O Manejo Da Identificação Imaginária Em Grupos de Psicóticos

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653 Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 10, n. 4, p. 653-663, dez.2007 Este artigo tem como cerne a identificação imaginária na abordagem psicanalítica de psicóticos reunidos em dispositivo de pequeno grupo. O estudo das teorias psicanalíticas no funcionamento e no manejo terapêutico dos grupos monossintomáticos forneceu o ponto de partida de nossa investigação. A especificidade da identificação na psicose e a possibilidade de estimular a criação de laços sociais entre psicóticos em pequenos grupos através do processo identificatório foi o tema principal deste trabalho. Palavras-chave: Psicose, identificação, pequenos grupos, laço social O manejo da identificação imaginária em grupos de psicóticos* Adriana Renna de Vitta Paulo de Carvalho Ribeiro * O presente artigo originou-se de nossa dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais – área de concentração em Estudos Psicanalíticos. A dissertação, intitulada A psicose e a intervenção psicanalítica nos pequenos grupos: investigações acerca da identificação e do laço social na psicose, foi defendida e aprovada em maio de 2007.

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Este artigo tem como cerne a identificação imaginária naabordagem psicanalítica de psicóticos reunidos em dispositivo depequeno grupo. O estudo das teorias psicanalíticas no funcionamentoe no manejo terapêutico dos grupos monossintomáticos forneceu oponto de partida de nossa investigação. A especificidade daidentificação na psicose e a possibilidade de estimular a criação delaços sociais entre psicóticos em pequenos grupos através do processoidentificatório foi o tema principal deste trabalho.

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    Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., So Paulo, v. 10, n. 4, p. 653-663, dez.2007

    Este artigo tem como cerne a identificao imaginria naabordagem psicanaltica de psicticos reunidos em dispositivo depequeno grupo. O estudo das teorias psicanalticas no funcionamentoe no manejo teraputico dos grupos monossintomticos forneceu oponto de partida de nossa investigao. A especificidade daidentificao na psicose e a possibilidade de estimular a criao delaos sociais entre psicticos em pequenos grupos atravs do processoidentificatrio foi o tema principal deste trabalho.Palavras-chave: Psicose, identificao, pequenos grupos, lao social

    O manejo da identificao imaginria em grupos de psicticos*

    Adriana Renna de VittaPaulo de Carvalho Ribeiro

    * O presente artigo originou-se de nossa dissertao de mestrado apresentada ao Programade Ps-graduao em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais rea deconcentrao em Estudos Psicanalticos. A dissertao, intitulada A psicose e ainterveno psicanaltica nos pequenos grupos: investigaes acerca da identificaoe do lao social na psicose, foi defendida e aprovada em maio de 2007.

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    Em Psicologia das massas e anlise do eu (1921), Freud seempenhou em encontrar uma explicao libidinal para a organizaocoletiva. Nesse texto, sua principal articulao se deu em torno daidia de que o coletivo uma rede de indivduos articuladosverticalmente com o lder, articulao que promove o lao social, porestabelecer entre os membros de um grupo uma identificao.

    Ao procurar uma explicao libidinal para a organizao dos gru-pos, Freud encontrou mecanismos de identificao e idealizao cau-sados por um objeto exterior ao grupo: o lder. Assim, nas suaspalavras um grupo primrio desse tipo um certo nmero de indi-vduos que colocaram um s e mesmo objeto no lugar de seu idealdo ego e, conseqentemente, se identificaram uns com os outros emseu ego. Esta exterioridade do objeto lder que, para Freud, deter-minaria a coeso de um grupo, caracterizado por uma dimenso ima-ginria, j que em sua origem estaria a iluso de uma completudeperdida que determina a busca de um ideal.

    A igreja e o exrcito so, para Freud, exemplos de uma ligaoparticular do sujeito com um signo universal, um signo que promovea organizao dos indivduos em massa, colocados diante de um chefe.A massa seria, assim, um produto especfico de uma identificao aum nico e mesmo objeto. O chefe, colocado como ideal, fazprevalecer uma ligao hipntica entre os indivduos, na qual no hespao para o particular, para o singular. Esse tipo de lao nocomporta a diferena subjetiva que se v abolida em uma identificaocomum. Ora, se a massa aliena o sujeito atravs de uma insgniauniversal, um tratamento analtico a partir do dispositivo grupal devesituar-se em um lugar contrrio a tal alienao, buscando aemergncia da particularidade subjetiva atravs da presena doanalista, que no dirige o grupo (esta uma funo do lder) e sim otratamento (Laurent, 1998). em torno dessas articulaes que seorganizam atualmente a prtica de alguns importantes psicanalistascom grupos denominados monossintomticos.

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    No contexto atual, dominado pelas novas configuraes do sintoma, taiscomo a anorexia, a bulimia, as toxicomanias e as depresses, vimos surgir nocampo social vrios agrupamentos que utilizam um trao monossintomtico parase caracterizarem como um grupo. As associaes de anorxicos-bulmicos, porexemplo, utilizam, como critrio de admisso nesses grupos, a insgniaidentificatria constituda pelo sintoma. em torno dessa poca que se formalizaa prtica da psicanlise com os grupos monossintomticos. No momento donascimento de instituies que convocam os sujeitos, no campo social, a partirda oferta do idntico, de uma identificao annima ao grupo e ao seu traomonossintomtico. o caso de grupos para alcoolistas, para pacientes que sofremde depresso, de sndrome do pnico, de anorexia-bulimia, entre outros.

    Se nesses grupos a caracterstica sintomatolgica comum tende a circularentre os componentes, reforando sua tendncia a se constituir como uma massa,Eric Laurent (1998) e Massimo Recalcati (2005) vo esclarecer, no entanto, queo trabalho do analista nesses grupos e o ponto de apoio para a direo dotratamento , todavia, interferir em sua tendncia a se perder na fusoidentificatria ao Ns, fazendo surgir o nome prprio do sujeito. A estratgiado grupo monossintomtico como um dispositivo para tratar a anorexia , deincio, acolher essa identificao, aceitando sua lgica atravs da oferta detratamento. Mas esse um movimento ttico inicial, pois o trabalho do analista,em um segundo momento, ser exatamente intervir naquilo que constituiu ogrupo: uma identificao alienante a um significante padro. A tarefa do analistanesses grupos , portanto, produzir um buraco nesta identificao imaginria paraque o nome prprio do sujeito possa advir. Nas palavras de Laurent (1998),

    A homogeneidade do sintoma uma iluso. O pequeno grupo monossin-tomtico constitui-se, na origem, sobre esta iluso. Aquilo que d consistnciaao grupo um lao imaginrio uma reciprocidade identificatria que realizauma espcie de espelhamento comum. Por isso, a direo do tratamento visa des-construir esta identificao coletiva (. . .) nos grupos monossintomticos deorientao analtica trata-se de romper a homogeneidade annima anorexia-bu-limia para produzir o nome prprio do sujeito. (p. 265)

    A partir de todas essas consideraes a respeito da prtica dos grupos mo-nossintomticos de orientao analtica, perguntamo-nos se essa teorizao, ba-seada na idia de que a funo do analista tentar intervir a partir da tendnciado grupo em fazer massa (tendncia a ele imanente), buscando a emergncia daparticularidade subjetiva, seria suficiente para pensarmos o trabalho com peque-nos grupos de psicticos. Algumas importantes consideraes se colocam: o psi-ctico faz massa? A tendncia em agrupar-se de forma monossintomtica estariapresente em grupos de psicticos? Se nos grupos monossintomticos de orien-

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    tao analtica, a principal premissa teraputica no reforar a identificao esim utilizar o grupo como tratamento da identificao, qual seria, nos grupos com-postos por pacientes psicticos, a estratgia que apontaria a direo do tratamen-to, se a questo inicial que se coloca a esse sujeito exatamente a dificuldade deacesso ao social e ao simblico, ou seja, quilo que o faria reconhecer-se comocomponente de um grupo no qual se estabelecem laos sociais?

    Em um grupo de psicticos que pudemos coordenar,1 no observamos essareciprocidade imaginria, essa forma de ligao que liga entre si os membrosde uma coletividade, instalando o lder na posio de ideal do eu. Ao contrrio,o grupo parecia funcionar sob uma constante ameaa de desintegrao queprecisava, a todo momento, ser trabalhada pelo analista no sentido de garantir aexistncia daquele espao, a partir de sua presena atenta e constante e do desejode que as questes trazidas por um pudessem ser compartilhadas no espao dogrupo, no espao habitado por outros. Assim, no havia naquele grupo umatendncia dos componentes em agrupar-se de forma monossintomtica,agrupamento que leva em considerao a busca fantasiosa por um objeto que viriasuplantar a falta. Se Lacan (1964) nos lembra que o sujeito neurtico buscaarticular sua falta com aquilo que falta ao Outro, atravs do fantasma, ele nosesclarece tambm que o psictico no dispe desse recurso, que s poderia seralcanado aps a metfora paterna.

    Se ao sujeito psictico no foi possvel o acesso s identificaes simblicas,vetadas pela forcluso do Nome-do-Pai, no podemos pensar, ento, num idealdo eu em torno do qual se articulam os grupos. Preso relao em espelho, opsictico encontra-se impossibilitado de operar uma identificao onde um s emesmo objeto colocado no lugar de seu ideal do eu, como os integrantes deum grupo fariam com o lder e, conseqentemente, impossibilitado tambm deidentificar-se horizontalmente em um grupo, do modo descrito por Freud. Nessesentido, como podemos pensar uma organizao coletiva sem esse elementoexterior a determin-la, caracterizado pelo lder? E assim, resta-nos ainda que nosperguntemos: como se daria a interveno do psicanalista em um grupo depsicticos, buscando um tratamento possvel dos sujeitos envolvidos ali? Opsictico faz grupo?

    Sabemos que por sua especificidade estrutural, o psictico resiste ao grupo,marcado por uma relao muito particular com a linguagem, relao que o deixa

    1. Esse grupo com o qual pudemos trabalhar e que se constituiu como objeto de nossa pesquisa,surgiu dentro de um hospital-dia psiquitrico no qual exercamos a funo de coordenao. Essegrupo de conversa, nome dado pelos pacientes, tinha a inteno de trabalhar com pacientesque freqentavam a instituio, utilizando-se exclusivamente da fala como recurso teraputico.

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    fora do discurso e, por isso, distante do sentido compartilhado em uma dadacomunidade. O estabelecimento de vnculos sociais encontra, neste aspecto, umgrande obstculo, pois estar fora do discurso estar fora de um conjuntosignificante capaz de habilit-lo a um vnculo com o outro e, portanto, de lig-loa esse outro. Alis, o significante desligado parece sempre rondar esse sujeito,aspecto razoavelmente fcil de observar no cotidiano da clnica, tanto nasexperincias dissociativas quanto na experincia paranica: desligado do outro,desligado de si mesmo, desligado de seus pensamentos, desligado de seu corpo,desligado do sentido. Por isso que o tratamento psicanaltico de sujeitospsicticos deve levar em conta a inveno de recursos que possam possibilitarminimamente a sua ligao com o outro, na expectativa da construo de um laoque leva em considerao a construo de respostas pelo sujeito psictico paraaquilo que o invade.

    Deste modo, entendemos que no seria possvel adotar com sujeitospsicticos a lgica que norteia o trabalho psicanaltico com os gruposmonossintomticos, a saber, a desidentificao, j que esses grupos originam-sea partir de uma lgica alienante prpria, aspecto que fornece sua consistncia esua unificao. Se os indivduos, em grupos de neurticos, tendem a fazer massa,o dispositivo do pequeno grupo monossintomtico uma modalidade detratamento desta inclinao identificao de massa. Ora, o psictico faz massa?Em um grupo monossintomtico, o elemento universal e aquilo que dconsistncia ao grupo a identificao, o reconhecimento recproco entre osmembros de um grupo de um lao identificatrio imaginrio. Isso precisamenteo que no est presente, a priori, em grupos de psicticos.

    Partimos ento do pressuposto de que se adotssemos a inverso dessalgica que ordena o trabalho nos grupos monossintomticos, talvez pudssemosencontrar um caminho mais promissor. Lacan (1955-1956), no seminrio Aspsicoses, nos ensina que a relao em espelho provoca uma dissoluo do outrocomo identidade (p. 115), caracterizando um desarranjo no plano imaginrio e,conseqentemente, uma desarticulao nas relaes com o semelhante. Aconseqncia desta dissoluo do outro como identidade uma reduo daestrutura imaginria, despida em seu carter mortal, onde observamos aproliferao de fenmenos duais de agressividade, de transitivismo e mesmo dedespersonalizao. Jacques-Alain Miller no texto Suplemento topolgico a umaquesto preliminar (1996), nos esclarece ainda que a forcluso do Nome-do-Pai no deve ser entendida sem a conjugao de um importante processo que aacompanha, a saber, ... a regresso tpica ao estdio do espelho. A forclusorevelada como falha na estrutura simblica ressoa sobre a estrutura imaginria,ela a dissolve, a conduz estrutura elementar chamada estdio do espelho(p. 122-3).

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    Haveria, portanto, um uso possvel de um grupo pelo sujeito psictico? Ora,se o psictico no faz grupo, se ele no realiza, como no caso de grupos deanorxicos, uma identificao idealizada a um significante padro iluso queassegura a consistncia do grupo podemos pensar, no entanto, que ele pode seservir da estruturao lgica do grupo e, portanto, da estruturao lgica do laosocial, amparada pela identificao e pela idealizao.

    Nesse sentido, a identificao imaginria, aquela realizada com o semelhante,com o outro identidade, no registro do eu-ideal e que se d pela via da imitao,revelou-se uma sada possvel ao sujeito psictico inserido no dispositivo grupo,ainda que precria e frgil. Pensar a direo do tratamento na psicose a partir davia da alienao, da busca pela imagem que gostaramos de ter, introduzir opsictico na dimenso de uma identificao possvel, possibilitando a inveno deum pequeno ponto de basta e, portanto, introduzir tambm uma mediaopossvel entre o sujeito e o outro.

    Desse modo, se em grupos monossintomticos de orientao analtica sepretenderia um tratamento da identificao, em grupos de psicticos sepretenderia um tratamento pela identificao. A direo do tratamento em gruposde psicticos passaria, ento, pela produo de identificaes imaginrias, pelaproduo de laos identificatrios comuns capazes de produzirem uma nomeaoao sujeito e, por isso, uma certa inscrio na organizao social que acontece sua volta. Sabemos, contudo, que no possvel considerar a identificaoimaginria sem pressupormos um outro processo que lhe d sustentao, a saber,o estdio do espelho. Na experincia do espelho, ao mesmo tempo em que se forjauma imagem que funciona como ortopedia egica, forma-se tambm o germe daalienao imaginria. Em outras palavras, a funo imaginria, na psicose,necessita de um tratamento pelo simblico, pois de outro modo, fica reduzida aoespelho. Assim, em um tratamento pela identificao, no se trata de estruturar-se em ligaes duais, sustentando-se a presena terceira do simblico pelo grupo.O fragmento clnico que passaremos a descrever serve ao propsito de expor umuso possvel de um grupo por um sujeito psictico, uso que proporcionou a essepaciente importantes efeitos teraputicos.

    O uso de um grupo por um psictico

    O grupo com o qual pudemos trabalhar em uma clnica psiquitrica de BeloHorizonte tornou-se um lugar privilegiado de endereamento das questes dospacientes que dele participavam, tanto os inseridos no hospital-dia quanto os quese encontravam internados na clnica temporariamente. O grupo se reunia uma

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    vez por semana, com um nmero de integrantes variando entre quatro e oitopessoas. Os pacientes eram convidados a participar a partir de dois critrios. Oprimeiro deles consistia em observar a indicao dos profissionais responsveispor cada caso e, o segundo, era simplesmente acolher o desejo de cada um. Assim,a partir do convite, a participao no grupo levava em conta a concordncia doterapeuta assistente e o desejo da cada um em fazer parte.

    Esse grupo de conversa, nome dado pelos pacientes do hospital-dia, surgiuneste contexto de atendimento, a partir de um pedido dos prprios pacientes, quenecessitavam de um espao onde pudessem falar mais de si. As reunies gerais,destinadas organizao do hospital-dia e da rotina da instituio (reviso doquadro de atividades e oficinas da semana, organizao de passeios, avaliao daparticipao de cada um, entre outras questes) no comportavam adequadamenteas inmeras queixas e pedidos individuais, j que essas reunies possuam umcarter mais administrativo e voltado para o funcionamento dirio da clnica.

    Constitumos, ento, dentro do quadro de atividades do hospital-dia, umgrupo que se utilizava exclusivamente da fala como recurso teraputico e, poresse motivo, apresentava-se como uma nova possibilidade de trabalho,essencialmente diferente das atividades desenvolvidas nas oficinas de pintura,cermica, letras e outras, comumente utilizadas nos servios atuais de atendimento sade mental.

    No sem demora, foi possvel constatar que coordenar um grupo depsicticos exigia do analista um certo desprendimento no que se refere a umsetting ideal. Em alguns encontros os pacientes apresentavam-se desagregados,excessivamente persecutrios e inquietos. Em outros, eles simplesmente saam dasala durante a sesso, retornando alguns minutos depois ou mesmo deixando deretornar. De qualquer forma, havia um ntido interesse em esperar o dia dogrupo para falar uma coisa particular, fenmeno que se refletiu na rotina dainstituio, quando, por exemplo, as palavras comearam a aparecer no lugar dosatos. Pacientes que eram agressivos ou excessivamente arredios ou queapresentavam comportamentos erotizados no contato com algum membro daequipe e com outros pacientes, puderam encontrar, no grupo, um espao detrabalho para essas questes e para outras que freqentemente apareciam nocotidiano da instituio.

    Em uma ocasio, esse grupo que j se mantinha estvel com um nmero fixode participantes h vrios encontros, sofreu algumas alteraes em sua dinmicaa partir da entrada de uma nova paciente. Nesse encontro os pacientes falavamdas internaes que j haviam sofrido ao longo da vida, internaes relacionadas histria psiquitrica de cada um. Um paciente, naquele dia mais desorganizado,que chamarei aqui de Joel, no acompanhava a discusso, falando em um tommais alto, levantando-se muitas vezes e, por isso, dispersando o grupo. Sua

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    atitude causava um certo incmodo nos participantes que se olhavam entre sifazendo sinais negativos com a cabea. Com um diagnstico de esquizofreniahebefrnica, Joel, poca com 45 anos, freqentava o grupo de um modo muitoprprio, s vezes um pouco inadequado e agitado, outras vezes exibindo umpensamento desconexo, com fuga de idias e desagregao. At ento, no haviafeito um lao consistente com o grupo.

    A paciente, que nunca havia estado naquele grupo, fazia alguns comentriossobre cada um dos participantes, lembrando-se de alguns, buscando refernciasem outros, at que, em um determinado momento, visivelmente incomodada coma inadequao de Joel, ela se referiu enfaticamente a ele, exigindo que ele sefizesse entender, movimento que o grupo j havia esboado sem muito xito.Como Joel falava de forma pouco inteligvel, sem se preocupar ou sem conseguiracompanhar as discusses no grupo, a paciente props que ele definisse entoseus males em apenas duas palavras, pensando que assim conseguiria entend-lo. Joel, para surpresa do grupo, entende a proposta e diz: para cada um falarda sua doena e da carga que carrega? Ento t, pode comear que eu vou teajudar. Os pacientes ento comeam a expressar-se de forma mais sucinta, cadaum se definindo a partir de seus males e de expresses mdicas com as quais jhaviam entrado em contato: estresse e fadiga, oscilao de humor, tenhodepresso, sou PMD, entre outros, at que Joel se pronuncia, fazendo-sefinalmente entender pelo grupo: meu problema com a minha famlia que nosai do meu p por causa das drogas do trfico. Ento deve ser isso: problemacom drogas.

    importante esclarecermos que Joel j havia feito uso de drogas naadolescncia, perodo que coincidiu com o desencadeamento de sua psicose, masesse uso, que cessou aps esse perodo, no preenchia os critrios para umadependncia qumica, fato corroborado por seus mdicos e por seus familiares.

    A partir de sua participao nesse encontro, Joel parece ter construdo umprimeiro significante capaz de articul-lo com aquele grupo, pois ao concluir meuproblema a droga, ele tenta, a partir do significante droga, construir um laosocial. A droga, em lugar de exclu-lo, o inseria em um discurso social,fornecendo-lhe um nome no qual podia se referenciar para se dirigir ao outro.Apesar de no participar de todas as sesses, Joel passa a se interessar um poucomais pelas pessoas que freqentavam o grupo e a se nomear dependente dedrogas a todos aqueles que o interpelavam pelo fato de freqentar a instituio:eu sou dependente de drogas, por isso estou aqui com vocs. A partir dessemomento, este paciente se viu, ainda que precariamente, fazendo parte de umgrupo. Curiosamente a paciente que havia proposto o jogo, ao se definir comoPMD, tambm se acalmou com a palavra apropriada e sinttica do Outro-

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    instituio. Ao acolher essa forma mais sucinta de expresso, Joel, nesse encontro,apazigua-se no contato com o outro, assim como os outros pacientes que, aosintetizarem seu mal a partir de expresses mdicas j ouvidas e at ento vaziasde sentido, reduziram ao mnimo, na linguagem, aquilo que poderia defini-los.

    A partir desse fragmento clnico, acreditamos ser possvel demonstrar quea identificao, fenmeno que pode ser considerado um operador clnicofundamental no trabalho com grupos, demanda, no caso da psicose, umentendimento de sua especificidade para que ela possa adquirir um valorteraputico. Entendemos, a partir dos importantes resultados teraputicosobservados nos pacientes inseridos no grupo que coordenamos, que a viaimaginria, amparada pela circulao simblica a que o dispositivo grupo seprope, j que se encontra ancorado na perspectiva do lao social e da palavra,revelou-se possibilitadora de um novo arranjo desses sujeitos com o outro,permitindo novas sadas que alcanaram efeitos estabilizadores em alguns dosparticipantes do grupo. Nesse sentido, entendemos que o grupo pode serconsiderado um instrumento de mediao entre o sujeito e o mundo dasrepresentaes, um artefato que pode promover a passagem da imagem aosmbolo de forma amortecida, um filtro de construo da realidade e, desse modo,contribuir para a instituio de um outro social menos persecutrio e ameaador.

    Nossa proposta de trabalho com um grupo de psicticos buscou levar emconsiderao todos esses aspectos tericos e clnicos, buscando contemplar odesafio lacaniano de no recuar diante das psicoses e por isso, sempre inventar,pela via da prpria clnica, novos dispositivos amparados pelos princpios dapsicanlise. Partindo desses mesmos princpios, possvel dizer que se o psicticoresiste a essa organizao especfica chamada grupo, nada impede, entretanto,que exista um uso possvel de cada grupo por cada sujeito psictico, uso que podeproporcionar um certo rearranjo em sua relao com o outro. A partir da idia deque um psictico pode se servir da estruturao lgica do lao social semnecessariamente estar inserido nele, este trabalho buscou trazer uma contribuioao tratamento desses sujeitos, tratamento onde a reinveno e a reviso dosprocedimentos utilizados sempre necessria.

    Agradecimentos

    Casa Freud

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    Referncias

    FREUD, Sigmund (1921). Psicologia das massas e anlise do eu. In: Edio StandardBrasileira das Obras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Ima-go, 1996. v. XVIII.LACAN, Jacques (1949). O estdio do espelho como formador da funo do eu. In: Es-critos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 96-103.____ (1955-1956). O seminrio. Livro 3. As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.____ (1964). O seminrio. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psican-

    lise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.LAURENT, Eric (resp.). A funo do pequeno grupo na lgica da psicanlise. Relatriodas Escolas da Associao Mundial de Psicanlise (AMP), cole Europene dePsychanalyse, p. 257-285, 1998.MILLER, J. A. Suplemento topolgico a uma questo preliminar. In: Matemas I. Tra-duo Srgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.RECALCATI, Massimo. Lignes pour une clinique des monosymptmes: anorexie, boulimie,dpression, attaquepanique. La Cause Freudiene, Paris, Navarin, n. 61, p. 83-98, nov. 2005.

    Resumos

    Este artculo tiene como ncleo central la identificacin imaginaria en el abordajepsicoanaltico de psicticos reunidos en pequeos grupos. El estudio de las teoraspsicoanalticas en el funcionamiento y en el manejo teraputico de los gruposmonosintomticos forneci el punto de partida de nuestra investigacin. Laespecificidad de la identificacin en la psicosis y la posibilidad de estimular lacreacin de lazos sociales entre los psicticos en pequeos grupos a travs del procesode identificacin fue el tema principal de este trabajo.Palabras claves: Psicosis, identificacin, pequeos grupos, lazo social

    Cet article porte sur lidentification imaginaire dans lapproche psychanalytiquedes patients psychotiques qui participent des petits groupes thrapeutiques. Notrepoint de dpart est ltude des thories psychanalytiques sur les groupesmonosymptomatiques. Les aspects particuliers de lidentification dans la psychose etla possibilit de lemployer comme facteur de promotion de liens sociaux chez lespsychotiques constituent le point central de nos laborations.Mots cls: Psychose, identification, petits groupes, lien social

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    One of the main topics of the study described in this article is the role played byimaginary identification in the psychoanalytical approach to psychotics treatedtogether in small groups. The study of psychoanalytic theories on group functioningand the therapeutic handling of mono-symptomatic groups provided the starting pointfor our inquires. The specificity of identification in psychotics and the possibility ofimproving the establishment of social ties among the members of such groups throughidentification processes was the focus of the main part of our work.Key words: Psychosis, identification, small groups, social ties

    Verso inicial recebida em junho de 2007Verso aprovada para publicao em outubro de 2007

    ADRIANA RENNA DE VITTAPsicloga; psicanalista; mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Ge-rais (Belo Horizonte, MG, Brasil) rea de concentrao em Estudos Psicanalticos.Rua Coronel Melquades Horta, 54 Castelo30810-595 Belo Horizonte, MG, Brasile-mail: [email protected]

    PAULO DE CARVALHO RIBEIROPsicanalista; doutor em psicanlise pela Universidade Paris VII (Paris, Frana); pro-fessor do Programa de Ps-graduao em Psicologia da Universidade Federal deMinas Gerais (Belo Horizonte, MG, Brasil).Rua Bambu, 25/160030210-490 Belo Horizonte, MG, BrasilFone: (31) 3282-7082e-mail: [email protected]

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