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O Marco Civil da Internet - desafios para a educação Nelson De Luca Pretto - [email protected] Maria Helena Silveira Bonilla - [email protected] Introdução Em meados do século passado, mais precisamente durante o final da década de 1960 e ao longo das duas seguintes, iniciava-se, basicamente nos Estados Unidos, a ideia de articular-se as redes de comunicação de dados já existentes. Começa a configurar-se a criação de uma rede das redes, uma metarrede, que veio a ser conhecida, rapidamente como Internet, ainda escrita, naquele tempo, com o I maiúsculo. Jovens programadores espalhados pelos laboratórios de universidades e centros de pesquisa da Califórnia, Massachusstes e Utah, começaram a trocar informações via rede de dados, configurando-se, nos anos 1970, a primeira rede denominada ARPANET (LEVY, 2012). Nos anos 1980 essa rede se desdobra, constituindo a MILNET, exclusiva dos militares americanos, e a ARPNET é expandida para outras universidades e centros de pesquisa no mundo inteiro, com o nome de Internet. Era uma internet de uso quase que exclusivo da academia. Na final da década de 1980, Tim Berners-Lee, trabalhando na Organização Europeia para Investigação Nuclear (CERN - Organisation Européenne pour la Recherche Nucléaire, em frances), o Laboratório Europeu de Partículas Físicas, propôs a ideia de um Identificador Universal de Documento (Universal Document Identifier) para acessar cada informação disponível na rede, ainda uma rede pequena e interna aos laboratórios de pesquisa (BERNERS-LEE, 1998). Mais adiante, em 1990 escreveu um programa chamado "WorldWideWeb", um hipertexto distribuído ainda somente dentro da comunidade científica e, no verão de 1991, distribui mais amplamente o programa, transformando radicalmente a ideia de rede. Estava criada, assim, a World Wide Web, a conhecida Web (www), a interface gráfica para o uso da rede, e que terminou configurando-se quase como sinômino da própria internet. O importante a destacar desta Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00368

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O Marco Civil da Internet - desafios para a

educação Nelson De Luca Pretto - [email protected]

Maria Helena Silveira Bonilla - [email protected]

Introdução

Em meados do século passado, mais precisamente durante o final da década de 1960 e

ao longo das duas seguintes, iniciava-se, basicamente nos Estados Unidos, a ideia de

articular-se as redes de comunicação de dados já existentes. Começa a configurar-se a

criação de uma rede das redes, uma metarrede, que veio a ser conhecida, rapidamente

como Internet, ainda escrita, naquele tempo, com o I maiúsculo. Jovens programadores

espalhados pelos laboratórios de universidades e centros de pesquisa da Califórnia,

Massachusstes e Utah, começaram a trocar informações via rede de dados,

configurando-se, nos anos 1970, a primeira rede denominada ARPANET (LEVY, 2012).

Nos anos 1980 essa rede se desdobra, constituindo a MILNET, exclusiva dos militares

americanos, e a ARPNET é expandida para outras universidades e centros de pesquisa

no mundo inteiro, com o nome de Internet. Era uma internet de uso quase que exclusivo

da academia.

Na final da década de 1980, Tim Berners-Lee, trabalhando na Organização Europeia

para Investigação Nuclear (CERN - Organisation Européenne pour la Recherche

Nucléaire, em frances), o Laboratório Europeu de Partículas Físicas, propôs a ideia de

um Identificador Universal de Documento (Universal Document Identifier) para acessar

cada informação disponível na rede, ainda uma rede pequena e interna aos laboratórios

de pesquisa (BERNERS-LEE, 1998). Mais adiante, em 1990 escreveu um programa

chamado "WorldWideWeb", um hipertexto distribuído ainda somente dentro da

comunidade científica e, no verão de 1991, distribui mais amplamente o programa,

transformando radicalmente a ideia de rede. Estava criada, assim, a World Wide Web, a

conhecida Web (www), a interface gráfica para o uso da rede, e que terminou

configurando-se quase como sinômino da própria internet. O importante a destacar desta

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história é que todo esse movimento liderado por Berners-Lee poderia não ter dado em

nada se ele tivesse patenteado a criação. Como afirma Howard Rheingold, outro dos

pioneiros da internet, “ele recusa-se a patentar a solução. [...] Ele queria usá-la. E sabia

que seria mais útil para ele e outros cientistas se muito mais pessoas a usassem”

(RHEINGOLD, 2012, p. 147, tradução nossa).

A partir de então, a web se populariza, chega a toda a sociedade, com a abertura para o

uso comercial. Desta forma, em tese, qualquer cidadão podia estar conectado à rede,

desde que tivesse uma linha telefônica, um modem e um local (provedor) para poder

fazer a conexão com o primeiro ponto da rede mundial.

Importante ressaltar que a principal característica de todo esse movimento,

exaustivamente já descrito e analisado por diversos autores e inúmeros trabalhos

(CASTELLS, 2003; LEVY, 2012, RHEINGOLD, 2012 e outros), foi conectar redes

diferentes, sem procurar transformar cada uma delas em uma única rede. A partilha livre

e aberta dos códigos e o uso cooperativo dos recursos possibilitou a criação de

protocolos para essa comunicação, e o protocolo TCP/IP (Internet Transfer

Porotocol/Internet Protocol) terminou se configurando como sendo o protocolo de

comunicação da rede, que viabilizou a troca de dados entre diversos computadores

espalhados pelo mundo. Outro princípio que sustentou o funcionamento da internet - e

que, em teoria, como veremos ao longo deste texto, ainda deve sustentá-la - é o princípio

de que todo dado que é recebido por um nó na rede deve ser repassado adiante, sem

nenhuma cobrança e sem nenhuma verificação do conteúdo deste dado.

Estes princípios são a base da internet e possibilitaram o desenvolvimento da

multiplicidade de aplicativos que permitem a circulação de informações e a comunicação

generalizada, pois, uma vez que cada projeto é disponibilizado na rede, conta com o

apoio e colaboração de muitos desenvolvedores (hackers), profissionais ou amadores,

do mundo inteiro, para seu aperfeiçoamento. Ainda, a circulação de informações e a

comunicação ampla permitem que cada sujeito, em qualquer ponto do planeta, desde

que conectado, possa constituir-se num ponto “emissor"1, compartilhando suas ideias,

1 utilizamos o termo “emissor” entre aspas, por entendermos que ele é próprio das mídias de massa e, no contexto das redes horizontais, precisa ser ressignificado, indicando que todo participante dessas redes passa a ser um interagente, aquele que, ao mesmo tempo, recebe, emite, participa, dialoga, interage, ou seja, usa, plenamente, os processos comunicacionais horizontalizados.

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sua cultura, seus referenciais e, assim, contribuir para uma visão mais ampla e complexa

da própria sociedade. Portanto, esses princípios devem ser defendidos a todo o custo,

sob pena de não termos, caso eles sejam afetados, mais a possibilidade de usar a rede

com a liberdade que caracterizou o seu nascimento e o uso que dela estamos fazendo,

desde os primeiros anos até os dias de hoje.

Mas nem tudo se desenvolveu, ao longo deste tempo, da maneira como se previa nos

primeiros anos. As grandes corporações de telecomunicações começaram a perceber

na internet, de um lado, um bom negócio que precisa ser “melhor administrado”, e alguns

governos, de outro lado, um negócio que demandaria ser controlado. Inicia-se uma

verdadeira guerra pelo controle do funcionamento da internet, com os modelos de

negócios das grandes corporações de telecomunicações assumindo um papel

protagonista neste embate. Mais uma vez trazendo Howard Rheingold, ao discutir os

movimentos das grandes corporações que ambicionam cercar/controlar a rede

(enclosure), é importante considerar que

o conflito sobre quem tem o direito de usar a mídia digital para criar e disseminar a propriedade intelectual é uma guerra pelo controle político do poder de informar, persuadir, educar, debater e inovar. Argumentos sobre a 'neutralidade da rede' ou o licenciamento do espectro eletromagnético pode exigir que você seja tanto nerd de tecnologia como um expert da política para compreendê-los, mas você pode ter certeza de que as decisões legislativas e judiciais que forem tomadas agora determinarão que no futuro inovadores terão que pedir permissão antes de inventar a World Wide Web ou uma empresa caseira de um motor de busca (RHEINGOLD, 2012, p. 213/4, tradução nossa).

É neste contexto que, no Brasil, ganham força os debates sobre a criação de uma

legislação própria para a rede, uma espécie de Constituição para o seu funcionamento,

que ficou conhecido como Marco Civil da Internet, que garanta o direito à comunicação

horizontalizada, sem discriminação de qualquer ordem, a todos os cidadãos. Analisar

esse movimento, bem como as potencialidades do Marco Civil da Internet, especialmente

para a educação, é o objetivo deste artigo. Mas antes, importante se pensar sobre o

direito à comunicação e as condições concretas da situação brasileira, pois são sobre

essas bases que podemos pensar a educação brasileira.

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O Direito à Comunicação A comunicação faz parte da constituição do ser humano, pois é ela que garante a

possibilidade do social, da relação com o outro, do entendimento entre os sujeitos, da

transmissão do saber historicamente acumulado, da coordenação das ações, do

estabelecimento de normas, o que nos torna, segundo Mario Osório Marques (1999, p.

59), cidadãos singularmente autônomos e socialmente atuantes e corresponsáveis pelo

mundo que temos. Portanto, a comunicação é tão antiga quanto o próprio homem e,

embora a liberdade de pensamento e expressão apareça como um dos ideários das

revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, destacando-se nas principais

declarações de direitos dessa época, a exemplo da Declaração Francesa de Direitos do

Homem e do Cidadão, de 1789, e mais tarde, já no século XX, na Declaração Universal

dos Direitos Humanos, da ONU, de 1948, o tema da comunicação, enquanto fluxo de

informação, só passa a ser mais intensamente discutido no século XX, com a

disseminação e empoderamento dos meios de comunicação de massa, constituindo-se

como uma área do conhecimento.

Durante todo o século XX, segundo Eugenio Trivinho (1999, p. 181-182), procedimentos

práticos, categorias e esquemas teóricos pretenderam dar fundamentação científica à

Comunicação, convencionando-se encerrar o processo comunicacional em torno do

emissor e do receptor, destacando-se na relação entre eles mediadores sociais e

culturais, tais como a codificação, o contexto, o canal, a mensagem, o signo, o sentido,

o ruído. Para Raimunda Gomes (2007), destacam-se como focos de pesquisa os meios

de comunicação de massa, o conteúdo de suas mensagens, sendo a informação a maior

protagonista do processo, e o impacto dessas mensagens nas sociedades. Para esta

autora, a “onipotência das chamadas mídias obscureceu por muito tempo a práxis do

processo original: a comunicação” (GOMES, 2007, p. 35), embora alguns autores já

denunciassem as fissuras da teoria da comunicação em voga, a exemplo de Brecht, que

fez a crítica à transformação ocorrida com o rádio, que de um meio de comunicação que

permitia a interação e a mobilização política, passa a operar na perspectiva da

radiodifusão, com emissão controlada pelos monopólios e a serviço da lógica mercantil.

(FREDERICO, 2007)

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Foi somente no final do século XX, com a emergência das tecnologias da informação e

comunicação, mais especialmente com a internet, que emerge um outro processo

comunicacional, em rede, horizontalizado, interativo, que permite a realização de trocas

simbólicas (informações, sons, imagens) personalizadas, individualizadas e

descentralizadas. Neste novo processo, as categorias elementares da então Teoria da

Comunicação, segundo Trivinho (1999, p. 182-183),

perdem o seu caráter distinto, ora porque se imbricam, se sobrepõem ou se mesclam umas às outras, ora porque se ofuscam mutuamente, se auto-anulam e se desfiguram, com a agravante de que esse processo implosivo deixa de comprometer tão somente a natureza dos elementos básicos para deixar ainda em risco o próprio edifício esquemático sob o qual se finca a teoria. Comparecem aqui todas as características de uma era da confusão, expressão correspondente à fase atual da sociedade tecnológica.

Decorre daí a “'liberação' da palavra” (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 25), ou a hibridização das

funções de emissor e receptor, uma vez que, a partir dos sistemas e ferramentas de

comunicação próprios da web 2.0 (blogs, softwares sociais, twitter, wikis) e da

emergência dos dispositivos móveis, todo sujeito social que possua acesso ao

ciberespaço pode produzir e distribuir informações, e não apenas consumi-las, a partir

de qualquer lugar do planeta. Para os referidos autores, o fenômeno da “liberação da

emissão é correlata ao aumento da esfera pública mundial e da emergência de novas

formas de conversação e de veiculação da opinião pública, agora também planetária” (p.

25), o que provoca o surgimento de novas mediações e de novos agentes do processo

comunicacional. Em consequência, tensões se estabelecem, quer em torno dos modelos

de negócios do sistema estabelecido, que têm dificultado o acesso de boa parte da

população aos serviços de conexão, gerando a chamada “exclusão digital”, quer na

relação entre os cidadãos e os governos, quer ainda na legislação que tenta regular os

novos sistemas emergentes.

É no bojo dessas tensões que aparece a necessidade de tomar a comunicação como

um direito de todo cidadão. O primeiro movimento nessa direção se dá com a publicação,

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em 1980, do Relatório MacBride2, da Comissão Internacional para o Estudo dos

Problemas da Comunicação, da Unesco. Segundo Venício Lima (2008), o Relatório “foi

o primeiro documento oficial de um organismo multilateral que não só reconhecia a

existência de um grave desequilíbrio no fluxo mundial de informação e comunicações,

mas apresentava possíveis estratégias para reverter a situação”, incluindo “as primeiras

formulações sobre o 'direito à comunicação', que abarca o 'direito à informação' e avança

em relação às repetidas distorções na utilização dos princípios de liberdade de

expressão e de liberdade de imprensa.” Em decorrência, conferências regionais sobre

políticas culturais e políticas nacionais de comunicação, sob o patrocínio da Unesco,

foram realizadas em várias partes do mundo, bem como a Cúpula Mundial sobre a

Sociedade da Informação foi organizada e realizada, em duas etapas, em Genebra

(2003) e em Tunis (2005).

Ao longo desse período, os movimentos em favor do reconhecimento do direto à

comunicação - e a própria UNESCO - sofreram forte oposição dos conglomerados

globais de mídia e dos países hegemônicos, que lançaram “uma ofensiva mundial a favor

do 'livre fluxo da informação', bandeira com 'poder de fogo' equivalente ao princípio da

liberdade de imprensa” (LIMA, 2008), o que enfraqueceu o debate sobre a comunicação

como direito humano.

No entanto, tal debate ganha força novamente, no início deste novo milênio, incluindo o

Brasil, em virtude do poder que vai sendo centralizado nas mãos das grandes

corporações de telecomunicações, com forte articulação internacional, que impõem seus

modelos de negócios, sem que o governo possa adequadamente atuar, quer regulando

o sistema, quer ofertando serviços para a população de baixa renda, que fica submetida

aos altos custos e à baixa qualidade dos serviços ofertados pelas teles. Neste novo ciclo

de debates, duas frentes são abertas sobre o direito à comunicação, uma mais legalista,

que toma o direito à comunicação como uma evolução dos direitos à liberdade de

expressão e à informação, e portanto um direito humano universal, que deve ser

protegido; e outra mais alargada, que vem se destacando com mais força, e que abarca

2 O relatório intitula-se Um mundo e muitas vozes, mas ficou conhecido como Relatório MacBride, em uma alusão ao então presidente da Comissão Internacional, o jurista e prêmio Nobel da Paz Sean MacBride.

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reivindicações em torno de ações destinadas à democratização da comunicação, da

proposição de políticas públicas e da criação de um marco legal que assegure a liberdade

de informação, a garantia de acesso às TIC para todos, tanto no que diz respeito aos

dispositivos, quanto à conexão, e o apoio à produção de conteúdos locais, por todos os

grupos sociais.

Nesta segunda perspectiva, a comunicação é tomada na sua potencialidade de

promotora de direitos, uma vez que vivemos numa sociedade marcada pela

desigualdade, por preconceitos e pela violação constante dos direitos básicos dos

cidadãos. Para que esses direitos possam ser defendidos, protegidos, reivindicados,

bem como outros possam ser reconhecidos, efetivados, disponibilizados, é fundamental

que todos os sujeitos sociais tenham acesso aos meios de produção e veiculação das

informações, bem como condições de participar dos processos de formulação e

monitoramento das políticas relacionadas a cada um desses direitos. É no debate sobre

as questões sociais que os problemas vão se tornando “visíveis” e possíveis soluções

vão sendo construídas. Assim, a livre circulação de ideias, experiências e opiniões

possibilitam a emergência de novos discursos e práticas sociais e a criação de espaços

privilegiados de reconstrução da realidade, tornando a comunicação um instrumento de

poder, e, portanto, promotora de direitos, como vimos nos recentes movimentos da

população brasileira, em junho de 2013, denunciando insatisfação pelas condições

sociais e reivindicando seus direitos, mobilizados nas redes e nas ruas (PRETTO,

2014a). Logo, as redes digitais constituem-se no locus, ou são articuladoras das lutas

mais significativas pelos direitos dos cidadãos, e, segundo Bia Barbosa e João Brandt

(2005), do importante Coletivo Intervozes3, constranger o direito à comunicação dificulta

a promoção de todos os demais direitos.

Portanto, é a comunicação, hoje, uma questão central para a humanidade, a base para

uma organização social mais justa e igualitária, plena e democrática. Ainda, exerce um

papel educativo, uma vez que possibilita ao sujeito aprender, ter acesso ao

conhecimento, a compreender melhor o mundo e ser capaz de interferir em seu entorno

e na sociedade.

3 “Coletivo Brasil de Comunicação Social é uma organização que trabalha pela efetivação do direito humano à comunicação no Brasil.” http://intervozes.org.br

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A liberdade de acesso da população a todos os meios de comunicação, dos mais elementares aos mais sofisticados e a liberdade de uso desses canais de comunicação segundos suas necessidades, contribuem para o avanço da cidadania que se realiza não apenas pela possibilidade de participação na comunicação, mas essencialmente porque potencializa a ação cidadã na busca pela ampliação dos demais direitos. (SANTOS, 2013, p.95)

Ou seja, para que todo cidadão tenha voz e vez, e possa atuar ativamente em sociedade,

é fundamental o reconhecimento e a viabilidade do direito à comunicação, sem

condicionamentos ou impedimentos de quaisquer ordens, cabendo ao Estado a garantia

de seu exercício, sem limitá-lo à mera recepção passiva das informações produzidas de

forma centralizada e distribuídas de forma massiva, expressão de um ponto de vista

hegemônico. Para que as minorias, as culturas locais, os pontos de vista dissidentes,

contrários e contraditórios possam emergir e tensionar o hegêmonico, é fundamental que

a esses grupos seja garantido o acesso aos meios de comunicação horizontalizados,

que permitem a todos se comunicarem com todos, sem o controle externo dos meios.

Nesse contexto, a internet passa a se configurar como a grande possibilidade

comunicacional e de expressão das diferenças e, por isso, a delimitação de um marco

legal que garanta o princípio de neutralidade da rede é fundamental, pois impede

bloqueios ou discriminação dos fluxos de informação, possibilitando igualdade de direitos

a todos, ou seja, que a comunicação e a informação processada por qualquer um seja

equivalente a de qualquer outra pessoa, em qualquer ponto da rede.

O Marco Civil da Internet no Brasil

A história da presença da internet no país é marcada por lutas e avanços na busca da

implantação de uma rede que seguisse os modelos iniciais preconizados pelos seus

criadores. Desde o início de sua implantação, no final dos anos 1980, a internet no país

foi se constituindo como um esforço conjunto do setor acadêmico, governo e sociedade

civil, esta representada pelo chamada terceiro setor.

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As primeiras conexões com as redes mundiais se deram com a rede Bitnet, através de

duas conexões, sendo uma a partir da UFRJ e uma do LNCC (MCT), respectivamente

no Rio de Janeiro e em São Paulo. A partir destas conexões, diversas outras

universidades e instituições de pesquisas podiam acessar a rede de forma

compartilhada, como sempre foi o princípio da rede. De acordo com Michel Stanton, do

departamento de informática da PUC-Rio,

a organização das redes brasileiras, no final de 1991, foi eminentemente cooperativa, onde cada instituição participante custeava seu enlace de telecomunicações ou para o Rio ou para São Paulo. (É interessante notar que o enlace direto entre o Rio e São Paulo era custeado pelo governo federal, para manter a harmonia nacional.) Uma solução definitiva para o problema de projetar uma rede nacional deveria adotar uma topologia de malha, o que seria mais robusto, e poderia até reduzir custos de telecomunicações, pela maior utilização de enlaces mais curtos. (STANTON, 1998)

De acordo com Imre Simon, uma “outra ligação pioneira que deve ser mencionada é

aquela realizada pela rede Alternex, ligada ao IBASE, uma Organização Não-

Governamental que se ligou à rede USENET, via linha discada internacional, em julho de

1989” (SIMON, 1997). A partir do CNPq, em 1989, inicia-se a implantação de um projeto

denominado de Rede Nacional de Pesquisa (RNP) que passa, então a liderar a

implantação da rede com a instalação do primeiro backbone nacional em 1991, com links

de 9.600 bps (SIMON, 1997).

Com a realização da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e

Desenvolvimento, mais conhecida como ECO 92, no Rio de Janeiro, entidades civis e

acadêmicas viabilizaram a conexão via internet do evento, constituindo-se num

importante marco da história da internet no país. Mais uma vez, “respondendo a

demandas de entidades civis e acadêmicas, o Ministério de Ciência e Tecnologia liderou

a criação de uma comissão nacional para acompanhar e coordenar o desenvolvimento

da Internet no país”, segundo artigo de um dos pioneiros da internet, Carlos A. Afonso

(2011, p. 17), que, na época, junto com o sociólogo Betinho, atuavam no IBASE e, desta

forma, demandavam que o acesso não se limitasse à comunidade acadêmica, mas que

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pudesse estar disponível às diversas ONG existentes no país. Nascia assim o Comitê

Gestor da Internet (CGI.br), com a missão de ser o

formulador, orientador ou executor de políticas relacionadas ao desenvolvimento da Internet no país. O decreto original de criação destacava quatro campos de atuação: supervisionar o desenvolvimento dos serviços Internet; avaliar e recomendar padrões e procedimentos operacionais e técnicos; coordenar a designação de nomes de domínio “.br” e números IP; publicar estatísticas sobre a Internet (AFONSO, 2011, p. 17).

Dessa forma, a internet foi se implantando no país pela ação do CGI.br e da RNP, que

atuava de forma integrada com as Instituições Federais de Ensino Superior, instalando

nela os chamados Pontos-de-Presença (POP) que teriam a função de implantar a rede

nos Estados, articulando os demais setores não acadêmicos, como os governos

estaduais e municipais e a sociedade civil através das ONG. O acesso comercial passa

a se dar a partir do ano de 1995, sendo esta uma história que ainda merecerá

aprofundamento. Para o que nos interessa neste artigo, importante trazer, mais uma vez,

Carlos Afonso, com o detalhamento das mudanças na governança da internet no país.

Carlos Afonso:

No final de 2002 entidades civis e acadêmicas construíram uma proposta de aprofundamento da representação e dos objetivos do CGI.br, entregue a representantes da Casa Civil em fevereiro de 2003. O governo federal decidiu então nomear um comitê de transição para ‘estudar e propor um novo modelo de governança da Internet no Brasil’. Desse comitê fizeram parte tanto membros antigos do CGI.br como representantes que defendiam novas propostas. O resultado deste processo foi sacramentado no decreto 4.829, de 3 de setembro de 2003, que definiu uma estrutura pluralista de governança em que os membros não governamentais da comissão teriam maioria e seriam escolhidos pelos seus próprios setores ou grupos de interesses, e melhor precisou suas atribuições. (AFONSO, 2011, p. 18).

A atuação do CGI marcou a governança da internet brasileira, tendo sido destacado

internacionalmente este modelo, uma vez que, em todo o mundo, a temática de como

garantir o funcionamento aberto e democrático da rede é um tema presente. Um dos

marcos desta atuação foi a formulação de princípios norteadores da internet no país,

princípios esses que serviram de base para o que veio a ser conhecido posteriormente

como Marco Civil da Internet. Mais uma vez Carlos Afonso: “o resultado foi um exemplo

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de consenso pluralista, sintetizado em dez princípios que tornaram-se uma referência

nos debates internacionais sobre governança da Internet” (2011, p. 21).

São os seguintes os princípios:

1. Liberdade, privacidade e direitos humanos O uso da Internet deve guiar-se pelos princípios de liberdade de expressão, de privacidade do indivíduo e de respeito aos direitos humanos, reconhecendo-os como fundamentais para a preservação de uma sociedade justa e democrática. 2. Governança democrática e colaborativa A governança da Internet deve ser exercida de forma transparente, multilateral e democrática, com a participação dos vários setores da sociedade, preservando e estimulando o seu caráter de criação coletiva. 3. Universalidade O acesso à Internet deve ser universal para que ela seja um meio para o desenvolvimento social e humano, contribuindo para a construção de uma sociedade inclusiva e não discriminatória em benefício de todos. 4. Diversidade A diversidade cultural deve ser respeitada e preservada e sua expressão deve ser estimulada, sem a imposição de crenças, costumes ou valores. 5. Inovação A governança da Internet deve promover a contínua evolução e ampla difusão de novas tecnologias e modelos de uso e acesso. 6. Neutralidade da rede Filtragem ou privilégios de tráfego devem respeitar apenas critérios técnicos e éticos, não sendo admissíveis motivos políticos, comerciais, religiosos, culturais, ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento. 7. Inimputabilidade da rede O combate a ilícitos na rede deve atingir os responsáveis finais e não os meios de acesso e transporte, sempre preservando os princípios maiores de defesa da liberdade, da privacidade e do respeito aos direitos humanos. 8. Funcionalidade, segurança e estabilidade A estabilidade, a segurança e a funcionalidade globais da rede devem ser preservadas de forma ativa através de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e estímulo ao uso das boas práticas. 9. Padronização e interoperabilidade A Internet deve basear-se em padrões abertos que permitam a interoperabilidade e a participação de todos em seu desenvolvimento. 10. Ambiente legal e regulatório

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O ambiente legal e regulatório deve preservar a dinâmica da Internet como espaço de colaboração.”4

Mas estes princípios não bastariam. Com a expansão do sistema de telecomunicações,

privatizados desde o ano 1998, a partir da promulgação da Lei Geral da

telecomunicações (Lei 9.472/97), inicia-se mais uma etapa na luta pela garantia de

acesso público aos recursos da comunicação. A universalização do sistema já estava

prevista na referida lei a partir da instituição de um Fundo de Universalização dos

Serviços da Telecomunicações (FUST) que, no entanto, ao longo de todos esses anos

não foi utilizado para os seus fins. Não trataremos deste importante tema pois o mesmo

já foi bastante discutido, como em Queiroz (2010), e seus relatórios de gestão estão

disponíveis no site da Anatel5.

Assim, desde o final dos anos 1990, discute-se no Brasil formas de se regular o acesso

e uso da internet no país. A primeira iniciativa na linha de uma regulação da rede

acontece em 1999 com o Projeto de Lei (PL) 84, proposto pelo senador Eduardo Azeredo

(PSDB/MG) objetivando tipificar crimes praticados na internet. A lei foi logo denominada

pelos ativistas de AI-5 Digital, gerando ampla mobilização nas redes. Um agregador da

luta contra esse projeto de lei foi o movimento “Mega-Não - diga não a vigilantismo”.6 O

referido PL passou praticamente 11 anos parado no Congresso e, em 2011 voltou à baila

pelo mesmo Eduardo Azeredo, agora Deputado Federal.

Neste meio tempo, governo e sociedade civil mobilizaram-se em defesa da ideia de

primeiro se ter um Marco que regulamentasse o uso da internet para, somente depois se

pensar em algum tipo de legislação que tipificasse crimes. Também, tivemos uma

sucessão de projetos de leis que tramitaram no cenário internacional, voltadas para o

controle dos fluxos nas redes, a exemplo do já citado PL 84/99 que terminou aglutinando

outros projetos de lei que já estavam em tramitação para tipificar condutas realizadas

mediante uso de sistemas digitais e rede de computadores, e as leis PIPA, SOPA e

ACTA7, todas apresentadas com o argumento de proteger os direitos dos internautas,

4 http://www.cgi.br/resolucoes/documento/2009/003, acesso: 22 ago. 2014. 5 http://www.anatel.gov.br 6 https://meganao.wordpress.com/ 7 SOPA (Stop Online Piracy Act), PIPA (Protect IP Act), ACTA(Anti-Counterfeiting Trade Agreement)

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mas tratando a internet como um ambiente criminoso, e deixando explícita a intenção de

vigilância, cerceamento de liberdades, e quebra de privacidade.

No Brasil, o que se buscou, ao longo deste tempo, foi garantir que a rede mantivesse

sua dinâmica livre e aberta. No período que vai de 1999 até meados do ano 2000, a

discussão sobre a necessidade de um marco regulatório para a internet que não fosse

centrada em uma lógica de criminalização vai ocorrendo na surdina dos movimentos

sociais e do próprio Congresso Nacional. Em janeiro de 2008 é realizada na Câmara dos

Deputados uma audiência pública organizada pela Comissão de Ciência e Tecnologia,

Comunicação e Informática em conjunto com a Comissão de Segurança Pública e

Combate ao Crime Organizado para retomar a discussão sobre o tema8, já que havia

possibilidade de que o antigo projeto 84/99, aprovado pelo Senado, retornasse à Câmara

na forma de substitutivo do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG). A organização dos

ativistas contrários ao, como já dito, AI-5 Digital, intensificou-se. Foram diversas ações,

como pode ser acompanhada na linha do tempo acima referida, dia de blogagens contra

o movimento, produção de peças gráficas que eram distribuídas e ocupavam as redes,

tuitagens coletivas em dias de discussão no Congresso, entre outras9. Ao longo de 2008

uma petição pública “Em defesa da liberdade e do progresso do conhecimento na

internet brasileira” circulou na internet e terminou sendo entregue ao Congresso com

mais de 160 mil assinaturas. O texto da petição recupera a história da internet ao afirmar:

A Internet é uma rede de redes, sempre em construção e coletiva. Ela é o palco de uma nova cultura humanista que coloca, pela primeira vez, a humanidade perante ela mesma ao oferecer oportunidades reais de comunicação entre os povos. E não falamos do futuro. Estamos falando do presente. Uma realidade com desigualdades regionais, mas planetária em seu crescimento.10

Para então concluir, em defesa da internet brasileira:

Defendemos a necessidade de garantir a liberdade de troca, o crescimento da criatividade e a expansão do conhecimento no Brasil. [...] Devemos estimular a colaboração e enriquecimento

8 O movimento em defesa do Marco Civil da Internet construiu de maneira colaborativa uma linha do tempo das ações em defesa de um Marco Civiul da Internet que está disponível em:< http://bit.ly/1oWBG0y>. Acesso em: 22 ago. 2014. 9 Entre outros, http://xocensura.wordpress.com/2008/07/05/chamada-para-o-dia-da-blogagem-politica, http://meganao.wordpress.com e

https://twitter.com/hashtag/megan%C3%A3o. 10 http://www.petitiononline.com/veto2008/petition.html, acesso: 22 ago. 2014.

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cultural, não o plágio, o roubo e a cópia improdutiva e estagnante. E a Internet é um importante instrumento nesse sentido. Mas esse projeto coloca tudo no mesmo saco. Uso criativo, com respeito ao outro, passa, na Internet, a ser considerado crime. Projetos como esses prestam um desserviço à sociedade e à cultura brasileira, travam o desenvolvimento humano e colocam o país definitivamente para debaixo do tapete da história da sociedade da informação no século XXI.11

No final de 2009, a partir de um texto base elaborado pela Secretaria de Assuntos

Legislativos do Ministério da Justiça, em parceria com o Centro de Tecnologia e

Sociedade da Fundação Getúlio Vargas, e com base no Decálogo da Internet Brasileira

(a resolução CGI.br/RES/2009/003/P12 do Comitê Gestor da Internet no Brasil), inicia-se

um processo de consulta pública aberto e colaborativo, que contou com a participação

da sociedade civil em diversos momentos, tanto online como offline, pelo período de dois

anos. Essa dinâmica de construção de um projeto de lei lhe conferiu caráter inédito, tanto

em âmbito nacional como internacional. Nesse processo, procurou-se desenhar um

Marco Civil da Internet como uma Lei que estabelecesse princípios, direitos e deveres

para o uso da internet no país e, portanto, o Projeto de Lei – PL 2.126/2011 – enviado ao

Congresso com a denominação de Marco Civil da Internet foi elaborado com base numa

ampla discussão com a sociedade, e apresentado pelo Poder Executivo ao Congresso

Nacional em agosto de 2011.

Em discurso realizado durante a 66ª Assembleia Geral da ONU, em Nova York, no painel

“Internet Access for All?” (Acesso à Internet para todos?), o secretário de negócios

legislativos do Ministério da Justiça, Guilherme Almeida, descreve o processo:

Com relação ao processo, vale a pena mencionar que ele começou a partir de uma demanda da sociedade. (...) Esta demanda levou o Ministério da Justiça a iniciar um processo de construir, em conjunto com todas as partes interessadas, uma estrutura para a internet no Brasil baseada nos direitos civis. Neste processo, tivemos a colaboração do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getulio Vargas, um importante grupo brasileiro para questões de tecnologia. Para promover um debate aberto e online, montamos um site como parte do 'Cultura Digital', rede social brasileira patrocinada pelo

11 idem, ibidem 12 http://www.cgi.br/resolucoes/documento/2009/003

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Ministério da Cultura para promover a discussão de políticas públicas digitais. Realizamos a elaboração da proposta em duas distintas frentes. Na primeira delas, apresentamos um livro branco, a fim de contextualizar as discussões, que foram organizadas em três diferentes eixos: direitos do usuário, um segundo em relação aos deveres e responsabilidades dos prestadores de serviços, e um terceiro focado nas ações governamentais necessárias para a promoção da Internet. Nesta primeira fase, cada parágrafo do texto proposto foi aberto para comentários não moderados.13

Foram mais de 2 mil contribuições de todos os setores da sociedade brasileira,

analisadas pelo Ministério da Justiça, e discutidas no interior do próprio governo para,

finalmente, ser enviado o texto ao Congresso, com os seus 25 artigos.

Já no Congresso, o tema foi incluído no portal e-democracia14, importante espaço para

as discussões dos projetos em tramitação no Congresso brasileiro. No site15 dedicado à

discussão sobre o tema podem ser encontradas as diversas versões do referido marco

legal e as discussões travadas ao longo do período de tramitação do mesmo, até o dia

13 Tradução nossa para ““With respect to the process, it is worth mentioning that it started from a request from society. [...] This request led the Brazilian Ministry of Justice to start a process to build, jointly with all interested parties, a civil rights-oriented framework for internet in Brazil. In this process, we had the close collaboration of Fundação Getulio Vargas’ Center for Technology and Society, an important Brazilian think tank for technology issues. To promote an open and online discussion, we set up a website at “Cultura Digital”, a Brazilian social network sponsored by Brazilian Ministry of Culture to promote the discussion of digital public policies. We conducted the drafting in two different phases. In the first one, we presented a white paper in order to contextualize the discussions, which have been arranged in three different axes: one concerning user’s rights, a second regarding service providers’ duties and liabilities, and a third focused on governmental activities which would be necessary to promote the internet. In this first phase, each paragraph of the proposed text was open for non-moderated comments.” http://culturadigital.br/marcocivil/2011/10/22/experiencia-do-marco-civil-da-internet-e-apresentada-na-onu/, acesso: 04 set. 2014. 14 O portal e-democracia foi criado em 2009 pela Câmaraa dos Deputados com o objetivo de usar a internet para “incentivar a participação da sociedade no debate de temas importantes para o país. Acreditamos que o envolvimento dos cidadãos na discussão de novas propostas de lei contribui para a formulação de políticas públicas mais realistas e implantáveis.” Veja em http://edemocracia.camara.gov.br, acesso: 02 ago. 2014. 15 http://edemocracia.camara.gov.br/web/marco-civil-da-internet/inicio

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23 de abril de 2014, quando o Marco Civil foi finalmente aprovado e sancionado pela

Presidência da República, como a Lei Ordinária nº 12.965/2014.

Durante este longo período, muitas disputas se estabeleceram em torno da redação do

texto final, disputas estas que marcaram o embate entre as possibilidades de liberdade

e de controle da internet no país.

A polêmica no Congresso: os três direitos garantidos pelo Marco

Civil

Três grandes contenciosos ocuparam o debate ao longo de todo esse tempo: a

neutralidade da rede, a retirada de conteúdo sem ação judicial e a garantia de

privacidade/guarda de logs.16

Neutralidade da rede - esta, sem dúvida, foi a questão que mais rendeu debate e uma

verdadeira batalha foi travada ao longo da tramitação da lei do Marco Civil. Basicamente,

podemos definir a neutralidade da rede como sendo, primeiro, uma das características

que marcou a internet desde o seu nascimento; segundo, podemos afirmar que a

neutralidade da rede define que, para as operadoras do sistema de infraestrutura, todos

os bits trafegados devem ser tratados de forma isonômica, ou seja, não pode haver

nenhum tipo de descriminação do que está sendo trafegado. Por isso, o embate se deu

entre os segmentos que defendiam uma internet livre e neutra e as grandes corporações

de telecomunicações, que tentavam garantir a possibilidade de continuar aplicando seu

modelo de negócios à internet, modelo esse já em uso tanto para a telefonia como para

a TV a cabo, ou seja, as teles buscavam garantir o direito de segmentar os conteúdos

da rede através da venda de pacotes, controlando assim seu fluxo.

Ao término, a redação da lei 12.965 assim definiu a questão, em seu artigo 9º: “O

responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma

isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino,

16 Um resumo geral de todas as versões do Marco Civil ao longo de todo o processo pode ser

encontrado, entre tantos outros, no trabalho de Marcelo Pimenta, Flávio Wagner e Diego R. Canabarro na “Tabela comparativa da redação das versões do Substitutivo do Dep. Alessandro Molon ao texto do Projeto de Lei 2.126/2011 (Marco Civil da Internet do Brasil). Disponível em <file:///home/nelson/Dropbox/marco%20civil%20da%20internet/CEGOV%20-%202014%20-%20Tabela%20Comparativa%20Versoes%20Marco%20Civil.pdf>. Acesso em 01 set. 2014.

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serviço, terminal ou aplicação” (BRASIL, 2014). A lei prevê que uma eventual

descriminação ou degradação do tráfego somente pode ocorrer mediante uma

regulamentação complementar, atribuída à Presidência da República (ouvidos o Comitê

Gestor da Internet e a ANATEL) e decorrente de requisitos técnicos indispensáveis à

prestação dos serviços ou priorização a serviços de emergência. Essa foi uma vitória

parcial da sociedade civil que lutou através de forte articulação em rede e por pressão

no Congresso Nacional, para que a neutralidade fosse garantida sem nenhuma exceção.

Como esse foi um dos pontos onde as operadoras de telecomunicações mais

pressionaram, a redação final terminou deixando algumas brechas para a quebra de

neutralidade, através da regulamentação da lei.

Retirada de conteúdo - conhecida como “notice and takedown”, este foi outro dos

motivadores das grandes polêmicas, uma vez que se desejava incluir no marco legal a

possibilidade de responsabilização dos provedores por conteúdos publicados na rede

por terceiros, responsabilização essa atribuída por qualquer pessoa que julgasse ter tido

algum direito infringido pela publicação na internet, sem nenhuma ação judicial. Como

diz a própria denominação do dispositivo, bastaria ao suposto prejudicado comunicar ao

provedor e ele teria que, imediatamente, retirar o conteúdo da rede. Argumentava-se que

a prática já existia em outros países e que, com isso, ganharia-se em celeridade nos

processos de retirada de conteúdo da internet, o que, com veemência, foi combatido pelo

movimento social aglutinado em torno da campanha pelo Marco Civil.

Ao longo das discussões com o relator do processo, deputado federal Alessandro Molon

(PT-RJ), avançou-se para não incluir o Notice and Takedown no texto legal (artigo 15º).

No entanto, entre tantas idas e vindas, com as inúmeras versões circulando pela rede,

oficial e oficiosamente, surgiu uma versão que mantinha basicamente o espírito do

referido artigo 15º, mas incluía um segundo parágrafo, que não existia até então,

possibilitando a retirada de conteúdo em caso de violação de direito autoral.17 A inclusão

deste novo parágrafo foi acompanhada de protestos nas redes, uma vez que associava-

se à pressão da própria ministra da Cultura, Marta Suplicy, e também de grande grupos

da mídia, como as Organizações Globo, conforme declaração do sociólogo Sérgio

17 “O disposto neste artigo não se aplica quando se tratar de infração a direitos do autor ou a direitos conexos”, conforme substitutivo I de 4/7/2012.

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Amadeu da Silveira, rebatidas pelo relator Alessandro Molon.18 A última versão, que deu

origem à lei aprovada, não continha mais este parágrafo, constituindo-se numa

importante vitória dos movimentos sociais na construção do Marco Civil da Internet.

Ainda, nesta linha, a redação do artigo 19º contemplou a luta para que a remoção de

conteúdos só se desse a partir de ação judicial. Com isso, assim ficou o texto legal:

Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. (BRASIL, 2014)

Garantia da privaciadde/guarda de logs - por último, mas não menos importante, e

obviamente não esgotando a questão nem as polêmicas, vem a problemática da guarda

de logs (guarda dos registros). Este foi um tema que terminou dando um impulso à

aprovação do Marco Civil por conta da divulgação de informações coletadas e

armazenadas pela Agência de Segurança Nacional (NSA, em inglês) americana, por um

funcionário terceirizado, Edward Snowden, que trabalhava para a NSA. Em função do

que ficou conhecido como sendo o Caso Snowden - que mostrou estarem sendo

espionadas diversas autoridades em diversos países, inclusive o Brasil e sua presidente

-, o tema da segurança das informações e da guarda dos logs ganhou relevância ainda

maior. A discussão posta era, basicamente, sobre quem deveria guardar os registros de

navegação e por quanto tempo.

Uma difícil discussão, uma vez que a temática é permeada por aspectos técnicos. O

resultando final, no entanto, garantiu, em última instância, a privacidade como princípio

e direito fundamental. Vale aqui resgatar, apesar de longa, a síntese feita por Joana

18 Respectivamente em http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/07/sergio-amadeu-a-globo-quer-desvirtuar-o-marco-civil/ e

http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/07/marco-civil-pela-neutralidade-privacidade-e-liberdade/, acesso: 12 jul. 2014. Também em http://www.idec.org.br/em-acao/artigo/noticias-do-brasil-um-pouco-sobre-o-marco-civil-da-internet e

http://idgnow.com.br/blog/circuito/2013/10/18/entidades-do-setor-audiovisual-defendem-notice-and-take-down-no-marco-civil/, acesso: 12 jul. 2014.

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Varon e Bruna Castanheira no site Oficina Antivigilância19, sobre o princípio da proteção

da privacidade garantido na lei:

● “Provedores de conexão devem manter registros de conexão por 1 ano, nos termos do regulamento. E são vedados de guardar registros de acesso a aplicações.

● Autoridade policial ou administrativa ou Ministério Público podem requerer guarda por prazo superior. Nesse caso, não há limite de prazo. Tal requerimento será mantido em sigilo pelo provedor responsável pela guarda dos registros, desde que depois do pedido cautelar da autoridade haja ordem judicial pela guarda.

● Provedores de aplicação ‘constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet’. É vedada a guarda de registros de acesso a outras aplicações se não houver consentimento e de dados pessoais excessivos em relação à finalidade do consentimento.

● Ordem judicial poderá determinar a guarda obrigatória de registros específicos para provedores que não se encaixam nesse perfil, desde que por período determinado.

● Autoridade policial ou administrativa ou Ministério Público podem requerer guarda por prazo superior. Nesse caso, não há limite de prazo fixado na lei.

● Parte interessada poderá requerer o fornecimento de registros de conexão ou de acesso a aplicações com o propósito de formar provas em processo cível ou penal, desde que apresente a) indícios da ocorrência de ilícito, b) justificativa da utilidade de tais registros e c) período dos registros requeridos.

● ‘O provedor responsável pela guarda somente será obrigado a disponibilizar os registros de conexão e de acesso a aplicações de forma autônoma ou associados a dados pessoais ou a outras informações que possam contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, mediante ordem judicial.’

● O conteúdo das comunicações privadas também só poderá ser disponibilizado por ordem judicial.

● Dados cadastrais poderão ser disponibilizados para ‘autoridades administrativas que detenham competência legal para sua requisição.’” (as citações internas são da Lei 12.965/2014)

Como pode ser visto, esta guarda deve atender à preservação da intimidade, da vida

privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas. O texto

19

https://antivigilancia.wiki.br/boletim_antivigilancia/9#trilha_1ativismo_e_politicas_digitais, acesso: 07 set. 2014.

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final da Lei indicou, como resultado das discussões, que esses dados deveriam ser

guardados por um ano, apenas pelos administradores de sistema autônomo. Importante

observar que ao se falar em guarda de logs, temos que diferenciar o que seja a guarda

de registro de conexão (data, hora e duração da conexão de um determinado número

IP) e guarda do log de acesso à aplicações (data e hora de uso de uma aplicação por

um determinado número IP). Sendo assim, o que ficou na versão final é que devem ser

guardados apenas os registros de conexão.

Esses foram os três contenciosos principais em torno do Marco Civil da Internet que

geraram intensas discussões e negociações, mas que marcaram o movimento brasileiro

em torno da efetivação do direito à comunicação. O resultado desse movimento foi a

garantia, pelo menos temporariamente, dos princípios que nortearam a constituição e o

desenvolvimento da rede, e da possibilidade de todos terem acesso igualitário e poderem

se expressar com liberdade. Temporariamente porque, no momento que fechávamos

este texto, não tendo o Marco Civil completado nem mesmo cinco meses de vigência, já

havia sido proposto no Senado o Projeto de Lei número 180/2014, com o objetivo de

alterar alguns dos seus dispositivos, ”para estabelecer a finalidade e restringir o rol de

autoridades públicas que podem ter acesso a dados privados do cidadão na internet,

prever a possibilidade de recurso contra decisão interlocutória que antecipa tutela no

âmbito dos Juizados Especiais e dar outras providências”, conforme matéria publicada

no site do Instituto Telecom20, o que evidencia que o tema não está esgotado e que

tensões e negociações em torno do Marco Civil continuarão a se desenrolar. Isso,

obviamente, mostra-nos a importância de uma permanente vigilância de toda a

sociedade para que possamos, efetivamente garantir o pleno uso da internet, com

liberdade e privacidade, a todas as camadas da população.

Potencialidades e desafios para a educação

20

http://institutotelecom.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5999:projeto-de-lei-no-senado-pretende-alterar-o-marco-civil-da-internet&catid=1:latest-news, acesso: 31 ago. 2014

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Todas as questões até aqui tratadas estavam mais voltadas para uma leitura do mundo

contemporâneo. Importante agora olhar a educação. E, para tal, é necessário se pensar

na presença das tecnologias digitais de informação e comunicação na educação não

como mera ferramentas auxiliares dos processos educacionais instituídos, conforme já

avançamos em outros textos (PRETTO, 2011 e PRETTO, 2014b). No conseguimos

pensar em um sistema educacional que continue centrado na lógica da transmissão e de

distribuição de informações, embora este ainda seja o modelo hegemônico. Nesse

modelo, o conhecimento está centrado nos livros, nos professores, e agora também nas

redes, e deve ser transmitido aos alunos, cabendo a estes consumi-los e assimilá-los.

No passado, as informações eram escassas e fazia sentido procurarmos a escola e os

mestres para buscá-las. No entanto, hoje, temos abundância de informações, e isso,

diferentemente do que pensam alguns (KEEN, 2008, entre outros), é muito importante

para a formação da juventude.

Com a emergência das redes interativas, horizontais e descentralizadas, novas questões

são incorporadas ao processo formativo, tais como o estabelecimento de relações, a

interatividade, a problematização e a produção do conhecimento. A partilha do

conhecimento passa a ser potencializada uma vez que o resultado desta produção passa

a estar disponível na rede, viabilizando, com isso, um uso pleno e ampliado, estimulando

as práticas recombinantes, com todos podendo usar, copiar, reproduzir e remixar os

conteúdos, naquilo que denominamos de um círculo virtuoso de produção de culturas e

conhecimentos. Desta forma, estimula-se o envolvimento de todos, alunos, professores

e comunidades, partindo do princípio da colaboração em rede, possibilitando não só a

partilha, como também a produção do conhecimento de forma horizontalizada. Aqui,

importante destacar que o conhecimento estabelecido é parte deste diálogo e sua

partilha possibilita que o mesmo seja utilizado e aprendido como integrante do processo

de produção de novos conhecimentos e culturas.

Também, a comunicação passa a ser ampla e generalizada e, com isso, a aprendizagem,

nesse contexto, não se dá na mera relação sujeito-objeto, concepção superada pelas

perspectivas interacionistas, que entendem que a aprendizagem se dá na relação entre

sujeitos: “[...] funda-se a aprendizagem no mundo dos homens que ouvem uns aos

outros, postos à escuta das vozes que os interpelam” (MARQUES, 1995, p. 110).

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Portanto, a possibilidade de comunicação horizontalizada permite que os sujeitos

aprendentes, alunos e professores, possam ter acesso ao conhecimento produzido pela

humanidade, uma vez que praticamente tudo já está disponível nas redes e, desta forma,

possam compartilhar suas ideias, suas culturas, seus referenciais, suas concepções de

mundo, aprendendo, todos com todos, e contribuir para uma compreensão mais ampla,

critica e complexa da própria sociedade. Possibilita ainda que professores e alunos

participem e/ou desencadeiem movimentos ativistas em torno de questões sociais e

profissionais, interferindo em seu entorno e na sociedade.

Desta forma, com uma rede fortalecida, a produção de conteúdos passa, também ela, a

se dar de forma aberta, incorporando todas as potencialidades dos ambientes da web

2.0. Como não estamos mais dependentes da mídia de massa, ou da indústria cultural,

temos a possibilidade efetiva de nos posicionarmos – professores e alunos – como

propositores, idealizadores, autores, de transformarmos a escola num espaço de criação

e socialização dessa produção. Produção que pode ser realizada nas mais diferentes

linguagens, já que as tecnologias digitais possibilitam trabalhar com qualquer uma delas.

Historicamente, a produção da escola não tem visibilidade, pois fica restrita ao seu

contexto interno. Temos agora as condições para ultrapassar suas paredes, aproximando

o mundo de dentro da escola do contexto social mais amplo.

Ainda, para ampliar a nossa capacidade de leitura das informações que abundam,

precisamos pensar a leitura numa dimensão muito maior daquela que estamos

acostumados a associar às letras e, no máximo, aos números. Agora, muito mais do que

antes, isso é insuficiente. É importante que tenhamos a capacidade de ler num sentido

muito mais amplo. Uma leitura do mundo, que inclua a leitura dos códigos de

programação dos computadores; a leitura das imagens que circulam de forma frenética

pelas redes e pelas ruas; a leitura do corpo cada vez mais preso a gadgets eletrônicos;

e a leitura do ambiente cada vez mais destruído, aqui, ali e acolá.

Paralelamente e de forma complementar, precisamos pensar na escrita, esta também

para além da escrita associada às letras e avançarmos, como propõe Douglas Rushkof

(2010), para o ensino da linguagem dos computadores, ou seja, para o ensino de

programação nas escolas. O reconhecimento dessas potencialidades vem mudando

alguns sistemas de educação, como é o caso da rede educacional de Madrid, Espanha,

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que deverá incorporar, a partir de 2015, a programação como atividade obrigatória para

o ensino secundário21, com o objetivo de que os alunos aprendam a criar sítios web,

aplicações para smartphone, jogos e adquiram conhecimento de robótica. A grande meta

com esse projeto é colocar o país na vanguarda da educação mundial, pois com esses

conhecimentos os alunos efetivamente estarão sendo preparados para compreender e

atuar numa sociedade altamente tecnologizada. Algumas iniciativas envolvendo

programação de computadores também estão em curso no Brasil, mas ainda muito

concentradas nas escolas privadas.

O desafio posto à educação, em geral, e à escola pública, em particular, é criar ambientes

onde esses conhecimentos possam ser trabalhados com os alunos e onde a vasta gama

de informações a que os alunos têm acesso seja discutida, analisada e gere novos

conhecimentos, onde as práticas pedagógicas e os currículos sejam abertos, flexíveis,

hipertextuais, para dar conta da diversidade de temas que atravessam o cotidiano dos

sujeitos aprendentes. No entanto, para que essas novas perspectivas possam

consolidar-se é necessário tomar a liberdade como princípio. É na liberdade, e não no

cerceamento, de forma coletiva e colaborativa, que o conhecimento é produzido, que a

autoria e a criatividade emergem.

Nesse sentido, o acesso à infraestrutura de comunicação, com todas as liberdades e

possibilidades que discutimos ao longo deste texto, é fundamental. E acesso pleno

requer qualidade de conexão, tanto na largura da banda como na estabilidade do sinal,

serviço que as escolas não estão recebendo das operadoras comerciais. No Brasil, a

conexão das escolas está na mão destas operadoras, pois, em 2008, o governo lançou

o Programa Banda Larga nas Escolas (PBLE), e, para operacionalizá-lo, alterou o Plano

Geral de Metas para a Universalização do Serviço Telefônico Fixo Comutado Prestado

no Regime Público – PGMU (Decreto nº 4.769)22, passando a contar com as operadoras

comerciais para a conexão de todo o sistema de escolas públicas urbanas no país.

21 http://www.fayerwayer.com/2014/09/programacion-web-sera-una-asignatura-obligatoria-en-los-colegios-de-madrid/?utm_content=buffer54e85&utm_medium=social&utm_source=facebook.com&utm_campaign=buffer. Acesso: 08 set. 2014. 22 Disponível em:

http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/DEC%204.769-2003?OpenDocument, Acesso: 08 set. 2014.

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Conforme o compromisso assumido pelas empresas, mesmo as novas escolas que

surgissem durante a execução do programa deveriam estar conectadas até 2010. No

entanto, muitas escolas urbanas ainda não foram atendidas, segundo o site desenvolvido

pela ONG Meritt e pela Fundação Lemann23, que organiza as informações veiculadas

pelo poder público. Constata-se, a partir dos dados analisados, que 84% das escolas

públicas urbanas possuem conexão, sendo que banda larga é oferecida a apenas 73%

das escolas. O dado bruto poderia ser alvissareiro se não tivéssemos acesso à realidade

cotidiana das escolas que apontam claramente para uma ausência de conexão, seja por

não estar ativa, seja por conta da velocidade da conexão e estabilidade do sinal. No que

diz respeito às escolas rurais, a situação ainda é mais crítica, apenas 14% delas

possuem conexão internet, sendo que banda larga só está disponível em 7% das

escolas.

Esse quadro mostra que a conexão das escolas não pode ficar sob a responsabilidade

única das operadoras privadas, demandando políticas públicas que garantam que o

acesso à internet seja um direito fundamental, disponível para todo o cidadão, com

qualidade. Entre os tantos aspectos da questão, as relativas ao marco legal é uma

dessas questões e, como esperamos ter apresentado neste artigo, representa um grande

desafio que está sendo enfrentado com luta e participação social, o que consideramos

ser uma das importantes funções de um sistema educacional que busque a formação de

um cidadão crítico.

Referências AFONSO, Carlos A. CGI.br: história e desafios atuais. PoliTICs, n. 11, dez. 2011. Disponível em: <http://www.politics.org.br/sites/default/files/poliTICS_11_Pag16_27_CGI.br_.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2014.

23 http://www.qedu.org.br/brasil/censo-escolar

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