noutra ocasião. Comoexplicou T. S. Eliot, “aquilo em que acreditamos é muito mais ou muito menos doque dizemos acreditar”.

(Lembro-me, subitamente, da parábola dos dois fihos a quem o paipediu ajuda: aquele que lhe nega imediatamente essa ajuda, aquele quese recusa, é o único que o vai ajudar).

 

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4.

Prioritário é, também, clarificar, de forma breve, os dois elementos da equaçãoapresentada no título: “Deus” e “arte contemporânea”.

Por “Deus” significo aqui a (in)figuração divina do monoteísmo de tradiçãoabraâmica – numa luta contínua entre a imagem proposta e a sua destruição ereconfiguração. Não iremos aprofundar este conceito, nem o seu desenvolvimentohistórico ou riqueza polissémica. No contexto desta conferência, cingirei a análiseao Deus comunicado pela tradição cristã – em particular, à especificidade de umDeus que se esvazia de si mesmo (a "kenósis") e as consequências antropológicas eestéticas da incarnação, morte e ressurreição de Jesus Cristo.

Por “arte contemporânea” não entendo todas as obras realizadas neste tempo emque vivemos, nossas contemporâneas, mas as que estão inscritas num sistemacomplexo de que fazem parte os artistas (e o reconhecimento dos pares éfundamental), as instituições (museus, centros de arte, galerias, escolas euniversidades...), os críticos (jornais, revistas especializadas...), os curadores, asexposições e bienais, os galeristas, os colecionadores... Este sistema funciona comoum filtro – e Pierre Bourdieu chamou-lhe mesmo um modo de “produção decrença”, investigando com pertinência “quem cria o criador?” – ou seja, de ondevem a autoridade do artista e o reconhecimento do valor de determinada obra?

 

5.

Para além do carácter sociológico e histórico, o conceito de “contemporâneo”implica, para mim, a capacidade que uma obra tem de espelhar e criticar estetempo: nesse sentido, de estar enraizada numa época e afastar-se dela – ser detodos os tempos. O “contemporâneo” implica uma atenção crítica – profética. Umaadequação e afastamento do seu tempo: “aqueles que são verdadeiramentecontemporâneos, que verdadeiramente pertencem a ele, são aqueles que nãocoincidem perfeitamente com ele nem se ajustam às suas exigências” (Agamben). Éa experiência da inatualidade que os caracteriza. A intempestividade nietzschiana– uma espécie de fratura.

Há muitas obras que, ainda que feitas hoje, são já velhas, sem poder crítico eprofético, incapazes de espelhar, interrogar ou inquietar o hoje: repetem oucopiam formas – ou fórmulas – antigas. Não chegam a perceber as perguntas

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(conscientes ou inconscientes) de hoje – e este "hoje", na sua raiz, podesurpreender nele todos os hojes.

Esta conversão, este voltar os olhos do pretérito para o presente, da religião dosantepassados e da Lei imutável, da fórmula segura e repetível para a surpresa doreino estar já no meio de nós, esta valorização do "presente"é um traçocaracterístico do ensinamento de Cristo – Ele que afirmou, com violência, “osmortos que enterrem os seus mortos...”; ou ainda, “quem deita a mão ao arado eolha para trás não é digno do Reino de Deus” (Lc 9, 58-62).

 

6.

(Antes de morrer, o Rabi Zoussya terá dito: “No mundo que vem, apergunta que me farão não será: Porque não foste tu Moisés? Não. Aquestão que me vai ser posta é: “porque não foste tu Zoussya?”.)

La ricotta (fotograma) | Pier Paolo Pasolini | 1962 | D.R.

Cada nova geração tem de encontrar a sua própria linguagem e refazer a sua redesimbólica: as questões prementes e as possibilidades de respostas. Poderá (deverá,mesmo) deslocar o olhar para o passado, inscrever-se numa tradição, mas sem apretender copiar. A mimetização, o formalismo vazio, corresponde à estagnação emorte, à repetição sem sentido nem interioridade – ao "kitsch". Não basta umamudança cosmética e superficial das fórmulas antigas, que antes resultaram, nema utilização de “novos meios”, como se bastasse utilizar uma nova tecnologia parafazer algo de novo. É preciso compreender, ou sentir-intuir, profundamente, ossinais dos tempos.

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La ricotta (fotograma) | Pier Paolo Pasolini | 1962 | D.R.

Pier Paolo Pasolini realizou em 1962 uma curta-metragem intitulada "La ricotta"(fig. 1-3) – que aqui nos pode servir para refletir sobre a representação da fé. Nessefilme acompanhamos Stracci (trapo, em italiano), um pobre ator, durante arodagem de um filme sobre a paixão e morte de Cristo. O realizador – interpretadopor Orson Wells – inspirou-se na história da pintura para recriar, com atores efigurantes, quadros célebres que retratam passagens bíblicas através de umexagerado efeito dramático, grandeza de escala e sentimentalismo exacerbado – eno momento de filmar, quando o realizador diz “ação”, entra a música errada, emvez de um requiem clássico, escuta-se uma canção ligeira pop. Todos riem, tudo seapresenta como o que é: falso, "kitsch", "pastiche", esvaziado de sentido. Tudoaquilo está em desacerto. Essas imagens são sem espessura, sem capacidade deinquietar. Uma beleza superficial – tal como a da sociedade “cristã” italiana quePasolini retrata sem piedade. O verdadeiro Cristo, o que morre de verdade na cruzdiante dos ricos e famosos que vieram para ver filmar a última cena, é Stracci, opobre ator que faz de bom ladrão, um marginal com fome que rouba para dar decomer à sua família, e que acaba por morrer na cruz sem dizer a sua deixa. Semtomar a palavra, o seu lugar. Um anti-herói.

La ricotta (fotograma) | Pier Paolo Pasolini | 1962 | D.R.

Como dar a ver ou escutar, hoje, a radicalidade da mensagem evangélica?

 

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7.

A arte conquistou com o modernismo: 1) a emancipação da "mimesis": da narrativae da representação; 2) a emancipação do Belo, do harmonioso, do tema grandiosoou elevado: pode apontar a banalidade, o quotidiano, o comum, o impuro, o feio – averdade; 3) a emancipação do religioso: dos códigos tradicionais, da gramática, dosimbolismo cristão instituído e já gasto, ganhando autonomia, um campo próprio,sem estar subordinada à religião – ou explorando outros caminhos espirituais: umdeslocamento para universos teosóficos, gnósticos, arcaicos ou não-europeus.

A estas emancipações, podemos acrescentar uma outra conquista: 4) a integraçãode processos religiosos na prática artística: a transubstanciação do objeto (porexemplo, nos "ready-made"de Duchamp – que usa a palavra transubstanciaçãopara os descrever); a "performance"como liturgia (por ex. em Joseph Beuys,Abramovic ou Nitsch); a participação ativa do espetador na obra, depois dos anos60 (um desejo também conciliar para a Liturgia desse mesmo tempo). É impossívelcompreender os "ready-made"de Duchamp e dos seus herdeiros, os "happenings"eas "performances" contemporâneas sem a reflexão teológica sobre os sacramentose prática litúrgica da Igreja. O artista norte-americano Paul Thek (1933-1988),numa entrevista a Harald Szeemann em 1973, afirma mesmo: “Art is Liturgy, andif the public responds to their sacred character, then I hope I realized my aim, atleast at that instance”.

Será a arte o suplemento espiritual-ritual substitutivo da religião na nossa era? Aexperiência estética e a liturgia artística terá substituído, para muitos, aexperiência religiosa e a liturgia eclesial?

Se poderá ser apressado falar de “substituição”, e podendo mesmo afirmar-se que areligião é que substitui, em determinado momento da história, a original presençada arte como manifestação espiritual, podemos apontar a relevância crescente daarte e das suas instituições na época pós-“morte de Deus”. O tempo da vitória doMuseu sobre a Catedral – ou o da transformação da Catedral em Museu. Ao sair docontexto religioso, a arte parece ter-se transformado ela própria em religião.Também ela tem peregrinações a museus, a obras "site specific"(por exemplo nodeserto: Judd, Turrel, Holt), a romarias cíclicas (ex. Bienal de Veneza, Documentade Kassel...), relíquias e culto...

Será a arte uma forma de voltar a “encantar o mundo”?

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Um exemplo evidente de crítica a esta “religiosização” da arte e sacralização doMuseu é o "happening"de Francis Alÿs, "The modern procession"(2002), em quefaz transportar a artista Kiki Smith e obras de arte moderna famosas da coleção doMoMA, em cima de andores, numa procissão pelas ruas de Nova Iorque, marcandouma mudança temporária de edifício do Museu.

The modern procession | Alÿs | 2002 | D.R.

 

8.

Se, com o Romantismo e a sua persistência em alguns artistas contemporâneos,podemos falar de um “re-encantamento” do mundo, de uma “religião da arte”, naverdade, a arte moderna parece ter feito parte, em grande medida, como apontouT. J. Clark, de um movimento de “desencantamento do mundo”: voltando-se daadoração dos antepassados para o enfoque no presente e futuro; esvaziando aimaginária figurativa tradicional; contentando-se com pouco; recusando aassociação com a religião (secularização); dando atenção às condições sociaisconcretas e à utopia do homem novo (e daí a relação que Clark estabelece entremodernismo e socialismo – e a importância das vanguardas Russas em particular).

De algum modo, julgo que podemos afirmar que essas são consequências lógicasde um “desencantamento do mundo” que o próprio cristianismo introduziu:afastou-se do carácter mágico pagão ou panteísta para valorizar a consciência e avontade-ação humana; passou a valorizar o presente e o indivíduo concreto e asituação em que vive; promoveu a justa separação entre poderes; apresenta-secomo “religião da saída da religião”, como a definiu Marcel Gauchet; propõe uma“Verdade relacional” (Paul Valadier e Eduardo Lourenço).

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Neste sentido, interrogo-me se não poderemos pensar o alargamento do campoartístico, nos últimos 50 anos, como o amadurecimento e consequência cultural deum subversivo traço cristão: a Verdade não é "plintável"nem "emoldurável". Estaproposta do cristianismo define-o como “religião da saída de religião”: a"Incarnação"faz sair, num movimento "já e ainda não"acabado, do universoreligioso tradicional (marcado pela lei e pelos antepassados), e abre a história auma heterodoxa "verdade relacional"que se apresenta como "caminho"dinâmico,"vida"– em que cada um é implicado e responsável –, valorizando a existênciaconcreta, o presente, o quotidiano, a pessoa, o marginal, o incógnito, o dom, acomunidade – assumindo as tensões e os paradoxos.

Aqui podemos encontrar as raízes de uma "arte da saída da arte": que não sesatisfaz com a dimensão retiniana e contemplativa, que recusa o endeusamento daobra perfeita no pedestal ou na moldura (no museu) e propõe uma arteparticipativa, mais próxima da vida, que exige a participação do público para a suarealização. Assim, encontramos neste último século obras de arte para usar, paralevar-partilhar, para se envolver, com dimensão política-social; em que o artista é“operador estético”(Ernesto de Sousa), um facilitador de experiências, e oespetador deixa de o ser, para se tornar ator-ativo, não só da sua receção-interpretação, mas da própria obra (inacabada) e da comunidade que ela pode“produzir”. Uma arte que não se satisfaz com o plinto e com a moldura, com omuseu na sua sacralidade de mausoléu. Uma "arte quenótica": que deixa agrandiosidade elevada e ausente, para fazer parte da vida, que incarna na vidahumilde do corpo que somos, na construção da comunidade que formamos.

 

9.

Um paradigma desta relação Arte-Vida na arte do pós-guerra é a obra de JosephBeuys. O percurso artístico de Joseph Beuys pode servir para refletirmos sobre aincarnação do cristianismo no tempo: a descoberta gradual de uma nova"forma"para a substância cristã.

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Pietà | Beuys | 1952 | D.R.

No princípio a obra escultórica de Beuys estava muito presa à representaçãoiconográfica cristã. Eram obras imediatamente religiosas: a figura do Cristo, ohomem das dores, a pietá, a cruz, o cristo glorioso. Essa abordagem do sagradosegundo a tradição foi uma forma de ensaio, que termina em 1954, como o artistaafirma em entrevista: “dei-me conta que não podemos esperar a essência docristianismo propriamente dito através de uma simples representação da figura doCristo. Pelo menos eu. (...) O que era evidente era que deveria ir muito mais atrásquanto ao método. Durante essas primeiras tentativas, parecia ser alguém semambição a não ser o repetir um motivo que outros trataram melhor ao longo dotempo, mais justamente, e em contextos espirituais mais adaptados”.

Cartaz das Exposições Kreuz + Zeichen | Beuys | 1985 | D.R.

Essas obras de arte iniciais são o indício de um interesse pelo cristianismo, queposteriormente não recusa nem esquece – mas a relação mimética com a tradiçãonão o satisfaz. Não basta a aparência cristã, o retomar as narrativas ou formas

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reconhecidas. O cristianismo não é uma questão de aparência ou formas. Eleprocura retomar a essência cristã: quando começa a realizar o que o veio a tornarcélebre, as suas "Ações", percebe: “nesse momento a essência do cristianismo écentral. E desde a primeira ação”. Mesmo que não surja o seu corpo ou o seu nome,Cristo – o Logos – é uma referência central. Influenciado pela antroposofia deRudolf Steiner (como muitos artistas da primeira metade do século), pelamitologia alemã e irlandesa, pelo romantismo alemão (Novalis e Schiller), paraBeuys a relação entre a arte, a energia e os sacramentos é determinante: asubstância cristã como “presença e força fundamental” no presente é uma forçasacramental. Joseph Beuys encarava a obra de arte como uma outra formasacramental para um novo tempo. Uma regeneração espiritual.

La Rivoluzione | Beuys | 1972 | D.R.

Na obra de Beuys existe uma procura incessante das “fontes de vida” – e aconsciência de que “a ressurreição agora deve ser realizada-completada pelopróprio homem”. Nesse sentido, a criatividade tem um papel determinante, talvezseja mesmo o processo humano de ressurreição: “o homem deve realizar certosmovimentos, fazer certos esforços para entrar em contacto consigo mesmo”. Porisso, Beuys dizia, citando Novalis, que "todos somos artistas". Não no sentido detodos fazermos obras de arte, mas de nos tornarmos numa obra. A própriacomunidade é uma obra. O artista é um mediador. O artista surge como umprofeta, que vem lembrar a existência de um mundo espiritual, o que pode curar,como contraponto ao mundo materialista. A arte tem, assim, um poderregenerador.

A libertação da forma tradicional, e a consciência do poder da Palavra – porque “noprincípio era o Verbo” – leva-o a realizar Ações como fazer conferências ou daraulas, plantar árvores, lavar os pés ao público, fazer instalações e performances.Visto como um shaman, uma ponte entre mundos, para ele a arte é uma forma deatividade política, de “escultura social”. Uma forma de cura e purificação. Exemplo

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desse desidério é a instalação, que é também um convite, "Mostra a tua ferida".Beuys procurou curar a sociedade da individualização e do racionalismoexagerado. E mostrar que o papel do artista era inserido na sociedade, não nummundo à parte – e em 1971, na ação "Lava-pés"a ressonância evangélica dahumildade do Mestre é evidente.

 

Esta transcrição omite as notas de rodapé.

 

Paulo Pires do Vale

Curador

In "Não tenhais medo", Santuário de Fátima

Publicado em 04.03.2015