O MAL DE ARQUIVO MONTADO A CAVALO ou OS VELHOS...
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O MAL DE ARQUIVO MONTADO A CAVALO
ou
OS VELHOS PRE(CON)CEITOS DA BATALHA DE PORONGOS
ou
O CAUSO DA HISTÓRIA DA LITERATURA SUL-RIO-GRANDENSE
Gustavo Henrique Rückert (Mestrando/UFRGS)
Martín Fierro mató un negro y es casi
como si hubiera matado a todos.
Jorge Luis Borges
O ano de 68 é o marco simbólico de uma grande remodelação nas linhas de
pensamento das ciências humanas. Alunos oriundos de culturas à margem dos padrões
tradicionalmente elitistas das instituições de ensino universitário agitaram as paredes da
velha Sorbonne em um grito que expressava insatisfação com os métodos e objetos de
estudo. A leitura de Jane Austin realizada por uma aluna imigrante não seria a mesma
realizada (como era imposto) por um professor das classes mais favorecidas. Desse
modo, o grito contra o absolutismo dos modelos de ensino logo se voltou também
contra a situação política e, em geral, contra todas as atitudes totalitárias em qualquer
instância. As linhas de pensamento pós-68 assinalam não só uma atitude crítica e uma
revisão de métodos e objetos de estudo, como significativas inovações no campo
epistemológico. A herança dessas inovações será, pois, fundamental para a reflexão aqui
proposta acerca da História da Literatura Sul-rio-grandense.
I. O (anti) filósofo Jacques Derrida propõe, no ensaio intitulado Mal de
arquivo: uma impressão freudiana, uma reflexão “com Freud, sem Freud, às vezes
contra Freud” (2001, p.9) do (mal de) arquivo.
A noção de arquivo teria sua origem na palavra grega arkheîon, uma casa onde
os arcontes (magistrados superiores) depositavam os documentos oficiais. Os arcontes,
dotados de pleno poder político, eram então os responsáveis pelo depósito físico dos
documentos e, mais do que isso, pela competência hermenêutica em relação a eles.
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Assim, os documentos são guardados e classificados onde a lei e a singularidade se
cruzam no privilégio, ou, no que Derrida denominou uma “topologia privilegiada”.
Percebe-se, assim, que esse princípio arcôntico do arquivo é, antes de tudo, um
princípio de consignação: reunião de signos de modo sincrônico e homogêneo. (Cf.
Derridá, 2001, p. 12-14).
O que Derridá opera nessa releitura do arquivo freudiano é, em suma, a
desconstrução da noção de arquivo. O arquivo enquanto vontade de verdade, de
experiência da memória e retorno à origem carrega na sua própria definição uma
contradição: toda memória implica esquecimento. O primeiro termo não é, portanto, a
presença metafísica em oposição à ausência do segundo. O modelo desconstrucionista
propõe o entendimento de que a memória é composta de esquecimentos. Assim, o mal
de arquivo reside na autoridade (patri) árquica, na pulsão de morte, de destruição e de
exclusão, nos apagamentos e silenciamentos de documentos que comprometam a
homogeneidade. “O um se protege do outro”, e “o um se faz violência” (Derridá, 2001,
p. 109).
II. Rizoma: conceito biológico de um caule que une sucessivos brotos. Esta
é a origem do termo empregado por Gilles Deleuze e Félix Guatarri. No lugar dos
sistemas conceituais e textuais fechados, absolutos e totalitaristas que se apóiam nas
únicas raízes de origem, dá-se lugar ao plural, ao heterogêneo, ao sistema aberto.
Tradicionalmente, os conceitos eram entendidos como essência: eram a
correlação direta do termo com seu referente verdadeiro. No entanto, desde a virada
lingüística, sabe-se que os conceitos são criações discursivas e são completamente
arbitrários. Não há nenhuma imanência essencial entre referente e conceito. Assim, os
conceitos são relacionados a circunstâncias e não a qualquer essência.
A figura do rizoma é um emaranhado complexo. Não há como identificar
qualquer ponto de origem. Da mesma forma, não há qualquer ponto final. O texto
rizomático, portanto, é o texto que não se submete à visão homogênea. Ao invés de
apontar uma origem essencial, ele aponta nos inúmeros brotos e ramificações toda a
potencialidade descentrada rizomática.
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III. La nouvelle histoire (A nova história), é o título de uma coleção de
trabalhos de Le Goff, Georges Duby, Paul Veyne, Philippe Ariés, entre outros, editados
por Le Goff na década de 70. Eclode assim, nos anos 80, o termo Nova História para
designar um grupo heterogêneo de historiadores céticos em relação à verdade histórica.
Tradicionalmente, e muito devido à noção cientificista do século XIX, a História
Oficial tinha a pretensão de ser objetiva e neutra. Preocupada somente com a diacronia,
ela apresentava uma sucessão harmônica e linear de causas e efeitos que excluíam a
complexidade das relações sincrônicas de cada acontecimento. Por fim, o historiador era
um cientista que possuía o devido distanciamento do seu objeto: documentos oficiais
que comprovavam os grandes feitos (marcos) realizados por grandes homens.
O que esses historiadores, oriundos da Escola de Annales, fizeram, no fim das
contas, foi questionar a História Oficial como uma verdade dogmática, ressaltando o
caráter textual e narrativo construído por um observador que faz recortes e está
vinculado aos pre(con)ceitos da moral de seu contexto. Ao invés de um discurso tido
como oficial, o da “grande história”, passou-se ao estudo de uma pluralidade de
histórias, a partir dos pequenos fatos, a partir dos renegados pela História Tradicional, a
partir dos documentos não-oficiais, da arte, e da cultura – em um sentido bastante
material – popular.
IV. Até o início da década de 60, o termo cultura era representativo das
manifestações artísticas das classes dominantes, sob a justificativa de que essas eram
grandes manifestações do espírito (perceba-se a metafísica da presença) e, por isso,
eram dotadas de estética, de literariedade, ou, ainda, de universalidade (pensando na
dialética alma e mundo hegeliana). À literatura cabia uma análise imanente dessas
manifestações da elite cultural.
Profundas alterações geográficas, econômicas e sociais, durante os anos 60,
fizeram com que filhos de operários ocupassem vagas nas academias européias. Na
Escola de Birmingham (marginal caso se pense em Oxford ou Cambridge) propõe-se
um estudo interdisciplinar (que incluía filosofia, psicologia, psicanálise, sociologia,
antropologia e semiótica), marxista não-ortodoxo e de cunho empírico das
manifestações não somente literárias, mas culturais em um sentido muito mais amplo e
materialista – os Estudos Culturais. Assim, o âmbito da vida social concreta e não
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apenas de certas elites passa a fazer parte do termo cultura, que deve ser estudado de
modo amplo e fora dos preconceitos etnocêntricos do local do discurso que sempre
definiu os conceitos na verdade ideológicos de estética, de literariedade, de
universalidade.
Os Estudos Culturais de Birmingham não são uma manifestação isolada, mas
somente uma das faces de um grande iceberg. Eles estão relacionados com uma série de
movimentos iniciados na década de 60 e intensificados na década de 70 que propõe uma
descentramento das estruturas de poder. Assim, o pós-estruturalismo, o movimento
negro, o feminismo, os estudos da Escola de Birmingham e seu desdobramento nos
estudos pós-coloniais, compõem esse conjunto de valorização da diferença, do outro e
da margem. A construção de identidades como branco e negro, homem e mulher,
colonizador e colonizado, nação, pátria, entre tantos outras, passam a ser questionadas.
Ou seja, aqueles grupos que não eram dotados de estética, de literariedade e
universalidade passaram a questionar o centro branco, europeu e masculino produtor
desses sentidos.
......
A disciplina da História da Literatura é, como bem se sabe, antes de qualquer
coisa, uma história. Dessa forma, após todas as reconfigurações epistemológicas
iniciadas nos anos 60, houve uma série de transformações e de reflexões críticas acerca
dessa disciplina. Afinal de contas, o historiador da literatura é um narrador que escolhe
e tem o poder de contar (e definir) a literatura (Cf. Achugar, 2006). O arquivo da
manifestação literária é (re)produzido por um discurso que, como qualquer discurso,
parte de um locus discursivo. Sendo, portanto, a história da literatura um princípio
arcôntico, fica claro que é uma lembrança e, conseqüentemente, esquecimento.
A História da Literatura, usualmente, vincula-se com o conceito de nação. Esse
conceito, no entanto, passou por uma série de reformulações que em muito se
relacionam com o próprio conceito de identidade. Se o sujeito moderno se entendia
como um ser uno, racional e essencial (cogito, ergo sum), algumas chagas feriram essa
noção e acabaram por descentrá-lo. Marx mostrou que o homem faz a história, porém,
ele a faz sob condições que lhe são dadas; Freud mostrou que habita um estranho,
ingovernável e irracional dentro do próprio sujeito; Nietzsche, por fim, relativizou a
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própria noção de verdade, o que impossibilitou a imanência de uma essência no ser
humano. A partir daí, seria possível citar uma série de exemplos que continuam a
produzir chagas na identidade moderna do sujeito, como Lacan, que comprova que a
subjetividade é, na verdade, formada pela intersubjetividade. O resultado é o
entendimento atual de que a identidade não é estática, imanente ou essencial, mas sim
deslizante e fragmentária, um construto discursivo que tende a produzir uma ilusão de
homogeneidade na grande heterogeneidade que são as diferentes posições de sujeito.
A partir de então, a própria noção da identidade nacional e da nação sofreram
abalos. Se o pertencimento a determinada região de nascimento (natio) criava a noção
de pertença como algo natural e inerente, sabemos ser esse processo discursivo e
homogeneizante. A representação de uma cultura comum a todos os habitantes (ilusão
homogênea) de uma nação pressupõe a exclusão da diferença. Assim, esse processo traz
em si a exclusão, o apagamento e o silenciamento. Dessa forma, a junção imaginativa
de um mítico passado comum com um presente cultural homogêneo traz o sentimento
de pertença a uma comunidade, que, como bem ensinou Benedict Anderson (1991), é
imaginada.
Essa mudança de concepção identitária acaba por relativizar as fronteiras do
nacional. Um dos desafios da História da Literatura, nesse sentido, passou a ser lidar
com esse apagamento de fronteiras e a contemplar sujeitos tão contraditórios em
culturas distintas dentro da mesma nacionalidade. Assim, para que não se valorize
determinada representação cultural em detrimento de outras, faz-se necessário que as
Histórias respeitem a diversidade, sejam plurais e inclusivas, o que, naturalmente,
fragmenta o discurso positivista dessas narrativas. As condições arcônticas da História
da Literatura devem ser cautelosamente refletidas, pois o um é princípio de violência, o
um é, necessariamente, contra o outro.
A noção de origem também sempre fora um dos pilares da História da
Literatura. Sabe-se, entretanto, que fatos não são eventos isolados, mas produtos de todo
um contexto favorável aos seus acontecimentos. Não se poderia esperar, por exemplo, o
surgimento do romance na Grécia Antiga, uma vez que as formas das manifestações
desencadeadas nesse contexto foram outras, por atender a outras demandas. Além disso,
os fatos passados só chegam a nós por intermédio de textos e, por sua vez, a leitura
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desses textos se dá por uma óptica do presente. Contar um passado literário, portanto, é
fazer um discurso presente sobre o que houve no passado. O discurso evolucionista,
buscando a origem e a influência, não faz mais sentido e sabe-se que é produtor sine
qua non de narrativas excludentes por não admitirem espaços de negociação ao afirmar
a sua linha evolutiva. O desafio é a produção rizomática da História da Literatura,
buscando não a raiz, mas o complexo emaranhado intertextual sem pontos de origem e
de chegada exatos.
Por fim, com a contribuição dos Estudos Culturais, há de se pensar que a
formação de uma História da Literatura é a formação (e/ou reafirmação) de um cânone.
O historiador faz as suas escolhas, as suas memórias e os seus esquecimentos sem
jamais ser neutro, como pressupunha a ilusão cientificista. Todo discurso é produzido a
partir de um local e a ideologia do enunciador é claramente perceptível aí. A partir
desses conhecimentos, torna-se um desafio escapar às armadilhas da estética e
contemplar as formas do outro. Assim, a cultura de grupos minoritários, sempre
excluídos nas tradicionais narrativas históricas, merece devida atenção, ampliando-se a
noção do literário. Essas produções, é claro, não obedecem aos mesmos ideários
artísticos dos grupos dominantes. Um claro exemplo desse desafio são as tradições orais
indígenas. Como abordá-las na História da Literatura que sempre foi centrada nas
produções escritas? Para abordar de maneira consistente a produção artística de algum
grupo cultural, é necessário um conhecimento profundo do contexto dessa produção e
da realidade desse grupo. Ou seja, é necessário para uma ampla e democrática narrativa
histórica, antes de tudo, o respeito pelo outro e a valorização da alteridade.
......
Pensar na História da Literatura Sul-rio-grandense é pensar em um caso bastante
específico. É preciso refletir sobre as peculiaridades da construção e da constante
afirmação da identidade sul-rio-grandense para não se transplantar de maneira muito
forçosa os conceitos teóricos que foram criados em outras circunstâncias. A grande
necessidade e busca de fixidez identitária na cultura desse estado se dá a partir de uma
noção marginal. Não sendo contemplado por uma narrativa única e homogeneizante do
que é ser brasileiro, o gaúcho reivindica constantemente a sua identidade. O grande
perigo dessa atitude, no entanto, reside no autoritarismo dessa auto-representação, que é
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feita de modo arcôntico: busca-se uma identidade una e essencial, que é, naturalmente, a
representação idealizada de determinado grupo e a exclusão de tantos outros que
representam perigo para a homogeneidade. Ou seja, a representação da identidade sul-
rio-grandense é um descentramento que, no entanto, produz um novo centro e, por
conseqüência, mantém o processo de marginalização. E, em tempos de valorização do
global, de atravessamento e de contato entre culturas, de relativização da identidade, a
contrapartida é, claramente, uma busca violenta pela afirmação do local. No caso do Rio
Grande do Sul, percebem-se, em variadas esferas da vida social, as manifestações
desses conflitos. Cabe, aqui, uma breve reflexão dessas contradições na esfera da
História da Literatura, começando por uma imagem ficcional:
- A guerra terminou, Milonga.
- A guerra terminou e eu continuo escravo.
- Para mim tu não és escravo, Milonga.
- General, onde está a República que vosmecê proclamou?
- Ela não existe mais, Milonga.
- Vosmecê mentiu para nós.
- Não, Milonga, eu não menti. Apenas perdi a guerra.
(...)
Milonga olhou para o céu avermelhado e deu um grito agudo, que fez
Netto estremecer. Depois, olhou para Netto com os olhos frios.
- Morre, general!
Apanhou o revólver, apontou para Netto e apertou o gatilho. O tiro
saiu para o alto. No momento do disparo, Milonga foi sacudido por
um tremor, atingido pela descarga duma carabina. Dobrou-se sobre o
pescoço do cavalo e caiu no chão seco. (RUAS, 1995, p. 103-104)
Simbolicamente, a morte de Milonga, no romance Netto perde sua alma, de
Tabajara Ruas, retrata bem a marginalização da identidade negra na construção da
figura do monarca dos pampas, potencializada em Histórias da Literatura Sul-rio-
grandenses. O negro Milonga compora o corpo de lanceiros negros, tão famoso durante
a Revolução Farroupilha.
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Cabe lembrar aqui que a Revolução instaurou-se por interesses econômicos dos
grandes estancieiros, os monarcas dos pampas. Precisavam eles compor numeroso
exército para defender a guerra de seus interesses. Sendo assim, foi prometida a
liberdade aos escravos (parcela tão mais numerosa da sociedade) que aderissem à causa
republicana e combatessem. Sanados os interesses econômicos dos estancieiros, a
Revolução cessou e os farroupilhas foram derrotados. Curiosamente, os lanceiros
negros foram massacrados em seu acampamento na última batalha, a de Porongos. Os
acampamentos das outras corporações não foram atacados. Uma parcela de
historiadores assinala uma possível traição de David Canabarro, que, por meio de cartas,
teria acordado o ataque imperial aos lanceiros.
No romance, Milonga, que havia sobrevivido ao massacre, mutilado de um
braço, desiludido com o desfecho da guerra e sem qualquer independência em sua vida,
é morto ao cobrar do general Netto o não cumprimento das promessas de alforria. Da
mesma forma que no cruel desfecho da Batalha de Porongos e na tragédia ficcional de
Milonga, os negros são descartados da identidade mítica de um gaúcho forjado à
semelhança de uma elite rural que compusera uma parcela tão pequena da sociedade
sul-rio-grandese. Essa é a identidade também veiculada em muitas Histórias da
Literatura, que descartam a cultura e os interesses políticos negros de um discurso tão
monofônico.
Da mesma forma, há de se pensar na construção da figura indígena. Se durante o
romantismo nacional, foi de maneira mítica que se buscou a representação do indígena
como elemento formador da nação brasileira (e esse índio possuía valores
eurocêntricos), não é diferente na literatura do sul. O índio que possui espaço na
literatura legitimada pelas Histórias da Literatura é o índio mítico do passado, o
elemento fundador idealizado e construído de modo a justificar uma identidade
específica do presente que não acolhe a própria cultura indígena. Assim, índio na
literatura em questão é Pedro Missioneiro, de O tempo e o vento, de Erico Verissimo.
As manifestações culturais indígenas, e abordando questões mais específicas, como suas
narrativas, transcritas recentemente por autores indígenas, e também suas performances
narrativas orais, atualmente bastante gravadas em mídias musicais, não são consideradas
estéticas, artísticas, literárias (ou qualquer outro conceito que é dispositivo de exclusão)
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e, assim, não são contempladas no discurso único da História e na identidade
homogeneizante por ela construída.
As mulheres são outras que ficaram na periferia por conta do dispositivo de
exclusão que é o arquivo da História da Literatura Sul-rio-grandense. Para exemplificar,
basta pensar que é, normalmente, atribuído a Erico Verissimo ou a Dyonélio Machado
certo pioneirismo na narrativa urbana. Contudo, pouco se fala em Andradina Oliveira. A
escritora publicara O perdão, em 1910. Trata-se de uma narrativa em que a
protagonista, Estela, é casada com Jorge, homem que representa todas as vicissitudes de
sua sociedade. O desejo emancipatório da personagem, que acaba se envolvendo com o
sobrinho de Jorge, em conflito com o sentimento de culpa, revelam uma narrativa
fundada em sua histeria, e que tem por pano de fundo a Belle Époque porto-alegrense.
Por que motivo teria sido praticamente esquecido esse romance? Como diria Donaldo
Schüller, “nesta terra de centauros, a feminilidade é temida” (SCHÜLLER, 1985, p.18).
Seguindo a mesma linha de raciocínio, questiona-se: por andará Caio Fernando
Abreu? O escritor de certa forma lembrado na literatura nacional muitas vezes é
esquecido nas Histórias da Literatura Sul-rio-grandeses. E por que não seria sua
literatura gaúcha? Pelo moderno trabalho com a linguagem? Pela temática urbana? Pela
questão homossexual? Talvez por tudo isso... Já o modernista Raul Bopp tantas vezes
fora esquecido do arquivo da literatura local apesar de ser lembrado pelo arquivo
nacional. O homossexualismo representa, mais do que as mulheres, uma ameaça para a
identidade mítica do homem dos pampas. A geração de contistas urbanos de Porto
Alegre dos anos 80 e 90 é, inclusive, descrita como média, porém ousada por Luís
Augusto Fischer(2004). Sobre a identidade regional presente nesses contistas, o crítico
afirma:
(...)quase todos eles encaram de frente o fantasma da identidade
regional tal como figurado nos momentos mais altos do passado, de
Simões Lopes Neto a Dyonélio e Erico, nisso demonstrando uma
coragem que se deveria aplaudir – são como que expedicionários em
busca do Segredo, que precisam enfrentar os Guardiões do Templo
para alcançar a outra margem. Nem sempre conseguem, mas isso é
outro papo. O que importa é ousar. (FISCHER, 2004 ,p.139)
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Talvez eles não pretendam alcançar a outra margem, que é a identidade
reproduzida pela História da Literatura dessa república de centauros. Talvez a ousadia
maior seja ressaltar uma identidade não contemplada na representação da literatura
legitimada como pertencente ao Rio Grande do Sul. Talvez a ousadia seja não se apoiar
em quadros comparativos entre literatura brasileira e gaúcha, uma herança do conflito
entre José de Alencar e Apolinário Porto Alegre com as publicações de O gaúcho e O
vaqueano. Talvez a ousadia maior seja não reproduzir “os momentos mais altos” ou “o
primeiro grande autor [Simões Lopes Neto]” (FISCHER, 2004, p. 57). E deixa-se claro
que as narrativas de Simões Lopes Neto, Erico Verissimo, Ciro Martins, entre outros,
são sim exemplares e representativas também da condição regional. Mas elas não são a
representação única e não devem sustentar um discurso arcôntico, que apaga outras
representações. Salienta-se que Fischer aborda alguns desses autores (marginais) e por
isso é aqui analisado. Outras tantas produções bibliográficas sobre o assunto e cadeiras
de universidades simplesmente promovem o apagamento do discurso e da representação
literária de identidades periféricas que ameaçam a hegemonia da identidade central
construída (e essas são maioria embora existam exemplares casos de respeito à
alteridade). Já esquecido Caio, também se esquecerá por aqui Gilberto Noll, escritor que
vem sendo positivamente criticado e constantemente premiado pelo país?
Essas são algumas identidades oriundas de manifestações culturais às margens
em grande parte das Histórias da Literatura Sul-rio-grandenses, que, partindo do
princípio arcôntico, produzem uma memória que é, conseqüentemente, também
esquecimento. As obras e representações são legitimadas pelos seus dispositivos de
valoração estética, literária, artística. É claro que tantas outras produções culturais e
literárias, e tantas outras identidades não contempladas aqui também são silenciadas
nesse processo. É importante a valorização de trabalhos de resgate desses
esquecimentos e, também, da tentativa de produções de histórias literárias não-
arcônticas, não-darwinistas, rizomáticas, plurais, heterogêneas, polifônicas, incoerentes
e contraditórias.
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