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  • SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 5, n. 10, p. 343-351, 1 sem. 2002 343

    O MAGO DO VERBO

    O MAGO DO VERBOWalnice Nogueira Galvo*

    RESUMO

    Aobra de Guimares Rosa distingue-se por trs caractersticas cen-trais. A primeira delas refere-se aos processos lexicognicos, pelosquais o escritor cria, constantemente, novos vocbulos e torneios sint-ticos. A segunda diz respeito ao resgate de termos raros ou inusitados,fornecidos, sobretudo, por regionalismos e arcasmos. A terceira, final-mente, assinala sua capacidade ilimitada de fabulao, ou de invenode uma multiplicidade de enredos.

    Palavras-chave: Neologismo; Regionalismo; Arcasmo; Enredo.

    * Universidade de So Paulo. Autora, entre outros, de: As formas do falso (Perspectiva, 1972), Mitolgica rosia-na (tica, 1978), A donzela guerreira (1998), Guimares Rosa (Folha, 2000), Edio crtica de Grande serto:veredas (Archives, a sair).

    Quando Guimares Rosa surgiu, em 1946, predominava no panorama dafico brasileira o Regionalismo, que, como o nome indica, objetivava retratar aspeculiaridades de cada regio.

    Ora, Guimares Rosa vai representar uma superao feliz do Regionalis-mo. Como os regionalistas, volta-se para os interiores do pas, pondo em cena perso-nagens plebeus e tpicos, a exemplo dos jagunos sertanejos, levando a srio a funoda literatura como documento at ao ponto de reproduzir a linguagem caractersticadaquelas paragens. Porm, ao contrrio dos regionalistas, descortinando largo soprometafsico, costeando o sobrenatural, preocupado com a graa e com a demanda datranscendncia.

    No que ultrapassou o Regionalismo, distanciando-se, foi no apuro formal,no carter experimentalista da linguagem, na erudio poligltica, no trato com aliteratura universal de seu tempo, de que os regionalistas no dispunham ou a queno atribuam importncia. E no fato de escrever prosa como quem escreve poesia,ou seja, palavra por palavra, ou at fonema por fonema.

    Nesse sentido, ele nico na literatura brasileira: foi em sua pena que nos-sa lngua literria alcanou seu mais alto patamar. Nunca antes e sobretudo nunca

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    mais depois a lngua foi desenvolvida em todas as suas virtualidades. A tal ponto que,na formulao de um de seus crticos, chega a se confundir com a lngua, colocando-se em seu ponto inaugural e, a exemplo dela, criando incessantemente. Assim, porexemplo, Guimares Rosa toma a liberdade de trocar um sufixo por outro; ou entoderiva um verbo, at ento inexistente, de um substantivo ou adjetivo; ou, ao contr-rio, deriva um substantivo ou adjetivo de um verbo. Ou ainda inventa um verbo,alis onomatopaico, a partir da enumerao das vogais (o mato aeiouava). Ouforja um nome prprio, em puro exerccio ldico, ao juntar o pronome de primeirapessoa em vrias lnguas que, na prosdia brasileira, se tornam irreconhecveis ,para batizar a personagem Moimeichego (Moi + me + ich + ego). E assim pordiante. Tudo isso a lngua tambm faz, este escritor como que conseguindo reprodu-zir os processos de criao da prpria lngua.

    Dedicou-se incansavelmente a atacar o lugar-comum ou clich, que jamaisutilizava, a menos que fosse para criar um anlogo, por paralelismo ou inverso.Alm de manifestar esse propsito de inovao lingstica a todo momento em suaobra, tambm se pronunciou a respeito em entrevistas e declaraes.

    Outra razo pela qual a leitura de Guimares Rosa uma experincia im-perativa reside em sua capacidade de fabulao. Raramente houve na literatura bra-sileira um autor to prolfico em diferentes enredos, com suma capacidade de inven-tar tramas e personagens. Seus livros mostram uma enorme variedade de estrias,uma verdadeira mgica no desdobramento quase infinito de possibilidades de desti-nos e de situaes.

    Dentre as personagens, ao se concentrar nas que elegeu, o escritor comoque dignifica o sertanejo pobre, mostrando como o mais destitudo e isolado serhumano pode aspirar transcendncia e se entregar a especulaes metafsicas, semprecisar sequer saber ler.

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    Seu grande romance, alis o nico que escreveu, Grande serto: veredas(The devil to pay in the backlands), quando foi lanado em 1956, j fora precedidopor dois outros livros um de contos, Sagarana, em 1946; e um de novelas, Corpo deBaile, em 1956. Guimares Rosa surpreendeu os leitores ao brind-los com um alen-tado romance de quase seiscentas pginas. A reao da crtica foi instantnea e, apsas polmicas iniciais, acabou por proclamar seu romance uma obra-prima. Os estu-dos se multiplicaram imediatamente, os crticos mais reputados dedicando-se a ana-lisar e interpretar o novo livro. Aqui finalmente se encontrava a verdadeira saga doserto, como o prprio ttulo indica.

    E, a exemplo do Grande serto: veredas, toda a obra de Guimares Rosa

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    comea e acaba no serto. Para sempre identificado ao serto, esse seu universo, seuhorizonte, seu ponto de partida e de chegada. Deformao de um velho vocbuloafricano, que os portugueses absorveram em sua lngua desde o tempo das navega-es, quando foram frica, j tinha sido utilizado em Portugal antes de passar parao Brasil, onde teria uma histria to rica e to fecunda. Seu significado mais impor-tante o de interior ou de terras interiores, isto , afastadas da costa, podendo sercobertas de vegetao e desprovidas da conotao de deserto. O vocbulo j aparecenitidamente com essa implicao na carta de Pero Vaz de Caminha, quando fala dasflorestas que ficam para dentro do litoral: recobrindo assim a poro mais central deum continente, de um pas, de uma regio.

    Que serto esse de Guimares Rosa? Geograficamente, no o do Nor-deste, do polgono das secas. outro, bem menos conhecido e explorado artistica-mente, seja pela literatura, seja pelo cinema: o serto do estado de Minas Gerais.

    importante precisar essa distino, porque, diferentemente do serto cal-cinado e trilhado pelos retirantes que aparece em boa parte de nossa literatura, este um serto caracterizado por aquilo que se chama localmente os campos gerais,com suas pastagens boas para o gado, a perder de vista. E pasmem pela abundn-cia de gua, tantos so os rios que o cortam, dos quais o principal o grande SoFrancisco, para o qual acorrem, contribuindo para o volume de sua vazo, todos osseus numerosos afluentes.

    O leitor de Guimares Rosa deve, portanto, habituar-se idia de um ser-to que no pardo nem rido.

    A bela oposio entre seco e mido, uma das mais tradicionais na literaturade todos os tempos e alis, j a se fazer notar na Bblia desempenha um papel deprimeiro plano na obra de nosso escritor, que soube reconhec-lo ao intitular seunico, e clebre, romance, como Grande serto: veredas. Nesse ttulo, armado emanttese, a palavra vereda no tem o sentido corrente de caminho ou via, massim o significado local e regional, que s adquire l mesmo nos campos gerais, deregato ou riozinho. Essa acepo confirmada pelo dicionrio Aurlio, que, noverbete correspondente, explica: Cabeceira e curso de gua orlados de buritis, espe-cialmente na zona so-franciscana, atribuindo-lhe uso corrente em Minas Gerais eCentro do pas. O grande serto, ou espao circundante abrangente e presumivel-mente rido, recortado por mil e um desses riachinhos, como a prpria obra rosianano se cansa de explicar em vrias passagens.

    No se pode, tampouco, ignorar o significado simblico que recobre esse,literal: o de um espao amplo e perigoso, cheio de percalos e armadilhas, verdadeirolabirinto existencial, mas que admite brechas levando a sadas, poros de comunica-o, talvez vias de salvao.

    Superpondo-se ainda a esse, mas com ele coincidindo, encontramos um

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    serto mtico, onde os trunfos em jogo so a salvao ou danao do ser humano,mero peo na eterna batalha entre Deus e o Diabo.

    Esse o espao ao mesmo tempo geogrfico, simblico e mtico onde sedesenrola a obra de Guimares Rosa.

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    Pode-se perguntar se Grande serto: veredas no marcaria, com o apogeudo Regionalismo, tambm e ao mesmo tempo seu encerramento: na medida em queexplora at o fim seus limites, alm de fecund-lo de uma maneira inesperada eque de certa forma contradizia a vocao centrpeta inerente ao regionalismo comos achados experimentais, sobretudo lingsticos, das vanguardas do sculo 20.

    Afinal, de que trata esse livro? Em suma, uma histria de jagunos oucangaceiros, tal como tantos romances regionalistas. O que o distingue, ento, no o assunto, mas sim outros elementos. A comear, as galas da linguagem, de umabeleza mpar e nunca antes atingida em nossas letras. A seguir, o alcance existenciale metafsico da discusso entabulada a respeito do destino humano, de Deus e oDiabo, do pacto fustico em que o pactrio vende sua alma, do significado do amor,da amizade, da coragem, da lealdade, etc. Tudo isso na boca de um narrador que um jaguno aposentado, expressando-se em sua prpria fala para um interlocutorurbano letrado, que nunca interfere na narrao.

    Mais ainda, o romance marcado pelo signo da ambigidade. Ao escrev-lo, Guimares Rosa mitifica esse grande espao interior do Brasil, que o serto,recolhendo as sagas dos guerreiros que o habitaram. Um espao sem fronteiras inte-riores nem exteriores, tendo por pontos de fuga no horizonte, aludidos mas nuncamostrados, a cidade e o mar. Um espao onde o maravilhoso e o fantstico fazemparte da vida cotidiana.

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    Desde a descoberta do pas, o serto fixou-se nos escritos dos cronistas eviajantes nossos primeiros historiadores , mas tambm na fico em prosa e napoesia, como um territrio desconhecido, inexplorado, bravio, palco de violncia ede ausncia da lei. Apoiando-se sobre a tradio oral, este romance no podia deixarde ser, como de fato , uma histria de bandos e de bandidos.

    O bandido que o habita o jaguno ocupa tanto o imaginrio popularquanto o literrio. No Grande serto: veredas, ocupa um lugar central nas reflexesde Riobaldo, o narrador-protagonista, ele mesmo jaguno e outrora chefe de bando,ora praticando a autobiografia para um interlocutor emptico.

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    Do que se sabe a seu respeito na histria de nosso pas, o jaguno no umcriminoso vulgar. Seus crimes revelam um lao com a honra e com a vingana. Ojaguno no age isolado, mas sempre coletivamente: no um assassino nem umladro, mas um soldado em guerra privada, que devasta e saqueia.

    Este romance mantm vivas as duas faces do jaguno: a das proezas cava-lheirescas de justiceiros prontos a defender a causa dos oprimidos, cujo modelo ini-mitvel Robin Hood, e aquela dos atos de crueldade gratuita. Basta lembrar asdificuldades enfrentadas por Euclides da Cunha ao escrever Os sertes. Dilaceradoentre a admirao que sentia pela resistncia herica dos homens de Canudos e oasco que suscitava nele esta horda de fanticos ignorantes e supersticiosos, recorres antinomias e antteses, em busca de uma sntese que incessantemente lhe escapa.

    O Grande serto: veredas mostra como num pas imenso, de territrio quasecontinental, o exerccio privado e organizado da violncia a servio dos poderosossempre constituiu a regra, e no a exceo. A radica um dos fundamentos de umasociedade sem par em sua iniqidade, com um dos maiores ndices de desigualdadequando comparada aos demais pases, combinado com o alto posto de oitava econo-mia mundial. Outros fatores, como a escravido, por exemplo, s concorreriam paraagravar esse quadro, acentuando as disparidades. A presena de uma fora armada aservio de um proprietrio de terras, dentro de sua fazenda, desempenha um papelao mesmo tempo defensivo e ofensivo. Esses sem-terra alugados do patro servempara vrias coisas: garantir os limites da propriedade, sem cessar contestados; grilarterras; eliminar adversrios; interferir nas eleies, recorrendo fraude e intimida-o dos eleitores; desencadear contendas ou reprimi-las.

    Na pertinncia de suas anlises, o romance expe aos olhos do leitor, comoa literatura sempre faz, a concretude dos fenmenos histricos, encarnados em per-sonagens. Os estudiosos chamaram e chamam nossa ateno para o carter rotineirodas diversas manifestaes de violncia no Brasil, que causaram no s perturbaeseleitorais no passado, mas tambm insurreies, rebelies e golpes de estado. Bastapensar em quo poucos anos de democracia resulta o saldo do sculo 20 entre ns,em sua maior parte dominado por ditaduras e estados de stio. Isto deriva de umregime autoritrio de dominao, onde todo poder emana do alto, de um lado, ha-vendo de outro lado uma ausncia quase total de instituies de autodefesa do povo.

    Neste ponto, a instituio da escravido com mo de obra trazida da fricafoi decisiva. Toda atividade produtiva se concentrava nas unidades rurais, as fazen-das, onde o trabalho compulsrio era feito pelos escravos, submetidos a um s pa-tro, o proprietrio. margem desta equao senhor/escravo foi-se constituindo umaenorme populao de homens livres, destitudos de todo poder econmico e poltico,dependente da boa vontade do proprietrio para sua subsistncia. Inteiramente aoabandono, sem quaisquer direitos civis, esta populao por sua prpria natureza

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    intil acabava por ser utilizada pelo fazendeiro para as mencionadas operaes de-fensivas e ofensivas. Cada fazenda, desde os primeiros tempos da colonizao, con-tava com um verdadeiro exrcito particular.

    Com o passar dos anos, o carter privado do poder efetivo vai-se transportartal qual para os partidos polticos, desde o nvel municipal at ao do Estado e da na-o, de tal modo que o jaguno surge no prprio ncleo da organizao social, eco-nmica e poltica: no como um acidente, mas como uma necessidade histrica.

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    Sem querer insistir na coeso e solidariedade de todos os elementos, carac-terstica deste romance, temos aqui dois deles que constituem um bom exemplo.

    Riobaldo feito de palavras que ele mesmo profere. A narrativa, portanto, uma fala. Por isso, ela exige uma certa linguagem e no qualquer uma, e essa lin-guagem impe-se respeitar a caracterizao do sertanejo. A ligao entre linguageme espao, portanto, aparece como necessria e suficiente, dado que ela busca integraro espao onde se passam as peripcias do romance, e esse espao o serto.

    O discurso do protagonista , como seria de esperar tratando-se de uma fa-la, carregado das marcas de oralidade: hesita, interroga, exclama, emprega interjei-es, e insiste em dirigir-se cerimoniosamente a o senhor, figura do Interlocutor.Mas a linguagem de que se vale mais do que isso, e por ela seu criador famoso enico na literatura brasileira.

    Guimares Rosa foi buscar a linguagem de que Riobaldo se utiliza, no ser-to. de l que vm os torneios, os regionalismos e os arcasmos recuperados. Comose sabe, a lngua se conserva melhor longe dos centros urbanos, onde o isolamento aprotege das inovaes trazidas pelas correntes migratrias, pelo jargo da mdia epela gria. Os dois traos bsicos da linguagem empregada por Riobaldo so, por isso,os regionalismos e os arcasmos.

    Mas no s, o que seria demasiado simples para um escritor to requinta-do. Nem tudo o que seu protagonista profere pr-existente na lngua portuguesado Brasil: boa parte do vocabulrio constitudo por neologismos. Sados da oficinaverbal do autor, do brilho e graa fala de Riobaldo. E, mais ainda, amalgamadosaos regionalismos e arcasmos, que j do um efeito de estranhamento, mal se distin-guem daqueles, sendo, em muitos casos, difcil de decidir se estamos diante de umou dos outros. Um exemplo: quando o protagonista diz que uma certa personagemperequitava, est empregando o regionalismo periquitava, com alterao de umaletra, ou seja, andava de um lado para o outro como um periquito, ou um neologis-mo derivado do latim, no qual existe o verbo perequitare, que significa perambulara cavalo?

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    Como a estria que Riobaldo est contando ao Interlocutor compreende aslegendrias faanhas da jagunagem, e esta se d no espao do interior brasileirochamado serto, vamos encontrar sinais desse espao disseminados pela linguagem.

    Em primeiro lugar, as constantes aluses ao serto propriamente dito, instau-radas desde o ttulo do livro. O serto o espao que gerou o narrador e a vida que le-vou. Portanto, aparece com peso determinador, a que Riobaldo atribui qualidades po-sitivas ou negativas. Dessa perspectiva a de grande espao fundante , o serto comfreqncia se torna mais do que um lugar, uma topografia, um ponto geogrfico, umpermetro, adquirindo uma espessura at metafsica. O serto visto como o espaoonde o homem se submete a provaes que testam sua coragem, mas tambm ondeDeus e o Diabo disputam a posse das almas. A fala de Riobaldo a todo momento pon-tilhada por observaes sentenciosas a propsito do serto, como esta: Serto ondemanda quem forte, com as astcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!.

    Em segundo lugar, mas em plano menos evidente, a fidelidade realista aoespao mostra o serto da pecuria, o que transparece na fala de Riobaldo de vriasmaneiras. O narrador tanto utiliza topnimos que indicam gado bovino (Vereda daVaca-Mansa de Santa Rita, Currais-do-Padre, Bambual-do-Boi), quanto men-ciona os exemplares que os jagunos vo deparando em sua errncia. Ainda mais ecom toda a naturalidade, pois o material que tem por assim dizer mo empregaesses animais para criar metforas com que delineia personalidades ou situaes.

    A fora do peso da natureza sobre os seres humanos, fora da cidade e dosabrigos construdos pelo homem, faz-se presente. Os jagunos como que se encon-tram imersos na natureza. A linguagem de Riobaldo se impregna pois dessa presenae organiza um verdadeiro catlogo de fauna e flora, inclusive discutindo os diversosnomes que um mesmo espcime pode tomar conforme os pontos cardiais. A integra-o desses nomes fala serve para avanar mais um trao da caracterizao de Rio-baldo enquanto personagem: a de bom observador da natureza, a de algum queama as belezas do mundo.

    A trajetria de Riobaldo pela jagunagem, assim como tem um espao, que o serto, tem tambm uma poca, a qual vai sendo delimitada pelo narrador, medida que a narrativa prossegue. Podemos deduzir, atravs de aluses indiretas eavanadas com muita m-vontade, que andou em bandos de jagunos durante aRepblica Velha, termo que no menciona. Mas a poca propositalmente vaga ecom limites esfumados, de tal modo que as sagas narradas adquirem contornos le-gendrios, lembrando as novelas de cavalaria. Juntando todas as pistas, o leitor podeconcluir que a poro principal da vida de Riobaldo, aquela em que ele se dedicou jagunagem e cuja crnica desenrola para o Interlocutor, decorreu nas trs primeirasdcadas do sculo XX, concluso que serve para datar a poca dos eventos narradose para fazer uma estimativa da idade do narrador, naquele tempo.

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    Riobaldo de sada prende o leitor, mediante um velho recurso literrio defoco narrativo: como ele simultaneamente o protagonista do romance e o narrador,o leitor deve dar credibilidade sob palavra a tudo o que ele disser. E principalmentesobre si mesmo.

    Desse modo, em Riobaldo que devemos confiar para apreendermos aslinhas-mestras que compem o arcabouo do livro. Em primeiro lugar, isso nos ha-bilita a entender a intriga, bastante complicada. Em segundo lugar, a travar conheci-mento com as demais personagens, das quais s sabemos atravs de sua voz. Emterceiro lugar, e sobretudo, para saber quem ele prprio .

    Com ele estabelecemos, enquanto leitores mesmo sabendo que se trata deum romance, portanto de histria inventada um pacto autobiogrfico.

    Riobaldo no um narrador direto ou fluente: demora muito a entabular asua verdadeira histria; manhoso e tergiversador; tenta enganar o Interlocutor. Boaparte do livro se passa antes que se resolva a abrir o jogo. Mas, enquanto isso, vai ex-pondo ao leitor sua personalidade atual a que assume depois de velho, ao se retirardas lides anteriores. Essa sua face final, definitiva: mas um ponto de chegada, jque ele teve outras faces anteriores.

    Portanto, o romance comea pelo fim, quando toda a histria j decorreu eRiobaldo vive de reminiscncias.

    Entretanto, o leitor s vai ficar ciente da situao que se arma como origemda narrao mediante um processo cumulativo, que aos poucos vai decifrando emmeio ao cunho catico das primeiras pginas, e que pode ser descrita como segue.Veio da cidade uma personagem a que chamamos Interlocutor, pois ele no tem no-me, procurando por um famoso chefe de jagunos de que ouvira falar e a quem querconhecer pessoalmente, entrevistar e fazer perguntas sobre seu passado, suas bata-lhas, as peripcias em que tomara parte, de onde viera, quem tinham sido seus pais;enfim, como vivera sua vida. O Interlocutor ento quem provoca a narrao, e elase faz em sua inteno, em resposta s mltiplas inquiries e dvidas que vai levan-tando, para precisar melhor certos passos ainda vagos do enredo.

    Desse modo, poderamos dizer que, embora demore a se configurar, o In-terlocutor poderia ser compreendido como a primeira personagem a ser delineadapor Riobaldo. Quem ele? No um sertanejo como Riobaldo, fica logo claro. Che-gou de longe, da cidade, de jipe. Veio para conhec-lo e para estimul-lo a falar desuas experincias. Usa culos, tem o ttulo de doutor, e toma notas numa caderneta,incessantemente.

    Como que ficamos sabendo de tudo isso? Pela voz de Riobaldo, que diri-ge ao Interlocutor esses comentrios sobre uso de culos, ttulo de doutor, anotaes

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    na caderneta. Como todo o romance constitudo por uma fala s, emitida porRiobaldo, tudo o que acontece decretado por essa fala. Assim, o leitor encontra a ca-da passo interrogaes de Riobaldo endereadas ao Interlocutor, pressupondo-se queeste tenha feito alguma pergunta, exigindo uma confirmao ou o dirimir de umadvida.

    Tudo indica que o autor, o escritor Joo Guimares Rosa, tenha introduzi-do um simulacro seu dentro do livro. Porque ele muitas vezes viveu esse tipo de si-tuao de narrar. Ele mesmo era sertanejo, oriundo da vila de Cordisburgo, no sul doserto de Minas Gerais, onde seu pai, Florduardo Rosa (de nome eminentemente ro-siano), era dono de uma venda que ainda hoje l est, preservada como museu. To-davia, o escritor partiria para a cidade, primeiro para So Joo del Rei e depois paraBelo Horizonte, em funo de seus estudos secundrios e depois superiores, em Me-dicina. E mais tarde, ao ingressar na carreira diplomtica, passaria a viver no exte-rior; e s na ltima fase de sua vida moraria no Rio de Janeiro.

    Portanto, tendo a certa altura atinado com o rico veio entre o histrico e ofabuloso que seria a fonte de sua obra as sagas do serto , para ali voltou inmerasvezes, acompanhando boiadas, internando-se pelas terras mineiras, interrogando aspessoas, registrando as estrias que ouvia e as peculiaridades da linguagem. Suas ca-dernetas de anotao se tornaram clebres, e algumas delas esto preservadas em seuacervo, sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de SoPaulo. Quando viajava a cavalo, a indefectvel caderneta ia pendurada por um bar-bante ao pescoo, para deixar livres as mos que seguravam as rdeas. Ademais, sim,usava culos e era doutor. E da interao entre Interlocutor e narrador que todo oromance vai-se realizar, como resultado ficcional, claro de uma longa conversaentre ambos.

    ABSTRACT

    Guimares Rosas writings have three central characteristics. First,the lexicogenical processes, made visible by the incessant model-ling of new words and syntactic turns and twists. Secondly, the recover-ing of rare or unused words, belonging to the categories of regionalismsand archaisms. Finally, his almost unlimited power of fabulation or in-vention of a multiplicity of plots.

    Keywords: Neologism; Regionalism; Archaism; Plot.